IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE. Grupo de Trabalho: Antropologias do sensível: diálogos entre etnografia, cultura e imaginação. A constituição do sagrado no imaginário da população de Várzea Alegre-CE a respeito da figura Maria de Bil. Daniele Ribeiro Alves. [email protected]. Universidade Estadual do Ceará-UECE. Clara Maria Holanda [email protected]. Universidade Estadual do Ceará-UECE. Maria Helena de Paula [email protected]. Universidade Estadual do Ceará-UECE. 1. Introdução O sagrado é um campo de simbologias que envolvem crenças e práticas religiosas tidas como invioláveis e inquestionáveis, fazendo parte dos valores de uma sociedade. O lócus deste estudo é refletir sobre as representações simbólicas constituídas no imaginário da população de Várzea Alegre-CE a respeito do assassinato e “veneração” a Maria de Bil, mulher assassinada pelo ex-companheiro, que não aceitava o fim do relacionamento. A contribuição fundamental para a escolha desse tema foi à investigação em um dos principais jornais de circulação de Fortaleza “O Povo”, o qual produziu cadernos especiais com o tema “Santificados”. São eles: Caderno um “Nos Altares de Beira de estrada” (produzido em trinta de abril de 2011, p.113); Caderno dois “Das Paredes de Lembrar, Vidas e Credos” (lançado em quinze de maio de 2011, p.1-13) e Caderno três “Da Graça de Acreditar ou Duvidar” (produzido em cinco de junho de 2011, p.1-13). Neles há informações de histórias das “santas” (os) do Ceará “canonizadas” de forma espontânea pela população. Apreendemos, contudo, que nesses documentos, todas as histórias de mulheres chacinadas se interligavam com o fenômeno de “veneração”. Percebemos também que a região do Cariri, que possui um aspecto peculiar e intrigante: o alto índice de femicídios caracterizados pela grande crueldade e, paradoxalmente, a forte religiosidade da população, destacava-se pelas várias mulheres chacinadas que foram “santificadas”, tais como: Francisca Augusta, Maria Licosa, Benigna e Maria de Bil. Dentre essas mulheres, Maria de Bil, nome grafado junto ao algoz, nos chamou ainda mais atenção por ser uma história que envolve crime passional, além disso, é uma narrativa de grande visibilidade, pois faz parte do calendário cultural da cidade de Várzea Alegre, movendo a população em torno da sua adoração. O ponto de partida é apreender e adentrar num sistema de trocas simbólicas e de múltiplas manifestações de fé, enveredando o olhar para a construção e a reconstrução cultural, do imaginário, do mito, das transformações sociais e discursivas. Portanto, entender o assassinato e devoção a essa mulher é penetrar num mundo da religiosidade que envolve crenças, performances, cultos de veneração e práticas ligadas ou não ao catolicismo. Nesse entremeio, desfiaremos os fios da historíola de Maria de Bil que é contada e documentada1·, a partir de 1920, quando a mesma chega a Várzea Alegre-Cariri, vindo de Alagoas, junto com seus pais e seus dois irmãos, Severino e Madalena. Para sobreviverem, começaram a trabalhar na construção de uma barragem, chamado açude Olho D’água e na agricultura. Passaram também a residir no chamado Sítio Inharés em terras alheias. Maria era considerada mulher simples e casou-se com Bil, migrante da região de Iguatu-CE, em cinco de novembro de 1922, na Igreja Matriz da cidade. O dia do casamento foi marcado por mais vinte quatro matrimônios. Logo depois de casados, tiveram dois filhos e na terceira gravidez, houve um desentendimento entre o casal. O motivo de tal contenda foi o fato de Bil manter um relacionamento amoroso com a irmã de Maria. Mesmo com toda essa situação, Ele pretendia fugir com sua esposa, esta, por sua vez, por causa da traição, recusou a proposta do marido, preferindo morar na casa de seus pais. Inconformado, Bil passou a arquitetar a morte da companheira. Como Ele sabia que Maria sempre levava a comida dos trabalhadores da roça de seu pai num certo horário, o mesmo a surpreendeu em uma emboscada. Em onze de março de 1926, por volta das dez horas, Ele a esfaqueou até a morte. Há relatos que Bil comeu parte da panturrilha da vítima, numa 1 As informações que serão expostas foram coletadas em vários documentos da Secretária de Cultura de Várzea Alegre, a instituição recontou a história de Maria de Bil através de depoimentos das pessoas que viveram na época do episódio. Utilizamos a técnica análise de documentos, de acordo com Freshe(2005, p.132), o documento “é um cenário no interior do qual o antropólogo se move analiticamente para realizar a sua investigação. Os arquivos são o próprio foco da análise e estão inscritos de significado”. espécie de pacto com o “além”. Logo depois do episódio, o mesmo fugiu e com tal sumiço surgiram várias narrativas a respeito do autor do crime. Alguns acreditavam, naquela época, que Ele “virava lobisomem” e teria que engolir sete homens, assim, apavorava os trabalhadores, que temiam vir a ser “um dos sete” que Bil poderia devorar. Outros contavam que o autor do delito passou a “virar bicho” assustando as pessoas com seu choro no meio do mato. Maria foi enterrada no Cemitério da Saudade em Várzea Alegre, mas ninguém sabe informar qual é o seu túmulo e nem há registros policiais sobre o fato, o que aguça ainda mais o imaginário da população. Tal episódio nos faz lembrar a tentativa de apagar a história da beata Maria de Araújo, em Juazeiro do Norte. Há quem afirme que até os anos de 1930, os romeiros - que cresceram consideravelmente pós 1889- ao chegar a Juazeiro, visitavam em primeiro lugar o túmulo de Maria de Araújo, que ficava do lado esquerdo – de quem entra - da Capela do Socorro, para só então ir visitar o Padre Cícero e os outros lugares sagrados. A igreja Católica, na tentativa de apagar por completo a memória de Araújo manda violar o seu túmulo em 22 de outubro de 1930, conforme documento registrado no cartório Machado, sem autorização, e dá fim aos seus restos mortais, não se sabendo até hoje o seu paradeiro. (SILVA, 2010, p.8) O que se sabe, porém, a respeito de Maria de Bil, é que seu pai pôs uma cruz no local exato em que Ela foi assassinada e as pessoas passaram a visitar esse espaço com o intuito de pagar promessas. Destacamos ainda figuras importantes para a constituição do espaço sagrado, como Emídio da Charneca, médium e curandeiro, que construiu uma barraca coberta de telha para a realização do culto à “santa”. Em 1954, a senhora Ana de Joaquim, colocou um quadro com a imagem de Nossa Senhora de Fátima nesse recinto. Entretanto, apenas no dia 20 de janeiro de 1957, 31 anos após a morte de Maria, foi construída a capela no local do crime por José Alves de Oliveira, conhecido como Zé Pretinho. O vigário da época era o Padre José de Otávio, este benzeu a ermida e celebrou uma missa em nome da falecida. Conforme representantes da Secretaria de Cultura, muitos estudantes, políticos, doentes e mulheres sofredoras pedem intercessão a essa mulher para alcançar alguma graça. Penetrando nos pormenores da narrativa, sem dúvida, encontramos vários elementos que suscita análise, desde o nome bíblico de mulheres, Maria e Madalena, que são figuras de destaque na história do cristianismo, uma virgem e mãe, outra, representação enigmática, que teve toda uma simbologia gerada em torno de si, prevalecendo uma imagem de mulher pecadora. As designações Maria de Bil e Ana de Joaquim, nomes marcados pela posse do marido, revela os ranços do patriarcalismo no Cariri. A mistura de credos também é notória, como a presença do padre e do curandeiro participando desse ato de fé. As lendas em torno de Bil integra o dia-a-dia da sociedade varzealegrense, sendo repassada para as crianças, como forma de disciplinálas, “Não faça isso, cuidado com o Bil”. 2. A formação do catolicismo no Cariri Cearense Qual o substrato social que dá sentido ao fenômeno assassinato e veneração a Maria de Bil? A dimensão histórica em suas conexões com o campo religioso e sua cosmogonia é o viés para responder esse questionamento. O Brasil por ser um país de miscigenação de várias raças, desde o período colonial, explica as inúmeras manifestações religiosas populares (BRANDÃO, 1986). É comum em muitas residências católicas do Nordeste um altar com uma mistura de santos reconhecidos pela Igreja Católica e os que não são. “O pequeno número de sacerdotes católicos nas localidades sertanejas, tal como a pouca ou quase nenhuma vocação de tais clérigos, contribuía para que práticas populares se espalhassem e ganhasse força nas casas, capelas e entre esse povo”, (BEZERRA, 2008, p.3). Mott (1997) também reforça que o privado, a casa, era lócus privilegiado para a religiosidade dos católicos, com imagens, cruzinhas de madeiras e mastros com a bandeira de um santo. Havia diversos símbolos visíveis da fé cristã, inclusive, no Nordeste brasileiro, nas famílias mais abastadas, existia a tradição do oratório com santos variados de devoção popular. Porém, intrigantemente, são nesses espaços que também se praticavam simpatias, ensalmos, devoções heterodoxas que convinham longe do público. Apesar das perseguições, proibições e denúncias, tais práticas continuavam a existir. A intimidade dos devotos com os santos, desde louvores, adulações como também agressões, xingamentos, deixa evidente que a mistura de culturas diferentes, anunciava a formação híbrida do povo brasileiro. Ilustrando essa acepção, podemos nos remeter ao chamado santo Antônio. Conhecido como santo casamenteiro. Sabemos da tradição de colocá-lo de costas, de cabeça para baixo até que os desejos dos devotos se realizem. Geertz (1989) assinala a importância dos símbolos sagrados que funcionam como verdades transcendentais e servem para sintetizar o ethos de um povo, que é o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral, estético e sua disposição. É, contudo, o que identifica e marca as peculiaridades de cada região. É o real composto pelo racional em relação dialética com o simbólico e o simbolismo. A dimensão imaginária do mundo social sem a qual a realidade não é compreensível à luz do interprete. Uma das principais características do Cariri cearense é a forte religiosidade refletida através de atividades devocionais. Até meados do século XIX não havia distinção entre as práticas populares e as crenças do clero, foi apenas com a romanização do catolicismo brasileiro que houve mudanças, mas não de forma significativa, incorporações de credos. continuando com re-elaborações e Uma das principais características que marca a formação religiosa desse povo são as práticas penitencias trazida pelos padres jesuítas para o Brasil, assumindo, entretanto, características específicas no Nordeste. Essa região, a partir do século XVIII, foi muito influenciada pelos missionários capuchinhos Italianos e lazaristas Franceses, que difundiam um discurso extremamente escatológico da realidade. A tônica era a ameaça do fogo do inverno. A formação religiosa sertaneja valorizou a mortificação corporal como processo de purificação da alma. A partir do século XIX, um dos principais representantes do movimento missionário do sertão foi o Padre Ibiapina que missionou em vários estados nordestinos e exerceu grande influência na região do Cariri Cearense. Ele pregava a valorização da penitência e o temor ao inferno (BEZERRA, 2008). Na cidade de Várzea Alegre- Cariri ainda encontramos essas práticas com a Procissão do Fogaréu, tradição de penitentes que é mantida há mais de cinquenta anos na cidade. São técnicas realizadas, exclusivamente, por homens que levam tochas acesas nas mãos, os rostos cobertos e com o exercício da autoflagelação (cordões com artefatos em aço nas pontas que usam para bater nas costas). Padre Cícero Romão Batista é também um grande influente nos valores morais do Cariri, principalmente, em Juazeiro do Norte. O Padre disseminava um discurso que incitava os fiéis a terem um estilo de vida santificada e transmitia, assim, vários dispositivos disciplinares. Para Ele, mulheres traídas deveriam permanecer com o marido, pois economicamente e socialmente poderiam ficar numa situação bem pior após a separação. A traição masculina era uma realidade constatada na região, tanto no século XIX, como no século XX (SILVA, 2010). Podemos ainda nos remeter a participação feminina no catolicismo da Região do Cariri que tem grande influência das chamadas beatas, essas mulheres não eram reconhecidas oficialmente pela Igreja católica e foram no decorrer dos tempos desaparecendo e sendo supridas pelas canonizadas. Havia ainda beatas que não viviam enclausuradas e tinham algum poder de decisão numa rede ampla de solidariedade, mas ainda obedeciam as determinações do clero, pois se colocavam em relação de subserviência. (SILVA, 2010). Entretanto, a relação das “carirenses” com a religiosidade não foi apenas de recepção de diretrizes e normas. Eram estas que, no espaço privado familiar, cuidavam das primeiras lições de catequese dos filhos e dos agregados, se fossem casadas. E, nos espaços públicos, assumiam diversas tarefas vinculadas aos cultos, em suas localidades (catequese, organização de festas, cuidado do templo etc). (SANTOS, 2010, p.210-211). O que nos chama atenção na formação da identidade carirense é que, paradoxalmente, essa forte influência da religiosidade na região entra em tensão com as altas taxas de femicídios. “Talvez a violência de gênero vivenciada pelas mulheres carirenses tenha mais ligação com as suas tradições religiosas que se pode supor”. (FROTA, SANTOS, 2012, p.103). Como diz Saffioti (2004, p.83) “A violência contra a mulher é um fenômeno que longe de ser natural, é posto pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais”. 3. A influência da imaginação na composição do sagrado. O imaginário social é fundamental no processo de “santificação”. Todavia, discorrer sobre imaginário é bastante complexo, porque envolve paradigmas contrários. Por longos anos, com a hegemonia da tradição do racionalismo no Ocidente, o termo imaginário foi refutado, sendo considerado, muitas vezes, sinônimo de algo que se opõe ao real, traduzido, então, como ilusório, fictício e distante das leis científicas, que na época, eram baseadas nos princípios das ciências ditas naturais. Porém, outra vertente chamada de interpretativa entendeu o conceito como um fenômeno enraizado nas vidas humanas, que seriam seres em movimento. (MENEZES, 1992/1993). A partir dessa nova perspectiva, Duvignaud, citado por Menezes (1992/1993, p.161), conceitua o imaginário no plural para enfatizar as vastas experiências das coisas inesperadas e possíveis. Acrescentando: Todos os grupos humanos possuem a capacidade de sugerir formas simbólicas desconhecidas quer exaltando em código sagrado, uma regulamentação social, uma atividade desdenhada, quer quando um refratário ou um herético transgride tais costumes - a vocação é a mesma: antecipar a experiência futura a partir da experiência conhecido. A constituição do sagrado na história Maria de Bil está totalmente interligado com o grande poder do imaginário social. Na análise das entrevistas notamos que os relatos estão permeados de mitos, lendas e mistérios. Os elementos que persistem nas narrativas não são de fato os que ocorreram, mas o que o povo conta, ou seja, são o que representam e elaboram uma imagem. “Quanto mais personificado for o transcendente, maior o sentimento de identificação a um projeto de adesão” (ANDRADE, 2010, p.135). O discurso de um morador do local, que teve contato com pessoas que viveram os fatos na época, realça a elocução acima. Ele conta uma versão, totalmente diferente, dos outros entrevistados, diz que o pai de Maria matou Bil e escondeu o segredo, apenas no dia do seu enterro um colega falou: “Clementino (pai de Maria), cabra macho, matou Bil e nunca ninguém soube”. Frase marcada pela violência e o machismo. Ele fala também, claramente, de como é construída as histórias. “Ora, eu já inventei uma, um dia no roçado, a farinha que levei mofou, aí, espalhei pela terra” (faz o gesto), quando os trabalhadores chegaram perguntaram o que era aquilo, disse que foi um senhor bem velhinho, nunca eu tinha visto, apareceu e disse, se você espalhar a farinha fazendo um camim vai se boa à colheita. “Aí, os moradores acharo que era o Bil” (risos). Os dezesseis entrevistados nos possibilitaram o entendimento de como os narradores compreendem e (re) constroem o acontecimento do passado, dando relevância ao processo de transmissão oral das memórias, ao contexto em que emergem e ao imaginário religioso que constroem e reproduzem, possibilitando a rememoração do vivido e do imaginado. A noção do sagrado é inventada e reinventada pelos agentes sociais, já que eles fazem de um fenômeno uma representação significativa. A importância desses atores está no sentido de remontar o passado, reviver fatos que marcam a vida social da comunidade e criar elementos com elos divinais, cheios de encantos e mistérios, como as lendas a respeito de Bil. Esses acontecimentos deixam lacunas que vão sendo preenchidas pelo imaginário social. “Cuidado com o Bil atrás das Moitas”, era um discurso recorrente entre os entrevistados. O método utilizado nesse trabalho foi à etnografia2. É um método que envolve problema, interpretação e evidência numa sequencia argumental a respeito de uma questão teórico-social e cultural de determinado campo, de “como é para os nativos”. O campo etnográfico é uma das modalidades de investigação social que mais demanda do pesquisador, pois abrangem as perspectivas do investigador, este, por sua vez, pode se limitar as determinações acadêmicas, culturais, sociais e pessoais. Por isso, etnografar requer reflexão contínua e compromete seu próprio sentido do mundo, do próximo e de si mesmo. Havíamos dividido os pesquisados em: representantes da igreja católica, da mídia, da secretaria de cultura (poder público), devotos e pessoas que conhecem a história de Maria de Bil. Percebemos, no entanto, que essa divisão, “cada um no seu lugar”, não dá conta de interpretar o objeto estudado, pois esses atores estão em várias esferas que se entrelaçam na composição do sagrado. O representante da igreja católica é também da política institucional (vereador), as representantes da secretaria de cultura são devotas de Maria de Bil, o representante da mídia é assessor de comunicação da prefeitura (poder público). Essa questão implica na concepção de que o sagrado é um verdadeiro rizoma na cidade de Várzea Alegre, pois os atores sociais, de diversas instituições, reavivam esse fenômeno. Os passos dados para a interpretação do objeto de estudo foram: Primeiro, a realização de vários telefonemas. Uma prática, aparentemente, de pouca importância no planejamento da pesquisa, surge de forma recorrente, como importante mediador entre o pesquisador e os pesquisados. A entrada ao campo e a procura de alguns dos entrevistados se deu através de ligações telefônicas. Com esses contatos fomos conseguindo novos informantes e, consequentemente, questões a serem analisadas. Depois de sondar e conseguir documentações e informações sobre o objeto de estudo, o próximo passo foi à ida a capela Maria de Bil objetivando 2 Segundo Guber (2001) constitui a ininterrupta análise, reflexividade da prática, da cotidianidade, ou seja, das situações de interação. fazer uma descrição densa do espaço. Nesse momento, refletimos sobre este local não apenas na sua dimensão geográfica, temporal, mas, antes de tudo, como o lugar da memória, da devoção, do mítico, do simbólico, do pagamento de promessas, no qual se estabelece a relação divindade e sujeito. A ermida, localizada em cima de uma serra, fica 5 km de distância do centro da cidade, é um espaço pequeno e de difícil acesso. Há uma diversidade de imagens, (santos canonizados ou não pela igreja), fotos, provas de alunos, cabeças e pés de madeiras, panfleto de candidatos à prefeitura da cidade, nomes escritos nas paredes do local, dinheiro, terços, flores, desenho de Maria de Bil com sua história e, inclusive, uma bandeira da escola de samba Mocidade Independente Sanharol de Várzea Alegre-CE, que resgatou a narrativa de Maria de Bil no carnaval de 2010, com o tema “Vulto varzealegrense”. Podemos explicar essa mescla de símbolos na capela, desde os elementos do carnaval, da história de assassínio até santos canonizados ou não pela Igreja Católica a partir de uma interpretação da formação católica do Brasil e do Nordeste. A capela é um recinto paradoxal, profano e sagrado, sendo ao mesmo tempo local do assassinato de uma mulher e da sua veneração, além de representar o conflito/consenso entre essa religiosidade espontânea e o catolicismo oficial. Não há uma separação entre igreja católica e a chamada religiosidade ligada ao catolicismo, ambos se complementam, com convergências e divergências, na composição do sagrado. Mais um passo dado foi à reflexão a respeito do dia dos finados-2012, período em que muitas pessoas visitam a capela de Maria de Bil. Entrevistamos alguns visitantes do local, no entanto, focamos na observação a veneração feita a Maria de Bil. Ao analisar esse dia, salientamos a relação dos vivos com os mortos, conforme Santos (2009, p.193), “O simbolismo de acender velas no túmulo dos mortos e deixar flores em seu contorno, segundo a tradição popular, revela a intenção de devoção e o firmamento de fidelidade com a alma que já partiu. [...] uma obrigação dos vivos para com os mortos”. Interessante ressaltar também que nesse dia participamos de uma missa na Igreja Católica de São Raimundo Nonato- Várzea Alegre. O destaque, no dia dos finados, é que na capela Maria de Bil a comunicação se dá através de um elo pessoal, revelando certa intimidade. Notamos que entre uma oração e outra, conversas, risos e comidas. Na missa, há um todo um rito ordenado e impessoal. A Igreja marca o lado impessoal de nossas relações com Deus, enquanto o ritual acima é marcado por espontaneidade, formas pessoais de ligação com o outro mundo. “O que uma delas fornece em excesso, a outra nega. E o que uma permite, a outra pode proibir.” (DAMATTA, 1986, p.115). Na verdade, conforme Damatta (1986), o mundo religioso, no caso brasileiro, mantem uma complementariedade, somos devotos dos santos, dos orixás, vamos à igreja, enfim, é uma relação ambígua, mas suplementares. Refletindo sobre a caminhada realizada em março de 2013, observamos que a organização das pessoas inicia-se em frente à Igreja Matriz da cidade. Elas são levadas no ônibus da prefeitura até a chamada Serra da charneca, local da capela de Maria em Várzea Alegre. Logo depois, há um café da manhã. Os principais organizadores são representantes da Secretaria de Cultura e da Igreja Católica. O café da manhã, que parece de pouca importância na análise é fundamental, pois ele tem a função de integrar as pessoas. Salientamos, então, Damatta (1997) ao tratar a comida como um elo entre as pessoas, forma de aproximação. A comida é tudo que se come com prazer, que se compartilha e ajuda a estabelecer uma identidade, definindo um grupo, classe ou pessoa. Destacamos também que o resgate ou mesmo a continuidade dessa tradição se dá pelo entrelaçamento entre a mídia com seus vídeos; o poder público (Secretaria de Cultura) que organiza o evento; devotos que participam da caminhada e pessoas que conhecem a história através da tradição oral, formando, contudo, o campo sagrado. O tempo e espaço também são elementos fundamentais nesse fenômeno (caminhada) para a legitimação e a continuidade da veneração a essa mulher. Há, portanto, um mês do ano dedicado a “Maria” (março) e o local do sacrifício (o assassinato) que é de extrema importância, lugar que se construiu o santuário, tornando-se ponto cerimonial de orações e pagamentos de promessas. Notamos que os “devotos” são, aproximadamente, cem. Um homem leva uma cruz e na subida para a capela existem sete cruzes, onde as pessoas param, rezam o terço, cantam e pronunciam palavras da bíblia, ressaltando a história de Jesus no calvário, o sofrimento de Maria, mãe de Jesus, pela perda do filho e o sacrifício de Maria de Bil. O interessante nessa peregrinação é que louvores e passagens bíblicas se referem ao tema sacrifício. A própria peregrinação num local íngreme, de difícil acesso é uma forma de redimir os pecados. O povo diz em voz alta “Pequei muitas vezes, por minha culpa, minha grande culpa”. A penitência, a mortificação corporal é um elemento que compõe a identidade nordestina. Maria de Bil é um marco religioso, pelo seu martírio que iniciou uma devoção. Diante de seu martírio colocam suas preces, sofrimento e devoção. É considerada pelo povo uma santa. Maria de Bil para Várzea Alegre é uma santa, traz esperança para a comunidade. Levou sua vida pautada na palavra de deus, exemplo para os católicos. Muitos renovam a fé com a caminhada. (representante da Igreja Católica) Inferindo, agora, sobre o período no campo, observamos que a morte trágica e os milagres alcançados são elementos essenciais para a veneração a Maria, esta, no entanto, torna-se figura sagrada da modernidade a partir da morte e da crença de que é milagrosa. Transforma-se, contudo, num emblema na região, onde há o respeito e a devoção, atrai a coletividade e gera um sentimento de identidade e coesão. 4. A constituição de uma santidade: assassinato de mulheres, religiosidade e imaginário social. A veneração a Maria de Bil envolve um campo multifacetado, um conjuntos de crenças e de ritos diversos ligados ou não ao catolicismo. Maciel (1999) defende que a vida religiosa nordestina está ligada às várias crenças e superstições populares. As pessoas valorizam os saberes religiosos e comportamentais de seus antepassados, sendo que o espaço dessas manifestações fornece uma eficácia simbólica. Hoornaert que prefaciou o livro de Azevedo (2000) argumenta “Na sua imensa maioria, a população brasileira é católica “sem Igreja”, escapa à Igreja. De forma lapidar: muito santo pouco sacramento, muita reza pouca missa, muita devoção pouco pecado, muita capela pouca igreja”. (p.13). A interpretação realizada desvela que, a partir da morte, Maria se torna sagrada. A violência desempenha uma função nesse sacrifício. Aderimos à ideia de Girard (1990) ao afirmar que a violência e o sagrado são inseparáveis. “A utilização “ardilosa” de certas propriedades da violência, e em especial de sua capacidade de deslocar-se de um objeto a outro, dissimula-se por trás do rígido aparato do sacrifício ritual (p.33)”. Ao “descortinar o véu” dessa adoração descobrimos o crime passional, juridicamente, é aquele que se comete por paixão (BERALDO JÚNIOR, 2003). A paixão não basta para produzir o crime. No entanto, esse sentimento pode entrever os motivos que levam um ser dominado de emoções violentas e contraditórias a matar alguém, contudo, não perde o seu caráter criminoso e de não aceitação social, (ELUF, 2007). Os mecanismos simbólicos, os valores culturais e os costumes integram esse ritual. A caminhada realizada anualmente para adorar esta mulher é uma cerimônia que faz lembrar, tornar eficaz e continuar a veneração a Maria de Bil. A noção de puro e o impuro também agrega o rito sacrificial. Entendemos, nesse viés, porque a mulher tida como impura e perigosa suscetível aos desejos em várias sociedades torna-se pura quando é sacrificada. O aniquilamento é o ato essencial para a vítima separar-se do mundo profano, “santificando-se”. Sua pureza é assegurada nesse momento. A imolação do corpo feminino é uma das principais causas para a veneração dessa mulher, pois o grande teor de violência repercute e chega a comover a população. A linguagem do sagrado “dissimula o fato de que não há jogo sagrado sem vítimas expiatórias” (GIRARD, 1990, p.314). A morte trágica, o sofrimento e a imolação do corpo purificam a alma, redime os pecados dessa mulher, tornando-a merecedora do divino. Com outra denotação, a representação da mulher submissa transforma-se em sujeito apropriado para deliberar e interceder por problemas terrenos. É possível asseverar que no imaginário social a “santificação” é relacionada à morte trágica, porque evoca a memória os temas religiosos valorizados pelo universo cristão da Igreja Católica, incorporada pelos atores sociais, como o sacrifício, a “via crucis” e o sofrimento purificador. O intrigante é que o divino configurou-se em uma mulher, que viveu numa sociedade pautada no androcentrismo, mas que foi ressignificada após sua morte cruel, ajudando a transformar uma pequena cidade em local de visitação e o espaço sagrado. Maria de Bil investiu em seu corpo micropoderes, não aceitaram normas estabelecidas, o matrimônio, princípio exaltado pelo catolicismo, inclusive, pelo “Padim Cico” influente na época, entretanto, rejeitado por essa mulher. Contudo, sem o “aval da Igreja Católica”, Ela, vítima de violência, tornase sagrada e firme no imaginário popular. Uma fé que vai alimentando-se pela tradição oral, contada de pais para filhos e entre gerações, tornando-se oralidades rodeadas de mitos e lendas. Desta forma, assassinatos emblemáticos de mulheres no Ceará trazem os sentidos do modus operandi de uma sociedade machista e vítima de suas próprias formas de violência simbólica, cujo um dos pilares é o campo religioso. Referências ANDRADE, Solange Ramos de. O culto aos santos: a religiosidade católica e seu hibridismo. Revista Brasileira de História das Religiões. São Paulo: ANPUH, Ano III, n. 7, Mai. 2010. AZEVEDO, Thales de. O catolicismo no Brasil: um campo para a pesquisa social. Salvador: Edufba, 2002. BERALDO JÚNIOR, B. R. Legítima defesa da honra como causa excludente de antijuridicidade. Jus Navigandi, 2003. Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5418>.Acesso: em 20 de março de 2011 BEZERRA, Cícera Patrícia Alcântara. Feridas da fé: penitência e religiosidade popular no Cariri cearense. 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