IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de
Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013,
Fortaleza-CE.
Grupo de Trabalho: Antropologias do sensível: diálogos entre
etnografia, cultura e imaginação.
A constituição do sagrado no imaginário da
população de Várzea Alegre-CE a respeito da
figura Maria de Bil.
Daniele Ribeiro Alves. [email protected]. Universidade Estadual
do Ceará-UECE.
Clara Maria Holanda [email protected]. Universidade
Estadual do Ceará-UECE.
Maria Helena de Paula [email protected]. Universidade
Estadual do Ceará-UECE.
1. Introdução
O sagrado é um campo de simbologias que envolvem crenças e práticas
religiosas tidas como invioláveis e inquestionáveis, fazendo parte dos valores
de uma sociedade. O lócus deste estudo é refletir sobre as representações
simbólicas constituídas no imaginário da população de Várzea Alegre-CE a
respeito do assassinato e “veneração” a Maria de Bil, mulher assassinada pelo
ex-companheiro, que não aceitava o fim do relacionamento.
A contribuição fundamental para a escolha desse tema foi à investigação
em um dos principais jornais de circulação de Fortaleza “O Povo”, o qual
produziu cadernos especiais com o tema “Santificados”. São eles: Caderno um
“Nos Altares de Beira de estrada” (produzido em trinta de abril de 2011, p.113); Caderno dois “Das Paredes de Lembrar, Vidas e Credos” (lançado em
quinze de maio de 2011, p.1-13) e Caderno três “Da Graça de Acreditar ou
Duvidar” (produzido em cinco de junho de 2011, p.1-13). Neles há informações
de histórias das “santas” (os) do Ceará “canonizadas” de forma espontânea
pela população.
Apreendemos, contudo, que nesses documentos, todas as histórias de
mulheres chacinadas se interligavam com o fenômeno de “veneração”.
Percebemos também que a região do Cariri, que possui um aspecto peculiar e
intrigante: o alto índice de femicídios caracterizados pela grande crueldade e,
paradoxalmente, a forte religiosidade da população, destacava-se pelas várias
mulheres chacinadas que foram “santificadas”, tais como: Francisca Augusta,
Maria Licosa, Benigna e Maria de Bil.
Dentre essas mulheres, Maria de Bil, nome grafado junto ao algoz, nos
chamou ainda mais atenção por ser uma história que envolve crime passional,
além disso, é uma narrativa de grande visibilidade, pois faz parte do calendário
cultural da cidade de Várzea Alegre, movendo a população em torno da sua
adoração.
O ponto de partida é apreender e adentrar num sistema de trocas
simbólicas e de múltiplas manifestações de fé, enveredando o olhar para a
construção
e
a
reconstrução
cultural,
do
imaginário,
do
mito,
das
transformações sociais e discursivas. Portanto, entender o assassinato e
devoção a essa mulher é penetrar num mundo da religiosidade que envolve
crenças, performances, cultos de veneração e práticas ligadas ou não ao
catolicismo.
Nesse entremeio, desfiaremos os fios da historíola de Maria de Bil que é
contada e documentada1·, a partir de 1920, quando a mesma chega a Várzea
Alegre-Cariri, vindo de Alagoas, junto com seus pais e seus dois irmãos,
Severino e Madalena. Para sobreviverem, começaram a trabalhar na
construção de uma barragem, chamado açude Olho D’água e na agricultura.
Passaram também a residir no chamado Sítio Inharés em terras alheias. Maria
era considerada mulher simples e casou-se com Bil, migrante da região de
Iguatu-CE, em cinco de novembro de 1922, na Igreja Matriz da cidade. O dia
do casamento foi marcado por mais vinte quatro matrimônios.
Logo depois de casados, tiveram dois filhos e na terceira gravidez,
houve um desentendimento entre o casal. O motivo de tal contenda foi o fato
de Bil manter um relacionamento amoroso com a irmã de Maria. Mesmo com
toda essa situação, Ele pretendia fugir com sua esposa, esta, por sua vez, por
causa da traição, recusou a proposta do marido, preferindo morar na casa de
seus pais. Inconformado, Bil passou a arquitetar a morte da companheira.
Como Ele sabia que Maria sempre levava a comida dos trabalhadores da roça
de seu pai num certo horário, o mesmo a surpreendeu em uma emboscada.
Em onze de março de 1926, por volta das dez horas, Ele a esfaqueou
até a morte. Há relatos que Bil comeu parte da panturrilha da vítima, numa
1
As informações que serão expostas foram coletadas em vários documentos da Secretária de
Cultura de Várzea Alegre, a instituição recontou a história de Maria de Bil através de
depoimentos das pessoas que viveram na época do episódio. Utilizamos a técnica análise de
documentos, de acordo com Freshe(2005, p.132), o documento “é um cenário no interior do
qual o antropólogo se move analiticamente para realizar a sua investigação. Os arquivos são o
próprio foco da análise e estão inscritos de significado”.
espécie de pacto com o “além”. Logo depois do episódio, o mesmo fugiu e com
tal sumiço surgiram várias narrativas a respeito do autor do crime. Alguns
acreditavam, naquela época, que Ele “virava lobisomem” e teria que engolir
sete homens, assim, apavorava os trabalhadores, que temiam vir a ser “um dos
sete” que Bil poderia devorar. Outros contavam que o autor do delito passou a
“virar bicho” assustando as pessoas com seu choro no meio do mato.
Maria foi enterrada no Cemitério da Saudade em Várzea Alegre, mas
ninguém sabe informar qual é o seu túmulo e nem há registros policiais sobre o
fato, o que aguça ainda mais o imaginário da população. Tal episódio nos faz
lembrar a tentativa de apagar a história da beata Maria de Araújo, em Juazeiro
do Norte.
Há quem afirme que até os anos de 1930, os romeiros - que
cresceram consideravelmente pós 1889- ao chegar a Juazeiro,
visitavam em primeiro lugar o túmulo de Maria de Araújo, que ficava
do lado esquerdo – de quem entra - da Capela do Socorro, para só
então ir visitar o Padre Cícero e os outros lugares sagrados. A igreja
Católica, na tentativa de apagar por completo a memória de Araújo
manda violar o seu túmulo em 22 de outubro de 1930, conforme
documento registrado no cartório Machado, sem autorização, e dá fim
aos seus restos mortais, não se sabendo até hoje o seu paradeiro.
(SILVA, 2010, p.8)
O que se sabe, porém, a respeito de Maria de Bil, é que seu pai pôs uma
cruz no local exato em que Ela foi assassinada e as pessoas passaram a visitar
esse espaço com o intuito de pagar promessas. Destacamos ainda figuras
importantes para a constituição do espaço sagrado, como Emídio da Charneca,
médium e curandeiro, que construiu uma barraca coberta de telha para a
realização do culto à “santa”. Em 1954, a senhora Ana de Joaquim, colocou um
quadro com a imagem de Nossa Senhora de Fátima nesse recinto. Entretanto,
apenas no dia 20 de janeiro de 1957, 31 anos após a morte de Maria, foi
construída a capela no local do crime por José Alves de Oliveira, conhecido
como Zé Pretinho. O vigário da época era o Padre José de Otávio, este benzeu
a ermida e celebrou uma missa em nome da falecida. Conforme representantes
da Secretaria de Cultura, muitos estudantes, políticos, doentes e mulheres
sofredoras pedem intercessão a essa mulher para alcançar alguma graça.
Penetrando nos pormenores da narrativa, sem dúvida, encontramos
vários elementos que suscita análise, desde o nome bíblico de mulheres, Maria
e Madalena, que são figuras de destaque na história do cristianismo, uma
virgem e mãe, outra, representação enigmática, que teve toda uma simbologia
gerada em torno de si, prevalecendo uma imagem de mulher pecadora. As
designações Maria de Bil e Ana de Joaquim, nomes marcados pela posse do
marido, revela os ranços do patriarcalismo no Cariri. A mistura de credos
também é notória, como a presença do padre e do curandeiro participando
desse ato de fé. As lendas em torno de Bil integra o dia-a-dia da sociedade
varzealegrense, sendo repassada para as crianças, como forma de disciplinálas, “Não faça isso, cuidado com o Bil”.
2. A formação do catolicismo no Cariri Cearense
Qual o substrato social que dá sentido ao fenômeno assassinato e
veneração a Maria de Bil? A dimensão histórica em suas conexões com o
campo religioso e sua cosmogonia é o viés para responder esse
questionamento. O Brasil por ser um país de miscigenação de várias raças,
desde o período colonial, explica as inúmeras manifestações religiosas
populares (BRANDÃO, 1986). É comum em muitas residências católicas do
Nordeste um altar com uma mistura de santos reconhecidos pela Igreja
Católica e os que não são. “O pequeno número de sacerdotes católicos nas
localidades sertanejas, tal como a pouca ou quase nenhuma vocação de tais
clérigos, contribuía para que práticas populares se espalhassem e ganhasse
força nas casas, capelas e entre esse povo”, (BEZERRA, 2008, p.3).
Mott (1997) também reforça que o privado, a casa, era lócus privilegiado
para a religiosidade dos católicos, com imagens, cruzinhas de madeiras e
mastros com a bandeira de um santo. Havia diversos símbolos visíveis da fé
cristã, inclusive, no Nordeste brasileiro, nas famílias mais abastadas, existia a
tradição do oratório com santos variados de devoção popular. Porém,
intrigantemente, são nesses espaços que também se praticavam simpatias,
ensalmos, devoções heterodoxas que convinham longe do público. Apesar das
perseguições, proibições e denúncias, tais práticas continuavam a existir. A
intimidade dos devotos com os santos, desde louvores, adulações como
também agressões, xingamentos, deixa evidente que a mistura de culturas
diferentes, anunciava a formação híbrida do povo brasileiro.
Ilustrando essa acepção, podemos nos remeter ao chamado santo
Antônio.
Conhecido como santo casamenteiro. Sabemos da tradição de
colocá-lo de costas, de cabeça para baixo até que os desejos dos devotos se
realizem. Geertz (1989) assinala a importância dos símbolos sagrados que
funcionam como verdades transcendentais e servem para sintetizar o ethos de
um povo, que é o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral, estético e
sua disposição. É, contudo, o que identifica e marca as peculiaridades de cada
região. É o real composto pelo racional em relação dialética com o simbólico e
o simbolismo. A dimensão imaginária do mundo social sem a qual a realidade
não é compreensível à luz do interprete.
Uma das principais características do Cariri cearense é a forte
religiosidade refletida através de atividades devocionais. Até meados do século
XIX não havia distinção entre as práticas populares e as crenças do clero, foi
apenas com a romanização do catolicismo brasileiro que houve mudanças,
mas
não
de
forma
significativa,
incorporações de credos.
continuando
com
re-elaborações
e
Uma das principais características que marca a
formação religiosa desse povo são as práticas penitencias trazida pelos padres
jesuítas para o Brasil, assumindo, entretanto, características específicas no
Nordeste.
Essa região, a partir do século XVIII, foi muito influenciada pelos
missionários capuchinhos Italianos e lazaristas Franceses, que difundiam um
discurso extremamente escatológico da realidade. A tônica era a ameaça do
fogo do inverno. A formação religiosa sertaneja valorizou a mortificação
corporal como processo de purificação da alma. A partir do século XIX, um dos
principais representantes do movimento missionário do sertão foi o Padre
Ibiapina que missionou em vários estados nordestinos e exerceu grande
influência na região do Cariri Cearense. Ele pregava a valorização da
penitência e o temor ao inferno (BEZERRA, 2008).
Na cidade de Várzea Alegre- Cariri ainda encontramos essas práticas
com a Procissão do Fogaréu, tradição de penitentes que é mantida há mais de
cinquenta anos na cidade. São técnicas realizadas, exclusivamente, por
homens que levam tochas acesas nas mãos, os rostos cobertos e com o
exercício da autoflagelação (cordões com artefatos em aço nas pontas que
usam para bater nas costas).
Padre Cícero Romão Batista é também um grande influente nos valores
morais do Cariri, principalmente, em Juazeiro do Norte. O Padre disseminava
um discurso que incitava os fiéis a terem um estilo de vida santificada e
transmitia, assim, vários dispositivos disciplinares. Para Ele, mulheres traídas
deveriam permanecer com o marido, pois economicamente e socialmente
poderiam ficar numa situação bem pior após a separação. A traição masculina
era uma realidade constatada na região, tanto no século XIX, como no século
XX (SILVA, 2010).
Podemos ainda nos remeter a participação feminina no catolicismo da
Região do Cariri que tem grande influência das chamadas beatas, essas
mulheres não eram reconhecidas oficialmente pela Igreja católica e foram no
decorrer dos tempos desaparecendo e sendo supridas pelas canonizadas.
Havia ainda beatas que não viviam enclausuradas e tinham algum poder de
decisão numa rede ampla de solidariedade, mas ainda obedeciam as
determinações do clero, pois se colocavam em relação de subserviência.
(SILVA, 2010).
Entretanto, a relação das “carirenses” com a religiosidade não foi apenas
de recepção de diretrizes e normas. Eram estas que, no espaço privado
familiar, cuidavam das primeiras lições de catequese dos filhos e dos
agregados, se fossem casadas. E, nos espaços públicos, assumiam diversas
tarefas vinculadas aos cultos, em suas localidades (catequese, organização de
festas, cuidado do templo etc). (SANTOS, 2010, p.210-211).
O que nos chama atenção na formação da identidade carirense é que,
paradoxalmente, essa forte influência da religiosidade na região entra em
tensão com as altas taxas de femicídios.
“Talvez a violência de gênero
vivenciada pelas mulheres carirenses tenha mais ligação com as suas
tradições religiosas que se pode supor”. (FROTA, SANTOS, 2012, p.103).
Como diz Saffioti (2004, p.83) “A violência contra a mulher é um fenômeno que
longe de ser natural, é posto pela tradição cultural, pelas estruturas de poder,
pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais”.
3. A influência da imaginação na composição do sagrado.
O imaginário social é fundamental no processo de “santificação”.
Todavia, discorrer sobre imaginário é bastante complexo, porque envolve
paradigmas contrários. Por longos anos, com a hegemonia da tradição do
racionalismo no Ocidente, o termo imaginário foi refutado, sendo considerado,
muitas vezes, sinônimo de algo que se opõe ao real, traduzido, então, como
ilusório, fictício e distante das leis científicas, que na época, eram baseadas
nos princípios das ciências ditas naturais. Porém, outra vertente chamada de
interpretativa entendeu o conceito como um fenômeno enraizado nas vidas
humanas, que seriam seres em movimento. (MENEZES, 1992/1993).
A partir dessa nova perspectiva, Duvignaud, citado por Menezes
(1992/1993, p.161), conceitua o imaginário no plural para enfatizar as vastas
experiências das coisas inesperadas e possíveis. Acrescentando:
Todos os grupos humanos possuem a capacidade de sugerir formas
simbólicas desconhecidas quer exaltando em código sagrado, uma
regulamentação social, uma atividade desdenhada, quer quando um
refratário ou um herético transgride tais costumes - a vocação é a
mesma: antecipar a experiência futura a partir da experiência
conhecido.
A constituição do sagrado na história Maria de Bil está totalmente
interligado com o grande poder do imaginário social. Na análise das entrevistas
notamos que os relatos estão permeados de mitos, lendas e mistérios. Os
elementos que persistem nas narrativas não são de fato os que ocorreram,
mas o que o povo conta, ou seja, são o que representam e elaboram uma
imagem. “Quanto mais personificado for o transcendente, maior o sentimento
de identificação a um projeto de adesão” (ANDRADE, 2010, p.135).
O discurso de um morador do local, que teve contato com pessoas que
viveram os fatos na época, realça a elocução acima. Ele conta uma versão,
totalmente diferente, dos outros entrevistados, diz que o pai de Maria matou Bil
e escondeu o segredo, apenas no dia do seu enterro um colega falou:
“Clementino (pai de Maria), cabra macho, matou Bil e nunca ninguém soube”.
Frase marcada pela violência e o machismo. Ele fala também, claramente, de
como é construída as histórias. “Ora, eu já inventei uma, um dia no roçado, a
farinha que levei mofou, aí, espalhei pela terra” (faz o gesto), quando os
trabalhadores chegaram perguntaram o que era aquilo, disse que foi um senhor
bem velhinho, nunca eu tinha visto, apareceu e disse, se você espalhar a
farinha fazendo um camim vai se boa à colheita. “Aí, os moradores acharo que
era o Bil” (risos).
Os dezesseis entrevistados nos possibilitaram o entendimento de como
os narradores compreendem e (re) constroem o acontecimento do passado,
dando relevância ao processo de transmissão oral das memórias, ao contexto
em que emergem e ao imaginário religioso que constroem e reproduzem,
possibilitando a rememoração do vivido e do imaginado.
A noção do sagrado é inventada e reinventada pelos agentes sociais, já
que eles fazem de um fenômeno uma representação significativa. A
importância desses atores está no sentido de remontar o passado, reviver fatos
que marcam a vida social da comunidade e criar elementos com elos divinais,
cheios de encantos e mistérios, como as lendas a respeito de Bil. Esses
acontecimentos deixam lacunas que vão sendo preenchidas pelo imaginário
social. “Cuidado com o Bil atrás das Moitas”, era um discurso recorrente entre
os entrevistados.
O método utilizado nesse trabalho foi à etnografia2. É um método que
envolve problema, interpretação e evidência numa sequencia argumental a
respeito de uma questão teórico-social e cultural de determinado campo, de
“como é para os nativos”. O campo etnográfico é uma das modalidades de
investigação social que mais demanda do pesquisador, pois abrangem as
perspectivas do investigador, este, por sua vez, pode se limitar as
determinações acadêmicas, culturais, sociais e pessoais. Por isso, etnografar
requer reflexão contínua e compromete seu próprio sentido do mundo, do
próximo e de si mesmo.
Havíamos dividido os pesquisados em: representantes da igreja católica,
da mídia, da secretaria de cultura (poder público), devotos e pessoas que
conhecem a história de Maria de Bil. Percebemos, no entanto, que essa
divisão, “cada um no seu lugar”, não dá conta de interpretar o objeto estudado,
pois esses atores estão em várias esferas que se entrelaçam na composição
do sagrado. O representante da igreja católica é também da política
institucional (vereador), as representantes da secretaria de cultura são devotas
de Maria de Bil, o representante da mídia é assessor de comunicação da
prefeitura (poder público). Essa questão implica na concepção de que o
sagrado é um verdadeiro rizoma na cidade de Várzea Alegre, pois os atores
sociais, de diversas instituições, reavivam esse fenômeno.
Os passos dados para a interpretação do objeto de estudo foram:
Primeiro, a realização de vários telefonemas. Uma prática, aparentemente, de
pouca importância no planejamento da pesquisa, surge de forma recorrente,
como importante mediador entre o pesquisador e os pesquisados. A entrada ao
campo e a procura de alguns dos entrevistados se deu através de ligações
telefônicas. Com esses contatos fomos conseguindo novos informantes e,
consequentemente, questões a serem analisadas.
Depois de sondar e conseguir documentações e informações sobre o
objeto de estudo, o próximo passo foi à ida a capela Maria de Bil objetivando
2
Segundo Guber (2001) constitui a ininterrupta análise, reflexividade da prática, da
cotidianidade, ou seja, das situações de interação.
fazer uma descrição densa do espaço. Nesse momento, refletimos sobre este
local não apenas na sua dimensão geográfica, temporal, mas, antes de tudo,
como o lugar da memória, da devoção, do mítico, do simbólico, do pagamento
de promessas, no qual se estabelece a relação divindade e sujeito.
A ermida, localizada em cima de uma serra, fica 5 km de distância do
centro da cidade, é um espaço pequeno e de difícil acesso. Há uma
diversidade de imagens, (santos canonizados ou não pela igreja), fotos, provas
de alunos, cabeças e pés de madeiras, panfleto de candidatos à prefeitura da
cidade, nomes escritos nas paredes do local, dinheiro, terços, flores, desenho
de Maria de Bil com sua história e, inclusive, uma bandeira da escola de samba
Mocidade Independente Sanharol de Várzea Alegre-CE, que resgatou a
narrativa de Maria de Bil no carnaval de 2010, com o tema “Vulto
varzealegrense”. Podemos explicar essa mescla de símbolos na capela, desde
os elementos do carnaval, da história de assassínio até santos canonizados ou
não pela Igreja Católica a partir de uma interpretação da formação católica do
Brasil e do Nordeste.
A capela é um recinto paradoxal, profano e sagrado, sendo ao mesmo
tempo local do assassinato de uma mulher e da sua veneração, além de
representar o conflito/consenso entre essa religiosidade espontânea e o
catolicismo oficial. Não há uma separação entre igreja católica e a chamada
religiosidade
ligada
ao
catolicismo,
ambos
se
complementam,
com
convergências e divergências, na composição do sagrado.
Mais um passo dado foi à reflexão a respeito do dia dos finados-2012,
período em que muitas pessoas visitam a capela de Maria de Bil.
Entrevistamos alguns visitantes do local, no entanto, focamos na observação a
veneração feita a Maria de Bil. Ao analisar esse dia, salientamos a relação dos
vivos com os mortos, conforme Santos (2009, p.193), “O simbolismo de
acender velas no túmulo dos mortos e deixar flores em seu contorno, segundo
a tradição popular, revela a intenção de devoção e o firmamento de fidelidade
com a alma que já partiu. [...] uma obrigação dos vivos para com os mortos”.
Interessante ressaltar também que nesse dia participamos de uma missa
na Igreja Católica de São Raimundo Nonato- Várzea Alegre. O destaque, no
dia dos finados, é que na capela Maria de Bil a comunicação se dá através de
um elo pessoal, revelando certa intimidade. Notamos que entre uma oração e
outra, conversas, risos e comidas. Na missa, há um todo um rito ordenado e
impessoal.
A Igreja marca o lado impessoal de nossas relações com Deus,
enquanto o ritual acima é marcado por espontaneidade, formas pessoais de
ligação com o outro mundo. “O que uma delas fornece em excesso, a outra
nega. E o que uma permite, a outra pode proibir.” (DAMATTA, 1986, p.115). Na
verdade, conforme Damatta (1986), o mundo religioso, no caso brasileiro,
mantem uma complementariedade, somos devotos dos santos, dos orixás,
vamos à igreja, enfim, é uma relação ambígua, mas suplementares.
Refletindo sobre a caminhada realizada em março de 2013, observamos
que a organização das pessoas inicia-se em frente à Igreja Matriz da cidade.
Elas são levadas no ônibus da prefeitura até a chamada Serra da charneca,
local da capela de Maria em Várzea Alegre. Logo depois, há um café da
manhã. Os principais organizadores são representantes da Secretaria de
Cultura e da Igreja Católica.
O café da manhã, que parece de pouca importância na análise é
fundamental, pois ele tem a função de integrar as pessoas. Salientamos, então,
Damatta (1997) ao tratar a comida como um elo entre as pessoas, forma de
aproximação. A comida é tudo que se come com prazer, que se compartilha e
ajuda a estabelecer uma identidade, definindo um grupo, classe ou pessoa.
Destacamos também que o resgate ou mesmo a continuidade dessa
tradição se dá pelo entrelaçamento entre a mídia com seus vídeos; o poder
público (Secretaria de Cultura) que organiza o evento; devotos que participam
da caminhada e pessoas que conhecem a história através da tradição oral,
formando, contudo, o campo sagrado.
O tempo e espaço também são elementos fundamentais nesse
fenômeno (caminhada) para a legitimação e a continuidade da veneração a
essa mulher. Há, portanto, um mês do ano dedicado a “Maria” (março) e o local
do sacrifício (o assassinato) que é de extrema importância, lugar que se
construiu o santuário, tornando-se ponto cerimonial de orações e pagamentos
de promessas.
Notamos que os “devotos” são, aproximadamente, cem. Um homem leva
uma cruz e na subida para a capela existem sete cruzes, onde as pessoas
param, rezam o terço, cantam e pronunciam palavras da bíblia, ressaltando a
história de Jesus no calvário, o sofrimento de Maria, mãe de Jesus, pela perda
do filho e o sacrifício de Maria de Bil.
O interessante nessa peregrinação é que louvores e passagens bíblicas
se referem ao tema sacrifício. A própria peregrinação num local íngreme, de
difícil acesso é uma forma de redimir os pecados. O povo diz em voz alta
“Pequei muitas vezes, por minha culpa, minha grande culpa”. A penitência, a
mortificação corporal é um elemento que compõe a identidade nordestina.
Maria de Bil é um marco religioso, pelo seu martírio que iniciou uma devoção.
Diante de seu martírio colocam suas preces, sofrimento e devoção. É
considerada pelo povo uma santa. Maria de Bil para Várzea Alegre é uma
santa, traz esperança para a comunidade. Levou sua vida pautada na
palavra de deus, exemplo para os católicos. Muitos renovam a fé com a
caminhada. (representante da Igreja Católica)
Inferindo, agora, sobre o período no campo, observamos que a morte
trágica e os milagres alcançados são elementos essenciais para a veneração a
Maria, esta, no entanto, torna-se figura sagrada da modernidade a partir da
morte e da crença de que é milagrosa. Transforma-se, contudo, num emblema
na região, onde há o respeito e a devoção, atrai a coletividade e gera um
sentimento de identidade e coesão.
4.
A constituição
de
uma
santidade:
assassinato
de
mulheres,
religiosidade e imaginário social.
A veneração a Maria de Bil envolve um campo multifacetado, um
conjuntos de crenças e de ritos diversos ligados ou não ao catolicismo. Maciel
(1999) defende que a vida religiosa nordestina está ligada às várias crenças e
superstições populares. As pessoas valorizam os saberes religiosos e
comportamentais de seus antepassados, sendo que o espaço dessas
manifestações fornece uma eficácia simbólica. Hoornaert que prefaciou o livro
de Azevedo (2000) argumenta “Na sua imensa maioria, a população brasileira
é católica “sem Igreja”, escapa à Igreja. De forma lapidar: muito santo pouco
sacramento, muita reza pouca missa, muita devoção pouco pecado, muita
capela pouca igreja”. (p.13).
A interpretação realizada desvela que, a partir da morte, Maria se torna
sagrada. A violência desempenha uma função nesse sacrifício. Aderimos à
ideia de Girard (1990) ao afirmar que a violência e o sagrado são inseparáveis.
“A utilização “ardilosa” de certas propriedades da violência, e em especial de
sua capacidade de deslocar-se de um objeto a outro, dissimula-se por trás do
rígido aparato do sacrifício ritual (p.33)”.
Ao “descortinar o véu” dessa adoração descobrimos o crime passional,
juridicamente, é aquele que se comete por paixão (BERALDO JÚNIOR, 2003).
A paixão não basta para produzir o crime. No entanto, esse sentimento pode
entrever os motivos que levam um ser dominado de emoções violentas e
contraditórias a matar alguém, contudo, não perde o seu caráter criminoso e de
não aceitação social, (ELUF, 2007).
Os mecanismos simbólicos, os valores culturais e os costumes integram
esse ritual. A caminhada realizada anualmente para adorar esta mulher é uma
cerimônia que faz lembrar, tornar eficaz e continuar a veneração a Maria de Bil.
A noção de puro e o impuro também agrega o rito sacrificial. Entendemos,
nesse viés, porque a mulher tida como impura e perigosa suscetível aos
desejos em várias sociedades torna-se pura quando é sacrificada.
O aniquilamento é o ato essencial para a vítima separar-se do mundo
profano, “santificando-se”. Sua pureza é assegurada nesse momento. A
imolação do corpo feminino é uma das principais causas para a veneração
dessa mulher, pois o grande teor de violência repercute e chega a comover a
população. A linguagem do sagrado “dissimula o fato de que não há jogo
sagrado sem vítimas expiatórias” (GIRARD, 1990, p.314).
A morte trágica, o sofrimento e a imolação do corpo purificam a alma,
redime os pecados dessa mulher, tornando-a merecedora do divino. Com outra
denotação, a representação da mulher submissa transforma-se em sujeito
apropriado para deliberar e interceder por problemas terrenos. É possível
asseverar que no imaginário social a “santificação” é relacionada à morte
trágica, porque evoca a memória os temas religiosos valorizados pelo universo
cristão da Igreja Católica, incorporada pelos atores sociais, como o sacrifício, a
“via crucis” e o sofrimento purificador.
O intrigante é que o divino configurou-se em uma mulher, que viveu
numa sociedade pautada no androcentrismo, mas que foi ressignificada após
sua morte cruel, ajudando a transformar uma pequena cidade em local de
visitação e o espaço sagrado. Maria de Bil investiu em seu corpo micropoderes,
não aceitaram normas estabelecidas, o matrimônio, princípio exaltado pelo
catolicismo, inclusive, pelo “Padim Cico” influente na época, entretanto,
rejeitado por essa mulher.
Contudo, sem o “aval da Igreja Católica”, Ela, vítima de violência, tornase sagrada e firme no imaginário popular. Uma fé que vai alimentando-se pela
tradição oral, contada de pais para filhos e entre gerações, tornando-se
oralidades
rodeadas
de
mitos
e
lendas.
Desta
forma,
assassinatos
emblemáticos de mulheres no Ceará trazem os sentidos do modus operandi de
uma sociedade machista e vítima de suas próprias formas de violência
simbólica, cujo um dos pilares é o campo religioso.
Referências
ANDRADE, Solange Ramos de. O culto aos santos: a religiosidade católica e
seu hibridismo. Revista Brasileira de História das Religiões. São Paulo:
ANPUH, Ano III, n. 7, Mai. 2010.
AZEVEDO, Thales de. O catolicismo no Brasil: um campo para a pesquisa
social. Salvador: Edufba, 2002.
BERALDO JÚNIOR, B. R. Legítima defesa da honra como causa
excludente de antijuridicidade. Jus Navigandi, 2003. Disponível em: <
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5418>.Acesso: em 20 de março de
2011
BEZERRA, Cícera Patrícia Alcântara. Feridas da fé: penitência e religiosidade
popular no Cariri cearense. In: Congresso Internacional de história e patrimônio
cultural, 2008, Terezina-PI. Anais... As muitas faces da devoção: o
comportamento devocional nas diversas tradições religiosas. Disponível em: <
www.anpuhpi.org.br/congresso/anais/arquivos/cicera.pdf>.Acesso: em 22 de
julho.2011.
BRANDÃO, Carlos R. Os deuses do Povo: um estudo sobre religião popular.
Catalão. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
_________. Carnavais, paradas e procissões. In: DAMATTA, Roberto.
Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.
ed. Rio de Janeiro: Racco, 1997. Cap.1, p.45-84.
ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus: casos passionais célebres:
de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
FREHSE, Fraya. Os informantes que jornais e fotografias revelam: para uma
etnografia da civilidade nas ruas do passado. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro,
nº
36.
jul-dez,
2005,
p.
131·156.
Disponível
em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/archivePDF >. Acesso em:
30 Jul. 2012.
FROTA, Maria Helena de Paula; SANTOS, Vívian Matias dos. O femicídio no
Ceará: machismo e impunidade? Fortaleza: EdUECE, 2012.p. 123.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de janeiro: LTC, 1989.
GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, UNESP,
1990.
GUBER, Rosana.La etnografía, método, campo y reflexividad.Bogotá:
Grupo Editorial, Norma, 2001.
MACIEL, Vilma. Nordeste místico. Fortaleza: UFC, 1999.
MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. O imaginário popular do sertão: rumos para
uma pesquisa em antropologia histórica. Revista de Ciências Sociais-UFC,
Fortaleza, v.23/24, n. 1/2: 149-212. 1992/1993.
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In.
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América
portuguesa. SOUZA, Laura de Mello e, NOVAIS, Fernando A. orgs. São
LPaulo: Companhia das Letras, 1997.
SAFFIOTI, H.I.B.Gênero, patriarcado e poder. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004. (Coleção Brasil Urgente). 152p.
SANTOS, Cícero Joaquim dos. No Entremeio dos mundos: tessituras da
morte da Rufina na tradição oral. 2009.229f. Dissertação (Pós-Graduação em
História e Culturas) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza.
SANTOS, Paula Cristiane de Lyra. Católicos no Cariri: embates em torno da
formação cristã (1860-1965). 2010. 495f. Tese (Pós-Graduação em Educação
Brasileira)- Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.
SILVA, Erinaldo Gualberto da. Beata Maria de Araújo: de esquecida da
história à protagonista de um milagre. Simpósio XII Encontro Estadual de
História do Ceará ANPUH/CE, 2010, cariri. Anais Eletrônicos... Cariri:URCA,
2010.
Disponível
em:
<
http://www.ce.anpuh.org/download/anais_2010_pdf/st05/Artigo_Completo_Erin
aldo.pdf >. Acesso em: 20 Jul. 2011.
Download

- iv rea | xiii abanne