0 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO E DOUTORADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS LINHA DE PESQUISA CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO Maikiely Herath O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO E A INICIATIVA PRIVADA NA SOCIEDADE DE RISCO COM ENFOQUE NO DESENVOLVIMENTO E NA GESTÃO AMBIENTAL Santa Cruz do Sul, dezembro de 2009 1 Maikiely Herath O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO E A INICIATIVA PRIVADA NA SOCIEDADE DE RISCO COM ENFOQUE NO DESENVOLVIMENTO E NA GESTÃO AMBIENTAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado e Doutorado, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Pós-Dr. Clóvis Gorczevski Santa Cruz do Sul, dezembro de 2009 2 Maikiely Herath O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO E A INICIATIVA PRIVADA NA SOCIEDADE DE RISCO COM ENFOQUE NO DESENVOLVIMENTO E NA GESTÃO AMBIENTAL Esta Dissertação foi submetida ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado e Doutorado, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, Linha de Pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Pós-Dr. Clóvis Gorczevski Professor Orientador Pós-Dr. Jorge Renato dos Reis Dr. Álvaro Sanchez Bravo 3 Com muito amor e eterna gratidão, aos meus pais Loreno e Marlene, ao meu grande amor Jader Henrique e à minha pequena Roberta, por todo respeito, compreensão, paciência, auxílio e carinho durante toda essa árdua, porém prazerosa trajetória. Com muita saudade, admiração e carinho, ao meu grande e eterno Mestre e amigo João Telmo Vieira (in memorian), por ter apresentado a apaixonante e preocupante matéria do meio ambiente e acreditado na insaciável vontade de aprendizado desta que chamava de “mulher pós-moderna”. Com muita satisfação e carinho, ao meu Orientador, Clóvis Gorczevski, pela amizade e por ter me acolhido de braços abertos mesmo na reta final dessa caminhada. 4 RESUMO O presente trabalho versa sobre o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a iniciativa privada na sociedade de risco com enfoque no desenvolvimento e na gestão ambiental. Buscou-se através do método de abordagem hipotético-dedutivo uma reflexão crítico-teórica, inserida no contexto da atual sociedade de risco globalizada e capitalista, analisar os institutos da Gestão Empresarial Ambiental e da Certificação Ambiental da Norma ABNT/NBR ISO 14001:2004, como instrumentos eficazes para a observância e promoção, pela iniciativa privada, do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 225 da Constituição Federal brasileira de 1988, e do ideal do desenvolvimento sustentável, transformando-os, desta forma, em possíveis ferramentas para a concretização dos princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil, o que vincula o presente trabalho diretamente à linha de pesquisa do Programa Constitucionalismo Contemporâneo. Palavras-chave: Meio ambiente. Sociedade de risco. Desenvolvimento. Gestão Empresarial Ambiental. 5 RESUMEN El presente trabajo versa sobre el derecho fundamental al medio ambiente ecológicamente equilibrado y la iniciativa privada en la sociedad de riesgo con enfoque en el desarrollo y en la gestión empresarial ambiental. Se intentó – a través del método de abordaje hipotético-deductivo y una reflexión crítico-teórica, integrada en el contexto de la actual sociedad de riesgo globalizada y capitalista – , analizar los institutos de la Gestión Empresarial Ambiental y de la Certificación Ambiental de la Norma ABNT/NBR ISO 14001:2004, como instrumentos eficaces para la observancia y promoción, por la iniciativa privada, del derecho fundamental al medio ambiente ecológicamente equilibrado, previsto en el artículo 225 de la Constitución Federal brasileña de 1988, y del ideal del desarrollo sustentavel, transformándolos, de esta forma, en posibles herramientas para la concreción de los principios y fundamentos de la República Federativa del Brasil, lo que vincula el presente trabajo a la línea de investigación del Programa Constitucionalismo Contemporáneo. Palabras-clave: Medio ambiente. Sociedad de riesgo. Desarrollo. Gestión Empresarial Ambiental. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO …………………………………………………………………………… 07 1 O MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO DIREITO FUNDAMENTAL ..………………………………………………………………………….11 1. 1 O meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental e o antropocentrismo alargado na Constituição Federal de 1988 …………………...11 1. 2 Fritjof Capra e o paradigma da ecologia profunda e a visão sistêmica ..……... 23 1. 3 A sociedade de risco e a alternativa da racionalidade ambiental ……..………. 36 2 A ORDEM ECONÔMICA E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 – O PRIMADO DO DIREITO INTERNACIONAL …………………………………………………………….. 50 2. 1 Globalização e desenvolvimento ………………………………………………….. 50 2. 2 O Princípio Constitucional do Desenvolvimento Sustentável como primado do Direito Internacional …………………………………………………………………... 63 2. 3 A ordem econômica, a iniciativa privada e a função social da empresa na Constituição Federal brasileira de 1988 e na legislação nacional esparsa ……. 76 3 GESTÃO EMPRESARIAL AMBIENTAL, A NORMA ABNT/NRB ISO 14001: 2004, E A CERTIFICAÇÃO AMBIENTAL ……………………………………………... 93 3. 1 Gestão Ecológica e Gestão Empresarial Ambiental …………………………….. 93 3. 2 A Norma ABNT/NBR ISO 14001:2004 e o Sistema de Gestão Ambiental……105 3. 3 Auditoria e Certificação Ambiental…………………………………………………118 CONCLUSÃO...………………………………………………………………………….. 132 REFERÊNCIAS …………………………………………………………………………. 137 7 INTRODUÇÃO A era da massiva industrialização e da globalização trouxe progresso tecnológico e científico, ampliou e tornou instantâneas as redes de comunicação, encurtou os tempos e os espaços e surgiu como promessa tentadora de melhorias e inclusões, mas também trouxe a chamada sociedade dos riscos esperados, embora não calculados e ausentes de projetos para revertê-los ou controlá-los. Refletiu na incerteza sobre a existência e a prática pelos múltiplos agentes promotores e detentores do poder de um desenvolvimento real ou mesmo da sustentabilidade dos recursos naturais, deixando à mostra a constância de latentes exclusões de todos os gêneros e a crise ambiental em proporções já catastróficas, pois é notório que o estágio atual em que vivemos é de grandes preocupações apenas com o progresso econômico e por conseqüência, a degradação ambiental começa a ultrapassar os limites de sustentabilidade dos recursos naturais, que hoje começamos a ter consciência da finitude. A relevância da presente pesquisa decorre de outra visão a ser apresentada quanto à participação da iniciativa privada global capitalista como uma ferramenta possível para a concretização de direitos humanos fundamentais. Mediante a voluntária adesão às regras de procedimentos-padrão internacional, criadas pelo mercado capitalista globalizado (no caso concreto à ABNT/NBR ISO 14001:2004), além de inserirem-se, as empresas e indústrias de forma mais competitiva no mercado global podem estar se valendo de instrumento eficaz para a consecução das determinações constitucionais pertinentes a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme previsto na Constituição Federal de 1988, art. (artigo) 225, transformando-as, desta forma, em possíveis ferramentas para a concretização dos princípios e fundamentos da República Federativa brasileira. Permitir-se-á, então, pensar na possibilidade de a iniciativa privada, representada aqui pelas empresas e as indústrias, através de ferramentas criadas pelo próprio mercado capitalista internacional e que, portanto, independem da ingerência direta do Estado, conseqüentemente sem participação ou investimentos 8 públicos, atender a exigência constitucional de observância e promoção do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, talvez fomentando, inclusive, direitos humanos sociais constitucionalmente previstos. Tal ação seria reflexo da adesão a normas internacionais consensuais e voluntárias para padronização de modelos de fabricação, comércio e sistema de gerenciamentos, que objetivam à promoção do comércio internacional através da harmonização das normas, possivelmente, gerando uma padronização universal de atendimento de ordem social e que dizem-se comprometidas a promover o desenvolvimento sustentável através também da preservação ambiental, temas centrais de todas as discussões políticas e acadêmicas da modernidade, criando um despertar para o futuro das gerações vindouras, ideal último dos Estados modernos. Ressalte-se que o tema encontra-se delimitado com aspectos transdisciplinares e assim, como não poderia deixar de ser, o mote central apresenta-se adequado à linha de pesquisa do Constitucionalismo Contemporâneo, de onde retira as teorias e informações que o estruturam para a busca da análise e reflexão à cerca da atuação dos agentes multinacionais de poder do capitalismo, a iniciativa privada, numa possível fomentação de direitos humanos fundamentais. O presente trabalho exige, pois, incursões no direito constitucional, direito ambiental, na ecologia e mesmo na economia, demonstrando a necessidade de atenção e discussão do tema, dos diversos valores institucionais e sociais existentes sobre o desenvolvimento versus o progresso econômico. Traz à baila os institutos da gestão e da certificação ambiental como possíveis ferramentas para a conciliação entre a preservação ambiental e o desenvolvimento, tendo sempre presentes os paradoxos do ideal da sustentabilidade e o primado do Direito Internacional e Princípio Constitucional brasileiro do desenvolvimento sustentável, e ao fazer tais ligações, o referido trabalho se projeta como instrumento adequado àqueles pretendidos pela linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo. Para o desenvolvimento da presente pesquisa, utilizou-se o método hipotéticodedutivo, que também pode ser chamado de crítico, falseável ou da tentativa e erro proposto por Karl Raymund Popper. 9 O trabalho em pauta divide-se em três capítulos que se inter-relacionam e desdobram-se em sub-capítulos, com o fito de analisar a possibilidade de, através da Certificação Ambiental e do Sistema de Gestão Ambiental, ambos da Norma ABNT/NBR ISO 14001:2004, regras de procedimentos-padrão internacional criadas pelo mercado capitalista globalizado e de adesão voluntária, a iniciativa privada obter instrumentos eficazes para observar e promover o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no art. 225 da Constituição Federal de 1988, e dispor de uma ferramenta para a concretização dos princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil. No primeiro capítulo, denominado “O meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental”, aborda-se o tema do meio ambiente caracterizando-o e delimitando-o como direito humano e fundamental, sob o aspecto do equilíbrio ecológico, trazendo o enfoque do nominado antropocentrismo alargado na Constituição Federal de 1988; comparando-o com o conceito ampliado de ecologia, a partir da breve análise das teorias da ecologia profunda e sistêmica; contextualizando-o na chamada sociedade de risco; e trazendo como alternativa uma racionalidade ambiental. No segundo capítulo, chamado “A ordem econômica e o desenvolvimento sustentável na Constituição Federal Brasileira de 1988 – o primado do Direito Internacional” delimita-se a globalização em suas possíveis origens, reflexos sociais, ambientais e econômicos, suas formas e características atuais, analisando-se suas constantes inclusões e exclusões dos mais variados gêneros frente ao desenvolvimento. Aborda-se também o primado do Direito Internacional e Princípio Constitucional do desenvolvimento sustentável como a conciliação de dois direitos fundamentais constitucionalmente previstos na atual Constituição Federal, quais sejam, o meio ambiente ecologicamente equilibrado e o desenvolvimento, esse último como resultado e objeto de múltiplos acordos internacionais. Aborda-se também nesse capítulo a ordem econômica conforme prevista na atual Constituição Federal, a iniciativa privada e os moldes normativos que possibilitariam se falar numa função social da empresa. 10 Já o terceiro capítulo, intitulado “Gestão Empresarial Ambiental, a Norma ABNT/NBR ISO 14001:2004, e a Certificação Ambiental” tematiza brevemente a Gestão Ecológica, comparando-a com a Gestão Empresarial Ambiental, a Norma ABNT/NBR ISO 14001:2004 e seu Sistema de Gestão Ambiental, através da análise dos seus procedimentos de auditoria, requisitos, instrumentalização e operacionalização, até a Certificação Ambiental. Portanto, objetiva-se, mais especificamente, verificar e analisar se há uma possível relação de fomentação, e sua eficácia, de uma política de meio ambiente ecologicamente equilibrado, no Brasil, de acordo com a previsão da Constituição Federal brasileira de 1988, pela iniciativa privada, através do Sistema de Gestão Ambiental e da Certificação Ambiental da Norma ABNT/NBR ISO 14001:2004. A problemática do trabalho está em analisar se estaria a iniciativa privada através da gestão e da certificação ambiental da Norma ABNT/NBR ISO 14001 promovendo uma política de meio ambiente ecologicamente equilibrado conforme rege a Constituição Federal Brasileira de 1988. De posse de tais premissas, o enfoque pretendido circunstanciará a respeito do prisma constitucional e normativo tanto nacional quanto internacional, utilizando-se de variados contornos teóricos e de seus imbricamentos para a contextualização, realizada de forma sintética, mas basilar ao propósito. O tema é amplo e complexo e a condução do seu debate, prescinde, inquestionavelmente, de uma profunda alteração de racionalidade. O referencial bibliográfico empregado no decorrer da pesquisa presta-se, como corolário desse molde, a importância não só da fundamentação do meio ambiente e do desenvolvimento, porém, sobretudo, à uma provável necessidade de observância e promoção desses, inclusive também pela iniciativa privada, mesmo em uma economia capitalista globalizada. 11 1 O MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO DIREITO FUNDAMENTAL 1. 1 O meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental e o antropocentrismo alargado na Constituição Federal de 1988 A palavra Umwelt, “meio ambiente”, foi utilizada primordialmente pelo biólogo, pioneiro da ecologia, Báltico Jakob Von Uexküll, em 19091 e tal termo vem sendo criticado pela doutrina2 3 que argumenta tratar-se de uma redundância característica do vício de linguagem: pleonasmo, tendo em vista que há na expressão uma repetição de idéias com o mesmo sentido objetivando ênfase, pois meio é o que está no centro de algo e ambiente é o lugar onde habitam seres vivos, estando assim o termo ambiente contido no conceito de meio, no entanto, em que pese as críticas, a expressão foi adotada tanto pela Constituição Federal brasileira, quanto pela legislação esparsa nacional e é amplamente aceita pela sociedade acadêmica e pela população em geral no Brasil. Conceituar o termo meio ambiente não é tarefa singela, mas em um primeiro momento e de forma breve, podemos dizer que o meio ambiente é o local onde os seres vivos habitam e da mesma forma os seres que habitam esse meio (meio físico e biótico), incluindo tanto os seres bióticos (flora e fauna), quanto os abióticos (estados físicos e químicos), formando um conjunto harmonioso que se interrelaciona de forma mútua e proporciona condições primordiais para a existência da vida considerada como um todo. Nesse sentido a Lei n.º 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, no artigo 3º, inciso I, traz o conceito de meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”4. 1 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 43. 2 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p.69. 3 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 69. 4 Art. 3º- Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I – meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; [...]. Brasil. Lei nº. 6.938, de 31 12 Essa previsão legal, nas palavras de Leite, demonstra que o legislador brasileiro escolheu uma conceituação que realça a “interação e a interdependência entre o homem e a natureza”, e “é nesse aspecto que se denota a proteção jurídica do meio ambiente com um bem unitário”.5 É valendo-se dessa referida visão de integração e interação entre homem e natureza e, por conseqüência, das variadas áreas do saber, que é possível se ter uma noção mais ampliada do que seja então o meio ambiente. Compartilhando do pensamento de Vieira, não se presta a designar um objeto em específico, mas uma “relação de interdependência” a qual é verificável inegavelmente pela relação que se estabelece entre homem e natureza, não havendo como separá-los em razão da impossibilidade da existência material do homem sem a natureza, que necessita constantemente dessa para sobreviver: “o meio ambiente é conceito que deriva do homem, e a ele está relacionado; entretanto, depende da natureza”.6 Quanto à expressão “ecossistema”, é hoje definida como uma comunidade de organismos e suas interações ambientais físicas como uma unidade ecológica, e serviu para estruturar todo o pensamento ecológico e promover uma “abordagem sistêmica de ecologia”. Como qualquer sistema, também o ecossistema é um conjunto de partes ou de subsistemas em interações, que são os organismos ou seres vivos de diversas espécies, inclusive seres humanos e elementos do ambiente físico ou abiótico, tais como ar, água, relevo, solo, temperatura, luz, pressão atmosférica, dentre outros. Também nesse contexto, há que se reconhecer que os organismos e o ambiente físico são interdependentes, influenciam-se mutuamente e atuam como uma totalidade. 7 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 5 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 78. 6 VIEIRA, Paulo Freire. Meio ambiente, desenvolvimento e cidadania. In: VIOLA, Eduardo (Org.). Meio ambiente, desenvolvimento e cidadania: desafios para as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1995. p. 49. 7 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 43. 13 Partindo-se de uma breve análise dos dispositivos legais trazidos na atual Constituição Federal brasileira sobre o meio ambiente, é possível considerá-lo como a interação do conjunto dos elementos naturais, artificiais, culturais e do trabalho, que propiciem a vida em desenvolvimento equilibrado, dividindo-se, portanto, em: a) meio ambiente natural, composto da atmosfera, águas interiores, superficiais e subterrâneas, mar territorial, estuários, solo, subsolo, fauna, flora, elementos da biosfera, patrimônio genético e zona costeira (art. 225 da CF – Constituição Federal brasileira)8; b) meio ambiente artificial, composto de equipamentos urbanos, edifícios comunitários (arts. 21, XX9, 18210 e seguintes e 225 da CF); c) meio ambiente cultural, integrado pelos bens de natureza material e imaterial, conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (arts. 215 e 216 da CF11); e d) meio ambiente do trabalho, que engloba a proteção do homem em seu local de trabalho, observando às normas de segurança (arts. 200, VII e VIII12, e 7º, XXII13, ambos da CF). Na órbita internacional, a Declaração de Estocolmo de 1972 foi a primeira a proclamar o “direito humano ao meio ambiente”. O Princípio primeiro de Estocolmo, segundo Leite, significou em âmbito internacional “um reconhecimento do direito do ser humano a um bem jurídico fundamental, o meio ambiente ecologicamente 8 Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 9 Art. 21 - Compete à União: [...] XX – instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos; [...]. Ibidem. 10 Art. 182 - A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. [...]. Ibidem. 11 Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. [...] Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, arqueológico, ecológico e científico. [...]. Ibidem. 12 Art. 200 - Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: [...] VII – participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o trabalho. Ibidem. 13 Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; [...]. Ibidem. 14 equilibrado e a qualidade de vida” e também pactuou “um comprometimento de todos a preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as gerações presentes e futuras”.14 15 Os problemas ambientais englobam vários aspectos que não são apenas voltados ao meio ambiente natural e aos recursos naturais, envolvendo questões vinculadas aos direitos humanos como moradia, condições de vida, trabalho e saúde. É esta percepção das implicações globais que levam em consideração os aspectos multidimensionais dos problemas ambientais, inclusive os aspectos humanos, o que permitiu a vinculação do direito ambiental aos direitos humanos, de acordo com o que reconhece a Declaração de Estocolmo de 1972, a ponto não ser possível negar-se que se trata de um direito humano16: É inerente ao ser humano o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, havendo uma implícita e forte ligação entre direitos humanos e meio ambiente. Tal conduz ao seguinte questionamento: quando se viola o direito ao meio ambiente, também se violam direitos humanos? A resposta a tal questionamento não é unânime, apesar da tendência de reconhecimento de uma profunda relação entre direitos humanos e o direito ao meio ambiente saudável. Não há dúvidas que são direitos intimamente ligados e dependem um do outro para serem efetivados. Uma violação de qualquer desses direitos, necessariamente, invade o outro, constituindo um duplo desequilíbrio: ambiental e humano. O desequilíbrio ambiental é sempre mais grave, 17 constituindo-se assim, violação aos direitos humanos. 14 Nos seguintes termos, em seu Princípio primeiro: “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio, cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras”; tal princípio apenas confirmou uma tendência em direção a nova fase do meio ambiente humano, vez que o pensamento progrediu da visão limitada da proteção da natureza e conservação dos recursos naturais para uma visão ampliada que põe em debate a má utilização dos recursos naturais pelos seres humanos. Prevê também o Princípio segundo da Declaração que “os recursos naturais da terra, incluindo o ar, a água, a terra, a flora, a fauna e especialmente mostras representativas dos ecossistemas naturais, devem preservar-se em benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou ordenação, segundo convenha”. DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO (1972). Declaração de Conferência de ONU no Ambiente Humano, Estocolmo, 5-16 de junho de 1972. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 15 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 86. 16 OLIVEIRA, Sílvia Menicucci de. Desenvolvimento sustentável na perspectiva da implementação dos Direitos Humanos (1986-1992). In: ALMEIDA, C. A. de; PERRONE-MOISÉS, C. (Coord.). Direito Internacional dos Direitos Humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas Jurídico, 2002. p. 93. 17 RITT, C. F.; CAGLIARI, C. T. S. Meio ambiente: um direito humano fundamental. In: GORCZEVSKI, Clóvis (Org.). Direitos Humanos, Educação e Meio Ambiente. Porto Alegre: Evangraf, 2007. p. 201. 15 O reconhecimento internacional do meio ambiente equilibrado como Direito Humano teve seus reflexos no âmbito nacional, permitindo o surgimento de elementos suficientes para o reconhecimento de um Direito Fundamental ao meio ambiente. Diante desse contexto, a atual Constituição Federal brasileira passou a prever, sendo a primeira em âmbito nacional, um tópico próprio sobre o meio ambiente: o Capítulo VI, no qual preceitua em seu artigo 225 que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Esse artigo constitucional é considerado previsão legal do Direito Fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, trazendo implícito o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. Há que se ter em mente que a vida em si mesma e também o ideal de uma vida digna estão atrelados a idéia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado; do mesmo modo reflete o reconhecimento de um vínculo indissolúvel entre o Estado e a sociedade civil como solidariamente responsáveis na garantia desse Direito Fundamental, o que é inovador, segundo Morato: “Essa vinculação de interesses públicos e privados redunda em verdadeira noção de solidariedade em torno de um bem comum”. 18 19 Mesmo não se encontrando inserido no catálogo do art. 5º da Constituição Federal de 1988, que integra o capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos e prevê os direitos fundamentais, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é considerado um Direito Constitucional materialmente Fundamental. 18 Cumpre esclarecer que o presente trabalho utiliza-se da distinção doutrinária entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos” que, embora muitas vezes são tidos como sinônimos, são tratados de forma distinta pela doutrina que delimita a expressão “direitos fundamentais” como espécie do gênero “direitos humanos”. “A expressão ‘direitos fundamentais’ é utilizada como definição daqueles direitos humanos previstos nas constituições nacionais, enquanto ‘direitos humanos’ define os direitos do homem previstos em tratados internacionais, ainda que não estejam positivados na constituição de determinados países, mas que possuem caráter supranacional, a exemplo da Declaração Européia de Direitos do Homem de 1948, da Declaração Européia de Direitos do Homem de 1951 e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, entre outros acordos de validade internacional”. REIS, Jorge Renato dos. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nas relações interprivadas: breves considerações. In.____; LEAL, R. G. (Org.). Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 5. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. p. 1498. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Vol. IV. 2.ed. Coimbra: Coimbra, 1993. p. 52. Nesse mesmo sentido: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 33. 19 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 88. 16 Isso é aceitável devido à previsão expressa da possibilidade de ampliação do referido catálogo, que se trata da chamada “abertura material” do rol dos direitos e garantias fundamentais, possível com base no parágrafo segundo do referido artigo 5º da Constituição Federal, o qual dispõe que os direitos e garantias expressos na Constituição Federal brasileira não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, bem como dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte.20 21 Nesse sentido é que o princípio da dignidade da pessoa humana deve servir como “diretriz material” para a identificação dos direitos fundamentais implícitos que se encontrem em outros dispositivos constitucionais, já que é inegável que o meio ambiente equilibrado é requisito, meio e também fim da vida digna. Nas palavras de Sarlet, a dignidade da pessoa humana é como um “superprincípio” que atribui sentido próprio à hermenêutica constitucional da contemporaneidade, unidade ao sistema jurídico e “racionalidade ética”. É assim o princípio supremo da ordem hierárquica normativa que irradia sua “força normativa” para todo o ordenamento jurídico, conferindo-lhe um sentido axiológico22 23 , servindo, por conseguinte, de indicador dos direitos fundamentais implícitos. 20 A construção de um conceito material e/ou formal dos Direitos Fundamentais perpassa pela análise do alcance do § 2º, do art. 5º, CF/88. Segundo Alexy, trazido por Sarlet, a fundamentalidade formal encontra-se vinculada ao direito constitucional positivo e resulta de alguns aspectos: situarem-se no ápice do ordenamento jurídico, submetidos aos limites formais e materiais da reforma constitucional e serem normas diretamente aplicáveis e que vinculam de forma imediata entidades públicas e privadas (art. 5º, § 1º, CF/88). A fundamentalidade material decorre de serem elementos constitutivos da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura social e estatal, ou seja, somente a análise do conteúdo permite tal caracterização, pelo “conteúdo e significado”, sendo que uma construção de conceito material de Direitos Fundamentais, segundo Sarlet, somente será exitosa se considerar a ordem de valores dominante e as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais de uma determinada ordem constitucional. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 69/82. 21 “Assim, pode-se afirmar da existência de direitos fundamentais não constantes do catálogo do texto constitucional do Estado, face à textura aberta dos direitos fundamentais que permite à constituição incorporar, além dos direitos formais, positivados, novos direitos fundamentais, os denominados direitos materiais, em razão da evolução da realidade social, política e jurídica de determinado Estado. Dessa forma, têm-se os direitos fundamentais formais que, por disposição legislativa, constam do catálogo constitucional e os direitos fundamentais materiais, que em razão de sua importância no que tange a proteção e salvaguarda da pessoa humana, são equiparados aos direitos fundamentais formais, os quais, por sua vez, também são materiais, face à sua eficácia jurídica”. REIS, Jorge Renato dos. Os direitos fundamentais de tutela da pessoa humana nas relações entre particulares. In.____; LEAL, R. G. (Org.). Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. p. 2034-2035. 22 Ao menos indiretamente os Direitos Fundamentais radicam no princípio da dignidade da pessoa humana e formam um sistema aberto e flexível com caráter compromissário, assim como a Constituição Federal. Uma relativa unidade de conteúdo, o princípio da aplicabilidade imediata das 17 Cumpre observar também quanto ao artigo 225 da CF/88 (Constituição Federal brasileira de 1988), que esse preceitua que “todos têm direito” ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe na seqüência do texto constitucional deveres ao Estado e à coletividade como um todo, o que não deixa dúvidas sobre a fundamentabilidade do referido direito do homem. É, portanto, direito humano, materialmente fundamental e indisponível, assim como a dignidade da pessoa humana, pois são intrínsecos24: A nossa realidade tem relação direta com a questão ambiental, pois está inserido nos direitos humanos, entendido como direito à qualidade de vida. Não pode ser esquecida que a proteção dos direitos humanos é fundamental, do contrário, está-se condenando a humanidade a viver numa realidade de egoísmo, violência e total degradação ao meio ambiente. (…) A relação entre os direitos humanos e os direitos ambientais se baseia principalmente em dois aspectos: 1) a proteção do meio ambiente pode ser concebida como um meio para conseguir o cumprimento dos direitos humanos, levando-se em conta que um meio ambiente destruído contribui diretamente para a violação dos direitos humanos à vida, saúde, bem-estar. 2) os direitos ambientais dependem do exercício dos direitos humanos para terem eficácia. Através do direito à informação, liberdade de expressão, tutela judicial, participação política no Estado que vivem, os indivíduos 25 poderão reivindicar direitos ambientais. O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado possui um caráter difuso e transindividual, no sentido de que seus titulares são indeterminados, visto que é direito e dever de “todos”, vinculando tanto a atuação do Poder Público quanto a dos particulares, o que também demonstra a já mencionada responsabilidade compartilhada. Quanto à vinculação Estatal leciona Filho: A norma do art. 225 vincula juridicamente a atuação do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. A possibilidade de controle jurisdicional da normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, a proteção reforçada (cláusula pétrea), são elementos que permitem identificar um sistema de Direitos Fundamentais caracterizado por sua autonomia relativa e abertura no âmbito do sistema constitucional que integra. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 69/82. 23 REIS, Jorge Renato dos. Os direitos fundamentais de tutela da pessoa humana nas relações entre particulares. In.____; LEAL, R. G. (Org.). Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. p. 2037. 24 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 86-87. 25 RITT, C. F.; CAGLIARI, C. T. S. Meio ambiente: um direito humano fundamental. In: GORCZEVSKI, Clóvis (Org.). Direitos Humanos, Educação e Meio Ambiente. Porto Alegre: Evangraf, 2007. p. 200201. 18 realização do direito ao ambiente deixa claro que se trata de um direito fundamental. A respeito, afora o controle de constitucionalidade da normalização infraconstitucional sobre o ambiente, deve-se acrescentar que a Constituição prevê o procedimento da ação civil pública e da ação popular para a realização do direito ao ambiente. Aliás, para afastar qualquer controvérsia contra o reconhecimento do direito ao ambiente como direito fundamental, a disposição do art. 5º, LXXIII, da Constituição – integrante do Título que trata dos direitos e garantias fundamentais – contém norma segundo a qual qualquer cidadão tem o direito de propor ação popular para 26 anular ato lesivo ao ambiente. (grifado no original) A vinculação da sociedade ocorre tanto por seus indivíduos considerados separadamente bem como por seus grupos de representação social e econômica, tais como: as empresas e as indústrias. É a chamada “vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nas relações interprivadas” que, segundo Reis, há inclusive certo consenso no fato de que determinados direitos fundamentais “devem” ter vinculação aos particulares nas “relações jurídicas interprivadas”, ademais o próprio art. 225 da Constituição Federal de 1988 é expresso e categórico em dizer que “todos” são responsáveis por um meio ambiente ecologicamente equilibrado.27 Nesse contexto e diante da noção de responsabilidade compartilhada, pode-se dizer que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é, em um só tempo, direito subjetivo da personalidade de caráter primordialmente público e elemento da ordem objetiva. Configura-se um direito subjetivo da personalidade o fato de que 26 FILHO, Anízio Pires Gavião. Direito fundamental ao ambiente. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2005. p. 37. 27 No entanto, segue Reis argumentando que não está pacificada a forma como deve ocorrer tal vinculação. “Portanto, mesmo em Portugal, onde há a previsão constitucional da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, perdura o questionamento a respeito da forma como ocorre essa vinculação. No Brasil, e mesmo nos demais países onde não existe qualquer previsão na Constituição, maiores, ainda, são as dúvidas a respeito dessa vinculação, sendo acrescida à discussão portuguesa a questão da existência ou não dessa vinculação dos particulares aos direitos fundamentais”. Dentre os que advogam existir uma vinculação, alguns defendem a vinculação de forma direta (imediata) e outros de forma indireta (mediata). De forma breve, pode-se dizer que a teoria da vinculação indireta, majoritária, surgiu na Alemanha, em 1956, com Günter Dürig e teve como posterior defensor Konrad Hesse e de acordo com essa corrente, os direitos fundamentais integram uma ordem objetiva de valores, que irradia sobre todo o ordenamento jurídico e essa eficácia quanto a sua dimensão jurídica, se realizaria, na ausência de normas jurídico-privadas, indiretamente, através da “interpretação e integração das ‘cláusulas gerais’ e conceitos indeterminados ao direito privado à luz dos direitos fundamentais”. Também a teoria que defende a vinculação direta iniciou na Alemanha, no ano de 1950, com Hans Carl Nipperdey e essa corrente prega que “em razão de os direitos fundamentais constituírem normas de valor válidas para toda a ordem jurídica, o que caracteriza o princípio da unidade da ordem jurídica, e, em razão da força normativa da Constituição, não é possível ao direito privado estar isento desse sistema, excluído da ordem constitucional”. Há ainda a teoria dos deveres de proteção, vertente da teoria da incidência indireta. REIS, Jorge Renato dos. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nas relações interprivadas: breves considerações. In.____; LEAL, R. G. (Org.). Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 5. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. p.1497-1512. 19 todos podem pleitear o direito de defesa contra atos lesivos ao ambiente e, como elemento da ordem objetiva expressando incumbências, fica a cargo do Estado e também da sociedade como um todo, visando assegurar a todos a realização do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado.28 Levando-se em consideração a previsão constitucional de que “todos” têm direito e também dever para com o meio ambiente, é relevante o entendimento de Leite ao dizer que não deve ser o meio ambiente considerado um patrimônio público, e sim um bem pertencente à coletividade, dado que é de interesse público, afeto à coletividade e intergeracional, em razão de que a preservação do meio ambiente deve ser concretizada por toda a coletividade e pelo Estado, não se restringindo apenas a benefícios atuais, a benefícios que se estendam inclusive às gerações futuras29: hoje a defesa do meio ambiente está relacionada a um interesse intergeracional e com necessidade de um desenvolvimento sustentável, destinado a preservar os recursos naturais para as gerações futuras, fazendo que a proteção antropocêntrica do passado perca fôlego, pois está em jogo não apenas o interesse da geração atual. Assim sendo, este novo paradigma de proteção ambiental, com vistas às gerações futuras, pressiona um condicionamento humano, político e coletivo mais contencioso 30 com relação às necessidades ambientais. Em que pese a classificação feita por Leite de “intergeracional”, Sarlet leciona que, embora o direito ao meio ambiente equilibrado não esteja previsto dentre os direitos e garantias fundamentais abarcados na atual Constituição Federal, considera-se direito fundamental de terceira geração em razão da sua titularidade coletiva31: 28 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 88-89. 29 Idem. Sociedade de Risco e Estado. In: ______; CANOTILHO, J. J. G. (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 142/147. 30 ______; AYALA, P. de A. Novas tendências e possibilidades do Direito Ambiental no Brasil. In: ______; Wolkmer, A. C. (Org.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 211. 31 No que tange a classificação por gerações, seguida por Sarlet, os Direitos Humanos foram classificados levando-se em conta um processo de evolução desses direitos no decorrer do tempo, e consoante as necessidade sociais, sendo que essas classificações não são estanques no sentido de que as “gerações” se inter-relacionam e se complementam seguindo, como se mencionou, uma seqüência evolutiva. A classificação divide-os em direitos de primeira geração, ou ainda, direitos de liberdade, que incluem os direitos civis e políticos, os de segunda geração, ou de igualdade, que são os direitos econômicos, sociais e culturais e os de terceira geração, de solidariedade ou fraternidade que surgem durante e após a Segunda Guerra Mundial e estão consubstanciados na Carta das Nações Unidas, de 1945 e em outras convenções internacionais. Neste mesmo sentido posiciona-se 20 A nota distintiva destes direitos de terceira dimensão reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, o que se revela a título de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o qual, em que pese ficar preservada sua dimensão 32 individual, reclama novas técnicas de garantia e proteção. Diante da classificação como intergeracional e a necessária inclusão da proteção ambiental também para as gerações futuras, Leite argumenta que tal visão reflete nada mais que uma perda de espaço da visão antropocêntrica clássica, do passado, em detrimento de um novo paradigma mais ampliado de proteção ambiental que induz a um condicionamento tanto humano quanto político e da coletividade voltado às necessidades do meio ambiente.33 Tendo em vista essa visão ampliada de meio ambiente como “o conjunto de relações e interações que condiciona a vida em todas as suas formas” trazida pela atual Constituição Federal, Leite afirma que ela tem adotado o chamado “antropocentrismo alargado”, vez que considera o meio ambiente como um bem abstrato de uso comum do povo que possui valor intrínseco, atribuindo-lhe caráter de “macrobem”, numa visão difusa, visto que estabelece uma visão ampla de ambiente não restringindo a realidade ambiental a mero conjunto de bens materiais (flores, lagos, rios) sujeitos ao regime jurídico privado, ou mesmo público stricto sensu; pelo contrário, confere-lhe caráter de unicidade e de titularidade difusa. Nesta perspectiva difusa de macrobem, o ambiente passa a possuir um valor intrínseco. Se todos são titulares e necessitam do bem ambiental para a sua dignidade, o ambiente deixa de ser visto como entidades singulares concretas (árvores, animais, lagos) que dependam, para a sua preservação, de sujeitos determinados, passando a ser concebido como um bem abstrato de valor intrínseco – pois seu valor não está diretamente ligado a ninguém isoladamente -, sendo necessário, contudo, para que se possa atingir a própria qualidade de vida humana. Trata-se da proteção da natureza levando em conta a necessidade do sistema ecológico, mesmo sendo este pouco conhecido pela ciência e 34 pela cognição humana. (grifado no original) Fernandez-Largo sustentando que “las generaciones de derechos son acumulativas y designan sólo el diverso momento histórico en que han aflorado a la conciencia y a las leyes”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996. p. 76-77. FERNANDEZ-LARGO, Antonio Osuna. Los derechos humanos: âmbito y desarrollo. Salamanca: San Esteban, 2002. p. 271. 32 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 57. 33 LEITE, J. R. M.; AYALA, P. de A. Direito Ambiental na sociedade de risco. 2. ed. Revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 55. 34 ______, José Rubens Morato. Sociedade de Risco e Estado. In: _____; CANOTILHO, J. J. G. (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 141. 21 Assim, para Leite, a Constituição adota um “certo antropocentrismo”, sem restringir o meio ambiente a uma simples concepção econômica ou mesmo de mera subalternidade direta aos interesses dos seres humanos, no entanto, essa autonomia conferida ao meio ambiente pelo texto ainda é bastante distinta da defendida pela ecologia profunda como veremos. Ainda valendo-se do autor, pode-se afirmar que essa visão de “macrobem” também foi observada pelo legislador infraconstitucional que se posicionou da mesma forma quando passou a considerar como meio ambiente “o conjunto de relações e interações”, no conceito trazido pela Lei nº. 6.938/1981, em seu artigo 3º, I, já citado no texto. Tal contexto, novamente permite falar em uma responsabilidade social compartida perante o meio ambiente, executável pelo Estado e pela coletividade, impondo-se verdadeira solidariedade e comunhão de interesses entre o meio ambiente e o homem, como condição de existência de ambos, tanto que é preciso encarar que o proprietário, público ou privado, não pode mais dispor irresponsavelmente e ilimitadamente do meio ambiente ecologicamente equilibrado em razão justamente dessa previsão constitucional como macrobem de todos 35 , como direito e dever de todos. Por derradeiro, certo é que em todo e qualquer conceito que se queira adotar meio ambiente engloba tanto o homem quanto a natureza com todos os seus elementos, e tendo em vista ser o meio ambiente um bem difuso, inegável se pensar que qualquer dano ao meio ambiente implicará em dano à coletividade humana, no entanto, esse entendimento, de acordo com Leite, conduz a uma “noção genérica de meio ambiente”: não é possível se conceituar distante de uma visão de cunho antropocêntrico, posto que a sua proteção jurídica é dependente da atuação humana. Essa visão antropocêntrica deve ser alinhada com outros elementos e menos centrada no homem, de modo a permitir inclusive uma reflexão de valores, diante da proteção ambiental globalizada e diante do contexto global que se apresenta. 35 LEITE, J. R. M; AYALA, P. de A. Novas tendências e possibilidades do Direito Ambiental no Brasil. In: ______; Wolkmer, A. C. (Org.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 212. 22 O autor, tendo em mente essa noção genérica de meio ambiente, ressalta algumas preocupações centrais e valores que devem conduzir a conduta antropocêntrica em relação ao meio ambiente: 1. o ser humano pertence a um todo maior, que é complexo, articulado e interdependente; 2. a natureza é finita e pode ser degradada pela utilização perdulária de seus recursos naturais; 3. o ser humano não domina a natureza, mas tem de buscar caminhos para uma convivência pacífica entre ela e sua produção, sob pena de extermínio da espécie humana; 4. a luta pela convivência harmônica com o meio ambiente não é somente responsabilidade de alguns grupos “preservacionistas”, mas missão política, ética e jurídica de todos os cidadãos que tenham consciência da destruição que o ser humano está realizando em nome da produtividade e do 36 progresso. Propõe então não um “biocentrismo”, mas “uma superação do modelo derrogado do homem como senhor e destruidor dos recursos naturais”. A idéia do passado, arraigada entre nós, onde o “homem domina e submete a natureza à exploração ilimitada”, perdeu o seu sustento, tanto que com o desenvolvimento da ecologia restou demonstrado que a intervenção humana destrói os recursos naturais não renováveis e também acarreta perigo à estruturação e ao equilíbrio do próprio ser humano no planeta Terra. “Trata-se de um alargamento dessa visão que acentua a responsabilidade do homem pela natureza e justifica a atuação deste como guardião da biosfera”, fazendo surgir uma “solidariedade de interesses” entre o homem e a comunidade biótica a qual pertence, constatando-se mais uma vez que a responsabilidade social para com o meio ambiente deve ser executada tanto pelo Estado como pela coletividade: Nessa proposta há uma ruptura com a existência de dois universos distantes, o homem e o natural, e avança-se no sentido da interação destes. Abandonam-se as idéias de separação, dominação e submissão e busca-se uma interação entre os universos distintos e a ação humana. (…) Essa proposta visa, de maneira adversa, a abranger também a tutela do meio ambiente, independentemente da sua utilidade direta, e busca a preservação da capacidade funcional do patrimônio natural, com ideais 37 éticos de colaboração e interação. Segundo Ost, proteger a natureza restringindo eventuais subtrações excessivas e reduzindo as emissões nocivas, é simultaneamente trabalhar para a 36 LEITE, J. R. M.; AYALA, P. de A. Direito Ambiental na sociedade de risco. 2. Ed. Revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 53. 37 Ibidem, p. 54/56. 23 recuperação dos equilíbrios ecológicos e para a proteção dos interesses humanos e sobre a visão menos antropocêntrica: Passo ao passo, o direito faz, assim, a aprendizagem do ponto de vista global. Num século, a evolução é significativa, conduzindo de uma posição estreitamente antropocêntrica a uma maior tomada de consideração da lógica natural em si mesma; evolução que é, também, a do ponto de vista local para o ponto de vista planetário, e do ponto de vista concreto e particular (tal flor, tal animal) para a exigência abstrata (por detrás da flor ou do animal, o patrimônio genético). Se nos primeiros tempos da proteção da natureza, o legislador se preocupava exclusivamente com tal espécie ou tal espaço, beneficiado dos favores do público (critério simultaneamente antropocêntrico, local e particular), chegamos hoje a proteção dos objetos infinitamente mais abstratos e mais englobantes, como o clima e a 38 biodiversidade. Diante da previsão constitucional do art. 225, é inegável que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito humano fundamental, calcado no princípio maior da dignidade da pessoa humana, que necessita e deve ser respeitado e promovido pelo Estado, indivíduos, grupos sociais e econômicos, que também precisam, não apenas em razão da previsão legal, mas da própria condição de existência da raça humana, ter consciência e promover esse novo paradigma, antropocêntrico alargado, como quer Leite, ou da ecologia profunda, como se verá no próximo tópico, onde homem e natureza são vistos como integralizados e interligados, mutuamente dependentes. Deixar de ter esta visão diminuta dos recursos naturais: apenas de “instrumentos de exploração” do homem para o seu constante crescimento econômico e visualizá-lo como um meio ambiente ecologicamente equilibrado, como condição de desenvolvimento em seu sentindo mais amplo. 1. 2 Fritjof Capra e o paradigma da ecologia profunda e a visão sistêmica Numa concepção mais ampliada e profunda da expressão “meio ambiente”, encontra-se o termo “ecologia”. A palavra provém do grego oikos que significa “lar” ou “casa” e possibilita definir-se como o estudo do Lar Terra, o estudo das relações que interligam todos os membros da terra, ou ainda a “ciência do habitat”. A ciência ecológica emergiu da escola organísmica de biologia no século XIX e foi introduzida em 1866 por Ernest Haeckel, biólogo alemão, discípulo de Darwin, que a definiu 38 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 112. 24 como “a ciência das relações entre o organismo e o mundo externo circunvizinho” 39, ou ainda, “a ciência das relações dos organismos com o mundo exterior, no qual nos podemos reconhecer como factores da luta pela existência” (grifei). Segundo Ost, Haeckel incluiu tanto características físicas quanto químicas do habitat no seu conceito, características climáticas, da qualidade da água, a natureza do solo e o conjunto de relações favoráveis entre os organismos, de modo que duas idéias essenciais acabam por fundamentar o paradigma ecológico, quais sejam, a globalidade e a processualidade. Quanto à globalidade, a ecologia prega que tudo é sistema na natureza: “não se pode negar que é sobre um fundo de globalidade (segundo o modelo gestaltista) que é necessário interpretar as figuras da ecologia local”. Quanto à processualidade, está deixa evidente a interação constante, a idéia de redes interligadas, pondo em destaque as muitas, mútuas e constantes trocas físicas, químicas, energéticas, biológicas, estabelecidas nos e entre os ecossistemas, visando à mantença da integralidade, da diversidade e a evolução. Caracteriza-se também pela sua complexidade que acaba por engendrar inevitavelmente a idéia de incerteza, também presente, assim como as idéias de irreversibilidade e necessário equilíbrio. Mas alerta que é também a idéia de processualidade, da dinâmica dos fenômenos naturais, que nos traz a falsa idéia de reversibilidade da natureza, pois estamos acostumados a visualizar as representações cíclicas de trocas naturais que aparecem estampadas em todos os manuais de ecologia e livros de biologia, e essa imagem de certeza de ciclos nos passa a falsa e tranqüilizadora idéia da reversibilidade da natureza, e é apenas a partir do momento que tomamos consciência da verdadeira irreversibilidade dos recursos naturais que entra em jogo as idéias de incerteza e necessário equilíbrio. 40 A ecologia em suma é “a ciência que estuda a natureza como um todo, estabelecendo as inter-relações entre os seres vivos e o meio em que vivem” tendo a expressão uso corrente apenas na década de 1970, com a divulgação dos desastres ambientais pela imprensa41. Cumpre referir que inicialmente, nos estudos da ecologia, prevalecia uma abordagem chamada auto-ecológica, ou seja, sem a inclusão do homem. 39 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 43. 40 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 105/114. 41 VALLE, Cyro Eyer do. Qualidade ambiental: ISO 14000. 5. ed. São Paulo: Senac, 2004. p. 26. 25 A “ecologia profunda” ou deep ecology é uma escola filosófica fundada pelo norueguês Arne Naess, no início da década de 70, como distinção à “ecologia rasa” que para ele é antropocêntrica, humanista, ou centralizada no ser humano, atribuindo à natureza apenas valor instrumental. O antropocentrismo tinha o homem como a “medida de todas as coisas”, era fonte do pensamento, do valor e seu próprio fim último42. Denominada também de “visão ecológica” desde que se tenha em mente a aplicação do termo “ecologia” em um sentido muito amplo, a ecologia profunda não separa os seres humanos do meio ambiente natural, visualizando o mundo como uma “rede de fenômenos” fundamentalmente interconectados e interdependentes, como “um todo integrado”. Reconhecendo, assim, a relação de interdependência que há entre todos os fenômenos e o fato de que indivíduos e sociedade encontramse “encaixados nos processos cíclicos da natureza” e são dependentes desse processo. “A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular da teia da vida”. Para Naess, trazido por Capra, a essência da ecologia profunda consiste em formular questões mais profundas 43, diga-se até, espirituais 44. Capra também chama a percepção da ecologia profunda de uma “percepção espiritual” ou mesmo “religiosa”, pois é consistente com a “filosofia perene das tradições espirituais” no sentido, “apenas”, de uma “percepção mais além”, de algo muito maior do que aquilo que podemos visualizar ou mesmo tocar, ou seja, compondo a ecologia “todos” os seres vivos, os elementos químicos e físicos, as energias e suas interações que integram o planeta Terra. Traz Ost como “caminho” e também características basilares da ecologia profunda a passagem da objetivação à subjetivação da natureza, a substituição do 42 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 178. 43 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 25-26. 44 OST, op. cit., p. 183. 26 antropocentrismo pelo biocentrismo, o desaparecimento do individualismo em prol do holismo e a substituição do dualismo moderno pelo rigoroso monismo.45 É tido como um novo paradigma que busca uma visão holística e espiritualizada de mundo onde homem e natureza não são distintos, no entanto, Capra refere que “holístico” e “ecológico” possuem significados diferentes e que, portanto, ecológico é o termo mais apropriado em se tratando da escola filosófica da “ecologia profunda”.46 A ecologia profunda põe em questionamento profundo as nossas percepções de mundo e maneira de pensar, nossos fundamentos e valores, nossas atuações para com os demais indivíduos, com a sociedade como um todo, com o capital, a ciência, a tecnologia, as empresas e indústrias e, é claro, com a natureza. Refere Capra que a escola da ecologia profunda fornece elementos filosóficos e espirituais suficientes para um estilo de vida ecologicamente correto. No entanto, não se atem detidamente a esclarecer quais as atitudes e pensamentos, os padrões culturais da sociedade, que resultaram no atual estado de crise ambiental, cabendo tal tarefa as escolas filosóficas chamadas de “ecologia social”. Essas escolas têm em comum o reconhecimento da vigência entre nós e ao longo de toda a história da humanidade socialmente e economicamente organizada de um padrão social e econômico do “sistema do dominador”, padrão este que é antiecológico por ser desencadeador das mais variadas dominações, discriminações e explorações, tanto da natureza quanto dos próprios seres humanos. No entender do autor, os valores e pensamentos de uma visão ecológica profunda devem ser “ecocêntricos”, ao contrário do que evidencia nos pensamentos e valores da cultura industrial ocidental que não mantêm um equilíbrio entre as 45 É também partindo da análise dessas bases que Ost formula certa crítica a escola filosófica da Deep Ecolgy quanto a “má dialéctica” da escola, “incapaz de gerir as diferenças, no próprio momento em que estabelece as relações, e esta “confusão” gera dois erros aparentemente opostos e solidários, quais sejam, o naturalismo e o antropomorfismo. Em razão do primeiro a natureza se projeta na cultura que ela acaba por absorver completamente e em razão do segundo o homem projeta sobre a natureza a sua visão das coisas, uma visão datada e localizada. OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 209-211. 46 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 25-26. 27 tendências de auto-afirmação e de integração, essenciais em todo sistema vivo. Acabam por enfatizar excessivamente as primeiras, priorizando o racional, a análise, o reducionismo e a linearidade, ao invés da integração, intuição, síntese, holismo e a não-linearidade dos “ciclos da vida”. Quanto aos valores, também priorizam a autoafirmação, a expansão, a competição, a quantidade e a dominação, ao invés da integração, da conservação, da cooperação, da qualidade e da parceria. Esses valores e pensamentos antropocêntricos inegavelmente deixam a mostra a sociedade consumista e competitiva em que vivemos. Com isso a qualidade e a necessidade, aqui entendida como o vitalmente necessário, perdem espaço constantemente para a quantidade, a dominação, o consumismo exacerbado, a infinita insatisfação econômica e o desejo de “poder”, reflexos diretos de nossa estrutura social onde a hierarquia está sempre presente e é idolatrada e desejada. A ecologia profunda torna necessário o surgimento de uma nova ética, com novos valores e pensamentos, que vislumbrem a rede de interdependências que há entre todas as comunidades de seres vivos, urgente nas ciências, nas tecnologias e nas indústrias, que nada mais fazem do que refletir, em seus fundamentos, nossos próprios valores e pensamentos: Com os físicos projetando sistemas de armamentos que ameaçam eliminar a vida do planeta, com os químicos contaminando o meio ambiente global, com os biólogos pondo à solta tipos novos e desconhecidos de microorganismos sem saber as conseqüências, com psicólogos e outros cientistas torturando animais em nome do progresso científico – com todas essas atividades em andamento, parece da máxima urgência introduzir 47 padrões “ecoéticos” na ciência. (grifado no original) Segue o autor argumentando que o vínculo entre uma percepção ecológica do mundo e uma atuação ecológica concreta por nós é uma conexão de cunho psicológico, que se dará pela concepção, pela percepção do “eu ecológico”. Por conseqüência, que ao contrário da lógica, perceberemos que somos parte da natureza, de uma rede de vida e assim nos sentiremos inclinados a cuidar dela para nos cuidarmos. 47 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 28. 28 Esse novo paradigma da ecologia profunda põe em questionamento e acaba por resultar na superação da metáfora cartesiana, do paradigma mecanicista, de que o ser humano é uma máquina perfeita e a física é modelo e fonte para as demais ciências e que, por conseqüência, através dela tudo se explica. Ocorre uma tensão que se funda entre as partes e o todo, já que a metáfora mecanicista enfatiza as partes e a ecológica enfatiza o todo. Tal enfoque, a partir das ciências do século XX, passou a ser conhecido como “sistêmico”, num sentido científico mais técnico possível, segundo Capra, e que deriva de um “pensamento sistêmico”. O pensamento sistêmico surgiu, conforme Capra, na primeira metade do século passado, em especial na década de 20 e teve como pioneiros os biólogos, que concebiam os organismos vivos como um todo integrado, e posteriormente a psicologia da Gestalt e a nova ciência ecológica que influenciou consideravelmente a física quântica. A idéia de universo orgânico foi substituída pela visão de mundo como máquina a partir das descobertas de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton. Foi Descartes quem criou o chamado pensamento analítico, a visão mecanicista até mesmo dos seres vivos, que parte da análise das partes individualmente consideradas para se conceber o todo, no entanto, as ciências do século XX despertaram para a idéia de que os sistemas não podem ser compreendidos pela análise, pelo isolamento, pois mesmo as partes apenas podem ser compreendidas quando integradas no seu todo mais amplo, a partir da “organização” do todo, no “contexto”. A ecologia profunda “reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza” e deles somos dependentes; a ciência da ecologia agregou ao pensamento sistêmico as idéias de comunidade e rede: Sabemos hoje que, em sua maior parte, os organismos não são apenas membros de comunidades ecológicas, mas também são, eles mesmos, complexos ecossistemas contendo uma multidão de organismos menores, dotados de uma considerável autonomia, e que, não obstante, estão harmoniosamente integrados no funcionamento do todo. Portanto, há três tipos de sistemas vivos – organismos, partes de organismos e comunidades de organismos – sendo todos eles totalidades integradas cujas 29 propriedades essenciais surgem das interações e da interdependência de 48 suas partes. Essa idéia dos sistemas vivos como redes traz uma nova percepção para as hierarquias da natureza, ou seja, a ausência de hierarquia refletida na linearidade e a percepção da “teia da vida”: Desde que os sistemas vivos, em todos os níveis, são redes, devemos visualizar a teia da vida como sistemas vivos (redes) interagindo à maneira de rede com outros sistemas (redes). Por exemplo, podemos descrever esquematicamente um ecossistema como uma rede com alguns nodos. Cada nodo representa um organismo, o que significa que cada nodo, quando amplificado, aparece, ele mesmo, como uma rede. Cada nodo na nova rede pode representar um órgão, o qual, por sua vez, aparecerá como 49 uma rede quando amplificado, e assim por diante. Diante desse enfoque de “redes”, incontestável se torna a aceitação de que não há então hierarquia na natureza, apenas redes interconectadas, “aninhadas dentro de outras redes”. Quanto ao significado da idéia de sistema e de pensamento sistêmico, transcrevem-se as observações de Capra: O bioquímico Lawrence Henderson foi influente no seu uso pioneiro do termo “sistema” para denotar tanto organismos vivos como sistemas sociais. Dessa época em diante, um sistema passou a significar um todo integrado cujas propriedades essenciais surgem das relações entre suas partes, e “pensamento sistêmico”, a compreensão de um fenômeno dentro do contexto de um todo maior. Esse é, de fato, o significado raiz da palavra “sistema”, que deriva do grego synhistanai (“colocar junto”). Entender as coisas sistematicamente significa, literalmente, colocá-las dentro de um 50 contexto, estabelecer a natureza das suas relações. (grifado no original) O pensamento sistêmico já havia sido referido e utilizado por vários cientistas, mas apenas na década de 40 do século XX surge com o biólogo de Viena Ludwig Von Bertalanffy a chamada “teoria geral dos sistemas”, substituindo os fundamentos cartesianos, mecanicistas da ciência pelo holismo o qual tem como objeto a “formulação de princípios válidos para os ‘sistemas’ em geral, qualquer que seja a natureza dos elementos que os compõe e as relações ou ‘forças’ existentes entre eles”: 48 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 25/44. 49 Ibidem, p. 44-45. 50 Ibidem, p. 39. 30 A teoria geral dos sistemas portanto é uma ciência geral da ‘totalidade’, que até agora era considerada um conceito vago, nebuloso e semimetafísico. Em forma elaborada seria uma disciplina lógico-matemática, em si mesma, puramente formal mas aplicável às várias ciências empíricas. Para as ciências que tratam de ‘todos organizados’ teria uma significação semelhante a que tem a teoria das possibilidades para as ciências que se 51 ocupam de ‘acontecimentos casuais’. (destacado no original) O pensamento sistêmico consiste em uma compreensão contextual do objeto em foco, em contraposição com o procedimento científico analítico, paradigma da ciência clássica ou, para usar a terminologia de Thomas Kuhn, da chamada “ciência normal”52. Pode-se dizer, como o fez Bertalanffy, que o problema abordado na teoria dos sistemas diz respeito justamente às limitações do procedimento analítico na ciência: A necessidade resultou do fato do esquema mecanicista das séries causais isoláveis e do tratamento por partes ter se mostrado insuficiente para atender aos problemas teóricos, especialmente nas ciências bio-sociais, e 53 aos problemas práticos propostos pela moderna tecnologia. Nessa linha de entendimento, ganham ênfase na compreensão sistêmica as noções de inter-relação e de totalidade. Os elementos que compõem um sistema estão inter-relacionados de diferentes maneiras e, em virtude disso, constituem uma totalidade com características próprias, que emergem das inter-relações mencionadas. Diante dessa perspectiva ecológica, Capra contextualiza de uma forma simples e para nós plenamente visível e aceitável, que nenhum organismo sobrevive de forma isolada: Não existe nenhum organismo individual que viva em isolamento. Os animais dependem da fotossíntese das plantas para ter atendidas as suas necessidades energéticas; as plantas dependem do dióxido de carbono produzido pelos animais, bem como do nitrogênio fixado pelas bactérias em 51 BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: a ciência que está revolucionando a administração e o planejamento na área do governo, dos negócios, na indústria e na solução dos problemas humanos. Tradução de Francisco M. Guimarães. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1975. p. 61. 52 “Neste ensaio, ‘ciência normal’ significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior.” KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 29. 53 BERTALANFFY, op. cit., p. 29. 31 suas raízes; e todos juntos, vegetais, animais e microorganismos, regulam 54 toda a biosfera e mantêm as condições propícias à preservação da vida. No entanto, as noções de totalidade e de inter-relação não esgotam os traços característicos de um sistema. É preciso agregar-lhes a idéia de organização, dando ênfase para o aspecto organizacional na concepção sistêmica, citam-se as palavras de Morin: A organização, conceito ausente na maioria das definições do sistema, estava até agora como que sufocada entre a idéia de totalidade e a idéia de inter-relações, sendo que ela liga a idéia de totalidade à de inter-relações, tornando as três noções indissociáveis. A partir daí, pode-se conceber o sistema como unidade global organizada de inter-relações entre elementos, 55 ações ou indivíduos. (grifado no original) Em conformidade com as definições sobre a teoria sistêmica apresentadas, pode-se enumerar alguns critérios fundamentais do pensamento sistêmico. Segundo Capra, um desses critérios é a mudança de foco das partes para o todo, compreendendo-se que a totalidade formada pelo sistema apresenta propriedades que são características do todo, não podendo ser reduzidas às propriedades das partes menores. 56 Ainda, conforme o mesmo autor, existem diversos níveis sistêmicos: há possibilidade da ocorrência de sistemas dentro de sistemas e também com variados graus de complexidade. Este fato demonstra a importância do elemento subjetivo na análise sistêmica, pois, em certa medida, a percepção de sistemas “maiores” ou “menores”, mais ou menos abrangentes, depende da ação do observador, trazendo a necessidade de um estudo epistemológico57 na descrição dos fenômenos sistêmicos. 54 CAPRA. Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. 4. ed. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Cultrix, 2005. p. 23. 55 MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza. Tradução de Ilana Heineberg. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 132. Na mesma obra, o autor constrói um conceito de organização, que se transcreve aqui para uma melhor compreensão de seu pensamento: “O que é a organização? Primeira definição: a organização é o encadeamento de relações entre componentes ou indivíduos que produz uma unidade complexa ou sistema, dotada de qualidades desconhecidas quanto aos componentes ou indivíduos. A organização liga de maneira inter-relacional os elementos ou acontecimentos ou indivíduos diversos que desde então se tornam os componentes de um todo. Ela assegura solidariedade e solidez relativa a estas ligações, assegurando então ao sistema uma certa possibilidade de duração apesar das perturbações aleatórias. A organização, portanto: transforma, produz, religa, mantém.” (p. 133) 56 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 46. 57 Aqui se entende epistemologia como a ciência que tem por objeto de análise o próprio conhecimento e seus processos de construção. 32 Ao contrário do pensamento analítico, que busca a simplificação e o isolamento do objeto de estudo, a análise sistêmica desvela a existência de uma complexidade crescente nos diversos fenômenos abordados. O feixe de luz sistêmico ilumina todas as arestas relegadas à escuridão pelo procedimento analítico, descortinando conexões antes não alcançadas (ou escamoteadas) pela percepção científica. Aqui é importante a noção de “complexidade de base” trazida por Morin que, ligando a idéia de sistema à de complexidade, reconstrói sua noção de sistema, entendendo-a como a “unidade da complexidade”, in verbis: a noção de sistema não é nem simples nem absoluta; ela comporta, na sua unidade, relatividade, dualidade, multiplicidade, cisão, antagonismo; o problema de sua inteligibilidade abre uma problemática da complexidade.[...] O sistema é o conceito complexo de base porque ele não é redutível a unidades elementares, a conceitos simples, a leis gerais. O sistema é a unidade de complexidade. É o conceito de base, pois ele pode se desenvolver em sistemas de sistemas de sistemas, em que aparecerão as máquinas naturais e os seres vivos. Estas máquinas, estes seres vivos, são também sistemas, mas eles já são outra coisa. Nosso objetivo não é fazer um sistemismo reducionista. Utilizaremos universalmente nossa concepção do sistema, não como palavra-chave da totalidade, mas como raiz da 58 complexidade. (grifado no original) São critérios identificadores de todo os sistemas vivos propostos por Capra: padrão autopoiético59 (auto-reprodução), estrutura dissipativa (sistema aberto, afastado do equilíbrio, perpassado por fluxos de matéria e energia que criam uma constante realimentação) e cognição (incorporação de padrões autopoiéticos em estruturas dissipativas, significando também uma interação com o meio ambiente, ou “acoplamento estrutural”). Conforme a síntese formulada por Capra: Compreender a natureza da vida a partir de um ponto de vista sistêmico significa identificar um conjunto de critérios gerais por cujo intermédio 58 MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza. Tradução de Ilana Heineberg. Porto Alegre: Sulina, 2005. p 187. 59 A respeito da caracterização dos seres vivos como organizações autopoiéticas, citem-se as palavras de Maturana e Varela: “Cuando hablamos de los seres vivos ya estamos suponiendo que hay algo en común entre ellos, de otra manera no los pondríamos dentro de la misma clase que designamos con el nombre: vivo. Lo que no está dicho, sin embargo, es cuál es esa organización que los define como clase. Nuestra proposición es que los seres vivos se caracterizan porque, literalmente, se producen continuamente a sí mismos, lo que indicamos al llamar a la organización que los define, organización autopoiética.” (grifado no original) MATURANA, H.; VARELA, F. El árbol del conocimiento. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1996. p. 25. 33 podemos fazer uma clara distinção entre sistemas vivos e não-vivos. Ao longo de toda a história da biologia, muitos critérios foram sugeridos, mas todos eles acabavam se revelando falhos de uma maneira ou de outra. No entanto, as recentes formulações de modelos de auto-organização e a matemática da complexidade indicam que hoje é possível identificar tais critérios. A idéia-chave da minha síntese consiste em expressar esses critérios em termos das três dimensões conceituais: padrão, estrutura e processo. Em resumo, proponho entender a autopoiese, tal como é definida por Maturana e Varela, como o padrão da vida (isto é, o padrão de organização dos sistemas vivos); a estrutura dissipativa, tal como é definida por Prigogine, como a estrutura dos sistemas vivos; e a cognição, tal como foi definida inicialmente por Gregory Bateson e mais plenamente por Maturana 60 e Varela, como o processo da vida. Em que pesem as achegas teóricas fornecidas pela teoria sistêmica, cumpre referir que a mesma não pode se tornar aquilo que inicialmente visou a combater: um procedimento reducionista do conhecimento; e a advertência é elaborada por Morin: É preciso ir rumo ao sistema-problema, não rumo ao sistema-solução. Meu propósito não é empreender uma leitura sistêmica do universo; não é recortar, classificar, hierarquizar os diferentes tipos de sistema, desde os sistemas físicos até o sistema homo. Meu propósito é mudar o olhar sobre todas as coisas, da física ao homo. Não dissolver o ser, a existência, a vida no sistema, mas compreender o ser, a existência, a vida, com a ajuda, também, do sistema. Quer dizer, primeiramente, colocar em todas as coisas o acento circunflexo! É o que eu tentei indicar: a complexidade na base, a 61 complexidade no comando. (grifado no original) O arcabouço teórico fornecido pela teoria dos sistemas pode ser aplicado a diversos campos do conhecimento, inclusive no campo das atividades empresariais. De acordo com os critérios fornecidos por Capra, é imprescindível conceber-se também a empresa/indústria como um sistema vivo, integrante de um único ecossistema, com segmentos de complexidade e variação extremamente ricos, que constante e mutuamente interagem. Com essa mudança de percepção ocasionada pela ecologia profunda e pelo pensamento sistêmico, a relação entre a empresa, os indivíduos e o meio ambiente, pode ser pensada em termos sustentáveis e a partir de uma gestão ecológica. Como essa mudança está relacionada a nossa percepção da natureza, do organismo humano e da sociedade, acaba refletindo em nossa percepção sobre 60 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 135. 61 MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza. Tradução de Ilana Heineberg. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 190. 34 “uma organização de negócios”. “As empresas são sistemas vivos, cuja compreensão não é possível apenas pelo prisma econômico”. E sendo um sistema vivo a empresa não pode ser “rigidamente controlada” através de uma intervenção direta, mas pode ser “influenciada” através da transmissão de “orientações e emissões de impulsos”, conforme prega a chamada “administração sistêmica”.62 Segundo o pensamento sistêmico e ecológico, os conceitos de “paradigma” e “cultura empresarial” encontram-se ligados de forma íntima: podendo-se definir o paradigma social como uma “constelação de conceitos, valores, percepções e práticas compartilhados por uma comunidade, compondo uma visão particular da realidade”, base sobre a qual a sociedade é organizada; a “cultura empresarial” também é um conjunto de idéias, valores, normas e modos de conduta, que foi aceito e adotado por certa empresa mediante um consenso, com caráter “distintivo e inconfundível da organização”. Tendo em mente os elementos-chaves do pensamento sistêmico e da ecologia profunda, ampliar e redefinir a cultura empresarial de forma a refletir o paradigma da ecologia profunda perpassa inclusive pela “mudança de crescimento para a sustentabilidade”. No âmbito empresarial, o exemplo mais relevante da mudança das idéias de expansão para conservação, de quantidade para qualidade, é a mudança nos critérios fundamentais do “sucesso” empresarial, do mero crescimento econômico para a sustentabilidade ecológica. A busca a qualquer custo do crescimento econômico, sem restrições, é o principal motivo da destruição ambiental global. Em que pese “o crescimento, naturalmente, seja uma característica de toda vida”, no “mundo vivo”, não possui apenas um significado quantitativo, de modo que a interiorização da visão sistêmica e da ecologia profunda no conceito de empresa e, por conseqüência no próprio âmbito de atuação da empresa, acaba por resultar em uma “restrição do crescimento econômico” diante da introdução da idéia de “sustentabilidade como critério fundamental de todas as atividades de negócios”, pois o que persiste em um sistema vivo ao longo do tempo, diante desse contexto, é o seu “padrão de organização”, a “teia de relações que define o sistema como um 62 CALLENBACH, Ernest. et al. Gerenciamento ecológico: EcoManagement: Guia do Instituto Elmwood de Auditoria Ecológica e Negócios Sustentáveis. 10. ed. Tradução de Carmen Youssef. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 88. 35 todo integrado” e tal padrão é a essência verdadeira do sistema, uma característica de ordem qualitativa.63 Levando essa linha de raciocínio mais adiante, percebe-se que uma visão ecologicamente sustentável da atividade empresarial não é uma alternativa, mas uma necessidade para a própria existência da mesma, de seus elementos constitutivos, do meio ambiente e da vida como um todo. Adotar o pensamento sistêmico e ecológico na empresa não implica em se negar o desenvolvimento, porém adaptar-se a um desenvolvimento com prioridades qualitativas, é claro, ao invés de prioridades apenas quantitativas e econômicas, e várias possibilidades podem ser geradas: As empresas podem fixar um prazo – dois anos, por exemplo – dentro do qual deixarão de produzir e receber embalagens. As empresas – quer sejam fabricantes de pesticidas agrícolas tóxicos exportados para o mundo subdesenvolvido, ou de vestidos com lantejoulas à base de petróleo, fruto da exploração do trabalho de crianças em troca de pagas irrisórias – podem traçar estratégias de investimento em pesquisas para desenvolver substitutos, adotar outros produtos e práticas, ou preparar sua gradual retirada do ramo em que atuam dentro de determinado prazo, se não for 64 possível encontrar outras soluções. A leitura dessas possibilidades trazidas pelo autor já deixam latente a necessidade de novos pensamentos e valores na sociedade, de novos conceitos, novos paradigmas, frente ao novo contexto social que se apresenta. Quando se pensa, por exemplo, na referida “retirada gradual da empresa do mercado”, a reação imediata é da inviabilidade dessa hipótese, reação dita “normal” a qualquer indivíduo que tenha uma visão antropocêntrica e que não visualize os ecossistemas como um todo integrado e interdependentes, entretanto, é necessário se ter presente que numa sociedade de risco, onde o risco é esperado, não calculado e muito menos evitado como se abordará no próximo tópico, crescer economicamente sem respeitar os limites da biosfera é uma utopia. Da mesma forma, a própria macroeconomia é vista pelo pensamento sistémico e pela visão ecológica profunda como um subsistema aberto da biosfera, plenamente dependente dela e, por ser finita a biosfera, é correto afirmar que o 63 CALLENBACH, Ernest. et. al. Gerenciamento ecológico: EcoManagement: Guia do Instituto Elmwood de Auditoria Ecológica e Negócios Sustentáveis. 10. ed. Tradução de Carmen Youssef. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 99/102. 64 Ibidem, p. 89. 36 subsistema econômico não pode violar e destruir indefinidamente o ambiente natural. De modo que se o subsistema economia ultrapassar os limites sustentáveis dos ecossistemas vivos, acabará por romper com os processos de manutenção da vida no planeta terra, devendo-se assim ter sempre presente as noções de interrelação e de totalidade trazidas pela concepção sistêmica, inclusive em se tratando das mútuas e constantes relações, que resultam em variados fluxos de energia existentes entre o meio ambiente e as empresas e indústrias considerados também organismos vivos integrantes da “teia da vida”. 1. 3 A sociedade de risco e a alternativa da racionalidade ambiental Diante das constantes e mútuas interações entre homem e natureza até agora expostas no presente trabalho, é possível afirmar-se que os problemas ambientais provocados pelos seres humanos decorrem do uso do meio ambiente para obter os recursos necessários à produção de bens e serviços. De igual forma, dos despejos de materiais e energias não aproveitados no meio ambiente, no entanto, nem sempre essa relação resultou na degradação ambiental. Buscando as raízes históricas, comumente a Revolução Industrial é apontada como marco importante na intensificação dos problemas ambientais, não que antes não houvesse tais problemas, mas a possibilidade e facilidade em se encontrar novas áreas para a obtenção dos recursos ocultavam a gravidade do problema. Leff discorre que foi nos anos 1960 que a crise ambiental se tornou evidente, quando deixou à mostra a irracionalidade ecológica dos padrões dominantes de produção e de consumo, e marcou os limites do crescimento econômico65. Fato é que a era industrial alterou a maneira de produzir a degradação ambiental trazendo técnicas produtivas intensivas em material e energia com vistas a atender mercados de grandes dimensões. Conseqüentemente a escala de exploração de recursos e de descargas de resíduos cresceu a tal ponto que passou a ameaçar a possibilidade de subsistência de muitos povos na atualidade e das gerações futuras. A maneira como a produção e o consumo estão sendo realizados, desde então, exige recursos e 65 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 134. 37 gera resíduos, ambos em quantidades vultosas, que já ameaçam a capacidade de suporte do próprio planeta Terra. Nesse contexto, é que emerge a chamada “sociedade de risco”, cujo conceito designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, onde os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais, “tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial” 66. É a chamada Teoria da Sociedade de Risco, característica da fase posterior ao período industrial clássico e representada pelo reconhecimento do esgotamento do modelo de produção e pela consciência do risco permanente de desastres e catástrofes, devido ao uso irrestrito do meio ambiente tanto pela apropriação e expansão demográfica, quanto pela mercantilização e o capitalismo selvagem: “A sociedade de risco é aquela que, em função de seu contínuo crescimento econômico, pode sofrer a qualquer tempo as conseqüências de uma catástrofe ambiental”. Há, portanto, consciência dos riscos, mas não há políticas de gestão, pois a sociedade moderna criou um modelo de desenvolvimento complexo e avançado, mas não criou meios capazes de conter e regrar o desenvolvimento67. Beck distingue duas fases na sociedade de risco: primeiro, um estágio em que os efeitos e as auto-ameaças são sistematicamente produzidos, mas não se tornam questões públicas ou o centro de conflitos políticos. Aqui, o auto conceito da sociedade industrial ainda predomina, tanto multiplicando como “legitimando” as ameaças produzidas por tomadas de decisão, como “riscos residuais” (a “sociedade de risco residual”). Segundo, uma situação completamente diferente surge quando os perigos da sociedade industrial começam a dominar os debates e conflitos públicos, tanto políticos como privados. Nesse caso, as instituições da sociedade industrial tornam-se os produtores e legitimadores das ameaças que não conseguem controlar. O que acontece aqui é que alguns aspectos da sociedade industrial tornam-se social e politicamente problemáticos. Por um lado, a sociedade ainda toma decisões e realiza ações segundo o padrão da velha sociedade industrial, mas, por outro, as organizações de interesse, o sistema judicial e a política são obscurecidos por debates e conflitos que 68 se originam do dinamismo da sociedade de risco. (grifado no original) 66 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: _____;GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 15. 67 LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de Risco e Estado. In: ______; CANOTILHO, J. J. G. (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 131-132. 68 BECK, op. cit., p. 15-17. 38 Continua o autor salientando que na “sociedade de risco” os atritos quanto à distribuição dos bens, representados pela renda, empregos e o seguro social, que era o conflito da sociedade industrial clássica, passam a serem encobertos por problemas decorrentes da distribuição dos “malefícios” “decodificados como conflitos de responsabilidade distributiva”. Isso irrompe acerca da forma como os riscos da produção dos bens “podem ser distribuídos, evitados, controlados e legitimados”. Para o estudo do elemento “risco” nas sociedades, faz-se importante buscar uma depuração de seu significado frente a outros fenômenos correlatos. Aqui se adota a lição de Beck, no sentido de que o risco está relacionado à indústria, ao processo de tomada de decisões cujo foco é a ponderação das vantagens técnicocientíficas e oportunidades envolvidas: Human dramas – plagues, famines and natural disasters, the looming power of god and demons – may or may not quantifiably equal the destructive potential of modern mega-technologies in hazardousness. They differ essentially from ‘risks’ in my sense since they are not based on decisions, or, more specifically, decisions that focus on techno-economic advantages and opportunities and accept hazards as simply the dark side of progress. This is my first point: risks presume industrial, that is, techno-economic, decisions and considerations of utility. They differ from ‘war damage’ by their ‘normal birth’, or, more precisely, their ‘peaceful origin’ in the centers of rationality and prosperity with the blessings of the guarantors of law and order. They differ from pre-industrial natural disasters by their origin in decision-making, which is of course conducted never by individuals but by 69 entire organizations and political groups. A compreensão dos perigos trazidos pelo avanço tecnológico não é tarefa fácil em um mundo marcado pela complexidade e por múltiplas contingências. Existem dificuldades desde a identificação de responsáveis até a percepção das intricadas ligações entre os diversos tipos de poluições e perigos. São desafios como esses que colocam os riscos tecnologicamente induzidos num campo de operação fora da 69 BECK, Ulrich. World risk society. Cambridge: Polity Press, 1999. p. 50. Tradução livre: “Dramas humanos – pragas, fomes e desastres naturais, as manifestações de poder de deuses e demônios – podem ou não igualar quantificavelmente o potencial destrutivo das modernas mega-tecnologias em periculosidade. Eles diferem essencialmente dos ‘riscos’ em meu entender desde que eles não estão baseados em decisões, ou, mais especificamente, decisões que focam sobre vantagens e oportunidades técnico-econômicas e aceitam perigos como simplesmente o lado obscuro do progresso. Este é meu primeiro ponto: riscos presumem decisões industriais, isto é, técnoeconômicas, e considerações de utilidade. Eles diferem de ‘dano da guerra’ por seu ‘nascimento normal’, ou, mais precisamente, sua ‘origem pacífica’ em centros de racionalidade e prosperidade com as bênçãos dos garantidores de lei e ordem. Eles diferem dos desastres naturais pré-industriais por sua origem em tomadas de decisão, que são é lógico conduzidas nunca por indivíduos, mas por organizações inteiras e grupos políticos”. 39 capacidade de percepção humana. Aqui é possível falar de uma “expropriação do entendimento” ocasionada pelos riscos globais, que torna a vida insegura: This is even more true because, second, a significant number of technologically induced hazards, such as those associated with chemical pollution, atomic radiation and genetically modified organisms, are characterized by an inaccessibility to the human senses. They operate outside the capacity of (unaided) human perception. Every-day life is ‘blind’ in relation to hazards which threaten life and thus depends in its inner decisions on experts and counter-experts. Not only the potential harm but 70 this ‘expropriation of the senses’ by global risks makes life insecure. Um entendimento mais abrangente sobre os perigos e riscos da sociedade industrial desenvolvida é ainda mais problemático devido à atuação de algumas de suas instituições (políticas, jurídicas, científicas, etc.), com sua atuação “normalizadora” dos perigos não calculados. Compõe-se uma vasta gama de instrumentos que Beck chama de uma “simbólica política de desintoxificação”: Precisely because of their explosiveness in social and political space, hazards remain distorted objects, ambiguous, interpretable, resembling modern mythological creatures, which now appear to be an earth-worm, now again a dragon, depending on perspective and the state of interests. The ambiguity of risks also has its basis in the revolutions which their official unambiguity had to provoke. The institutions of developed industrial society – politics, law, engineering sciences, industrial concerns – accordingly command a broad arsenal for ‘normalizing’ non-calculable hazards. They can be underestimated, compared out of existence or made anonymous causally and legally. These instruments of a symbolic politics of detoxification enjoy correspondingly great significance and popularity (this is 71 shown by Fischer, 1989). 70 BECK, Ulrich. World risk society. Cambridge: Polity Press, 1999. p. 55. Tradução livre: “Isto é ainda mais verdadeiro porque, segundo, um número significativo de perigos induzidos tecnologicamente, como aqueles associados com poluição química, radiação atômica e organismos geneticamente modificados, são caracterizados por uma inacessibilidade aos sentidos humanos. Eles operam fora da capacidade de percepção humana (não auxiliada). A vida quotidiana é ‘cega’ em relação aos perigos que ameaçam a vida e assim depende em suas decisões internas de especialistas e contraespecialistas. Não somente a ameaça potencial, mas esta ‘expropriação dos sentidos’ pelos riscos globais faz a vida insegura”. 71 Ibidem, p. 57. Tradução livre: “Precisamente devido a sua explosividade no espaço social e político, perigos continuam objetos distorcidos, ambíguos, interpretáveis, relembrando criaturas mitológicas modernas, que agora parecem ser uma minhoca, já agora um dragão, dependendo da perspectiva e do estado de interesses. A ambiguidade dos riscos também tem suas bases nas revoluções que sua não ambiguidade oficial teve de provocar. As instituições da sociedade industrial desenvolvida – política, direito, engenharia, companhias industriais – dessa forma comandam um largo arsenal para ‘normalizar’ perigos não calculados. Eles podem ser subestimados, ter sua existência negada ou feitos anônimos causalmente e legalmente. Estes instrumentos de uma simbólica política de desintoxicação desfrutam correspondentemente de grande significado e popularidade (isto é mostrado por Fischer, 1989)”. 40 Discorrendo sobre as questões surgidas na sociedade de risco (políticas, estruturas sociais, conflitos), o autor menciona o “sentido democrático” de seus perigos: Nuclear contamination, however, is egalitarian and in that sense ‘democratic’. Nitrates in the ground water do not stop at the general director’s water tap (see Beck, 1992: ch. 1). All suffering, all misery, all violence inflicted by people on other people to this point recognized the category of the Other – workers, Jews, blacks, asylumseekers, dissidents, and so forth – and those apparently unaffected could retreat behind this category. The ‘end of the Other’, the end of all our carefully cultivated opportunities for distancing ourselves, is what we have become able to experience with the advent of nuclear and chemical contamination. Misery can be marginalized, but that is no longer true of hazards in the age of nuclear, chemical and genetic technology. It is there that the peculiar and novel political force of those threats lies. Their power is the power of threat, which eliminates all the protective zones and social 72 differentiations within and between nation-states. (grifado no original) A sociedade industrial produziu uma democracia criticável no que concerne às mudanças tecnológicas, com centralização de suas deliberações nos mecanismos institucionais de tomada de decisão. Em face dessa constatação, e com o intuito de proporcionar a retomada da “autonomia do próprio julgamento”, Beck propõe a “extensão ecológica da democracia”: The ecological extension of democracy then means: playing off the concert of voices and powers, the development of the independence of politics, law, the public sphere and daily life against the dangerous and false security of a ‘society conceived in the abstract’. My suggestion contains two interlocking principles: first, carrying out a division of powers and, second, the creation of a public sphere. Only a strong, competent public debate, ‘armed’ with scientific arguments, is capable of separating the scientific wheat from the chaff and allowing the institutions for directing technology – politics and law – to reconquer the 73 power of their own judgment. 72 BECK, Ulrich. World risk society. Cambridge: Polity Press, 1999. p. 62. Tradução livre: “Contaminação nuclear, entretanto, é igualitária e naquele sentido ‘democrático’. Nitratos no lençol freático não param na torneira de água dos diretores gerais (ver Beck, 1992: cap. 1). Todo sofrimento, toda miséria, toda violência infligida por pessoas sobre outras pessoas a este ponto reconheceram a categoria do Outro – trabalhadores, Judeus, negros, exilados, dissidentes, e outros – e aqueles aparentemente não afetados podem se esconder atrás desta categoria. O ‘fim do Outro’, o fim de todas nossas oportunidades de distanciamento de nós mesmos cuidadosamente cultivadas, é o que nós nos tornamos aptos a experimentar com o advento da contaminação nuclear e química. Miséria pode ser marginalizada, mas isto não é mais verdade dos riscos na era da tecnologia nuclear, química e genética. É neste ponto que a força política peculiar e nova daquelas ameaças engana. Seu poder é o poder da ameaça, que elimina todas as zonas protetivas e diferenciações sociais dentro e entre estados-nação.” (grifado no original) 73 Ibidem, p. 70. Tradução livre: “A extensão ecológica da democracia então significa: eliminação do acordo de vozes e poderes, o desenvolvimento da independência de políticas, direito, a esfera pública e vida diária contra a perigosa e falsa segurança de uma ‘sociedade concebida em abstrato’. Minha sugestão contém dois princípios interligados: primeiro, realizar uma divisão de poderes e, segundo, a criação de uma esfera pública. Somente um debate público forte, competente, ‘armado’ 41 Para Beck, “perigo é sempre uma construção cognitiva e social” e é por tal motivo que as sociedades modernas são constantemente confrontadas com suas próprias bases e limites até que não haja modificação, nem reflexo sobre seus efeitos dando continuidade a uma política similar. O conceito de sociedade de risco transforma notável e sistemicamente três áreas: Primeiro, há o relacionamento da sociedade industrial moderna com os recursos da natureza e da cultura, sobre cuja existência ela é construída, mas que estão sendo dissipados no surgimento de uma modernização amplamente estabelecida. Isto se aplica à natureza não humana e à cultura humana em geral, assim como os modos de vida culturais específicos (por exemplo, a família nuclear e a ordem baseada na diferença entre os sexos) e aos recursos de trabalho social) por exemplo, o trabalho doméstico da esposa, que convencionalmente não tem sido reconhecido como trabalho, ainda que tenha sido ele, em primeiro lugar, que possibilitou o trabalho assalariado do marido). Segundo, há um relacionamento da sociedade com as ameaças e os problemas produzidos por ela, que por seu lado excedem as bases das idéias sociais de segurança. Terceiro, as fontes de significado coletivas e específicas de grupo (por exemplo, consciência de classe ou crença no progresso) na cultura da sociedade industrial estão sofrendo de exaustão, desintegração e 74 desencantamento. Questiona ainda o autor sobre a nova imprevisão e desordem fabricadas: sofrerão oposição segundo o padrão do controle racional instrumental – ou seja, recorrendo às velhas ofertas da sociedade industrial (mais tecnologia, mercado, governo etc.)? Ou estão tendo início aqui um repensar e uma nova maneira de agir, que aceitam e afirmam a ambivalência – mas, então, com conseqüências de longo alcance para todas as áreas da ação social? Em correspondência ao eixo teórico, pode-se chamar o primeiro de linear e 75 o segundo de reflexivo. (grifo do autor) A realidade em que vivemos é categoricamente trazida por Beck quando afirma que “em virtude de sua dinâmica independente e de seus sucessos, a sociedade industrial está escorregando para uma terra de ninguém, de ameaças sem garantia”.76 com argumentos científicos, é capaz de separar o joio do trigo científico e liberar as instituições para direcionando tecnologia – política e direito – reconquistar o poder de seu próprio julgamento.” 74 BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: _____; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 17-18. 75 Ibidem, p. 23. 76 Ibidem, p. 24. 42 Ainda observa Beck: The phase of risk society politics which is beginning to make itself heard today in the arena of disarmament and detente in the East-West relationship can no longer be understood nationally, but only internationally, because the social mechanics of risk situations disregards the nation-state and its 77 alliance systems. Por derradeiro, o que se espera nos dias de hoje é que os indivíduos acabem dominando as “oportunidades arriscadas”, contudo em razão da complexidade da atual sociedade moderna, não sejam capazes de tomar as “decisões necessárias em uma base bem fundamentada e responsável”, levando em conta as prováveis conseqüências. Reconhecer a imprevisibilidade das ameaças resultantes do desenvolvimento “técnico-industrial” em uma sociedade de risco requer “autoreflexão” das bases da “coesão social”, bem como a verificação das “convenções e dos fundamentos predominantes da ‘racionalidade’”. A sociedade de risco em seu “autoconceito” torna-se ao mesmo tempo tema e problema para si, ou seja, reflexiva. Nesse sentido, Beck propõe uma modernização reflexiva que, para ele, significa uma “reforma da racionalidade que faz justiça à ambivalência histórica a priori em uma modernidade que está abolindo suas próprias categorias de ordenação”: Não se trata de uma racionalidade em excesso, mas de uma chocante ausência de racionalidade, da irracionalidade predominante, que explica a doença da modernidade industrial. Ela pode ser curada – quem sabe totalmente – não por uma retirada, mas apenas por uma radicalização da racionalidade, que vai absorver a incerteza reprimida. Mesmo aqueles que não apreciam este remédio da civilização, que acham seu gosto desagradável, simplesmente porque não gostam dos curandeiros da civilização, talvez sejam capazes de compreender que este modo brincalhão de lidar com as fontes terrenas da certeza, esta experiência de tipos de racionalidade, está apenas reduzindo o que há muito vem se 78 firmando vigorosamente como uma experiência concreta da civilização. Leff também leciona que outra racionalidade se faz necessária. A crise ambiental serviu para deixar exposta a insustentabilidade ecológica da “racionalidade econômica”, de modo que a crise dos recursos acabou por deslocar a natureza do mero campo de “reflexão filosófica e da contemplação estética” para 77 BECK, Ulrich. World risk society. Cambridge: Polity Press, 1999. p. 65. Tradução livre: “A fase das políticas da sociedade de risco que está começando a se fazer ouvida hoje na arena do desarmamento e aproximação no relacionamento Leste-Oeste não pode mais ser entendida nacionalmente, mas apenas internacionalmente, porque as mecânicas sociais das situações de risco desconsideram o Estado-nação e seus sistemas de alianças”. 78 Idem. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: _____; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p.19/47. 43 reintegrá-la no processo econômico. É a degradação ecológica, segundo o autor, a “marca de uma crise de civilização”, de uma modernidade embasada na racionalidade meramente econômica e científica como valores supremos da civilização humana, negando a natureza como “fonte de riqueza, suporte de significações sociais e raiz da co-evolução ecológico-cultural”: Se uma argumentação fundamentada e coerente, assim como a realidade evidente, mostram que nem a eficácia do mercado, nem a norma ecológica, nem uma moral conservacionista, nem uma solução tecnológica são capazes de reverter a degradação entrópica, a concentração de poder e a desigualdade social geradas pela racionalidade econômica, então é necessário apresentar a possibilidade de outra racionalidade, capaz de integrar os valores da diversidade cultural, os potenciais da natureza, a eqüidade e a democracia como valores que sustentam a convivência social e como princípios de uma nova racionalidade produtiva, em sintonia com os 79 propósitos da sustentabilidade. A racionalidade ambiental perpassa por uma “cultura ecológica” que pode ser definida como um sistema de valores ambientais para reorientar comportamentos individuais e coletivos quanto as práticas de uso dos recursos naturais e energéticos. Isso promove certa vigilância dos agentes sociais sobre os impactos ambientais e os riscos ecológicos, bem como a organização da sociedade pela defesa dos direitos ambientais e a participação social na autogestão de seus recursos naturais, de tal forma que os valores que conduzem os processos sociais a uma gestão ambiental do desenvolvimento são definidos através de racionalidades culturais originárias das formas de “organização produtiva e estilos étnicos das sociedades tradicionais, povos indígenas e comunidades camponesas”. Ocorre que com a superexploração da natureza que gerou uma pressão crescente sobre o equilíbrio dos ecossistemas, bem como sobre a sua capacidade de renovação e produtividade também transformou e, ao mesmo tempo, destruiu as práticas de produção de povos e civilizações que durante milênios tiveram uma prática sustentável dos recursos naturais. A natureza e a cultura não possuem valores contabilizáveis na racionalidade econômica onde a economia tem como fatores fundamentais da produção o Capital e o Trabalho80. A racionalidade econômica, segundo Leff, apenas explora a natureza e o trabalhador, possui caráter 79 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luiz Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 223-227. 80 Idem. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Tradução de Jorge Esteves da Silva. Blumenau: Edifurb, 2000. p. 123124. 44 concentrador de poder, acaba por segregar a sociedade, alienar o indivíduo e subordinar os valores humanos ao interesse econômico e instrumental. É radical a crítica ecológica a tal racionalidade e se origina da “constatação de que o processo econômico implica um processo de transformação de massa e energia regido pela segunda lei da termodinâmica, que decreta um inelutável processo de degradação entrópica”, já que a economia acabou por promover um crescimento sem limites. Partindo-se de uma análise da termodinâmica, tal produção não é nada além de um “processo irreversível de degradação entrópica, de transformação de baixa em alta entropia”: O conceito de entropia enfrenta a racionalidade econômica quando apresenta um limite ao crescimento econômico e à legalidade do mercado, ao mesmo tempo que estabelece um vínculo com as leis da natureza que constituem as condições – físico-biológicas, termodinâmicas e ecológicas – para uma economia sustentável. […] A entropia surge, assim, como uma lei81 limite que a natureza impõe a expansão do processo econômico. No entanto, a nova racionalidade proposta não emerge apenas da confrontação com a racionalidade econômica82, e sim com o todo social, a ordem jurídica e o poder estatal, fazendo surgir a necessidade de interiorização do saber ambiental nas ciências naturais e sociais, na tentativa de se construir um conhecimento integrativo das multicausalidades e relações de interdependência entre os processos de ordem natural e social, construindo uma racionalidade produtiva calcada no desenvolvimento sustentável e levando em conta a complexidade e os métodos de investigação dos sistemas complexos. Trata-se de uma racionalidade social aberta tanto para a diversidade quanto para a complexidade e que consiste em um processo político e social de produção teórica e de transformação social. A proposta aborda as relações entre as instituições, as 81 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 227/174. 82 O autor traz mais algumas contraposições entre a racionalidade econômica e a racionalidade ambiental: “a primeira tenta medir (e dessa maneira controlar) os valores da diversidade cultural e biológica, os processos de longo prazo, as diferenças sociais e a distribuição ecológica através da contabilidade econômica. A segunda incorpora os valores culturais diversos atribuídos à natureza e a incompatibilidade dos processos ecológicos dos quais dependem a resiliência, os equilíbrios e a produtividade dos ecossistemas complexos e da biodiversidade, assim como dos processos culturais e tecnológicos dos quais depende a sustentabilidade do processo econômico. A primeira busca regular os princípios ecológicos, incorporando as condições ecológicas e culturais à ordem econômica estabelecida. A segunda se enraíza na racionalidade das sociedades locais e suas economias de autosubsistência, fundadas mais nos valores tradicionais de culturas diversas e em suas identidades próprias, que dão sentido a produção com a natureza. Nessa perspectiva, a sustentabilidade se constrói como um processo marcado por uma dispersão de interesses sociais que plasmam o campo da ecologia política dentro de projetos culturais diversos.” Ibidem, p. 264-265. 45 organizações, as práticas e os movimentos sociais, avançando a seara de conflitos do ambiental e atingindo as formas de percepção, o acesso e o uso dos recursos naturais, bem como a questão da qualidade de vida. Criar uma racionalidade ambiental e um desenvolvimento alternativo implica agregar valores ecológicos ao nosso cotidiano, ao mercado, ao ordenamento jurídico e às políticas públicas: A incorporação dos valores do ambiente na ética individual, nos direitos humanos e nas normas jurídicas que orientam e sancionam o comportamento dos atores econômicos e sociais; a socialização do acesso e a apropriação da natureza; a democratização dos processos produtivos e do poder político; as reformas do Estado que lhe permitam mediar a resolução de conflitos de interesse em torno da propriedade e aproveitamento dos recursos e que favoreçam a gestão participativa e descentralizada dos recursos naturais; as transformações institucionais que permitam uma administração transversal do desenvolvimento; a integração interdisciplinar do conhecimento e da formação profissional e a abertura de 83 um diálogo entre ciências e saberes não científicos. A racionalidade ambiental se constrói a partir da articulação dos quatro níveis de racionalidade distintos por Max Weber, de acordo com Leff, sendo o primeiro a racionalidade material ou substantiva que estabelece o sistema de valores os quais regulamentam comportamentos sociais e ações para a racionalidade social fundamentada em “princípios teóricos (saber ambiental), materiais (racionalidade ecológica) e éticos (racionalidade axiológica) da sustentabilidade”; a segunda racionalidade é a teórica e constrói conceitos articuladores dos valores da racionalidade substantiva com os processos materiais sustentadores dela: a “racionalidade teórica ambiental dá suporte à construção de outra racionalidade produtiva, fundada no potencial ecológico e nas significações culturais de cada região e de diferentes comunidades”; a terceira racionalidade é a técnica ou instrumental que produz vínculos de função e operação entre os objetivos sociais e as bases materiais do desenvolvimento sustentável por meio de ações coerentes com os princípios da racionalidade material, criando meios eficazes; e uma quarta racionalidade chamada cultural, compreendida como um sistema de significações que “conforma as identidades diferenciadas de formações culturais diversas, que dá coerência e integridade a suas práticas simbólicas, sociais e produtivas”, o que implica dizer que tal racionalidade não se sustenta apenas em princípios de ética 83 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 241. 46 conservacionista, mas em valores de princípios produtivos coerentes com “uma nova teoria da produção” que exige mecanismos eficazes para alimentar e orientar os “avanços e aplicações da ciência e da tecnologia”.84 A racionalidade ambiental substantiva agrega valores à ordem social, tais como: 1) O direito de todos os seres humanos ao pleno desenvolvimento de suas capacidades, a um ambiente são e produtivo e ao desfrute da vida em harmonia com o seu meio ambiente. 2) Os direitos dos povos à autogestão de seus recursos ambientais para satisfazer suas necessidades e orientar suas aspirações a partir de diferentes valores culturais, contextos ecológicos e condições econômicas. 3) A preservação da base de recursos naturais e dos equilíbrios ecológicos do planeta como condição para um desenvolvimento sustentável e sustentado, que satisfaça as necessidades atuais das populações e preserve seu potencial para as gerações futuras. 4) A avaliação do património de recursos naturais e culturais da humanidade, incluindo o valor da diversidade biológica, a heterogeneidade cultural e a pluralidade política. 5) A abertura da globalização econômica para uma diversidade de estilos de desenvolvimento sustentável, fundados nas condições ecológicas e culturais da cada região e de cada localidade. 6) A eliminação da pobreza e da miséria extrema, a satisfação das necessidades básicas e a melhora da qualidade de vida da população, incluindo a qualidade do ambiente, os recursos naturais e as práticas produtivas. 7) A prevenção de catástrofes ecológicas, da destruição dos recursos naturais e da contaminação ambiental. 8) A elaboração de um pensamento complexo que permita articular os diferentes processos que constituem a complexidade ambiental, compreender as sinergias dos processos socioambientais e sustentar um manejo integrado da natureza. 9) A distribuição da riqueza e do poder através da descentralização económica e da gestão participativa e democrática dos recursos naturais. 10) O fortalecimento da capacidade de autogestão das comunidades e a autodeterminação tecnológica dos povos, com a produção de tecnologias 85 ecologicamente adequadas e culturalmente apropriáveis. Com a racionalidade ambiental técnica se estabelece “meios” tais como as ecotécnicas e as chamadas “tecnologias limpas”, políticas ambientais com seus instrumentos legais e arranjos institucionais, bem como movimentos ambientalistas, conforme traz o autor. Já a racionalidade ambiental cultural vincula o princípio da diversidade cultural e a sua concretização em organizações culturais específicas, conduzindo a um “diálogo de saberes”, entre os saberes enraizados nas identidades culturais e os saberes que levam em conta a ética, a técnica e o direito e “fortalecem 84 WEBER, 1983, apud LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 254-255/264. 85 Ibidem, p. 256-257. 47 as identidades e capacidades locais”. Implica em uma “desconstrução da cultura dominante e hegemônica” para que se incorpore valores decorrentes de uma “cultura ecológica e ambiental”, também aberta ao encontro de valores de outras culturas e a uma “política de interculturalidade”, que para o autor não se apresenta isenta de contradições e antagonismos.86 O diálogo de saberes é um campo de debate formulado a partir do reconhecimento dos saberes (autóctones, tradicionais, locais) que “aportam” suas experiências e que são agregadas ao conhecimento científico e especializado, todavia o dissenso e a ruptura aparecem como “uma via homogênea para a sustentabilidade”, pois é a abertura para a diversidade que romperá com a hegemonia de uma lógica única, cujas visões alternativas e racionalidades diversas seriam canalizadas para uma racionalidade comunicativa, convergente a um “futuro comum”. O saber ambiental não vem completar a falta de conhecimento das ciências nem possui o propósito de retotalizar e reunificar o conhecimento, pois o ambiente, segundo Leff, é a irremediável falta de conhecimento das ciências: É a exterioridade do saber ambiental que questiona o encerramento do conhecimento objetivador, que, ao forçar a unificação do saber, gera o fracionamento das ciências e o deslocamento do saber. O saber ambiental é o ator dissidente do projeto epistemológico totalitário das ciências. A sustentabilidade aparece no horizonte dessa desconstrução da história, mas não poderá formular-se como um objetivo a ser alcançado por via da racionalidade cognosciva e instrumental. A sustentabilidade não é solucionável a partir do conhecimento (da gestão científica, da interdisciplinaridade ou da prospecção tecnológica). A construção de um futuro sustentável é um campo aberto ao possível, gerado no encontro de outridades em um diálogo de saberes, capaz de acolher visões e negociar 87 interesses contrapostos na apropriação da natureza. Esse diálogo de saberes ocorre em uma racionalidade ambiental que acaba por conduzir à “desconstrução da globalização totalitária do mercado” para dar lugar a construção de sociedades sustentáveis a partir das suas diferentes formas de “significação da natureza”. No entanto, a sustentabilidade não é a ecologização do planeta e encontra-se muito além dos consensos unificadores dos “mundos de vida” conduzidos por uma racionalidade comunicativa para o futuro comum, visto que o diálogo dos saberes desativa a violência exercida pela “homogeneização forçada do 86 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 260. 87 Ibidem, p. 375. 48 mundo diverso, pela submissão de vontades e visões diferenciadas a um discurso universal sobre a natureza e o ‘desenvolvimento sustentável’” (grifado no original) e pela sujeição a um sistema lógico, ecológico e econômico que retira substância do ser na tentativa de submetê-lo ao poder de uma lógica maior de economização da natureza, do homem e da cultura.88 Os princípios da racionalidade ambiental em verdade definem um conceito de produtividade sustentável, construindo espaços de produção sustentável calcados na capacidade ecológica de sustentação da base dos recursos naturais de cada região e localidade e nas racionalidades culturais dos seus habitantes. Segundo o autor, os conceitos de “produtividade ecotecnológica e racionalidade ambiental” possibilitam construir um processo produtivo que integra três níveis de produtividade, quais sejam, ecológica, tecnológica e cultural, pois “todo sistema de recursos naturais é definido culturalmente” e é através da cultura que são definidas “as práticas de uso do solo e os padrões de aproveitamento dos recursos naturais”: A preservação das identidades éticas e dos valores tradicionais das culturas, o arraigamento a suas terras e seus territórios étnicos constituem suportes para a conservação de biodiversidade – do equilíbrio, da resiliência e da complexidade dos ecossistemas -, estabelecendo-se como condição de sustentabilidade da sua produtividade. A solidariedade, a coesão interna e a autonomia das comunidades indígenas e camponesas são fonte de motivação das populações rurais e base de sua atividade criativa, inovadora e produtiva, de sua capacidade de mudança e adaptação, de seu potencial para incorporar elementos da ciência e da tecnologia modernas às suas práticas tradicionais, que contribuem para incrementar e estabilizar a 89 produtividade ecotecnológica de um território. Uma organização ecossistêmica e cultural dos recursos permite novos potenciais orientadores de inovadoras formas organizacionais tanto do social quanto da produtividade e transcende novas “forças produtivas” pela redistribuição da população dentro do espaço geográfico, da “reorganização e relocalização das atividades produtivas e da atividade autogestionária da sociedade”. Tal processo resulta na modificação da qualidade e da quantidade dos bens, a distribuição social da riqueza pela descentralização das atividades econômicas, a conservação e “incremento da produtividade sustentável dos ecossistemas e das formas de apropriação e manejo do patrimônio cultural dos povos”. Com isso abre-se a 88 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 377-379. 89 Ibidem, p. 428-430. 49 possibilidade de um novo paradigma de produção fundado nos princípios da “produtividade ecotecnológica ressignificada e normatizada pelos valores e as formas de organização cultural” e sustentado na manutenção de determinadas estruturas funcionais básicas dos ecossistemas, das quais são dependentes a sua fertilidade e a sua estabilidade, ou seja, o seu potencial produtivo a longo prazo e a capacidade de regeneração dos seus recursos. No entanto, o autor admite, de certo modo, ser a construção de uma racionalidade ambiental a realização de uma utopia, até porque, o saber ambiental não se justifica pela certeza dos seus postulados e por sua correspondência com a realidade, sendo o seu sentido mais forte o que estabelece justamente com a utopia, como pensamento que permite e gera a construção de outros mundos possíveis e novas realidades sociais, “abrindo o cerco do conhecimento consabido” (grifado no original) e “emerge debatendo-se e avançando através da racionalidade capitalista que se plasma na esfera econômica, tecnológica, política e cultural do regime civilizatório hegemônico e dominante”90: é um processo transformador de formações ideológicas, práticas institucionais, funções governamentais, normas jurídicas, valores culturais, padrões tecnológicos e comportamentos sociais inseridos em um campo de forças no qual se manifestam os interesses de classes, grupos e indivíduos, que dificultam ou mobilizam as mudanças históricas para construir essa nova racionalidade social. Nesse atual contexto global de sociedade de risco um novo pensamento e novos valores ecológicos vislumbrando a vida como uma “teia” diante da concepção sistêmica e com o fulcro de atingir o desenvolvimento e a sustentabilidade, com toda certeza também passa pela cultura ecológica e por uma racionalidade ambiental. Presente a “teia da vida”, o próximo capítulo abordará os imbricamentos que permeiam e inter-relacionam os temas da globalização, livre iniciativa privada, progresso econômico e o desenvolvimento sustentável, bem como desenvolvimento em sentido ampliado. 90 LEEF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 262/382/432. o 50 2 A ORDEM ECONÔMICA E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 – O PRIMADO DO DIREITO INTERNACIONAL 2. 1 Globalização e desenvolvimento O que chamamos na atualidade de globalização, segundo Morin, resultou de um processo iniciado com a conquista das Américas e a expansão de domínio do ocidente europeu sobre o planeta. A primeira modernização no início do século XVI foi a “globalização dos micróbios”, quando os micróbios originários da Europa, tais como a tuberculose dentre outras doenças, chegaram às Américas no decorrer dos anos, e os micróbios americanos, como a sífilis, foram parar na Europa sendo essa a “primeira unificação mundial danosa para todos”. Caracteriza-se em um processo de “múltiplos eixos”, no entender do autor, porém com dois eixos principais e antagônicos: o primeiro refere-se à escravização dos povos conquistados, colonizados e dos negros “comercializados”, sendo a dominação da Europa ocidental no século XIX, sobretudo, uma dominação da Inglaterra na Índia, na Ásia, no Canadá, em vários pontos do planeta, e tal dominação se alterou no século XX, século de globalização e de duas grandes guerras mundiais: Depois da última guerra mundial começa o processo de descolonização ou a emancipação relativa dos povos dominados. E, ao final dos últimos dez anos, com a derrubada do Muro de Berlim e o fracasso do império soviético, tem-se a hegemonia, sobretudo a partir do centro norte-americano, do mercado mundial, com a dominação tecnológica e econômica do 91 Ocidente. Negando o primeiro eixo, a segunda globalização é um processo minoritário, uma “autocrítica minoritária” e que se inicia no “coração das nações dominadoras”: Este momento de autocrítica, de relativização de si mesmo culmina no século XX com as concepções do antropólogo francês Lévi-Strauss. Ele disse que as culturas pequenas, mais antigas, chamadas primitivas, têm virtudes e qualidade humanas. […] Considera-se também que os analfabetos não são pessoas sem cultura, mas que têm a cultura oral, tradicional, velha, muito antiga, como também sábia. Cada cultura tem verdades, conhecimentos, sabedoria, como 92 também ilusões, equívocos. 91 MORIN, Edgar. As duas globalizações: complexidade e comunicação: uma pedagogia do presente. Coleção comunicação 13. 2. ed. Sulina: Porto Alegre, 2002. p. 39/40. 92 Ibidem, p. 40-41. 51 O movimento de segunda globalização, que respeita e volta seus olhos para “os outros”, preserva idéias dos direitos humanos da revolução francesa, idéias de humanismo, idéias “antiescravagistas”, com a reação dos internacionalismos do século passado e início deste. O que há de inovador, segundo Morin, nesses fenômenos do final do século XX até os dias de hoje, são as manifestações da cidadania planetária como a Anistia Internacional nos países ocidentais, a Survival International, o Greenpeace, havendo fenômenos de mestiçagem, mas que não são fenômenos de homogeneização. Assim, existem duas globalizações “ligadas e antagônicas” e fenômenos “quase ambivalentes”, em razão do processo de desenvolvimento das comunicações. São ambivalentes porque o desenvolvimento das comunicações nos últimos anos tem mostrado-se um “fenômeno notável”, com múltiplos efeitos positivos que permitem “comunicar, entender e intercambiar informações”, todavia, alerta Morin que não se deve confundir comunicação com compreensão, até porque atualmente a globalização é uma época histórica onde se possui acesso a muitas comunicações. Existe pouca compreensão do que se está comunicando ou mesmo do que se quer comunicar, o que reflete um problema basilar no mundo da comunicação: “não basta multiplicar as formas de comunicação, também é preciso a compreensão”.93 Também reconhece Capra que, no decorrer da última década do século XX, iniciou um mundo estruturado por novas tecnologias e estruturas sociais, nova economia, nova cultura e com a expansão mundial das grandes empresas; e ao contrário do que se pregava, não trouxe boas novas às minorias e teve reflexo negativo direto e em grande escala no meio ambiente: Com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em meados da década de 1990, a globalização econômica, caracterizada pelo "livre comércio", foi exaltada pelos grandes empresários e políticos como uma nova ordem que viria beneficiar todas as nações, gerando uma expansão econômica mundial cujos frutos acabariam chegando a todas as pessoas, até às mais pobres. Entretanto, um número cada vez maior de ambientalistas e ativistas de movimentos sociais logo percebeu que as novas regras econômicas estabelecidas pela OMC eram manifestamente insustentáveis e estavam gerando um sem-número de conseqüências tétricas, todas elas ligadas entre si - desintegração social, o fim da democracia, uma deterioração mais rápida e extensa do meio ambiente, o 93 MORIN, Edgar. As duas globalizações: complexidade e comunicação: uma pedagogia do presente. Coleção comunicação 13. 2. ed. Sulina: Porto Alegre, 2002. p.42- 43. 52 surgimento e a disseminação de novas doenças e uma pobreza e alienação 94 cada vez maiores. Nas palavras de Castells, a globalização é um processo onde as atividades decisivas em determinado âmbito de ação, tais como a economia, os meios de comunicação, a tecnologia, a gestão do ambiente e o crime organizado funcionam como unidade em tempo real em todo o planeta, e a base do processo de globalização econômica é a “informacionalização da sociedade”, que ocorreu a partir da revolução tecnológica que se constituiu como o novo paradigma na década de 70 do século XX. A “exitosa perestroyka do capitalismo”, associada a “fracassada reestruturação do estatismo”, resultou na última década na construção de um sistema econômico mundialmente articulado, operante com regras cada vez mais homogêneas entre as empresas e os territórios. Iniciava uma era de “magnífica inovação tecnológica” e da expansão mundial das grandes empresas, também chamada por Castells de "sociedade de redes", que acabou consolidando com o fim do comunismo soviético em 1980. É o mundo organizado em regras econômicas comuns, mas, em tempo, também ressalta o autor que nem tudo é global. Na prática a maioria do emprego, da atividade econômica, da experiência humana e da comunicação simbólica é apenas local e regional e as instituições estatais continuam sendo as instituições políticas dominantes e serão no futuro, entretanto, os processos de estrutura da economia, da tecnologia e da comunicação estão cada vez mais globalizados.95 Nesse contexto globalizado, diz o autor que ainda que o Estado continue como um importante agente na indução e promoção do desenvolvimento, a sua principal atuação é “receber e processar os sinais do sistema global interconectado” adaptando-os às possibilidades locais do Estado, relegando os riscos, investimentos e criação de riqueza ou pobreza às empresas privadas, de acordo com a capacidade e competência delas. Pois justamente, na maior parte do mundo, a novidade é o fato dos mercados serem suficientemente capazes de garantir o funcionamento e o crescimento da economia, o Estado acabou por tornar-se, assim, “redundante ou 94 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 141. 95 CASTELLS, Manuel. Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação. Tradução de Noêmia Espíndola. In: PEREIRA, L. C. B.; WILHEIM, J.; SOLA, L. (Org.). Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: UNESP, 1999. p. 149. 53 ineficiente” nesse setor, tanto que o autor ressalta que a privatização é a constatação de que subsidiar produtos, dirigentes de empresas ou grupos de trabalhadores é “fonte de privilégio social” e não “mecanismo de criação de riqueza”.96 O “Estado-rede” se caracteriza então por compartilhar sua autoridade, sua capacidade institucional de impor decisões através de várias instituições. O funcionamento em rede, assegurando descentralização e coordenação na mesma organização complexa, é privilégio da era da informação e o grau de eficiência das administrações estatais de diferentes hierarquias dependerá, em boa medida, de sua capacidade para processar informação e assegurar o processo de decisão compartilhada. O Estado-rede de Castells é o Estado da era da informação, e deveria se prestar ao que prega o autor, “a política” que possibilitaria a gestão cotidiana das tensões entre o local e o global. É uma nova fase pela qual está passando o sistema capitalista mundial97 e, segundo Capra, sua ascensão ocorreu através de um processo característico de todas as organizações humanas, “o jogo de ações e reações entre as estruturas projetadas e as estruturas emergentes”. Para o autor, o desenvolvimento da rede de informática, dos computadores e a Internet, associados a grandes turbulências sociais tais como o movimento pelos direitos civis no sul dos Estados Unidos, o movimento pela liberdade de expressão no campus de Berkeley, a Primavera de Praga e a revolta dos estudantes de Paris em maio de 1968, fez surgir uma "contracultura" baseada no questionamento das autoridades, na liberdade e no poder do indivíduo, bem como na expansão da consciência espiritual e social. Na década de 1970, o modelo de economia capitalista chamado de Keynesiano, que era baseado em um contrato social entre o capital e o trabalho e controle de ciclos econômicos pelo Estado, começou a ruir, já que tal modelo não levava em consideração os tratados econômicos internacionais, pois concentrava-se apenas na economia interna, sendo que a rede global de comércio não parava de ascender e era evidente o poder das empresas multinacionais. Tais questões estavam sendo ignoradas pelos Keynesianos, assim como os custos sociais e ambientais das 96 CASTELLS, Manuel. Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação. Tradução de Noêmia Espíndola. In: PEREIRA, L. C. B.; WILHEIM, J.; SOLA, L. (Org.). Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: UNESP, 1999. p. 153/156. 97 VARGAS, Paulo Rogério. O insustentável discurso da sustentabilidade. In: BECKER, Dinizar Fermino (Org.). Desenvolvimento sustentável: necessidade e/ou possibilidade? 4. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2002. p. 213. 54 atividades econômicas, situação que acabou por piorar com a crise do petróleo, a inflação e o desemprego. Em reação a tal crise houve uma reestruturação do capitalismo pelas empresas e governos do ocidente que foi marcado pela “desregulamentação e liberalização do mercado financeiro” o que refletiu de forma positiva em alguns lugares do mundo, todavia muito negativa em outros. Essa reestruturação impôs uma economia comum aos “países da nova economia global” através dos bancos centrais e do Fundo Monetário Internacional. Medidas que claramente resultaram das novas tecnologias da informática e da comunicação surgidas na época.98 Assim, as molas propulsoras da globalização foram a tecnologia da informática e a expansão das redes de comunicação, essa segunda conseqüência óbvia da primeira, condições que permitiram que o local se tornasse global em questão de segundos, deixando que o capital “girasse ao vivo”, já que se tornou virtual, movimentando-se em tempo real nas redes financeiras internacionais. Refere Capra que a globalização econômica foi forjada pelo grupo econômico do G7 (grupo que reúne os países mais industrializados e desenvolvidos economicamente do mundo), tendo como objetivo: a nova economia e o aumento do valor das ações, uma vez que esse podia variar independente de haver lucro real ou não pela empresa, em função de uma "expectativa de mercado". No entanto, o valor de mercado de empresas sólidas e produtivas diminuiu bruscamente causando a ruína das mesmas e o desemprego: O processo de globalização econômica foi elaborado intencionalmente pelos grandes países capitalistas (o chamado "G-7"), as principais empresas multinacionais e as instituições financeiras globais - entre as quais destacam-se o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) - criadas expressamente para esse fim. Entretanto, o processo não tem sido um mar de rosas. Quando as redes financeiras globais alcançaram um certo grau de complexidade, suas interconexões não-lineares geraram anéis de realimentação rápida e deram origem a muitos fenômenos emergentes inesperados. A economia que resultou disso é tão complexa e turbulenta que não pode ser analisada 99 pelas teorias econômicas convencionais. (grifado no original) 98 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 144-148. 99 Ibidem, p. 150. 55 Para Bauman a globalização é o destino irremediável do mundo: causa de felicidade para alguns e de infelicidade para outros. A globalização tanto divide quanto une: inclui ao mesmo tempo em que exclui. Quando alguns se tornam globais e outros “locais”, em um mundo em que os globais ditam as regras do jogo e os “locais” são subjugados. Ser local é sinônimo de degradação social, exclusão e privações, o que marca o caráter dual da sociedade contemporânea: Em suma, liberdade face ao dever de contribuir para a vida cotidiana e a perpetuação da comunidade. Surge uma nova assimetria entre a natureza extraterritorial do poder e a contínua territorialidade da “vida como um todo” – assimetria que o poder agora desarraigado, capaz de se mudar de repente ou sem aviso, é livre para explorar e abandonar às conseqüências 100 dessa exploração. (grifado no original) Denuncia, com ênfase, que cada vez mais se tornam distantes as elites globalizadas extraterritoriais e o restante da população mais localizada. As empresas pertencem aos acionistas, e a eles é dado o direito de colocá-las onde melhor lhes convier. Aos demais – presos na localidade – cabe a função de reorganizarem suas vidas através da perda de mais uma possibilidade de trabalho. Esta possibilidade de mobilização dá poder e é cobiçada. As pessoas que investem, as que têm capital, dinheiro, parecem perder a obrigação com a vida cotidiana e com a comunidade.101 O Informe Lugano, que teve como objetivo identificar as “mazelas” as quais cercam o sistema capitalista, examinar o rombo da economia mundial e recomendar estratégias, medidas concretas e orientações visando aumentar ao máximo a probabilidade de que prevaleça o sistema capitalista no livre mercado, reconhece haver sérias dúvidas de que nas próximas décadas um sistema político-econômico alternativo poderá competir razoavelmente com a economia de mercado global, entretanto, parte da premissa de que um sistema liberal capitalista baseado no mercado e globalizado não deve limitar-se a seguir sendo a regra se não “triunfar” no século XXI, pois considera que um sistema econômico baseado na liberdade individual é que garantirá outras liberdades e valores. A natureza seria o maior obstáculo para o futuro do sistema livre de mercado, não podendo ser tratada como 100 BAUMAN, Zigmund. Globalização: as conseqüência humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 16. 101 Ibidem, p. 16-17. 56 adversário, no entanto, os economistas teóricos da era global estão cegos do perigo ecológico, comportando-se assim: quanto menos se sabe, melhor.102 Capra aplica a teoria sistêmica na análise do fenômeno “globalização” que consistiria em uma “meta-rede global de interações tecnológicas e humanas complexas, envolvendo múltiplos anéis e elos de realimentação que são operantes longe do equilíbrio e produtores de uma variedade infinita de fenômenos emergentes”, no entanto, não manifesta a “meta-rede” a estabilidade que apresenta “a vida”. “Os circuitos de informação da economia global funcionam numa tal rapidez e recorrem a uma tal multiplicidade de fontes que estão constantemente a reagir a um dilúvio de informações” que resulta da perda de controle do sistema. Só que, neste caso, não há a seleção natural, resultando na fragmentação e individualização do trabalho, no “sucateamento das instituições e leis de bem-estar social”, refletido numa “exclusão social”, e desgaste ilimitado da biosfera e da vida humana, e a infinita expansão do planeta finito irá resultar em uma catástrofe. Todo o sistema vivo necessita de estabilidade, de equilíbrio, e essa nova economia acaba causando impactos ambientais não apenas por suas operações, mas também pela eliminação das leis de proteção ambiental em prol de um “livre comércio”, o que denota a insustentabilidade social e ambiental do sistema nas bases que se encontra, necessitando uma urgente reestruturação.103 Não restam dúvidas de que a globalização só fez aumentar a exclusão social e a degradação ambiental, aumentando sensivelmente a quantidade de resíduos gerados pelo processo constante, acelerado e de mais baixo custo possível da produção das grandes indústrias, as quais, na maioria das vezes, violam todas as regras ambientais. E, ainda, atuam sem qualquer programa de gestão e pelo consumismo desenfreado da imensidão de produtos com tecnologias sempre inovadoras que constantemente chegam ao mercado e também constantemente se tornam obsoletos, contudo mesmo que a produção pareça não ter limites em razão da constante inovação dos produtos e tecnologias, há um limite e esse limite encontra-se na biosfera. 102 GEORGE, Susan. Informe Lugano. Traducción de Berna Wang. 3. ed. Barcelona: Icaria, 2001. p. 21-23. 103 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 151-167. 57 Ao contrário da racionalidade ambiental trazida por Leff, discorre esse que a estratégia discursiva da globalização justamente se converte em um “tumor semiótico e gera a metástase do pensamento crítico”, dissolvendo a natural contradição, a alteridade, a diferença e a alternativa, para oferecer em seus “excrementos retóricos uma revisão do mundo como expressão do capital”, sendo o meio ambiente reapropriado pela economia que fragmenta e recodifica a natureza como meros elementos do sistema, do capital globalizado e da ecologia generalizada, legitimando, através do discurso do desenvolvimento sustentável, a apropriação dos recursos naturais e ambientais que não são internalizados pelo sistema econômico: Através dessa operação simbólica, a biodiversidade é definida como patrimônio comum da humanidade, as comunidades do Terceiro Mundo como um capital humano e seus saberes como recursos patenteáveis por um regime de direitos de propriedade intelectual. O discurso da globalização aparece assim como um olhar guloso mais do que como uma visão holística; em lugar de aglutinar e dar integridade à natureza e à cultura, fragmenta-as como partes constitutivas do desenvolvimento sustentado para globalizar racionalmente o planeta e o mundo sob o princípio unitário do mercado. Essa operação simbólica submete todas as ordens do ser aos ditames de uma razão global e universal. Dessa forma, prepara as condições ideológicas para a capitalização da natureza e a redução do 104 ambiente à razão econômica. E segue o autor: Nesse sentido, o processo de globalização – os crescentes intercâmbios comerciais, as telecomunicações eletrônicas com a interconexão imediata de pessoas e fluxos financeiros que parecem eliminar a dimensão espacial e temporal da vida, a planetarização do aquecimento da atmosfera e, inclusive, a aceleração das migrações e das mestiçagens culturais – foi mobilizado e sobredeterminado pelo domínio da racionalidade econômica sobre os demais processos de globalização. A hipereconomização do mundo induz a homogeneização dos padrões de produção e consumo, e atenta contra um projeto de sustentabilidade global fundado na diversidade ecológica e cultural do planeta. […] Os impactos ecológicos gerados pela globalização econômica estão, por sua vez, afetando formas ancestrais de convivência e de manejo sustentável da natureza. Dessa maneira, os desastres “naturais” se converteram nos últimos anos em um “motivo de força maior” que tem obrigado as comunidades indígenas e camponesas a abandonar suas 105 práticas milenares […]. (grifado no original) 104 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 143 105 Ibidem, p. 146/154. 58 Assim é que a globalização econômica para o autor é insustentável, pois desvaloriza a natureza e “desterritorializa e desenraiza a cultura de seu lugar” (grifado no original), e ao mesmo tempo que apregoa reconhecimento às diferenças étnicas, apresenta uma estratégia para convertê-las ao credo das leis supremas do mercado e para recodificá-las em termos de valores econômicos. Mesmo tendo incorporado o princípio de eqüidade ao imperativo da sustentabilidade, as políticas de desenvolvimento sustentado incrementam as desigualdades sociais ao induzir uma estratégia de assimilação e extermínio do ambiente e da diversidade cultural como o absolutamente 106 outro da racionalidade econômica. Visível é a crítica de Leff ao chamado discurso do desenvolvimento sustentável e à globalização, que entende serem insustentáveis. Como lembra Veiga, o conceito de desenvolvimento freqüentemente é tratado como sinônimo de crescimento econômico e quantificado pelo chamado Produto Interno Bruto per capita, contudo, outro enfoque não tão “economicista” e liberal é possível107. Não há que se confundir desenvolvimento com progresso. Esse apenas implica em uma renda real maior per capita, e o que se deve buscar e esperar das instituições econômicas em se tratando de promoção de bem-estar social é mais que um simples desenvolvimento quantitativo aferível através do Produto Nacional Bruto ou mesmo das rendas individualmente consideradas108.Embora seja importante meio de expansão das liberdades gozáveis pela sociedade, “as liberdades” dependem também de outros fatores determinantes, tais como as disposições sociais e os direitos civis. Da obra Desenvolvimento como liberdade depreende-se que o grande promotor do desenvolvimento é a liberdade e, para combater os problemas enfrentados a liberdade individual deve ser considerada como um comprometimento social, sendo sua expansão tida como o principal fim e o principal meio de desenvolvimento que consiste, precisamente, na eliminação de privações da liberdade, que são limites às escolhas e oportunidades das pessoas em exercerem de forma ponderada sua “condição de agente”. Requer assim, o desenvolvimento, uma renovação das principais fontes de privação da liberdade, quais sejam: pobreza, tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, somada a negligência 106 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 161. 107 VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 17. 108 CLARK, John Maurice. Instituições econômicas e bem-estar social. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. p. 250. 59 dos serviços públicos e a intolerância ou interferência dos Estados repressores. A liberdade é primordial para o desenvolvimento por duas razões de acordo com a referida obra, uma avaliatória, pois a avaliação do progresso deve ser feita através da avaliação do aumento das liberdades individuais e outra de eficácia, já que a realização do pleno desenvolvimento depende da livre condição de agente dos indivíduos.109 Neste mesmo sentido, leciona Varella que a variação conceitual da expressão “desenvolvimento” passa a depender, no direito internacional, da lógica trabalhada, seja ela liberal ou política e social. Numa lógica liberal, é ligado ao volume de trocas e ao crescimento do Produto Nacional Bruto e, em uma lógica política e social, é medido pela expansão das liberdades, tais como o acesso à saúde e educação, proteção do meio ambiente e democracia, e é essa visão que torna apropriável o discurso do desenvolvimento pelos defensores dos direitos humanos: Os acordos internacionais sobre os direitos humanos são marcados pela necessidade de promover o desenvolvimento como uma solução à pobreza e como garantidor da igualdade e da liberdade. O meio ambiente em si é considerado nestes tratados como um direito humano, sobretudo nas culturas mais antropocêntricas. Assim, ocorre uma união dos conceitos dos direitos humanos (finalidade) com os conceitos do direito ambiental (condicionalidades), e do desenvolvimento econômico (crescimento econômico), que dão origem ao conceito de desenvolvimento. Quanto mais existem liberdades para os indivíduos, mais há desenvolvimento, e podemos afirmar que esta é a real base do direito internacional de hoje, Econômico e Ambiental. [...] É por todas essas razões que o desenvolvimento consiste em uma extensão real das liberdades e que a democracia é o elemento chave do 110 desenvolvimento. Ainda conforme Varella é observável que a proteção do meio ambiente tornouse elemento fundamental do processo de desenvolvimento sustentável, tanto que se considera que toda forma de crescimento não-sustentável contribui para a redução das liberdades, portanto, nenhuma forma de crescimento não-sustentável é em verdade um desenvolvimento. Os elementos mais importantes não são levados em conta pelos atuais índices, e são eles, dentre outros, as condições de vida material, coesão social, cultura e meio ambiente, o que explicaria o porquê de os principais 109 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão técnica de Ricardo Doninelli Mendes. 5. impressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 17. 110 VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. São Paulo: Del Rey, 2004. p. 40. 60 programas de desenvolvimento não conseguirem promover a qualidade de vida de inúmeras populações. Furtado refere que o atual crescimento econômico se funda apenas na preservação de privilégios a elites na satisfação de seu “afã de modernização”, e segue: já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu projeto social subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente para preparar um modelo futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida dessa 111 população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento. (grifado no original) Em Sachs, o desenvolvimento seria o processo histórico de apropriação universal dos povos da totalidade dos direitos humanos, tanto individuais quanto coletivos, “negativos (liberdade contra)” e “positivos (liberdade a favor)”, “significando três gerações de direitos: políticos, cívicos e civis; sociais, econômicos e culturais; e os coletivos ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à cidade”. Traz alguns critérios que envolvem a sustentabilidade: a) social, referindo-se a uma razoável hegemoneidade social, distribuição justa de renda, emprego pleno ou autonomia com qualidade de vida e igualdade de acesso a recursos e serviços sociais; b) cultural, representando equilíbrio entre respeito pela tradição e inovação, “capacidade de autonomia para elaboração de um projeto nacional integrado e endógeno” e a combinação entre autoconfiança e abertura mundial; c) ecológico, implicando a “preservação do potencial do capital natureza na sua produção de recursos renováveis” e limitação do uso de recursos não-renováveis; d) ambiental, significando “respeitar e realçar a capacidade de autodepuração dos ecossistemas naturais; e) territorial, refletido nas “configurações urbanas e rurais balanceadas”, na “melhoria do ambiente urbano”, “superação das disparidades inter-regionais” e na “estratégia de desenvolvimento ambientalmente seguras para áreas ecologicamente frágeis”; f) econômico: “desenvolvimento econômico intersetorial equilibrado”, “segurança alimentar”, capacidade contínua de modernização dos instrumentos de produção e razoável autonomia na pesquisa científica e tecnológica, inclusão soberana na economia internacional; g) política nacional, representada pela 111 FURTADO, Celso. Os desafios da nova geração. In: Revista de Economia Política. Vol. 24, n. 4 (96) outubro-dezembro 2004. ISSN 0101-3157. p. 484. Disponível em: <http://www.enap.gov.br>. p. 484. Acesso em: 12 mar. 2009. 61 “democracia definida em termos de apropriação universal dos direitos humanos”, no desenvolvimento da capacidade estatal em implementar projeto nacional aliado a empreendedores e em uma razoável coesão social; h) política internacional, “eficácia do sistema de prevenção de guerras da ONU (Organização das Nações Unidas)”, “pacote Norte-Sul de co-desenvolvimento, baseado no princípio de igualdade”, “controle institucional efetivo do sistema internacional financeiro e de negócios”, “controle institucional efetivo da aplicação do Princípio da Precaução na gestão do meio ambiente e dos recursos naturais”, prevenção das mudanças globais negativas e proteção da diversidade biológica, bem como a gestão do patrimônio global como uma herança de todos, e o “sistema efetivo de cooperação científica e tecnológica internacional e eliminação parcial do caráter de commodity da ciência e tecnologia” como herança de todos.112 Para Capra, é a sustentabilidade ecológica elemento essencial dos valores embasadores de uma mudança da globalização: Por isso, várias ONGs, institutos de pesquisa e centros de ensino pertencentes à nova sociedade civil global escolheram a sustentabilidade como o tema específico de seus esforços. Com efeito, a criação de 113 comunidades sustentáveis é o maior desafio dos nossos tempos. Em Leff, a sustentabilidade, diversa do desenvolvimento sustentável, surge como uma “fratura da razão modernizadora”, que conduz a uma racionalidade produtiva fundada no potencial ecológico da biosfera e nos sentidos civilizatórios da diversidade cultural. E, ainda, está enraizada em bases ecológicas, identidades culturais e territórios de vida e desdobra-se no espaço social, onde os atores sociais exercem seu “poder de controle da degradação ambiental e mobilizam potenciais ambientais em projetos autogerenciados para satisfazer as necessidades e aspirações” que a globalização econômica não cumpre. Aparece como um critério normativo para a reconstrução da ordem econômica, sendo condição tanto para a sobrevivência humana, quanto para um desenvolvimento durável. Alcançar os objetivos da sustentabilidade e da eqüidade implica em desconstruir a racionalidade econômica e construir uma racionalidade ambiental fundada no “princípio da 112 SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável: idéias sustentáveis. Tradução de José Lins Albuquerque Filho. 4.ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. p. 65-66/85-88. 113 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 237. 62 produtividade neguentrópica”. Os desafios da sustentabilidade e da democracia, bem como da entropia e da outridade acabam por romper com o pensamento homogêneo da globalização, deslocando-o para as singularidades locais e levando a construção de uma racionalidade ambiental que acolha as diferentes matizes da racionalidade cultural, aceitando sua relatividade e incomensurabilidade114: A crise ambiental marca o limite do logocentrismo, da vontade de unidade e universalidade da ciência, do pensamento único e unidimensional, da racionalidade entre fins e meios, da produtividade econômica e da eficiência tecnológica, do equivalente universal como medida de todas as coisas, que sob o signo monetário e a lógica do mercado recodificaram o mundo e os mundos de vida em termos de valores de mercado intercambiáveis e transacionáveis. A emancipação dessa racionalidade se formula como libertação da hipereconomicização do mundo. Isso implicaria ressignificar a liberdade, a igualdade e a fraternidade como princípios de uma moral política que acabou sendo cooptada pelo liberalismo econômico e político […] para renomeá-los na perspectiva de uma política da insubordinação e da emancipação, da eqüidade na diversidade, da solidariedade entre seres humanos com culturas, visões e interesses coletivos, diversos e 115 diferenciados. No que tange ao ideal de desenvolvimento sustentável, discorre Valle que: Com a difusão do conceito de desenvolvimento sustentável se reconhece, agora, que uma economia sadia não se sustenta sem um meio ambiente também sadio. Reciprocamente, entretanto, internalizar os custos ambientais nos custos de produção e serviços, mas ao mesmo tempo compensar, mediante uma adequada gestão ambiental, esses acréscimos pela ecoeficiência e racionalização da produção. Afirmar que a proteção ambiental implica necessariamente aumento de custos dos produtos e 116 serviços é uma falácia na maioria dos casos. Nesta linha, Ferreira refere que o maior desafio do desenvolvimento sustentável envolve inúmeros “obstáculos” a serem ultrapassados: As questões desdobram-se; por exemplo, preservar o ambiente, muitas vezes significa não produzir determinados produtos, ou incorrer em custos extremamente altos para produzi-los sem afetar o ambiente, tornando-os com isso caros, sem condições de serem adquiridos pelo consumidor final. Um produto cujo preço não seja competitivo corre o risco de levar uma empresa à falência, e isso geraria desemprego e todas as conseqüências 117 sociais inerentes a essa situação. 114 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 134/154-160. 115 Ibidem, p. 337-338. 116 VALLE, Cyro Eyer do. Qualidade ambiental: ISO 14000. 5. ed. São Paulo: Senac, 2004. p. 31. 117 FERREIRA, Aracéli Cristina de Souza. Contabilidade ambiental: uma informação para o desenvolvimento sustentável – inclui Certificado de Carbono. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 33. 63 Como se pode perceber tanto a sustentabilidade quanto o desenvolvimento sustentável são desafios atuais de necessário enfrentamento, de tomada de consciência pela sociedade civil e empresarial, de que está ocorrendo lentamente uma inversão de paradigma: para haver desenvolvimento será necessário preservar, manter o meio ambiente em equilíbrio, porque a liberdade e o meio ambiente são os únicos bens que podem garantir o constante desenvolvimento. Si la naturaleza no es limitada, se sigue que ese uso libre debe ser regulado por la razón humana, de modo que se controle el uso de la naturaleza sin provocar su destrcción. Se impone un uso programado de bienes que son limitados. La destrucción de la natureza es uma injusticia, pues la vida humana necesita imprescindiblemente de la naturaleza, por lo cual todo abuso em este orden se traduce en un descenso de la calidad de la vida humana. El dominio sobre la naturaleza debe ser un dominio “político” que llamban los antiguos, es decir, un dominio respetuoso con el orden y a la obligación de aprovechar inteligentemente sus bienes. Solo si se conserva y cuida la naturaleza, ésta sirve a todos los hombres. El hombre domina la naturaleza como un gestor o administrador inteligente, que dispone las cosas de modo 118 que se le saque el máximo rendimento sin destrirla. (grifado no original) Valendo-se da doutrina de Fernandez-Largo, mostra-se necessário que comecemos a pensar em um uso limitado e na gestão dos recursos naturais, bem como nas formas de promoção e expansão das liberdades para atingir o desenvolvimento sustentável, como quer alguns, ou mesmo a sustentabilidade. 2. 2 O Princípio Constitucional do Desenvolvimento Sustentável como primado do Direito Internacional O princípio do desenvolvimento sustentável no ordenamento jurídico brasileiro decorre da leitura dos arts. 170, VI119 e 225, parágrafo 1.º, V120, da Constituição Federal, bem como da Lei n.º 6.938/81, quando aborda os objetivos da Política 118 FERNANDEZ-LARGO, Antonio Osuna. Los derechos humanos: âmbito y desarrollo. Salamanca: San Esteban, 2002. p. 292. 119 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (…). BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: http://www.planalto.gov.br . Acesso em: 28 nov. 2009. 120 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (…) V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (…). Ibidem. 64 Nacional do Meio Ambiente, em seus arts. 4º e 5º 121 . Não há consenso sobre o seu conceito, mas mais comumente desenvolvimento sustentável significa poder atender às necessidades da geração atual sem comprometer o direito de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades. Definição essa que acaba por envolver tanto os conceitos de necessidade quanto de limitação, ou seja, deve o desenvolvimento sustentável assegurar as necessidades econômicas, sociais e ambientais sem que haja compromisso futuro de qualquer delas. Nesse contexto, preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações é idéia que resulta de alterações sociais em nível estrutural e não visa impedir o crescimento econômico, mas sim determinar que as atividades sejam desenvolvidas utilizando todos os meios possibilitadores da menor degradação possível. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento sustentável tem sido um conceito operacional utilizado para a construção do direito internacional econômico que visa originariamente o desenvolvimento das nações. É possível notar-se, nesse âmbito internacional, que o conjunto de normas jurídicas voltadas ao desenvolvimento, emanadas desde a Segunda Guerra Mundial originam-se de dois conjuntos normativos diferentes, o direito internacional econômico e o direito internacional ambiental, que ao contrário de serem homogêneos, estão dispersos e trilham caminhos distintos. 122 De acordo com Varella, o princípio do desenvolvimento sustentável resulta da fusão de dois grandes princípios: o direito “ao” desenvolvimento e à preservação ambiental. O primeiro originário do direito internacional econômico strictu sensu, ou seja, de cada um ou de cada país se desenvolver, especificamente do direito “do” desenvolvimento, ramo específico do Direito, originado dos movimentos de independência após a Segunda Guerra Mundial e composto de normas e princípios asseguradores de condições mais favoráveis para o desenvolvimento dos países da 121 Art. 4º - A Política Nacional do Meio Ambiente visará: I - à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico; (…) Art. 5º - As diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente serão formuladas em normas e planos, destinados a orientar a ação dos Governos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios no que se relaciona com a preservação da qualidade ambiental e manutenção do equilíbrio ecológico, observados os princípios estabelecidos no art. 2º desta Lei. Parágrafo único. As atividades empresariais públicas ou privadas serão exercidas em consonância com as diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente. BRASIL. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, e seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 20 nov. 2009. 122 VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. São Paulo: Del Rey, 2004. p. 3-4. 65 metade Sul. O conceito de desenvolvimento foi construído no início em torno do puro crescimento econômico e, numa segunda fase, como sinônimo da expansão de liberdades. O direito do desenvolvimento, do qual se originou o direito ao desenvolvimento, foi defendido pelos países do Sul contra as posições dos países do Norte, salvo poucas exceções, figurando o direito internacional econômico como principal lócus de formulação jurídica. Teve inúmeras repercussões concretas até os anos de 1980, quando tais normas, diretamente ligadas às doutrinas socialistas, foram dissolvidas pelo avanço das teorias do neoliberalismo e pelo retorno da crença de que um sistema livre de mercado, sem regras compensadoras, seria capaz de promover o desenvolvimento internacional. Apoiava-se o direito do desenvolvimento sobre princípios que possibilitavam aos países do Sul serem competitivos nos mercados com os países do Norte, tais como: não-reciprocidade, desigualdade compensadora e criação de sistema geral de preferências. Tais princípios refletiam que os países do Sul não eram obrigados a aceitar as mesmas obrigações jurídicas relacionadas ao livre comércio, estabelecidas em acordos internacionais, possuindo inclusive os países do Sul melhores condições de acesso aos mercados, direito à ajuda financeira e à transferência de tecnologia, visando a promoção do desenvolvimento e o fim da desigualdade entre Norte e Sul. A relação entre desenvolvimento e direito internacional alcançou proporções consideráveis com a nova ordem econômica internacional e resultou no direito do desenvolvimento. Contudo, a inserção definitiva do desenvolvimento no campo dos direitos humanos verifica-se, após avanços dos esforços dos órgãos de direitos humanos e da Assembléia Geral das Nações Unidas, com a adoção da Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento em 1986, mediante a Resolução nº. 41/128, a qual 123 estabeleceu que o direito ao desenvolvimento é um direito humano. Já o direito internacional ambiental, durante muito tempo considerado antinômico ao desenvolvimento, principalmente pela metade Sul, consagrou os princípios do direito ao desenvolvimento a partir da Conferência de Estocolmo, em 1972, e a partir das convenções-quadro dos anos 1990, assim é o direito ao desenvolvimento em si mesmo na atualidade e é quase que inexistente no direito 123 OLIVEIRA, Sílvia Menicucci de. Desenvolvimento sustentável na perspectiva da implementação dos Direitos Humanos (1986-1992). In: ALMEIDA, C. A. de; MOISÉS, C., P.; Direito Internacional dos Direitos Humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas Jurídico, 2002. p. 93-94. 66 internacional econômico, mas continua a consolidar-se e a ascender em âmbito de direito internacional ambiental.124 Conforme Varella, a Carta de Havana de 1946 foi a primeira rodada de negociações do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércios – General Agreement on Tariffs and Trade). Ela já possuía um conceito de desenvolvimento limitado exclusivamente ao crescimento econômico que inicialmente aparece em todos os documentos deste cunho como único capaz de proporcionar melhoria do nível de vida. Nesta mesma linha, seguem a Conferência de Bandoeng em 1955 que representou a primeira manifestação coletiva dos países descolonizados, a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) de 1964, que acabou por contribuir substancialmente para a mudança da relação de forças entre Sul-Norte, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 1965, resultando todos esses documentos, ao final dos anos 60 em um conjunto de princípios universais não realizados. Relata ainda que em 1974 surge a “Nova Ordem Econômica Internacional”, a NOEI, orientada para os países do Sul, visando favorecer “ao” seu desenvolvimento, resultando em três documentos importantes, dentre outros: a Declaração sobre a Nova Ordem Econômica Internacional, o Programa de Ação e a Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados. Conforme se pode depreender do texto da norma, “todo o sistema capitalista seria favorável aos países ricos, em particular a divisão internacional do trabalho e a repartição desigual do progresso técnico”, o que resultou numa enorme diferença entre os índices de desenvolvimento das duas metades. A Declaração sobre o Progresso Social e o Desenvolvimento é um dos primeiros documentos com fulcro a integrar o social no conceito de desenvolvimento, era contrária aos monopólios das transnacionais e trazia, além dos princípios compensadores, o princípio da soberania sobre os recursos naturais. Segue o autor discorrendo que com a Rodada de Tóquio, em 1979, se consolida finalmente, no direito internacional, um texto concreto em favor da metade Sul, com a eliminação de obstáculos ao mercado, a fixação de melhor tratamento aos produtos de interesse para comércio indispensável e a não-fixação de novas 124 6. VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. São Paulo: Del Rey, 2004. p. 67 barreiras tarifárias e não tarifárias. No entanto, em que pese todas essas realizações, a partir dos anos 80, com a ascensão do neoliberalismo os juristas começam a se pronunciar sobre o valor não-cogente dessas resoluções, tornandoas letra morta e consolidando-as como “soft norms”. Isso o que acaba por causar o desaparecimento do direito “do” desenvolvimento que tem como marco final o Ato de Marraqueche de 1994 que acaba por reduzir sensivelmente as preferências concedidas aos países do Sul, continuando ele, no entanto, a evoluir no âmbito do direito internacional do meio ambiente através da noção de desenvolvimento sustentável. O direito internacional ambiental inicialmente impulsionou-se pelos países do Norte, ao contrário do que ocorreu com o direito internacional do desenvolvimento. Nasce de forma complexa e desordenada, e segue construindo-se sem qualquer coordenação no âmbito internacional: Vários fatores contribuem para essa complexidade: em primeiro lugar, não é possível identificar diretamente o nível de cogência contido nas normas ou uma hierarquia. Em seguida, as normas de nível e características diferentes são produzidas por várias fontes, comportando diferentes esferas de eficácia e se acumulando na regulamentação de um mesmo tema. Além do mais, a lógica da regulação, às vezes antropocêntrica, às vezes biocêntrica, contribui para a formação de um direito de difícil predeterminação. Enfim, não existe instituição coordenadora, mas uma pletora de instituições que regulam vários acordos internacionais de modo heterogêneo. Tudo isso forma um direito cuja prática é delicada, sobretudo em países menos 125 preparados. E segue discorrendo sobre o caráter não-cogente dessas normas: Primeiramente, é importante notar a irregularidade da formação desse direito. Normas mais cogentes e soft norms se misturam, em uma evolução irregular que acontece tanto nos níveis nacionais quanto internacionais, sem sucessão temporal lógica. [...] Em seguida, esse nível de obrigatoriedade das normas geralmente não pode ser identificado de modo fácil, sendo, sobretudo, o comportamento dos Estados contratantes que vai determinar o nível de eficácia e obrigatoriedade da cada norma jurídica, o que contribui para a incerteza e, 126 portanto, para a insegurança jurídica. (grifado no original) 125 VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. São Paulo: Del Rey, 2004. p. 23-24. 126 Ibidem, p. 24. 68 É considerado ainda reflexo da expansão do direito internacional moderno que trata de problemas comuns, típico do período de globalização jurídica. Teve início no final dos anos 60 e início dos 70, tomando proporções mundiais nos anos 80: Muitos fatores contribuíram para a formação e consolidação do Direito Ambiental: as taxas de aumento elevadas da população mundial, conseqüência da melhoria das condições sanitárias; o desenvolvimento das ciências médicas, depois da Segunda Guerra Mundial; a utilização maciça de recursos ambientais, em decorrência da destruição de vários ecossistemas em muitos lugares do mundo, mas principalmente nos países do Norte; os primeiros grandes acidentes com efeitos imediatos, como a destruição em massa de certos ambientes; a chegada do homem à Lua, quando a humanidade pôde ver a Terra como uma estrutura frágil, a partir de um ponto de observação exterior; as modalidades de simulação de impacto, que deram uma visão catastrófica do futuro da humanidade, anunciando o esgotamento de certos recursos biológicos e energéticos para o fim do século ou para um futuro próximo, entre outros. É neste contexto que vimos emergir teorias que trazem limites ao crescimento econômico a qualquer preço e incentivam a redefinição dos 127 conceitos de desenvolvimento. Relata ainda, que a partir dos anos 70, os países escandinavos e a Alemanha tornam-se precursores na criação do Ministério do Meio Ambiente, seguidos dos Estados Unidos da América e da Inglaterra; ocorre também a expansão da formação de convenções-quadro, como a Convenção de Estocolmo, a Convenção da Diversidade Biológica e a Convenção das Mudanças Climáticas que tratavam de variados assuntos tendo como núcleo de pertinência comum o desenvolvimento sustentável, o que as vinculava do ponto de vista ecológico, mas as isolava umas das outras do ponto de vista jurídico. É salutar salientar ainda nesta época a pressão desenvolvida pelas Organizações Não-Governamentais no sentido da expansão da proteção ambiental como valor comum. Não há, portanto, coordenação entre estes acordos ambientais que acabam sendo elaborados conforme as necessidades e concordâncias políticas dos Estados e essa heterogeneidade acaba por contribuir para o aumento da eficácia do direito internacional ambiental no plano ambiental e também para o seu crescimento, surgindo dessa diversidade e flexibilidade a sua possibilidade de expansão. Tamanho era o descaso e mesmo ignorância sobre a necessidade de preservação ambiental para fins do desenvolvimento sustentável que alguns países 127 VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. São Paulo: Del Rey, 2004, p. 22-23. 69 como o Brasil absurdamente relutavam (e outros mais absurdamente ainda continuam relutando) as pressões e acordos ambientais: Ainda que atualmente os países do Sul aceitem bem o direito ambiental, no início das discussões sobre a proteção da natureza a realidade era outra. A pressão em favor dos limites ambientais pedidos aos países do Sul era vista como um instrumento utilizado pelo Norte para bloquear o desenvolvimento econômico dos países emergentes; atitude esta refletida nos discursos dos diplomatas do Sul, que se opunham à questão ambiental e defendiam o mesmo direito de destruir a natureza que tinham usufruído os países do Norte durante as épocas de maior desenvolvimento econômico. Embora não se possa dizer que essa era a posição geral de todos os países do Sul, pode-se afirmar que era, nos países mais representativos, como o Brasil, a Índia e a China.[...] O representante brasileiro na reunião preparatória para a Conferência de Estocolmo, organizada em Founex, teria declarado, por exemplo, que o Brasil era grande o suficiente para receber todas as indústrias poluidoras do 128 planeta. A preocupação com a questão ambiental iniciou institucional e globalmente com a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano de 1972, resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, onde se proclamou pela primeira vez ser o direito ao meio ambiente um direito humano fundamental, como sendo uma questão fundamental que atinge o bem-estar de todos os povos e o desenvolvimento econômico de todo o mundo. Assentaram-se princípios como o de que o homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bemestar e tem a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. É nesta época que surge o “ecodesenvolvimento” e que se inicia a construção do direito internacional ao meio ambiente nos moldes atuais unindo-se dois conceitos: o meio ambiente e o desenvolvimento. Esta foi a primeira vez que os problemas políticos, sociais e econômicos do meio ambiente global foram discutidos em um fórum intergovernamental visando ações corretivas efetivas. 129 O conceito normativo básico de desenvolvimento sustentável que emergiu da Conferência de Estocolmo foi designado na época como “abordagem do ecodesenvolvimento” e apenas posteriormente passou a utilizar a denominação que conhecemos 128 VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. São Paulo: Del Rey, 2004. p. 30. 129 Ibidem, p. 31-33. 70 atualmente. De acordo com Maurice Strong, Secretário Geral da Conferência, citado por Dias, o desenvolvimento sustentável será alcançado quando três critérios básicos forem observados de forma simultânea: eqüidade social, prudência ecológica e eficiência econômica.130 Na seqüência foram publicados outros documentos de igual importância dando maior base científica ao conceito do desenvolvimento sustentável, tais como o WWF (World Wildlife Fund), O PNUMA (Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas) e a UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza), em 1980, que publicaram a “estratégia mundial da conservação”. Este trabalho conjunto do PNUMA e aliado a importantes Organizações Não-Governamentais “foi essencial para a expansão do PNUMA e para a consolidação do desenvolvimento sustentável enquanto conceito-chave da agenda internacional”.131 O documento elaborado por tais instituições definiu sustentabilidade como “uma característica de um processo ou estado que pode manter-se indefinidamente”.132 Em 1983, o Relatório de Bruntland, ou Relatório Nosso Futuro Comum, trouxe as conclusões da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, reconheceu o direito humano fundamental ao meio ambiente: “todos os seres humanos têm o direito fundamental a um meio ambiente adequado para sua saúde e bem-estar”. Foi o primeiro relatório a trazer problemas de todo o Planeta Terra, englobando numa perspectiva ambiental toda atividade humana que afeta os elementos básicos possibilitadores da vida no planeta e trouxe uma definição mais elaborada do conceito de desenvolvimento sustentável. Enfatizou que a pobreza era incompatível como o desenvolvimento sustentável e indicou a necessidade de uma política ambiental como parte integrante do processo de desenvolvimento e não mais apenas uma mera responsabilidade setorial fragmentada. Reunia as principais teorias que demonstravam a possibilidade de um desenvolvimento sustentável, no âmbito das Nações Unidas, sobretudo junto às agências mais vinculadas ao comércio, tais como o Banco Mundial, que posteriormente criou uma divisão encarregada de assuntos do meio ambiente, 130 DIAS, Reinaldo. Gestão ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 30. 131 VARELLA, Marcelo Dias. Direito Internacional Econômico Ambiental. São Paulo: Del Rey, 2004. p. 33. 132 DIAS, op. cit., p. 31. 71 considerando-o elemento importante a ser levantado no financiamento de projetos de desenvolvimento. 133 Em 1990, a Resolução 41, de 6 de março de 1990, intitulada, Direitos Humanos e o Meio Ambiente, resultado da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, afirmou sua preocupação com o aumento da degradação ambiental, ressaltando a relação entre a preservação do meio ambiente e a promoção dos direitos humanos: Desde então, o tema passou a ser especificamente analisado no seio das Nações Unidas, focando-se na consideração das seguintes questões: preocupação universal com a escala, a seriedade e a complexidade dos problemas ambientais; necessidade de medidas nacionais, regionais e internacionais apropriadas para solucionar tais problemas; relação íntima entre os direitos humanos e o meio ambiente, ou seja, algumas violações de direitos humanos são causas ou fatores de degradação ambiental e a deterioração do meio ambiente, por sua vez, afeta o gozo dos direitos humanos; a atenção maior aos problemas ambientais que afetam os direitos 134 humanos. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida também com Cúpula da Terra, Rio 92 ou Eco-92, foi realizada no Rio de Janeiro com representantes de 179 países que discutiram durante 14 dias os problemas ambientais globais e estabeleceram o desenvolvimento sustentável como uma das metas a serem alcançadas pelos governos e sociedade. Resultou em cinco documentos básicos: a declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento; a Declaração de princípios para a gestão sustentável das florestas; o Convênio sobre a Diversidade Biológica; o Convênio sobre as Mudanças Climáticas; e o Programa das Nações Unidas para o século XXI, conhecido como Agenda 21.135 A Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 postulou, dentre outros princípios, o de que os seres humanos são o centro das preocupações em termos de desenvolvimento e possuem direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza, postulou, no Princípio 3, que o direito ao desenvolvimento sustentável deve ser realizado de modo a satisfazer equivalentemente as necessidades relativas ao 133 DIAS, Reinaldo. Gestão ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 31. 134 OLIVEIRA, Sílvia Menicucci de. Desenvolvimento sustentável na perspectiva da implementação dos Direitos Humanos (1986-1992). In: ALMEIDA, C. A. de; MOISÉS, C., P.; Direito Internacional dos Direitos Humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas Jurídico, 2002. p. 93. 135 DIAS, op. cit., p. 33-34. 72 desenvolvimento e ao meio ambiente das gerações presentes e futuras; e a Agenda 21 refletiu o consenso mundial e o compromisso dos Estados sobre o desenvolvimento e a cooperação na esfera do meio ambiente: é um processo participativo que envolve o poder público, o setor privado e a sociedade civil, para a elaboração de uma agenda de compromissos, ações e metas, para transformar o desenvolvimento de uma região (Agenda 21 Local), de um país (Agenda 21 Brasileira) e até mesmo do mundo todo (Agenda 21 Global), com base nos princípios da sustentabilidade da Vida. Em outras palavras, nesse contexto, sustentabilidade refere-se a proteger o meio ambiente, valorizar a diversidade cultural, promover a justiça e a melhoria da qualidade de vida para todos, da geração atual e das gerações futuras e orientar as atividades econômicas e geração de renda para essas finalidades. No que concerne às empresas, no Capítulo 31, o item 1 reconhece: O comércio e a indústria, inclusive as empresas transnacionais, desempenham um papel crucial no desenvolvimento econômico e social de um país. Um regime de políticas estáveis possibilita e estimula o comércio e a indústria a funcionar de forma responsável e eficiente e a implementar políticas de longo prazo. A prosperidade constante, objetivo fundamental do processo de desenvolvimento, é principalmente o resultado das atividades do comércio e da indústria. As empresas comerciais, grandes e pequenas, formais e informais, proporcionam oportunidades importantes de 136 intercâmbio, emprego e subsistência. Leciona Oliveira que a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente serviu para especificar o dever de cooperação para erradicação da pobreza como requisito ao desenvolvimento sustentável e consagrou o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, de modo que os Estados devem cooperar com o espírito de solidariedade dos ecossistemas da Terra, levando em consideração o fato de que eles contribuem em proporções distintas com a degradação. Também o princípio da precaução restou consagrado, segundo o qual, quem contamina deve suportar os custos da contaminação, bem como o princípio de avaliação do impacto ambiental. Segundo a autora, a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena 1993 trata da relação entre desenvolvimento, meio ambiente e direitos humanos, tanto que depois de reafirmar os princípios da Declaração sobre Direito e 136 DIAS, Reinaldo. Gestão ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 34. 73 Desenvolvimento, estabelece, no parágrafo 11 da Parte I, que o direito ao desenvolvimento deve ser realizado de forma a satisfazer eqüitativamente às necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes e futuras: na Segunda Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, em Viena, em 1993, um novo consenso surgiu. A declaração adotada nessa ocasião reafirmou: o direito ao desenvolvimento, como estabelecido na Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento, como um direito universal e inalienável, é uma parte integral dos direitos humanos fundamentais. Esse consenso significou um comprometimento da comunidade internacional em relação à obrigação de cooperação para realização desses direitos. O direito ao desenvolvimento surgiu, assim, como direito humano que integrou direitos econômicos, sociais e culturais com direitos civis e políticos, resgatando a consideração imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. […] Uma análise da Declaração sobre Direito ao Desenvolvimento conduz a algumas conclusões. Primeiramente, o direito ao desenvolvimento é um direito humano. O direito humano ao desenvolvimento é um direito a um processo particular de desenvolvimento no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais podem ser plenamente realizados, o que significa que ele combina todos os direitos humanos, englobados em ambos os pactos internacionais, e cada um dos direitos precisa ser exercido com liberdade. O significado de exercer esses direitos com liberdade implica: participação livre, efetiva e plena de todos os indivíduos envolvidos no processo de tomada de decisões e de implementação das mesmas, com oportunidades iguais de acesso aos recursos para desenvolvimento e recebimento de justa contribuição dos benefícios de desenvolvimento. Finalmente, o direito confere obrigação inequívoca aos titulares de deveres: indivíduos na comunidade, Estados em nível nacional e Estados em nível internacional. Nesse particular, os Estados têm responsabilidade primordial de ajudar a realizar o processo de desenvolvimento por meio de políticas apropriadas de desenvolvimento, enquanto os demais Estados e agências internacionais possuem a obrigação de cooperar para facilitar a realização 137 do processo de desenvolvimento. (grifado no original) Em 1997, durante sessões extraordinárias da Assembléia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York, realizou-se a Cúpula da Terra, conhecida como Rio+5, objetivando analisar a execução do Programa 21, aprovado pela Cúpula de 1992. Houve um período de intensas deliberações ocorridas em razão das divergências entre os Estados sobre a forma como se financiaria o desenvolvimento sustentável a nível mundial e obtiveram-se alguns acordos: em adotar objetivos juridicamente vinculantes para reduzir a emissão dos gases do efeito estufa, os quais são causadores da mudança climática; de avançar com mais vigor para modalidades sustentáveis de produção, distribuição e utilização de 137 OLIVEIRA, Sílvia Menicucci de. Desenvolvimento sustentável na perspectiva da implementação dos Direitos Humanos (1986-1992). In: ALMEIDA, C. A. de; MOISÉS, C., P.; Direito Internacional dos Direitos Humanos: instrumentos básicos. São Paulo: Atlas Jurídico, 2002. p. 95-96. 74 energia; focar a erradicação da pobreza como requisito prévio do desenvolvimento sustentável.138 Segue o autor referindo que também em 1997, em Kyoto, foi realizada a terceira Conferência das Partes tendo como principal resultado o Protocolo de Kyoto, segundo o qual os países industrializados deveriam cortar as emissões para baixo dos níveis de 1990. O acordo foi assinado por 84 países, mas sua entrada em vigor dependia da ratificação por 55 países, que correspondem a 55% das emissões de gases que provocam o efeito estufa. O Protocolo entrou em vigor em 16 de fevereiro de 2005 e estabelecia uma meta média de cerca de 5% de redução das emissões de gases de efeito estufa nos países industrializados, a qual deverá ser atingida, individual ou conjuntamente, no período entre 2008 e 2012, metas inferiores às esperadas por cientistas e ambientalistas139. O desenvolvimento sustentável, diante desse contexto, não é propriamente um princípio específico, porém um conjunto de regras implícitas e expressas realizadas em nível internacional, ditas consagradoras dos princípios típicos do direito do desenvolvimento conciliados com os direitos fundamentais de um meio ambiente equilibrado e da vida digna.140 Para Leff, as estratégias de “ecodesenvolvimento”, emergentes na década de 60 com a chamada economia ecológica, acabaram se “enredado nas malhas da teoria de sistemas com a qual procuravam reintegrar ao sistema econômico um conjunto de variáveis”, tais como o crescimento populacional, mudança tecnológica e de “condições ambientais”, como os processos ecológicos e a degradação ambiental. Entretanto, essa visão sistêmica e pragmática restou carente de uma base teórica sólida para a construção de um novo paradigma produtivo e “velou o potencial dos saberes culturais e dos movimentos sociais pela apropriação da natureza na transparência das práticas da planificação ambiental”. Nos anos de 1980, perderam espaço para o discurso do desenvolvimento sustentável, mais 138 DIAS, Reinaldo. Gestão ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas, 2008. p. 34. 139 PANORAMA ECOLOGIA. Blog da seção de ecologia da revista eletrônica Consciência.net. Disponível em: <http://panoramaecologia.blogspot.com>. Acesso em: 19 out. 2009. 140 No mesmo sentido da doutrina de SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão técnica de Ricardo Doninelli Mendes. 5. impressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 75 acentuadamente com o “Informe Brundtland”, onde se formulou a definição do desenvolvimento sustentável como processo para satisfazer necessidades atuais sem comprometer as gerações futuras. Esse discurso visou estabelecer um espaço comum para uma política de consenso capaz de integrar os diversos países, povos e classes sociais que “plasmam o campo conflitivo da apropriação da natureza”, no entanto, critica o autor: A ambivalência do discurso do desenvolvimento sustentado/sustentável se expressa já na polissemia do termo sustainablility, que integra dois significados: o primeiro, traduzível como sustentabilidade, implica a incorporação das condições ecológicas – renovabilidade da natureza, diluição de contaminadores, dispersão de dejetos – do processo econômico; o segundo, que se traduz como desenvolvimento sustentado, implica a perdurabilidade no tempo do progresso econômico. Se a crise ambiental é produto da negação das bases naturais nas quais se sustenta o processo econômico, então a sustentabilidade ecológica aparece como condição da sustentabilidade temporal do processo econômico. No entanto, o discurso do desenvolvimento sustentado chegou a afirmar o propósito de tornar sustentável o crescimento econômico através dos mecanismos do mercado, atribuindo valores econômicos e direitos de propriedade aos recursos e serviços ambientais, mas não oferece uma justificação rigorosa sobre a capacidade do sistema econômico para incorporar as condições ecológicas e sociais (sustentabilidade, eqüidade, justiça, democracia) deste processo 141 através da capitalização da natureza. (grifado no original) Os anos 80, segundo o autor, anunciaram através desse discurso neoliberal, o desaparecimento da contradição entre ambiente e crescimento. Ao contrário da sustentabilidade, o discurso do desenvolvimento sustentável acabou por promover o crescimento econômico negando as condições ecológicas e termodinâmicas que determinam limites e possibilidades de uma economia sustentável e também a internalização dos custos ambientais e a instrumentalização do homem, da cultura e da natureza como capital. Aparece como um “simulacro que nega os limites do crescimento para afirmar a corrida desenfreada em direção à morte entrópica do planeta”. Reflete uma mania de crescimento ilimitado; uma compulsão ao consumo que ao contrário da escassez da economia, ultrapassa a ideologia do progresso, sendo um dilema da própria racionalidade econômica. As “estratégias de sedução e de simulação do discurso do desenvolvimento sustentado constituem o mecanismo extra-econômico por excelência da pós-modernidade para manter o domínio” sobre homem e natureza. Essas mesmas estratégias resultam em seu “pecado capital”, 141 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 136-137 76 sua “gula infinita e insaciável”, fechando as portas para a desconstrução da ordem econômica antiecológica e impedindo uma nova ordem social, conduzida pela sustentabilidade ecológica, pela democracia participativa e pela racionalidade ambiental. Numa linguagem neoclássica, pode ser conceituado como “uma contribuição igualitária do valor que os diferentes fatores da produção adquirem no mercado”: As políticas do desenvolvimento sustentado procuram conciliar os lados opostos contrários da dialética do desenvolvimento: o meio ambiente e o crescimento econômico. A tecnologia seria o meio instrumental que poderia reverter os efeitos da degradação entrópica nos processos de produção, distribuição e consumo de mercadorias […]. O discurso do crescimento sustentado ergue uma cortina de fumaça que mascara as causas da crise 142 ecológica. Em que pese o “mimetismo retórico” gerado pelo discurso do desenvolvimento sustentável, para Leff, ele carece de qualquer rigor, deixando evidentes suas contradições, não possibilitando um sentido conceitual e praxeológico que unificasse as múltiplas “vias de transição para a sustentabilidade”. Insustentável ou não, o discurso do desenvolvimento sustentável difundiu-se e tornou-se parte tanto do discurso oficial quanto da linguagem popular, tanto que previsto no atual texto constitucional que exige sua observância e promoção inclusive pela iniciativa privada, o que será trabalhado mais detidamente no tópico que segue. 2. 3 A ordem econômica, a iniciativa privada e a função social da empresa na Constituição Federal brasileira de 1988 e na legislação nacional esparsa Contextualizando brevemente, a economia surge a partir do momento em que os povos e nações criaram modos variados de produção que refletiam em diversas maneiras de apropriação dos recursos naturais. Primeiramente eram economias de subsistência e com o passar dos anos e a evolução das sociedades em estruturas cada vez mais hierarquizadas, geraram-se excedentes concentrados nas classes dominantes. Posteriormente, com o transporte naval, houve o incremento do comércio no auge do capitalismo mercantil que tinha como fundamento a exploração da natureza dos recursos em abundância dos territórios conquistados pela 142 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 139-144. 77 monarquia européia e, no auge do capitalismo industrial, deu-se espaço ao intercâmbio desequilibrado de mercadorias naturais e tecnológicas, chegando a atual intervenção biotecnológica e capitalização da natureza. Com a generalização do intercâmbio mercantil surge mundialmente a “ordem econômica” e no século XVIII a economia passou a guiar a ordem humana: A ciência econômica nasce dentro de uma visão mecanicista que fundamenta o paradigma científico da modernidade, que assim é estendido ao campo da produção. A economia emerge como ciência da classificação racional de recursos escassos e do equilíbrio dos fatores da produção: capital, trabalho e esse fator “residual” – a ciência e a tecnologia – em que repousa a elevação da produtividade e que se converteu na força produtiva 143 predominante. O correto entendimento da ordem econômica, no contexto da Constituição Federal brasileira de 1988, exige uma interpretação sistemática das normas constitucionais, tendo os artigos 170 e 174144 como seus verdadeiros “vetores”.145 É consenso na doutrina de direito econômico a idéia de que a ordem econômica definida pelo legislador constituinte para o país acolhe como sistema econômico o capitalista146, no entanto, possui ao mesmo tempo “organicidade convergente à construção de um modelo de bem-estar social, no que guarda coerência com a Constituição total brasileira – A Constituição dirigente de 1988”147. Pode-se dizer, valendo-se de Grau, que a ordem econômica na Constituição Federal de 1988 milita na harmonização entre o capitalismo, nesse contexto representado pela iniciativa privada, e a construção de uma sociedade igualitária. Tal união é viabilizada pela possibilidade de intervenção estatal na economia, tendo em vista que a ordem econômica constitucional rejeita a economia liberal e o princípio da auto-regulação da economia. 143 LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Tradução de Luis Carlos Cabral. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006. p. 171-172. 144 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 145 CARVALHO, Pedro Jorge da Rocha. A intervenção do estado na economia e a imunidade recíproca. In: POMPEU, Gina Marcílio (Org.). Estado, Constituição e Economia. Fortaleza: Fundação Edson Queiroz: Universidade de Fortaleza, 2008. p. 316. 146 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 312. 147 CARVALHO, op. cit., p. 316-317. 78 Dispõe o artigo 170 da Constituição Federal brasileira de 1988, que prevê os princípios gerais da atividade econômica, no Capítulo da Ordem Econômica e Financeira, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios da soberania nacional, da propriedade privada, da função social da propriedade, da livre concorrência, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços, e de seus processos de elaboração e prestação, da redução das desigualdades regionais e sociais, da busca do pleno emprego e do tratamento favorecido para empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede e administração no Brasil. É, ainda, segundo o parágrafo único do artigo, assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos expressos em lei. Também preceitua o Título I da atual Constituição Federal, que traz os princípios fundamentais que norteiam a República Federativa do Brasil, em seu art. 1º, que essa se constitui em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Na mesma linha o art. 3º, pertencente ao mesmo título, diz que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ainda, o inciso XXIII, do art. 5º determina que a propriedade atenda a sua função social. A atual Constituição Federal brasileira de 1988 retomou a idéia de função social e dessa forma acabou colocando em questão a função social do próprio direito que inicialmente foi perquirida por Bobbio, que afirmou a função promocional do direito na sociedade contemporânea, partindo da premissa de que o direito não deveria ser analisado de forma estruturalista, apenas preocupando-se em saber como o direito é produzido, mas sim deveria ser analisado de uma forma funcionalista, visando saber para que o direito serve, e assim deveria ser definido 79 como forma de controle e também de direção social148, até porque os fins sociais são próprios do direito, que é um conjunto de normas para tornar possível a sociabilidade humana, devendo-se encontrar nas próprias normas o seu fim, que nunca deve ser anti-social.149 Nesse contexto, valendo-se de Silva, pode-se dizer ainda que os princípios da autonomia privada e da função social são princípios gerais do direito obrigacional a partir do novo Código Civil, assim como os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio, aplicáveis a todas as obrigações independentemente da origem, mas apenas os dois primeiros possuem função eminentemente funcionalizante, resultando na atual “visão funcionalizada da relação obrigacional”, do que necessariamente decorrem os contratos empresarias e as próprias empresas e indústrias e suas constantes interações com o mercado e a sociedade. 150 Contextualizando historicamente e de forma breve, o chamado Estado Liberal (século XIX) tinha como “telos” a liberdade individual, e o Estado era visto como o adversário de tal liberdade, tendo deveres de abstenção frente a essas liberdades. Dois eram os sistemas na proteção da liberdade humana, vigendo na relação entre Estado e indivíduo, a Constituição; e entre os indivíduos o Direito Civil o qual tinha como centro a autonomia privada com pilares na propriedade, no contrato e direitos econômicos relacionados, isso refletiu nas Constituições brasileiras de 1824 e 1891, mas Sarmento salienta que tal fase teve existência incerta no Brasil.151A autonomia privada era o princípio reitor em se tratando de liberdades e representava a liberdade negocial, ou seja, a ampla liberdade de contratar, liberdade de escolher o que contratar, com quem contratar e como contratar”152, e por conseqüência vigia o princípio do Pacta Sun Servanda, que representava a obrigatoriedade do contrato. 148 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri-SP: Manole, 2007. p. 53/101. 149 FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Função social e função ética da empresa. In: Revista Jurídica da UniFil, Ano II, número 2, 2005, ISSN 1807.1627. p. 69. Disponível em: <http://www.unifil.br>. Acesso em: 27 out. 2009. 150 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 102. 151 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2004. p. 22/30. 152 REIS, Jorge Renato dos. Os direitos fundamentais de tutela da pessoa humana nas relações entre particulares. In: ______; LEAL, R. G. (Org.). Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. p. 2043-2045. 80 Sobre o sistema da iniciativa privada discorre Clark: O sistema da iniciativa privada desalojou o sistema medieval de técnicas relativamente estáticas e posições sócio-econômicas consagradas pelo hábito, graças a um sistema de técnicas em rápida evolução, no qual a posição pessoal (com a possível exceção da aristocracia rural) está à mercê de uma infatigável concorrência. Tinha a sua teoria que a concorrência pôs o comércio a serviço do povo, em sua capacidade de consumidor, o que é razoavelmente verdadeiro quanto ao fornecimento físico, embora a publicidade seja bastante mais do que uma servidora obediente e os padrões de gosto, ideais e morais sejam modelados por agências nas quais temos poucas razões para confiar semelhante liderança social. Nesses primeiros tempos do individualismo dominante, as pessoas, em sua capacidade de trabalhadores, não eram assim tão bem servidas – para nos 153 exprimirmos em termos moderados. (conforme o original) O paradigma social surgiu na fase da industrialização massiva, base do capitalismo selvagem e do liberalismo econômico. Com a democratização política iniciou o Estado do Bem-Estar Social e alguns direitos determinando prestações estatais, visando à garantia das condições mínimas de vida. A preocupação com o bem-estar social refletiu no direito privado através da ampliação das normas de ordem pública e positivação dos direitos sociais e econômicos e com o excesso de publicização e a economia capitalista, onde a ameaça aos direitos humanos partia dos próprios homens, fez-se necessário condicionar também os agentes privados ao respeito aos direitos fundamentais. Na década de 70, começou a crise no Welfare State; o Estado não conseguia manter todas as garantias de ordem social prometidas, acentuando-se tal crise com a globalização econômica, nas décadas finais do século XX. As decisões começaram a concentrarem-se nos oligopólios, bancos globais e poucos governos nacionais dominantes que buscavam o retorno do estado mínimo. 154 Com o Estado Social houve uma redefinição da autonomia privada. O núcleo do Estado e do Direito voltou-se à pessoa humana e com conseqüentes limitações expressas da autonomia privada, limitando-a em razão da igual autonomia dos demais, para a sua própria proteção, bem como das inter-relações dos direitos fundamentais entre eles, passando a autonomia privada a englobar tanto o sentido 153 CLARK, John Maurice. Instituições econômicas e bem-estar social. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. p. 235. 154 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2004. p. 32-44. 81 patrimonial, caracterizada pela liberdade de negociar, quanto a não patrimonial vinculada à proteção da dignidade da pessoa humana, ou seja, ser autônoma com relação às decisões para a própria vida. 155 O neoliberalismo conjugando com o conservadorismo no campo social e o liberalismo no campo econômico, surgiu preconizando a redução do Estado e dos gastos sociais. Elaborado na primeira metade do século XX, pregava que a intervenção estatal na esfera privada implicaria na redistribuição de riquezas, o que oprimiria a liberdade individual, causando exclusão social mais acentuada que a do liberalismo. Tornaram-se, os Estados, reféns do capital internacional. Os agentes econômicos acabaram por criar um direito comum, a chamada Lex Mercatória.156 Neste contexto, o constitucionalismo moderno, no século XX, promoveu um retorno aos valores compartilhados pela comunidade, em dado momento e lugar, que se materializavam em princípios constitucionais expressos ou implícitos, que possuíam normatividade e davam unidade e harmonia ao sistema jurídico, condicionando, ainda, a atividade do intérprete. A abertura constitucional aos valores se dá pela releitura dos princípios da separação dos poderes, do Estado Democrático de Direito, da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da solidariedade e da reserva de justiça157. O desafio do Estado Democrático de Direito, segundo Ferreira está exatamente em “efetivar a ordem econômica respeitando suas funções”158. Com o decorrer dos anos o sistema da iniciativa privada, segundo Clark, não pôde mais ser caracterizado como competitivo e fiel às leis econômicas que visavam à realização de um equilíbrio competitivo, em razão de uma economia indeterminada de grupos organizados, onde as forças da concorrência atuavam no setor dos negócios, só que de forma “intermitente e desigual”: 155 REIS, Jorge Renato dos. Os direitos fundamentais de tutela da pessoa humana nas relações entre particulares. In: _____; LEAL, R. G. (Org.). Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. p. 2043-2045. 156 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2004. p. 45-47. 157 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In:__ (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 28. 158 FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Função social e função ética da empresa. Revista Jurídica da UniFil, Ano II, número 2, 2005, ISSN 1807.1627. p. 73. Disponível em: <http://www.unifil.br>. Acesso em: 27 out. 2009. 82 É indeterminada porque esses grupos têm agora mais poder do que fora preconizado pela teoria original do laissez faire. Esses poderes rivais dos negócios, mão-de-obra, agricultura e outros, ameaçam o sistema livre, colocando-o frente a frente com a alternativa da coerção ou do caos, se os poderes existente forem usados irresponsàvelmente e sem limite. Talvez seja um assunto secundário terem eles arruinado a exatidão rigorosa daquelas fórmulas com que os economistas definiam os resultados que os ajustamentos econômicos tendem naturalmente a apresentar e que eram designados como “princípios econômicos”. Trouxeram para o primeiro plano um princípio econômico dominante que mal era conhecido no século XIX: o princípio de que o grau de liberdade que pode persistir é determinado e medido pelo grau de responsabilidade com que é exercido o poder econômico grupal. Talvez isto seja um princípio moral, mas acredito que seja também uma declaração de causa e efeito objetivos, tendo tanto direito a uma posição científica quanto muitas “leis econômicas” tradicionais. O interesse próprio e irresponsável já não pode ser aceito como base satisfatória para um sistema econômico pelas pessoas que sabem o que 159 está acontecendo no mundo em que vivem. (de acordo com o original) No âmbito jurídico, a autonomia privada na atualidade deve ser compreendida levando-se em conta os arts. 1º, inciso III (que prevê a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil) e 170 da Constituição Federal. A dignidade da pessoa humana tem como corolário a proteção ao livre desenvolvimento da personalidade e afastar ou limitar a extremos a autonomia privada seria o mesmo que privar o indivíduo de se “auto-regrar”, o que é contrário aos princípios constitucionais. No entanto, como visto, a ordem econômica brasileira se funda sobre a livre iniciativa, o que garante para a autonomia privada um “papel central no domínio econômico”. Assim o art. 170 conecta a autonomia privada com a livre iniciativa, bem como com os demais princípios constitucionais como “a função social da propriedade, a defesa do consumidor ou a defesa do meio ambiente”. Em razão de tais postulados, a autonomia privada deve ser compreendida atualmente como o “espaço de competência normativa do sujeito privado, a servir de base à atuação privada”, exigindo ser compreendida de modo funcional tanto em se tratando do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade da pessoa humana quanto do âmbito econômico.160 Diante da chamada “filtragem constitucional”, permitida pelos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal tanto as normas constitucionais quanto todo o ordenamento jurídico passou a assumir uma necessária consciência de que o direito 159 CLARK, John Maurice. Instituições econômicas e bem-estar social. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. p. 234-235. 160 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 105-106. 83 à vida digna é que deve orientar todas as formas de atuação tanto do Estado quanto da iniciativa privada e da propriedade privada, bem como no campo da tutela do meio ambiente, já que se trata de valor supremo a quaisquer considerações, seja de desenvolvimento, seja de respeito ao direito de propriedade ou mesmo da livre iniciativa privada.161 A supremacia da constituição, no contexto brasileiro, frente às relações privadas é, segundo Sarmento, uma escolha de ideologia, levando em consideração as peculiaridades da Constituição de 1988 que está voltada à dignidade da pessoa humana, à justiça material e a igualdade substantiva. Assim é que tal constituição marcou o reencontro entre a sociedade brasileira, o Direito e a democracia, prevendo amplos e variados direitos consonantes com a tendência internacional e erigiu-os a cláusulas pétreas. O reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana no ápice do ordenamento vai acarretar a “consagração da primazia dos valores existenciais da pessoa humana” sobre o patrimonialismo. A proteção à autonomia privada decorrente da Constituição Federal é heterogênea, devendo os direitos patrimoniais serem protegidos apenas como meios para a concretização de valores ligados à realização existencial do indivíduo e à defesa de interesses socialmente relevantes; a autonomia negocial foi, por derradeiro, relativizada pela Constituição Federal, em razão da preocupação constitucional com a igualdade material e a solidariedade, e instrumentalizada em favor da proteção da dignidade da pessoa humana e da justiça social.162 É a chamada “despatrimonialização”. Ocorre que a idéia na qual se baseia a atual ordem constitucional do nosso país trata do personalismo, que considera o ser humano como valor em si mesmo e tal personalização não se mostra incompatível com a socialização do Direito Privado, configurando uma causa do processo e, em razão dela, a solidariedade passa a adquirir valor jurídico. Nesse contexto, a autonomia privada ainda continua refletindo a emanação da liberdade, mas começa e ser ponderada com preocupações sociais. 161 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) § 1º- As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 162 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2004. p. 214/220. 84 Em que pese a autonomia privada, quanto ao seu status normativo, seja também direito fundamental constitucionalmente assegurado, que pode ser extraído da livre iniciativa prevista nos arts. 1º, IV163, e 170, caput, da CF/88164, que envolve a liberdade de indústria e comércio ou liberdade de empresa e também a liberdade de contrato, passou a ter necessariamente de observar a dignidade da pessoa humana e a preservação do meio ambiente, tendo como limites justamente a mantença saudável e equilibrada do mesmo. Ocorre que a qualidade do meio ambiente se transformou em um patrimônio, cuja preservação, recuperação e revitalização se tornaram imperativo não apenas do Poder Público. Embora se saiba não haver hierarquia entre princípios, numa ponderação de valores, não há que se questionar sobre a prevalência do direito fundamental humano ao meio ambiente equilibrado, que deverá sempre prevalecer sobre o direito fundamental da iniciativa privada. Já que um dos limitadores da autonomia privada previsto em âmbito constitucional e no novo Código Civil é a função social, deve ser considerada legítima a livre iniciativa quando exercida no interesse da justiça social e ilegítima quando exercida objetivando apenas lucro e desenvolvimento do empresário. A iniciativa econômica pública, embora sujeita a outros condicionamentos constitucionais, se torna legítima, por mais ampla que seja, quando se destina a assegurar a todos existência digna, nos termos dos ditames da justiça social.165 Essa compreensão não parte apenas do Poder Público, sendo que este efetivamente o faz de forma legítima nos termos legais, quer regulando a liberdade de indústria e comércio, em alguns casos, impondo necessidade de autorização ou permissão para determinado tipo de atividade econômica, ou mesmo regulando a liberdade de contratar, em especial, no que tange às relações de trabalho e também 163 Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; [...]. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 164 REIS, Jorge Renato dos. Os direitos fundamentais de tutela da pessoa humana nas relações entre particulares. In:_____; LEAL, R. G. (Org.). Direitos Sociais & Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2007. p. 2043-2045. 165 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 770. 85 quanto à fixação de preços, além de intervenção direta na produção e comercialização de certos bens. Como a proteção do ecossistema meio ambiente também faz parte do ideal de desenvolvimento nacional previsto no artigo 3º da Constituição Federal de 1988, deve-se entender que tal desenvolvimento, com base no artigo 170, implica desenvolvimento ambiental, econômico e conseqüentemente social, não devendo a atividade industrial do homem se opor à natureza. Quer a Constituição, assim, um desenvolvimento sustentável, que requer dentre outras atitudes administrar a natureza de maneira responsável, integrando a ela a gestão, também responsável, da empresa ou indústria166; estando desconformes as atividades decorrentes da iniciativa privada que violem a proteção do meio ambiente, não levando em conta a mantença da qualidade do mesmo, a propriedade privada, base da ordem econômica constitucional, deixa de cumprir sua função social elementar à sua garantia constitucional. Traz o artigo 170 da Constituição Federal, portanto, a questão da responsabilidade compartilhada em razão do bem ambiental ser tratado como bem de interesse comum da coletividade, dependendo sua proteção da responsabilidade compartilhada entre o Estado e a coletividade, o que implica a obrigação da coletividade ter o exercício do direito de propriedade limitado pela obrigação de determinadas abstenções que evitam excessos, em razão da necessidade de enquadramento do direito aos limites impostos, pois, como dito, são participes da coletividade responsável pela preservação ambiental.167 A função social da propriedade prevista na Constituição Federal, no inciso XXII, do art. 5º, implica dizer que apenas é assegurado o direito fundamental da propriedade quando este é exercido e usufruído conforme a função social que lhe é atribuída pela própria Constituição Federal, nos arts. 182, 183, 184 e 186168 e tal funcionalidade deve se estender as empresas e indústrias.169 166 BACKER, Paul de. Gestão ambiental: a administração verde. Tradução de Heloísa Martins Costa. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1995. p. 1. 167 BACKER, Paul de. Gestão ambiental: a administração verde. Tradução de Heloísa Martins Costa. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1995. p. 142. 168 Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais 86 Também com a vigência da Lei n.° 10.406/02, que instituiu o Novo Código Civil (CC), foram positivados diversos princípios antes inexpressivos e o caráter privatista, individual e eminentemente patrimonial do antigo Código Civil foi substituído de vez pela socialidade, coletividade, eticidade e dignidade do atual Código. Em outras palavras, a antiga preferência à proteção patrimonial individual foi renovada pela supremacia do indivíduo, de seu valor na sociedade. O Código Civil rompeu com a tradição da teoria do ato jurídico, recepcionando em sua parte geral a teoria do negócio jurídico e ao revogar a parte geral do Código Comercial deu espaço a teoria da empresa, ao invés de referir-se ao comerciante. Segundo Ulhoa, empresa é a “atividade econômica organizada” para a produção ou circulação de bens ou serviços. Assim, sendo uma atividade a empresa não tem a natureza jurídica de sujeito de direito nem de coisa, não se confundindo com o empresário (sujeito) nem com o estabelecimento empresarial (coisa). 170 A empresa não é, portanto, propriedade do empresário, sendo em verdade sujeito de direito, que age por vontade própria (CC, art. 47171), responsável pessoalmente pelos seus atos (CC, art. 1.022172) por seus empregados (CC, art. 932, inc. III173) e da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.(…) § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 de nov. 2009. 169 SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 135. 170 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: de acordo com o novo Código Civil e alterações da LSA. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 19. 171 Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo. BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 172 Art. 1.022. A sociedade adquire direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes especiais, ou, não os havendo, por intermédio de qualquer administrador. Ibidem. 87 pela sociedade. De tal releitura, depreende-se que a função social da empresa se relaciona com o direito pessoal, obrigacional e não com o direito real de propriedade. O Novo Código Civil não conceitua “empresa”, mas traz a denominação empresário no art. 966174, como sendo aquele que “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços”. Partindo de um foco sócio-funcional de promoção e respeito aos Direitos e Garantias Fundamentais, é possível se afirmar que o empresário deve ser um agente e promotor social; é o dirigente da empresa e deve exercer sua atividade econômica balizado pelos princípios sociais e individuais, consciente da sua função social e, por conseqüência, ambiental, que está englobada na função social. A empresa é importante agente social, dotado de relevante poder social e econômico, sendo sua função social e ambiental uma obrigação que incide na sua atividade, no exercício da atividade empresarial, ou seja, o lucro já não pode mais ser elevado à prioridade máxima em prejuízo dos interesses privados ou coletivos. No ordenamento jurídico infraconstitucional nacional, a função social da empresa apareceu primeiramente na Lei das Sociedades Anônimas (Lei n.° 6.404/76), em seu art. 116, parágrafo único, quando fala que o acionista controlador deve usar o poder objetivando fazer a companhia realizar seu objeto e cumprir sua “função social”, tendo deveres e responsabilidades para com os acionistas da empresa, os trabalhadores e a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Também o art. 154 prevê que o administrador deve exercer suas atribuições legais e estatutárias conferidas para lograr os fins e no interesse da empresa, satisfazendo as exigências do bem público e da função social da empresa e seu parágrafo 4º dispõe que o conselho da Administração ou a diretoria podem autorizar a práticas de atos gratuitos razoáveis em benefício dos 173 Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: (…) III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;(…). Ibidem. 174 Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Ibidem. 88 empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais.175 Posteriormente, o Código de Defesa do Consumidor reconheceu a função social da empresa ao estabelecer finalidades sociais e a obrigação de promover a proteção ao meio ambiente através do art. 51176. O próprio Código Civil de 2002 acabou por estabelecer a necessidade de uma função social da propriedade e dos contratos, mas não prevê a função social da empresa. Necessário compreender que toda sociedade surge de um contrato e este deve atender a um fim social. Segundo o art. 421, é possível se concluir que essa função também deve estar refletida nos ideais da empresa. Nessa mesma linha o art. 422 prevê a observância dos princípios da boa-fé e da probidade. O art. 927 do mesmo diploma foi o primeiro dispositivo a regular diretamente a responsabilidade civil, o que deixa evidente uma conseqüência da compreensão social do dever de indenizar e dispõe acerca da responsabilidade por ato ilícito, dentre outras hipóteses, o exercício do direito que exceda os seus fins sociais e econômicos, conforme o art. 187:177 175 Art. 116. (…) Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa. (…) § 4º O Conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista as suas responsabilidades sociais. BRASIL. Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 20 nov. 2009. 176 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (…) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; (…) XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais; XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor; (…). BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 177 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 89 A função social se atribui a especial virtude de incluir, como elemento de necessária atenção jurídica, preocupações com terceiros não membros da relação, o que inegavelmente vai ao encontro das aspirações de uma 178 sociedade que se pretende mais solidária. De acordo com Silva, o princípio da função social não possui uma feição dogmática clara, muito menos um similar no âmbito do direito comparado, mas reflete os desenvolvimentos históricos resultantes a partir do século XIX e, na tentativa de estabelecer um perfil conceitual, entende-se que determina a observância das conseqüências sociais das relações obrigacionais, partindo do pressuposto da compreensão de que direitos e faculdades individuais “não são imiscíveis às necessidades sociais, dado que o indivíduo só pode construir a sua vida em sociedade”. A inclusão da função social se apresenta tanto no plano da eficácia, já que os artigos 421 e 187 do Código Civil remetem ao “exercício”, quanto no plano da validade, a partir do art. 2.035179, segundo o qual “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”, mas o campo mais apropriado é do controle dos efeitos, “dados objetivos relacionados às conseqüências de atos concretos”, de modo que na execução dos contratos, devese escolher a que promova melhores benefícios no âmbito social, tais como a proteção do meio ambiente e a geração de empregos: Muito embora esse efeito seja de difícil aplicação voluntária pelas partes, é inegável que ele pode ser trazido ao caso concreto pelo Poder Público, seja Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 177 SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 107. 177 Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos. BRASIL. op. cit. 90 em atos de licenciamento, seja em atos regulatórios, seja ainda quando da 180 interpretação do negócio jurídico pelo juiz. Pode-se dizer que a empresa atinge a função social quando observa a solidariedade (art. 3°, inciso I, CF), promove a justiça e a inclusão social (art. 170, caput, CF), promove e observa a livre iniciativa (art. 170, caput e art. 1°, inciso IV, ambos da CF), oportuniza o trabalho (art. 6º, CF181), a busca pelo pleno emprego (art. 170, inciso VIII, CF), observa os preceitos legais que permitem reduzir as desigualdades sociais (art. 170, inciso VII, CF), o valor social do trabalho (art. 1°, inciso IV, CF), promove e respeita a dignidade da pessoa humana tanto dos trabalhadores quanto da comunidade bem como dos consumidores (art. 1°, inciso III, CF) e observa os valores ambientais, colaborando com a promoção e mantença do meio ambiente equilibrado que é dever de todos (Código de Defesa do Consumidor, art. 51, inciso XIV e art. 225, CF). Ferreira elenca ainda alguns princípios norteadores da função social da empresa, quais sejam: o princípio da dignidade empresarial, da moralidade empresarial e da boa-fé empresarial.182 De acordo com Dias, o conceito de responsabilidade social empresarial na prática promove um comportamento empresarial que acaba por integrar elementos sociais e ambientais, que não precisam estar necessariamente contidos na legislação, mas que venham a atender as expectativas sociais em relação à empresa. A Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) considera que a responsabilidade social vai além da filantropia. Na maioria das definições se descreve como as medidas constitutivas pelas quais as empresas integram preocupações da sociedade em suas políticas e operações comerciais, em particular; preocupações ambientais, econômicas e sociais. 180 SILVA, Luis Renato Ferreira da. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 114. 181 Art. 6. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma dessa Constituição. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 29 nov. 2009. 182 FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Função social e função ética da empresa. Revista Jurídica da UniFil, Ano II, número 2, 2005, ISSN 1807.1627. p. 78. <http://www.unifil.br>. Acesso em: 27 out. 2009. 91 A observância da lei é o requisito mínimo que deverão de cumprir as 183 empresas. Também na Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável (Rio+10) restou definido como responsabilidade social empresarial o compromisso da empresa de contribuir com o desenvolvimento econômico sustentável, trabalhando com os empregados, as suas famílias, comunidade local e a sociedade em geral para a melhora da qualidade de vida. Para Dias, a função social da empresa implica um novo papel da empresa na sociedade que vai além do âmbito econômico. Ela é vista cada vez mais como um sistema social organizado de relações múltiplas, não podendo mais orientar-se apenas por resultados, mas também pelo seu significado social, devendo atuar de acordo com uma responsabilidade social concretizável através do respeito e promoção dos direitos humanos, dentre eles, a preservação do meio ambiente natural. Como reflexo de uma visão sistêmica trazida pelo Informe Lugano, a economia também deve ser compreendida como os outros sistemas físicos, tal como o corpo humano, dentro do contexto da segunda lei da termodinâmica, qual seja, a entropia que é referida como lei-limite da natureza. A economia encontra-se inserida em um mundo físico e finito e não o contrário, e também transforma todos os fluxos de energia e materiais em bens e serviços, liberando na biosfera os seus resíduos, a contaminação e o calor - a entropia, que gera esse processo, ou seja, a economia é um sistema aberto que atua dentro de um sistema fechado, visto que possui uma atuação com independência da natureza.184 Essas novas características, pensamentos e previsões legais fazem com que as empresas necessitem perceber seu papel no contexto social, além do contexto econômico e, já que são agentes de poder como o Estado, faz-se necessário atuações positivas, ampliadoras das liberdades individuais, tais como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a dignidade humana e profissional dos 183 DIAS, Reinaldo. Gestão ambiental: Responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2008. p. 154. 184 GEORGE, Susan. Informe Lugano. Traducción de Berna Wang. 3. ed. Barcelona: Icaria, 2001. p. 23/25. 92 empregados, seus dependentes e comunidade como um todo e diante dessa necessidade é que trazemos alternativas de gestão empresarial, visando realizar a função social da empresa e o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 93 3 GESTÃO EMPRESARIAL AMBIENTAL, A NORMA ABNT/NRB ISO 14001:2004, E A CERTIFICAÇÃO AMBIENTAL 3. 1 Gestão Ecológica e Gestão Empresarial Ambiental Toda e qualquer organização, sendo ela grande ou pequena, pública ou privada, de qualquer setor da economia, acaba gerando inúmeros “aspectos ambientais”, uns em elevadas quantidades, outros em nível bastante crítico, causando impactos significativos aos meios: ar, solo e água e na saúde das pessoas. Implantar uma administração ecológica ou uma gestão ambiental, visando a adaptação das empresas e indústrias às atuais exigências constitucionais, legais, de mercado e da atual sociedade consciente de suas responsabilidades sociais, gerando o menor dano possível ao meio ambiente e a própria sociedade, parece questão de sobrevivência até mesmo para a empresa.185 As “novas gerações” aprendem desde a pré-escola a necessidade de preservar o planeta terra e transmitem a idéia às suas famílias, ademais, poucos não são os movimentos de conscientização ambiental. Por conseguinte acaba refletindo na exigência do próprio cidadão consumidor que cada vez mais se interessa em saber a procedência e o processo industrial pelo qual passa o produto que consome ou o serviço que lhe é prestado. Tal conscientização também implica não negarmos o fato de que muitas vezes, muito mais que uma consciência ecológica da empresa e da indústria está apenas presente uma estratégia de marketing. Assim, é inegável que a “consciência ecológica” das empresas tem aflorado tanto por pressões contínuas do Poder Público quanto pela opinião pública e pelos consumidores bem como por uma possível melhoria da imagem da empresa junto a determinados mercados, o que reflete no aumento dos seus benefícios e principalmente a entrada no mercado internacional.186 185 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 9-11. 186 DIAS, Reinaldo. Gestão ambiental: Responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2008. p. 155-156. 94 Marketing, mero cumprimento de exigência para atuar no mercado internacional ou mesmo consciência ecológica, o certo é que o meio ambiente, como sistema complexo que é, em constante e mútua interação com os demais sistemas complexos, dentre eles as empresas e indústrias, apenas pode ser compreendido por meio de uma abordagem interdisciplinar. Nas palavras de Backer, necessita-se mais do que nunca, no contexto atual onde começamos a sentir mais diretamente os reflexos da nossa “destruição ambiental”, assumir responsabilidades sociais, dispondo de ferramentas de diagnóstico para poder avaliar a situação, o contexto, e depois com um pouco de “imaginação” criar uma estratégia ecológica ou ambiental.187 Segundo Backer, existem quatro grandes categorias de poluidores, quais sejam, a indústria, que “produz resíduos sólidos, efluentes líquidos, gás de emanação e provoca acidentes que geralmente deterioram de maneira permanente os locais”; os serviços, que “produzem resíduos sólidos (meios de transportes, computadores, meios de comunicação); efluentes líquidos (turismo de verão) e gás de emanação (auto-estradas); a distribuição, que produz resíduos sólidos através das embalagens e objetos utilizados, acidentes tais como incêndios em locais de armazenagem com emanação tóxica, efluentes líquidos gerados pela limpeza e fumaça resultante da incineração; ainda, temos as famílias que geram resíduos sólidos, efluentes líquidos, fumaças e, como bem refere o autor, “montanhas de produtos consumidos”. Contextualizando historicamente foi apenas a partir da década de 1980 que despertou entre os países europeus a consciência de que os danos ambientais “cotidianos” poderiam ser reduzidos através de práticas de negócios ecologicamente corretas. Antes desse período, a proteção ambiental era tida como “uma questão marginal, custosa e muito indesejável, a ser evitada; em geral, seus opositores argumentavam que ela diminuiria a vantagem competitiva da empresa” e essa era uma reação de cunho defensivo com o objetivo de diminuir e mesmo evitar os pedidos de indenização por danos ambientais. Três foram as vertentes que moldaram o cenário político na Alemanha na década de 80 do século passado, 187 BACKER, Paul de. Gestão ambiental: a administração verde. Tradução de Heloísa Martins Costa. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1995, p. 9/11. 95 transmitiram as idéias às empresas de que os gastos com a proteção ambiental era um investimento e uma “cooperação altamente produtiva” e deram origem aos “produtos e serviços ‘eco-favoráveis’”: - O rápido aumento da conscientização ambiental entre a população em geral, o que teve um efeito significativo sobre as preferências do consumidor, juntamente com a ascensão de um vigoroso movimento ecológico - O surgimento do protesto tecnológico, dirigido principalmente contra a energia nuclear e outras megatecnologias, como nova forma de protesto político - A ascensão do Partido Verde e o êxito em introduzir temas 188 ecológicos críticos no diálogo político e no processo legislativo. Segue ressaltando Callembach que nos Estados Unidos já, em 1960, foi criada a Agência de Proteção Ambiental, aprovada a Lei do Ar puro e a Lei da Água pura e, na década de 70, a Fundação de Conservação iniciou negociações com defensores do meio ambiente e empresas, para tratar dos conflitos legislativos. Nos anos 80 houve um declínio da “limpeza ambiental”, dos financiamentos de programas e das punições às empresas poluidoras, mas em contrapartida elas começaram a adotar métodos ambientais para economizar e aumentar as vendas. Houve igualmente a ascensão dos grupos de ativismo ambiental que passaram a influenciar a política das empresas que começaram com atitudes, como: a separação do lixo para reciclagem até a criação de lojas especializadas em produtos “verdes”. Para ele, a administração ou gestão ecológica (ecomanagement) amplia o conceito de administração e é diversa da administração ambiental que implica em uma “abordagem defensiva e reativa, exemplificada pelos esforços ambientais reativos e pela auditoria de cumprimento”; já a administração ecológica desenvolvida na Alemanha e aprimorada pelo Elmwood Institute visa minimizar o impacto ambiental e social das empresas através de uma abordagem ativa e criativa, tornando todas as operações da empresa o mais ecologicamente correta possível. Partindo da premissa de que tal como os problemas ecológicos são sistêmicos, a compreensão e solução desses requerem um pensamento sistêmico, holístico, ou ecológico, tal como a escola da ecologia profunda trazida no capítulo primeiro desse trabalho: “o impacto ecológico das operações de uma empresa não terá uma 188 CALLENBACH, Ernest et al. Gerenciamento ecológico: EcoManagement: Guia do Instituto Elmwood de Auditoria Ecológica e Negócios Sustentáveis. 10. ed. Tradução de Carmen Youssef. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 24-25. 96 melhoria significativa enquanto a empresa não passar por uma mudança radical em sua cultura empresarial”. O Instituto Elmwood foi fundado por Fritjof Capra em 1984 e dedica-se a promover instruções básicas em ecologia, focando três componentes: o pensamento sistêmico, conhecimento dos princípios da ecologia e prática dos valores ecológicos. A meta do instituto é fazer da instrução básica em ecologia o princípio norteador central da educação, dos negócios e da política em geral.189 O sistema abrangente de administração de cunho ecológico mais bemsucedido foi desenvolvido por Georg Winter, chamado “sistema integrado de administração com consciência ecológica”, ou “modelo Winter”, filosofia que tem implícita a idéia de sustentabilidade. Winter refere seis motivos pelos quais administradores ou empresários que se querem responsáveis devem implementar os preceitos de uma “administração com consciência ecológica”: a sobrevivência humana (“sem uma economia com consciência ecológica, a sobrevivência humana estará ameaçada”), o consenso público (“sem empresas com consciência ecológica, não haverá consenso entre o povo e a comunidade de negócios”), a oportunidade de mercado (a falta de consciência ecológica implica em “perda de oportunidades em mercados em rápido crescimento”), a redução de riscos (“sem administração com consciência ecológica, as empresas correm o risco de responsabilização por danos ambientais”), a redução de custos (“sem administração com consciência ecológica, serão perdidas numerosas oportunidades de reduzir custos”) e a integridade pessoal (“sem administração com consciência ecológica, tanto os administradores como os empregados terão a sensação de falta de integridade pessoal”, não se identificando com o próprio trabalho). Traz também seis princípios essenciais para o sucesso da empresa administrada ecologicamente: qualidade (a qualidade do produto é elevada quando produzido “de forma ambientalmente benigna, e se puder ser usado e descartado sem causar danos ambientais”, no entanto, aqui cabe ressaltar que o objetivo seria minimizar os danos, pois toda atividade industrial acarreta dano ambiental), criatividade (“a criatividade da força de trabalho de uma empresa é intesificada quando as condições de trabalho respeitam as necessidades biológicas 189 NASCIMENTO, L. F.; LEMOS, A. D. da C.; MELLO, M. C. A. de. Gestão socioambiental estratégica. Porto Alegre: Bookman, 2008. p. 179. 97 humanas”), humanidade (se há senso de responsabilidade para com todos os seres vivos, há um “clima” geral de humanidade no trabalho), lucratividade (que pode aumentar com a adoção de “inovações ecológicas redutoras de custo e pela exploração de oportunidades de mercado de produtos de apelo ecológico”), continuidade (para que haja a continuidade da empresa é importante evitar riscos de responsabilização decorrentes da legislação ambiental e riscos de mercado em razão da decaída de vendas dos produtos danosos ao meio ambiente) e lealdade (dos funcionários ao país e demais cidadãos). Engloba ainda “três elementos-chave” característicos das estratégias de uma administração com consciência ecológica: inovação (aqui no sentido de “inovações eco-favoráveis” e conservadoras de recursos para o gerenciamento ecológico e tais inovações tanto diminuem o impacto ambiental acarretado pela empresa quanto trazem vantagens ao consumidor, gerando economias de custo e vantagens competitivas), “cooperação entre os agentes do ciclo completo da vida de um produto” (desde a matéria prima até produção, uso e descarte) e comunicação (ao contrário do que ocorre com as estratégias tradicionais de administração onde comunicação e relações públicas são marketing, na administração com consciência ecológica a comunicação é estratégia global em razão da “crise de confiança que afeta as empresas individualmente e setores inteiros”).190 A administração ambiental é severamente criticada pelo Elmwood Institute, que a vê como uma visão reduzida dos ecossistemas, pois vale-se do paradigma mecanicista, da visão antropocêntrica, ideologia voltada ao crescimento econômico, em oposição a sustentabilidade ecológica, ideal da gestão ecológica profunda191, e se vincula a idéia de “resolver os problemas ambientais em benefício da empresa” apenas, carecendo de ética: Ela carece de uma dimensão ética, e suas principais motivações são a observância das leis e a melhoria da imagem da empresa. O gerenciamento ecológico, ao contrário, é motivado por uma ética ecológica e por uma 190 WINTER, 1987 apud CALLENBACH, Ernest et al. Gerenciamento ecológico: EcoManagement: Guia do Instituto Elmwood de Auditoria Ecológica e Negócios Sustentáveis. 10. ed. Tradução de Carmen Youssef. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 35-38. 191 NASCIMENTO, L. F.; LEMOS, A. D. da C.; MELLO, M. C. A. de. Gestão socioambiental estratégica. Porto Alegre: Bookman, 2008. p. 18. 98 preocupação com o bem-estar das futuras gerações. Seu ponto de partida é 192 uma mudança de valores na cultura empresarial. Em que pese a crítica trazida à administração ambiental, o presente trabalho também se propõe ao breve estudo da gestão ambiental que, nas palavras de Sell, consiste em gerir, controlar e também guiar os processos de produção de bens e de prestação de serviços com o fulcro de preservar o ambiente físico e a integridade física e psicoemocional das pessoas e a reduzir o consumo e o desperdício de material, energia e trabalho, o que segundo ele reflete na redução de “aspectos e impactos” gerados por produtos ao longo de todo o ciclo de vida do produto e por todos os processos que se envolve, com medidas técnicas e de organização. 193 Foi apenas em 1994 que o movimento internacional de responsabilidade social teve maior visibilidade e reconhecimento, tendo surgido a organização norteamericana denominada Business for Social Responsibility (BSR) que logo alcançou repercussão mundial. Em 1998, em torno de 60 representantes de grupos variados de interesse de cinco continentes reunidos no Conselho Organizacional Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD) lançaram os pilares do conceito de responsabilidade social corporativa (RSC), na Holanda, tendo como foco a promoção da atuação ética da organização, movimento ao qual se engajaram algumas organizações brasileiras tais como a “Natura, Aracruz Celulose, Grupo Votorantin, Calçados Azaléia e Bradesco”, dentre outras.194 Como já visto, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito humano e fundamental que deve ser observado e promovido por “todos”, tanto pelo Estado, através de políticas públicas de proteção ambiental, quanto pelos indivíduos e nestes inclui-se a iniciativa privada, os empreendimentos através do que se pode chamar de uma auto-responsabilização, usando as palavras de Sell: A proteção ambiental – como dever do Estado somente – tem resultado em muito trabalho para este e isso com pouca eficiência ambiental, pois as 192 CALLENBACH, Ernest et al. Gerenciamento ecológico: EcoManagement: Guia do Instituto Elmwood de Auditoria Ecológica e Negócios Sustentáveis. 10. ed. Tradução de Carmen Youssef. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 89 193 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 13. 194 NASCIMENTO, L. F.; LEMOS, A. D. da C.; MELLO, M. C. A. de. Gestão socioambiental estratégica. Porto Alegre: Bookman, 2008. p. 17-18. 99 organizações sujeitas à legislação tentam cumpri-la, sobretudo, com medidas de fim de tubo, como o tratamento e a disposição correta de seus resíduos, nem sequer cogitando tomar ações mais eficazes, como a melhoria tecnológica de produtos e processos. Então, a proteção ambiental deve ser também dever da economia; com a auto-responsabilização, cada organização faz mais em prol do meio ambiente do que cumprir a legislação. Desse dever da economia, surgem acordos entre as empresas de um setor e entre empresas e seus fornecedores com o objetivo de melhorar o desempenho ambiental de cada uma delas. O desempenho ambiental é expresso por resultados mensuráveis da gestão ambiental, evidenciando o controle que a organização tem sobre seus aspectos 195 ambientais. A gestão ambiental pode iniciar pela atitude individual de um funcionário ou um grupo deles, a partir de uma coleta seletiva de lixo na empresa, de uma escala ou revezamento para o transporte dos funcionários, do tipo “carona”, por exemplo, ou mesmo na opção pela não utilização de copos plásticos descartáveis. Tais mudanças podem acabar resultando numa mudança cultural ambiental de toda a empresa. Em outros casos, a iniciativa pode partir da própria direção da empresa, vindo a tornar-se um programa institucional, abrangendo não apenas uma unidade, mas várias fábricas e escritórios do mesmo grupo:196 Como a gestão ambiental abarca processos, produtos e serviços de qualquer tipo, ela é necessária em toda empresa, em hospitais, clínicas, e laboratórios, farmácias e drogarias, bancos e seguradoras, creches, escolas e universidades, supermercados, shopping centres e lojas, padarias e confeitarias, bares e restaurantes, oficinas e borracharias, serralharias e marcenarias e também em condomínios horizontais ou verticais, comerciais ou residenciais. Como todos geram aspectos, todos têm responsabilidade para com eles; todos devem tratar seus resíduos de forma ambientalmente correta, além de procurar reduzir a geração deles. A redução do consumo 197 de materiais e energia é igualmente imprescindível. O processo de gestão ambiental considera todas as variáveis de um processo de gestão, tais como o planejamento, o estabelecimento de políticas, um plano de ação, a alocação de recursos, a determinação das responsabilidades, decisão, coordenação, controle, dentre outros, visando o desenvolvimento sustentável do empreendimento. 195 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 15. 196 FERREIRA, Aracéli Cristina de Souza. Contabilidade ambiental: uma informação para o desenvolvimento sustentável – inclui Certificado de Carbono. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 30-31. 197 SELL, op. cit., p. 14. 100 Para Valle, a gestão das questões ambientais em uma empresa já é reconhecida como função organizacional independente e necessária, com características próprias que a diferenciam das funções de segurança, das relações industriais, das relações públicas, da qualidade e demais com que interage. Com a disseminação de conceitos como “Garantia da Qualidade” e “Responsabilidade Social”, a gestão ambiental começa a ocupar posição destacada dentre as funções organizacionais, não apenas pela contribuição positiva dada a imagem da empresa, mas pelos efeitos danosos que o mau desempenho ambiental pode vir a causar a essa imagem. Em razão disso, a qualidade ambiental se tornou parte dos valores cultivados na organização e desempenha imprescindível papel na estruturação e manutenção da imagem da mesma. É assim função gerencial abrangendo todos os setores da organização e também tarefa contínua. 198 Continua referindo que a gestão ambiental em uma organização inserida no mercado aberto, característica dos tempos atuais, faz com que o empresário tenha certas indagações sobre o custo desse gerenciamento e sobre a oportunidade de investir recursos, normalmente escassos, na preservação ambiental. A razão por tal indagação surge da tradição de se “contabilizar na rubrica meio ambiente” somente os custos decorrentes do tratamento de afluentes, transporte dos resíduos, pagamento de multas, dentre outros. “As reduções nos custos de energia, água, matérias-primas e outros, alcançadas por meio de uma boa gestão ambiental são, tradicionalmente, lançadas a crédito de outros setores da empresa” especialmente os de produção e compras. Na economia clássica, os fatores de produção eram a terra, o trabalho e o capital, mas com o século XX abstraíram-se os fatores “excedentes”, quais sejam, terra, tendo em vista que os recursos naturais eram vistos como infinitos, e o trabalho, pois havia mão-de-obra abundante e barata, passando a visão “neoclássica da economia” a visualizar o desenvolvimento como que exclusivamente resultante do fator capital, dos investimentos: “na verdade, uma relação pendular entre produção e consumo, em um sistema completamente fechado”.199 198 VALLE, Cyro Eyer do. Qualidade ambiental: ISO 14000. 5. ed. São Paulo: Senac, 2004. p. 67-68. MÉRICO, Luiz Fernando Krieger. Introdução à economia ecológica. 2. ed. Blumenau: Edifurb, 2002. p. 19. 199 101 Recentemente é identificável até um novo fator denominado por alguns como fortalecedor da competitividade das organizações que trabalham com a gestão ambiental. O custo de produção tem de ser compatível com o preço de venda que o mercado globalizado aceita, não se podendo mais trabalhar apenas com custos estimados, acrescidos do lucro desejado que era expresso por um “confortável” percentual adicionado aos custos, chegando-se ao preço de venda desejado, ou seja, a equação era: custos + lucros = preço de venda. Com a globalização, os mercados abertos e o global sourcing, a equação prevalecente e que necessita, segundo alguns, ser bem administrada com vistas a assegurar a sobrevivência da empresa, tem o preço de venda determinado pela própria globalização, resultando na equação: preço de venda – custos = lucro, e nesta nova equação o meio ambiente pode vir a contribuir positivamente para: - melhorar o preço de venda dos produtos e serviços que utilizem em seu marketing a imagem ambiental como fator de valorização; - reduzir os custos de produção pela gestão correta dos insumos e matérias-primas, por meio de programas de conservação de energia, reuso da água, redução da geração de resíduos (que são, quase sempre, desperdícios de materiais), eliminando acidentes, adotando em suma, os princípios da ecoeficiência. Desse modo, a gestão ambiental pode contribuir favoravelmente para viabilizar linhas de produtos que estariam condenadas do ponto de vista 200 econômico. Negligenciar a crise ambiental, ignorando os benefícios diretos do capital natural, condição de sobrevivência humana, bem como os efeitos negativos gerados no meio ambiente pelo processo de produção e seus resíduos gerados, “beira a insanidade” para Mérico, pois o processo produtivo precisa se adequar aos limites impostos pela biosfera. A internalização dos custos ambientais no processo de produção, visando contabilizar os impactos de cada atividade, é uma excelente “ferramenta” na melhoria de alocação de recursos econômicos, depende da correta identificação dos impactos e de sua valorização econômica, no entanto, logo salienta o autor, que não há como internalizar toda a “externalidade generalizada”, o que resta evidente quando se observa que não há uma dimensão macroeconômica da questão ambiental, tendo em vista tratar-se a macroeconomia de um subsistema aberto da biosfera e dependente dela. Estamos em uma era onde o capital natural é o fator limitante do desenvolvimento econômico, mas fato é que a limitação biofísica sustentável como limite para a economia de mercado, resultará na mudança dos 200 VALLE, Cyro Eyer do. Qualidade ambiental: ISO 14000. 5. ed. São Paulo: Senac, 2004. p. 68. 102 preços que refletirão os novos limites impostos, devendo tais preços refletir a chamada “escala ótima” da economia, no entanto, ainda há externalidades irreversíveis e que devem ser evitadas. A “escala ótima” será atendida quando não for retirado dos ecossitemas mais que a sua capacidade de regeneração e quando não se devolver aos ecossistemas mais que a sua capacidade de absorção, o que reflete a definição de sustentabilidade para o autor. 201 Não temos aqui a ingenuidade de pensar que a empresa irá preservar o meio ambiente sem pensar no mercado e é sob essa perspectiva que a empresa irá decidir o processo produtivo a ser adotado. As preocupações ambientais dos empresários são influenciadas por três grandes conjuntos de forças que interagem reciprocamente: o governo, a sociedade e o mercado. As questões ambientais passaram a ter reflexos importantes sobre a competitividade dos países e suas empresas, devido aos profundos impactos das leis ambientais no comércio internacional. A intensificação no processo de abertura comercial, expondo os produtores com diferenças assumidas de custos ambientais e sociais a uma concorrência acelerada e de proporção mundial, tem se mostrado uma grande força de pressão de regulamentação e mesmo de auto-regulamentação socioambiental, tanto que “os produtos com custos sociais e ambientais baixos, devido a uma regulação frouxa ou ausente, estariam praticando dumping social e ambiental, comparativamente aos que operam sob legislações mais rigorosas”: O surgimento de iniciativas voluntárias de auto-regulamentação se deve em grande parte às dificuldades de proteção de mercados nacionais por meio de barreiras comerciais após o Tratado de Marrakesh de 1994, que encerrou a Rodada Uruguai de negociações comerciais multilaterais no âmbito do Gatt e criou a Organização Mundial do Comércio (OMC). Uma das conseqüências esperadas da adoção generalizada dessas iniciativas é o nivelamento dos custos de produção entre empresas produtoras de bens similares situadas em países diferentes com diferentes exigências legais 202 com respeito às questões socioambientais. Outro tipo de pressão sofrida se dá por parte dos investidores que desejam reduzir os riscos dos seus investimentos. Também o setor de seguros exige que as 201 MÉRICO, Luiz Fernando Krieger. Introdução à economia ecológica. 2. ed. Blumenau: Edifurb, 2002. p. 19-21. 202 BARBIERI, José Carlos. Gestão ambiental empresarial: conceitos, modelos e instrumentos. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 100. 103 empresas melhorem seus desempenhos ambientais, visto que os sinistros ambientais podem atingir proporções vultosas. A população também exerce pressão a partir da tomada de consciência dos problemas ambientais procurando consumir produtos e serviços ambientalmente corretos, que possuam os chamados “selos verdes” ou que sejam Certificadas, o que além de adequar a empresa aos padrões estabelecidos na proteção ambiental servem como uma questão de marketing, que neste caso deve ser reflexo do trinômio qualidade, produtividade e competitividade: quando se fala de qualidade, produtividade e competitividade, está-se falando do uso racional dos recursos, da diminuição do desperdício, do uso mais eficiente dos recursos colocados à disposição da empresa para a obtenção de maiores lucros, que só serão possíveis com menores custos, melhor preço e vendas compatíveis. O somatório desses fatores não é incompatível com uma gestão voltada para o desenvolvimento sustentável; 203 pelo contrário, é fundamental [...]. Nesta linha anda Ferreira quando fala que, ao se tratar de desenvolvimento sustentável, a responsabilidade normalmente recai sobre o governo e as empresas, pouco se falando sobre a parcela que compete ao cidadão: O que as empresas produzem é demanda da necessidade de consumidores por produtos específicos para essas necessidades. Contudo, no atual estágio de desenvolvimento de nossa cidade, o conceito de necessidade do consumidor extrapola sua subsistência e adentra em campos que estimulam esse consumo além da questão do viver bem. [...] Contemplar os custos do meio ambiente no processo produtivo é contemplar o que os ambientalistas consideram o Princípio do Poluidor Pagador, e também pode ser uma forma 204 de reordenar o consumo excessivo. Merece ainda ser destacado, segundo Valle, que com a gestão ambiental possibilita uma “sinergia” com os demais sistemas de gestão já implantados ou que possam vir a ser implantados na empresa: Organizações conscientes das mudanças que terão de introduzir em suas atitudes empresariais para se manterem competitivas tendem a adotar uma visão holística que reúne os temas qualidade, meio ambiente, segurança, saúde, ética e responsabilidade social. Cada um desses temas já é objeto de normas internacionais de gestão e procedimentos de auditoria que justificam sua abordagem em conjunto, o que possibilita reduzir os custos da implantação e de operação dos respectivos sistemas. Além das normas ISO 9000 e ISO 14000, bem conhecidas, já estão em vigor as normas 203 FERREIRA, Aracéli Cristina de Souza. Contabilidade ambiental: uma informação para o desenvolvimento sustentável – inclui Certificado de Carbono. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 36. 204 Ibidem, p. 21-22. 104 OHSAS 18000, para a gestão da segurança e da saúde, e a norma SA 205 8000, para a gestão da responsabilidade social da empresa. O termo Gestão Empresarial Ambiental pode assim ser entendido como diretrizes e atividades administrativas e operacionais realizadas tendo o objetivo de obter efeitos positivos sobre o meio ambiente, quer reduzindo ou mesmo eliminando os danos ou problemas causados pelas ações humanas, quer evitando que eles surjam. A gestão ambiental pode proporcionar como benefícios estratégicos a melhoria da imagem institucional, a renovação do portfolio dos produtos, o aumento na produtividade, maior comprometimento dos funcionários e melhores relações de trabalho, criatividade e abertura de novos desafios, melhores relações com autoridades públicas, comunidade e grupos ambientais ativistas, acesso assegurado a mercados externos e maior facilidade para cumprir os padrões ambientais determinados pela legislação. O ciclo da atuação da gestão ambiental, para que gere eficácia, deve cobrir desde a fase de concepção, desenvolvimento e funcionamento do produto ou serviço até a eliminação efetiva dos resíduos gerados pela empresa depois de implantado e durante o período de seu funcionamento: A gestão ambiental deve também contribuir para a melhoria contínua das condições ambientais, de segurança e saúde ocupacional de todos os seus colaboradores e para um relacionamento sadio com os segmentos da 206 sociedade que interagem com o empreendimento e a organização. A gestão ambiental pode ter como objetivo a obtenção de selos e certificados a serem utilizados na competição nos mercados de interesse, tais como os produtos alimentícios, que precisam de alguns selos ambientais, de qualidade e de segurança alimentar para entrarem em mercados na Europa, Ásia, América do Norte, etc. Backer constrói as determinantes de seu trabalho em defesa da gestão ambiental ancorado no fato de que: Não existe dicotomia entre o ecossistema natural e o ecossistema industrial. A atividade industrial do homem não deve se opor à natureza, pois dela é parte integrante, ela a molda desde o começo e desde o começo é por ela moldada. Assim sendo, querer proteger ou defender a natureza tem menos sentido do que querer administrá-la de maneira responsável e, a partir daí, querer integrar nela a gestão responsável da empresa. […] 205 206 VALLE, Cyro Eyer do. Qualidade ambiental: ISO 14000. 5. ed. São Paulo: Senac, 2004. p. 68-69. Ibidem, p. 68-69. 105 Em uma empresa acontece o mesmo que com a floresta ou com o mar. De tanto querer defendê-la ou atacá-la, de tanto querer criar confronto entre um ecossistema industrial e um ecossistema natural, irrefletidamente esquecemos que se trata do mesmo ecossistema, que, a partir de agora, 207 deve ser administrado de maneira responsável. Diante desse contexto, Peter Senge lucidamente sustenta que “as organizações que sobreviverão e florescerão são as voltadas para o futuro – as que são capazes de assimilar informações novas, adaptar, mudar. Em essência, capazes de aprender.” Em razão de não se saber os desafios futuros das empresas, acredita que o sucesso dessas está exatamente na capacidade das pessoas que as compõe e do conjunto em si em assimilar cinco tecnologias, quais sejam, “pensamento sistêmico, domínio pessoal, modelos mentais, visão compartilhada e aprendizagem em equipe”, habilidades que capacitam a equipe a prever e reagir a condições em rápida mudança.208 No próximo tópico analisaremos a alternativa de gestão empresarial ambiental trazida pelas Normas da série ISO 14000 visando o desenvolvimento sustentável. 3. 2 A Norma ABNT/NBR ISO 14001:2004 e o Sistema de Gestão Ambiental As questões relacionadas com o meio ambiente até pouco tempo eram tratadas no campo da regulamentação técnica, através da definição de padrões e limites de emissões que deviam ser respeitados pelos geradores dos impactos ambientais. Os esforços realizados visando a normalização por diversos países se restringiam quase sempre nos métodos de ensaio e de amostragem que permitissem avaliar o atendimento aos padrões e limites definidos em lei. Outras iniciativas se deram visando a identificação e promoção de produtos não causadores de impactos ambientais danosos em alguns países e de forma isolada resultando na criação dos chamados “selos verdes”, que eram símbolos ou rótulos ecológicos, assim como o “Anjo Azul”, introduzido na Alemanha em 1978. Apenas, no final do século passado, iniciou o desenvolvimento voluntário de normas técnicas destinadas a padronização de produtos e serviços por parte dos setores industriais e de 207 BACKER, Paul de. Gestão ambiental: administração verde. Tradução de Heloísa Martins Costa. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1995. p. 1-2. 208 SENGE, 1990 apud CALLENBACH, Ernest et al. Gerenciamento ecológico: EcoManagement: Guia do Instituto Elmwood de Auditoria Ecológica e Negócios Sustentáveis. 10. ed. Tradução de Carmen Youssef. São Paulo: Cultrix, 2001. p. 33. 106 serviços. Em razão do desenvolvimento e sofisticação das atividades de comércio e indústria, bem como da crescente regulamentação das atividades ambientalmente impactantes impondo inúmeros critérios e padrões de desempenho, tem-se ampliado o espaço das atividades de normatização técnica e é a partir da década de 90 que a normalização técnica de atividades com aspectos ambientais inicia uma nova fase de desenvolvimento de normas para sistemas e instrumentos de gestão ambiental: Essa nova tendência tem origem em fatores co-relacionados: (i) o estágio de maturação atingido por vários programas de auto-avaliação e gestão ambiental desenvolvidos pelas empresas multinacionais; (ii) o desenvolvimento de vários princípios e códigos de prática ambiental por parte de organizações industriais e comerciais nacionais e internacionais, destinados sobretudo a articular uma ética ambiental entre as empresas e demonstrar ao público em geral o compromisso da comunidade empresarial com uma melhora contínua dos aspectos ambientais de suas atividades; e, principalmente no caso da auditoria ambiental, (iii) a existência de um entendimento geral sobre os conceitos, princípios e procedimentos básicos da auditoria ambiental e das qualificações técnicas ao seu exercício, após 209 vinte anos de evolução, principalmente nos Estados Unidos. As iniciativas privadas empresariais de auto-regulamentação podem ser consideradas como acordos voluntários entre as empresas e a sociedade, podendo, esses acordos, serem do tipo comprometimentos unilaterais ou contratos privados, conforme denominação da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Os contratos privados são firmados entre uma empresa ou um grupo delas e os que sofrem prejuízo ou dano decorrentes da atuação da empresa. As iniciativas privadas de caráter unilateral podem ser de três tipos: a) ação isolada da empresa que espontaneamente busca tratar dos problemas ambientais de modo mais rigoroso do que a legislação a qual se submete; b) acordos criados por um grupo de empresas, associação de empresas ou entidade representante, que envolvem questões específicas do setor; c) é constituído pelas iniciativas de entidades independentes, como a “Câmara de Comércio Internacional (ICC) e a Organização Internacional para Padronozações (ISO)” e “são de caráter geral, podendo ser adotadas por empresas de qualquer setor, tamanho e local”. Os dois últimos tipos (b e c) apresentam-se como “programas e modelos de gestão 209 SALES, Rodrigo. Auditoria ambiental: aspectos jurídicos. São Paulo: LTr, 2001. p. 54. 107 ambiental, códigos de conduta e normas ambientais de caráter voluntário” e a adesão às propostas depende apenas da vontade unilateral das empresas.210 A ISO - “International Organization for Standardization”, com sede em Genebra, na Suíça, foi fundada em 1946, e é uma organização não-governamental que congrega mais de 150 países, inclusive o Brasil, com um membro por país. Apresenta como objetivo o desenvolvimento de normas internacionais consensuais e voluntárias para modelos de fabricação, comunicação, comércio e sistema de gerenciamentos que tem como missão promover o comércio internacional através da harmonização de suas normas. Cada país membro possui um representante, e no Brasil, o representante é a ABNT, Associação Brasileira de Normas Técnicas.211Está a ISO estruturada em aproximadamente 180 comitês técnicos, cada um especializado em realizar minutas de normas em área particular. A ISO desenvolve normas em todos os setores industriais, salvo nos relacionados à engenharia elétrica e eletrônica, que são desenvolvidas pela International Electrotechnical commission (IEC), igualmente sediada em Genebra e que possui mais de 40 países-membros212. Segundo Assumpção, essa nova abordagem, que pode ser dita como uma abordagem sistêmica das atividades que se relacionam com o meio ambiente, iniciou pela British Standards Institution (BSI), em 1992, com a homologação da norma BS 7750, que introduziu procedimentos para estabelecer um Sistema de Gestão Ambiental nas organizações, sendo que a sua versão de 1994 é que serviu de base para a elaboração da ISO 14001. A norma BS 7750 estabelece, por sua vez, um paralelo ambiental com a norma britânica de gestão de qualidade BS 5750, que serviu de base para a elaboração das normas internacionais da série ISO 9000 de Gestão da Qualidade e Garantia da Qualidade.213 Conforme o autor, depois da publicação da BS 7750 pelo Reino Unido, proliferaram-se as normas de sistemas de gestão ambiental de âmbito nacional, 210 BARBIERI, José Carlos. Gestão ambiental empresarial: conceitos, modelos e instrumentos. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 80-81. 211 ASSUMPÇÃO, Luiz Fernando Joly. Sistema de Gestão Ambiental: Manual Prático para implementação de SGA e Cerificação ISO 14001/2004. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 25. 212 NASCIMENTO, L. F.; LEMOS, A. D. da C.; MELLO, M. C. A. de. Gestão socioambiental estratégica. Porto Alegre: Bookman, 2008. p. 203/205. 213 ASSUMPÇÃO, op. cit., p. 26. 108 como as da Espanha, França, África do Sul, dentre outros. Em razão dessas diferenças regionais e mesmo da quantidade de normas, algumas não possuíam requerimentos em comum ou mesmo possuíam requisitos contraditórios, sendo necessária então, para evitar complicações no comércio internacional, a elaboração de uma única norma ambiental padrão de aceitação nacional. Visando a padronização das normas nacionais, diz o autor que em 1993 a União Européia adotou o Sistema de Gerenciamento e Auditoria Ambiental (EMAS – Eco-Management and Audit Scheme). Diferente da BS 7750 e da ISO 14001, foi elaborada especificamente para as indústrias e pode ser implantada voluntariamente. Apenas em janeiro de 1993, a ISO criou o Comitê Técnico 207 (TC 207), para administrar o desenvolvimento das normas ambientais. Esta iniciativa foi diretamente estimulada pelo secretariado da ECO 92 já durante o encontro no Rio de Janeiro. Em março do mesmo ano, o Conselho de Normas do Canadá (SCC – Standartization Council of Canadá), através da Associação Canadense de Normas (CSA – Canadian Standards Association), assume o secretariado do TC 207 e no mês de junho ocorre o primeiro plenário em Toronto, encontro em que foi desenvolvido um plano de trabalho que incluiu a criação de seis subcomitês técnicos (SC1: Gerenciamento Ambiental; SC2: Auditoria Ambiental; SC3: Rotulagem Ambiental; SC4: Avaliação de Desempenho Ambiental; SC5: Análise de Ciclo de Vida; SC6: Termos e Definições) e dezoito Grupos de Trabalho. Nos dois anos seguintes, os grupos de trabalho reuniram-se por quatro vezes ao ano e no encontro plenário de junho de 1995, em Oslo, na Noruega, seis documentos alcançaram nível de projeto de norma internacional que assegurassem uma abordagem sistêmica à gestão ambiental e possibilitasse a certificação ambiental de organizações e de produtos. E, no ano de 1995, muitas organizações desenvolveram e implementaram SGA’s (Sistemas de Gestão Ambiental), utilizando como base os projetos de normas, complementados por documentos base tais como BSI 7750 e as regulamentações voluntárias do Plano de Ecogestão e Auditoria da Comunidade Européia. 109 A nova série de normas recebeu a designação de ISO 14000, e assim como a ISO 9000 é aplicável tanto as atividades industriais quanto às atividades extrativas, comerciais, de prestação de serviços, agroindustriais e até organismos governamentais, visando à melhoria contínua, mas sem a previsão expressa na lei de índices e valores mínimos: As normas ISO 14000 são voluntárias e não prevêem a imposição de limites próprios para medição da poluição, padronização de produtos, níveis de desempenho, etc. São concebidas como um sistema orientado para aprimorar o desempenho da organização por intermédio da melhoria contínua de sua gestão ambiental, sem a pretensão de impor índices e 214 valores mínimos. Foi em junho de 1996 que houve a homologação da primeira ISO 14001 e no Brasil a homologação da versão da norma ABNT/NBR ISO 14001 “Sistema da gestão ambiental; Especificações e Diretrizes para uso” ocorreu em outubro. Em 2004, dezembro, houve a homologação da segunda versão 215 que visa apenas o esclarecimento da primeira edição, auxiliando a entendê-la e leva em conta as disposições da ABNT/NBR ISO 9001: 2000, na tentativa de aumentar a compatibilidade entre as duas normas em benefício dos seus usuários.216 A norma brasileira foi desenvolvida pela ABNT, fórum de normalização, e sob a responsabilidade dos Comitês Brasileiros (CB) e, para sua homologação, houve votação nacional entre os associados da ABNT e partes interessadas. O Brasil teve boa e rápida aceitação ao desenvolvimento das normas ISO 14000 e instituiu a Comissão Técnica de Certificação Ambiental em 1995, que desenvolveu uma série de normas e procedimentos para a instituição de um Sistema Brasileiro de Certificação Ambiental. A partir de então, o Brasil possui uma estrutura de credenciamentos de organismos de certificação de gestão ambiental conforme a norma ISO 14001, credenciamento que é realizado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO). As Normas da série ISO mantêm a mesma numeração no Brasil, apenas precedida do designativo NBR da ABNT. O programa de certificação da ABNT para sistemas de gestão ambiental é destinado a qualquer tipo de organização, de acordo com os critérios estabelecidos 214 VALLE, Cyro Eyer do. Qualidade ambiental: ISO 14000. 5. ed. São Paulo: Senac, 2004. p. 136. ASSUNPÇÃO, Luiz Fernando Joly. Sistema de Gestão Ambiental: Manual Prático para implementação de SGA e Cerificação ISO 14001/2004. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 27 216 NBR ISO 14001: Sistema de gestão ambiental – Requisitos com orientações para uso. Rio de Janeiro: ABNT, 2004. p. V. 215 110 pela norma ABNT/NBR ISO 14001. São avaliados aspectos gerenciais como a política ambiental, os aspectos e impactos ambientais relacionados à produção, legislação ambiental pertinente, programas ambientais, comunicação com partes interessadas, treinamento e auditorias internas, conforme roteiro da ABNT. Cabe destacar ainda que todas as normas da ISO estão disponíveis no site www.iso.org.217 Relata Valle, que através da ISO 14000, as normas ambientais acabam por ultrapassar as barreiras nacionais e colocam a gestão ambiental em igual patamar da gestão de qualidade, criando condições para o êxito da empresa que exporta e disputa sua posição em um mercado globalizado.218 Nas palavras do autor, a norma ISO 14000 tem como objetivo central um sistema de gestão ambiental apresentando como escopo auxiliar a organização no cumprimento de seus compromissos assumidos em prol da preservação ambiental e como objetivos decorrentes, cria sistemas de certificação para as organizações e seus produtos e serviços. Isso possibilita uma distinção das empresas que observam a legislação ambiental e cumprem os princípios do desenvolvimento sustentável. No entanto, há que se ressaltar que a norma da série não substitui a legislação ambiental vigente no local onde se encontra a organização, pelo contrário, acabam por reforçá-la, pois exige o seu cumprimento integral. A série ISO 14000 abrange normas sobre auditorias ambientais, avaliação do desempenho ambiental, rotulagem ambiental, análise do ciclo de vida do produto e aspectos ambientais nos produtos.219 No que tange a ISO 14001, o seu escopo “indica que o desenvolvimento de sua elaboração foi fundamentado na “Motivação Ambiental”, que é baseada na linha de três correntes de pensamento: 217 NASCIMENTO, L. F.; LEMOS, A. D. da C.; MELLO, M. C. A. de. Gestão socioambiental estratégica. Porto Alegre: Bookman, 2008. p. 205-206. 218 VALLE, Cyro Eyer do. Qualidade ambiental: ISO 14000. 5. ed. São Paulo: Senac, 2004. p. 136137. 219 NASCIMENTO, op. cit., p. 206-208. 111 - Preocupação crescente com as Questões Ambientais com foco no “Desenvolvimento Sustentável”; - Desenvolvimento das Políticas Econômicas, e - Evolução das Legislações Ambientais que, com o passar dos anos, foram se tornando mais restritivas e exigentes. Além dessas tendências, também ocorria o fato de que empresas, ou por iniciativa própria ou decorrente de alguma exigência, tinham interesse em 220 demonstrar um “Desempenho Ambiental Correto”. (grifado no original) A norma ISO 14001 foi elaborada para que os Sistemas de Gestão, “através delas desenvolvidos, sejam estruturados e integrados às demais atividades da organização e que devam ser regulamente avaliados através de Auditorias Ambientais”: Ou seja, não se deve enfocar unicamente o gerenciamento dos aspectos ambientais de determinada organização para se obter uma certificação ambiental baseada na referida norma; deve-se, sim, desenvolver um sistema de gestão ambiental englobado nos diversos fundamentos da organização, tais como os resultados financeiros, o atendimento aos objetivos e a definição das prioridades organizacionais com vistas nos 221 resultados globais e outros. Define a norma ISO 14001, em seu corpo o Sistema de Gestão Ambiental (SGA) como sendo a parte de um sistema da gestão de uma organização utilizada para desenvolver e implementar sua política ambiental e gerenciar seus aspectos ambientais, sendo os aspectos ambientais os elementos das atividades ou produtos e os serviços de uma organização que pode interagir com o meio ambiente, definindo como meio ambiente, que é definido como a circunvizinhança em que uma organização opera, incluindo-se ar, água, solo, recursos naturais, flora, fauna, seres humanos e suas inter-relações e como política ambiental as intenções e princípios gerais de uma organização em relação ao seu desempenho ambiental, conforme formalmente expresso pela Alta Administração. Ainda, nesse contexto, deve-se entender por organização, de acordo com a Norma, a empresa, corporação, firma empreendimento, autoridade ou instituição, parte ou mesmo uma combinação desses, incorporada ou não, pública ou privada, que tenha funções e administração própria e para as organizações que tenham mais de uma unidade operacional, uma única unidade operacional pode ser definida como uma organização. 222 220 ASSUMPÇÃO, Luiz Fernando Joly. Sistema de Gestão Ambiental: Manual Prático para implementação de SGA e Cerificação ISO 14001/2004. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 27. 221 Ibidem, p. 28. 222 NBR ISO 14001: Sistema de gestão ambiental – Requisitos com orientações para uso. Rio de Janeiro: ABNT, 2004. p. 2-3. 112 Quanto à política ambiental, a ser definida pela alta administração, expressa a motivação da organização para a proteção ambiental e suas prioridades e seus objetivos nessa área. Nessa definição, devem ser consideradas exigências e opiniões dos grupos de interesse, bem como todas as leis e normas ambientais aplicáveis, uma vez que o cumprimento da legislação constitui requisito mínimo de um SGA. E o SGA pode ser visto como um instrumento gerencial para introduzir e 223 executar a política ambiental na organização. De acordo com a própria ISO 14001: 2004, as normas de gestão ambiental têm por objetivo promover as organizações de elementos de sistema da gestão ambiental, eficaz integrável, a outros requisitos da gestão e auxiliá-las a atingir seus objetivos ambientais e econômicos. “Não se pretende que estas Normas, tais como outras Normas, sejam utilizadas para criar barreiras comerciais não-tarifárias, nem para ampliar ou alterar as obrigações legais” da organização. A finalidade geral da Norma é “equilibrar a proteção ambiental e a prevenção de poluição com as necessidades socioeconômicas”. Muitos dos requisitos podem ser abordados de forma simultânea e reapreciados a qualquer tempo.224 A norma possui uma sistemática fundamentada no princípio do ciclo do PDCA (Plan-Do-Check-Act – planejar, executar, verificar, agir) ou também chamado da “Melhoria Contínua”, que inicia com a criação de uma Política Ambiental declarada, seguindo-se de um planejamento e da implementação de um SGA, para, após possuir uma avaliação do sistema e se encerrar na “Análise Crítica” da alta administração, o ciclo se repetir indefinidamente. De acordo com o texto da norma, o PDCA pode ser descrito de forma breve compreendendo-se “planejar” como o estabelecimento de objetivos e processos necessários para atingir os resultados em concordância com a política ambiental da organização; “executar”, como implementar os processos; “verificar”, no sentido de monitorar e medir os processos em conformidade com a política ambiental, 223 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 20. 224 NBR ISO 14001, op cit., p. V. 113 objetivos, metas, requisitos legais e outros, e relatar os resultados; e “agir” para a melhoria contínua do desempenho do sistema da gestão ambiental.225 Essa sistemática deve ser com certa periodicidade verificada por auditorias externas com a apresentação dos resultados a terceiros. Outro objetivo principal é colaborar com o alcance das metas econômicas da organização, ou seja, “um SGA não deve ser visto isoladamente dentro de uma organização”, pois “faz parte integrante dela e deve ser visto como parte de um todo interdependente”.226 A visão sistêmica da ISO relaciona-se com a referida modelagem de PDCA que tem como objetivo assegurar que os elementos do SGA sejam sistematicamente identificados, monitorados e controlados. Ao empregar essa modelagem que envolve os vários elementos da norma, chega-se a evolução do SGA por melhorias contínuas. A ISO 14001 conceitua melhoria contínua como sendo o processo recorrente de se avançar com o SGA com o propósito de atingir o aprimoramento do desempenho ambiental geral, coerente com a política ambiental da organização.227 Assim, a ISO 14001 é a única da série que possibilita a obtenção de certificação ambiental, visto que descreve requisitos a serem cumpridos com posterior verificação e avaliação, ao contrário das demais que somente apresentam diretrizes, orientações e atitudes a serem adotadas, no entanto, não implica dizer que a empresa já tenha atingido o melhor desempenho ambiental possível, nem que esteja utilizando as melhores tecnologias disponíveis, pois a ISO não exige tais requisitos.228 Pode ser aplicada em qualquer tipo e porte de empresa, e em diferentes tipos de condições tanto sob o aspecto geográfico quanto social ou cultural. Tem como 225 NBR ISO 14001: Sistema de gestão ambiental – Requisitos com orientações para uso. Rio de Janeiro: ABNT, 2004. p. VI. 226 ASSUMPÇÃO, Luiz Fernando Joly. Sistema de Gestão Ambiental: Manual Prático para implementação de SGA e Cerificação ISO 14001/2004. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 28. 227 NBR ISO 14001, op. cit., p. 2. 228 NASCIMENTO, L. F.; LEMOS, A. D. da C.; MELLO, M. C. A. de. Gestão socioambiental estratégica. Porto Alegre: Bookman, 2008. p. 206. 114 principal fundamento o comprometimento de todas as pessoas dos diversos níveis e funções hierárquicas da organização, em especial a alta administração 229 que deve deixar bem claro, através de uma comunicação eficaz e eficiente aos demais setores da organização a política ambiental adotada. A base de contexto é o comprometimento expresso na Política Ambiental visando atender a legislação, os regulamentos aplicáveis, tais como: normas técnicas, normas internas, convenções coletivas, exigências mercadológicas ou de consumidor, dentre outras, e a melhoria contínua. A organização também pode utilizar a Norma ISO 14001 no âmbito interno da empresa, apenas para fins de “auto-declaração” e como cláusula nos contratos da organização, nestes termos, aliás, a norma ISO 14004 se destina ao uso interno e serve como guia para o estabelecimento e implementação de seu SGA, não ensejando a certificação.230 A ISO 14001 traz “recomendações” que visam o desenvolvimento sustentável através da conciliação entre a preservação ambiental e o aspecto econômico, não determinando requisitos absolutos para o desempenho ambiental, ou seja, não garantindo “resultados ambientais ótimos” e não abordando requisitos relativos à Gestão da Segurança do Trabalhador e da Saúde Ocupacional. É aplicável às organizações que desejam: a) estabelecer, implementar, manter ou mesmo aprimorar um SGA; b) garantir-se da plena conformidade com a Política Ambiental definida e mesmo demonstrar essa conformidade a terceiros quando: b. 1) fazer uma auto-avaliação ou autodeclaração; b. 2) buscar confirmação de sua conformidade por partes que tenham interesse na organização, tais como clientes; b. 3) buscar confirmação de sua autodeclaração por meio de uma organização externa, e b. 4) buscar a certificação ou registro de seu SGA em uma Organização externa de Certificação.231 229 ASSUMPÇÃO, Luiz Fernando Joly. Sistema de Gestão Ambiental: Manual Prático para implementação de SGA e Cerificação ISO 14001/2004. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 28. 230 NASCIMENTO, L. F.; LEMOS, A. D. da C.; MELLO, M. C. A. de. Gestão socioambiental estratégica. Porto Alegre: Bookman, 2008. p. 206. 231 NBR ISO 14001: Sistema de gestão ambiental – Requisitos com orientações para uso. Rio de Janeiro: ABNT, 2004. p. 1. 115 As atividades mais importantes de um SGA são de cunho gerencial visto que se trata de planejar, organizar, controlar, analisar e avaliar, decidir estrategicamente sobre investimentos, etc. O instrumento gerencial SGA assegura o alcance de objetivos ambientais definidos a um determinado período, desde que o ciclo PDCA seja executado completamente: Com um SGA, as organizações devem estar em condições de controlar os aspectos e impactos ambientais de suas atividades e reduzi-los sistemática e paulatinamente, para assim melhorar o seu desempenho ambiental, que pode ser expresso qualitativa e quantitativamente pelos aspectos. As medidas necessárias incluem a segregação, o tratamento e a disposição de resíduos; a reciclagem de insumos e materiais; melhorias na operação; modificação nos processos; e modificação nos produtos. A modificação de produtos e processos pode requerer a introdução de novas tecnologias, tecnologias mais eficientes, mais limpas. Em alguns casos, só um salto tecnológico, um novo princípio de funcionamento pode reduzir 232 significativamente os aspectos e impactos ambientais. De acordo com o anexo A da ISO 14001: 2004, são requisitos gerais da norma que a organização estabeleça uma política ambiental apropriada, que: identifique os aspectos ambientais decorrentes das atividades passadas, existentes ou planejadas da organização, produtos e serviços, para determinar os impactos ambientais significativos; identifique os requisitos legais aplicáveis e outros requisitos subscritos pela organização; identifique prioridades e estabeleça objetivos e metas ambientais apropriados; estabeleça uma estrutura e programas para implementar a política e atingir objetivos e metas; facilite as atividades de planejamento, controle, monitoramento, ação preventiva e corretiva, auditoria e análise, de forma a assegurar que a política seja obedecida e que o SGA permaneça apropriado sendo capaz de adaptar-se à mudança de circunstâncias.233 Os princípios fundamentais da norma a serem seguidos pelo SGA são: a) autoresponsabilização; b) responsabilidade da direção; e c) a melhoria contínua. Da melhoria contínua do desempenho ambiental resultaram os requisitos básicos e obrigatórios do SGA da norma ABNT/NBR ISO 14001:2004: a) avaliação dos efeitos ambientais das atividades da organização; b) identificação de toda a legislação ambiental pertinente, tal como leis, normas, resoluções, etc. em âmbito 232 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 20. 233 NBR ISO 14001, op. cit., p. 11. 116 Federal, Estadual e Municipal, além dos contratos governamentais, licenças de instalação e operação, acordos com órgãos ambientais, acordos do setor, com clientes, com ONGs (Organizações não-governamentais), visto que esse é o requisito mínimo de um SGA; c) definição e perseguição de objetivos ambientais com ações e programas ambientais continuados, principalmente voltados à prevenção da poluição; d) condições organizacionais, de recursos e de pessoal adequadas a atingir os objetivos estabelecidos; e, e) auditorias periódicas e avaliação pela alta administração para julgar a validade do SGA e sua adequação para melhoria contínua do desempenho ambiental. De acordo com a ISO 14001 são elementos estruturais do SGA: a) a política ambiental; b) o planejamento; c) a implementação e operação; d) a verificação; e, e) análise pela administração; e são esses elementos que se inter-relacionam e também compõe o PDCA. Para que se inicie a fase de estruturação e implementação do SGA, é necessário dispor de recursos humanos, financeiros, infra-estrutura e tecnologia. “As competências podem ser desenvolvidas na organização em programas de educação ambiental e treinamento”. Os recursos devem ser assegurados e as funções, responsabilidades e autoridades determinados, comunicados e documentados. Estes requisitos encontram-se, na norma, no bloco implementação e operação que têm ainda como requisito de seus responsáveis, a documentação. E quanto a esse momento de implementação e operação do SGA, segundo Sell, as perguntas a serem respondidas pelos responsáveis são: (1) Como interagir os diferentes sistemas de gestão na organização e os documentos correspondentes de modo a evitar o excesso de documentos, custos desnecessários e animosidade? (2) Como estruturar o manual de gestão que incluiu a gestão ambiental? (3) Que tipos de documentos serão necessários (procedimentos gerais, específicos, instruções de apoio, listas auxiliares,...) para a gestão ambiental eficaz? Faz-se necessário responder a essas perguntas para a própria estruturação do SGA. Contudo, dificilmente se pode decidir tudo isso logo no início; é recomendável conhecer antes todos os requisitos da norma, os sistemas de gestão já praticados na organização, a sua estrutura organizacional e a situação ambiental atual, para, então, - num vai-e-vem, quase que por tentativa e 234 erro – ir respondendo às perguntas formuladas. 234 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 30-31 117 Nos termos do anexo A da Norma é recomendável que a organização que não possua um SGA estabeleça inicialmente a sua presente situação com relação ao meio ambiente através de uma análise que deverá ter como objetivo considerar todos os aspectos ambientais da organização, como base para estabelecer o SGA. É recomendável também que tal análise cubra quatro áreas principais, quais sejam: identificação de aspectos ambientais, incluindo aqueles associados às condições normais de operação e condições anormais, incluindo partida e parada, situações de emergência e acidentes; identificação de requisitos legais aplicáveis e outros subscritos pela organização; exame de todas as práticas e procedimentos da gestão ambiental existentes, incluindo aqueles associados com as atividades de aquisição e de contratação de serviços; avaliação de situações de emergência e acidentes anteriores. As ferramentas e métodos para a realização da análise podem incluir listas de verificação, entrevistas, inspeções e medições diretas, resultados de auditorias anteriores ou outras análises, dependendo da natureza da atividade.235 Salienta o anexo A da Norma que em que pese não exista uma abordagem única para se identificar os aspectos ambientais, a abordagem poderia considerar, por exemplo: as emissões atmosféricas; os lançamentos em corpos d’água; lançamentos no solo; uso de matérias-primas e recursos naturais; uso da energia; energia emitida, por exemplo, calor, radiação, vibração; resíduos e subprodutos; atributos físicos, por exemplo, tamanho, forma, cor, aparência. Além desses aspectos que a organização pode controlar diretamente, também deve considerar os aspectos que possa influenciar, tais como aqueles associados a bens e serviços por ela utilizados, e produtos e serviços que ela forneça. Recomenda-se ainda que sejam considerados aspectos associados às atividades, produtos e serviços da organização, tais como: projeto e desenvolvimento; processo de fabricação; embalagem e transporte; desempenho ambiental e práticas de prestadores de serviços e fornecedores; gerenciamento de resíduos; extração e distribuição de matérias-primas e recursos naturais; distribuição, uso e fim da vida de produtos; e vida selvagem e biodiversidade.236 235 NBR ISO 14001: Sistema de gestão ambiental – Requisitos com orientações para uso. Rio de Janeiro: ABNT, 2004. p. 11-12. 236 Ibidem, p. 13. 118 Ainda, de acordo com a Norma, a organização necessita identificar os requisitos legais que são aplicáveis aos seus aspectos ambientais, que podem incluir: dentre outros, os requisitos legais nacionais e internacionais; requisitos legais estaduais/municipais/departamentais; requisitos legais do governo local; acordos com autoridades públicas; acordos com clientes; diretrizes de natureza nãoregulamentar; princípios voluntários ou códigos de prática. Ou seja, poucos não são os requisitos e parâmetros legais a serem observados quando da implementação e operação de um SGA. O item final abordará a auditoria e a certificação ambiental decorrentes do SGA. 3. 3 Auditoria e Certificação Ambiental É com a auditoria ambiental que a empresa irá obter um “reflexo” da sua situação ambiental global quanto ao cumprimento dos requisitos legais e outros e ao compromisso de melhoria contínua. Segundo a ABNT/NBR ISO 14001:2004, a auditoria é “o processo sistemático e documentado de verificação executado para obter e avaliar, de forma objetiva, evidências de auditoria para determinar se as atividades, eventos, sistemas de gestão e condições ambientais especificados ou se as informações relacionadas a estes estão em conformidade com os critérios de auditoria, e também comunicar os resultados deste processo ao cliente”.237Além de sistemático e documentado deve ser independente com relação à organização, tanto que em se tratando de pequenas empresas a ISO 14001 versão 2004 refere que a independência pode ser demonstrada pela isenção de responsabilidade em relação à atividade que está sendo auditada, pois a seleção de auditores e a condução das auditorias devem assegurar objetividade e imparcialidade do processo de auditoria.238 Na auditoria do SGA de uma empresa, a empresa, “dona” do SGA, é cliente, é objeto da auditoria. Os critérios dela resultam de políticas, práticas, procedimentos ou requisitos aos quais o SGA deve atender. As evidências são informações, 237 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 25-26. 238 NBR ISO 14001, op. cit., p. 3/9 119 registros, declarações e a verificação do SGA, detectando sua correta implementação e operação, maturidade e deficiências. A auditoria pode ser feita por auditores internos ou externos e visar apenas à verificação do funcionamento do SGA e detecção de inconformidades para melhorias contínuas, ou a auditoria pode ser feita pelo próprio SGA, por auditores externos, devidamente qualificados e credenciados e com o objetivo de submetê-lo a uma verificação competente, objetiva e independente, com vistas a sua certificação.239 De acordo com a Norma, a organização deve assegurar que as auditorias internas do SGA sejam conduzidas em intervalos planejados para fornecer informações à administração sobre os resultados das auditorias e determinar se o sistema de gestão ambiental está em conformidade com os arranjos planejados para a gestão ambiental, incluindo-se os requisitos da própria Norma e se foi adequadamente implementado e se permanece observado.240 Determina ainda que os programas de auditoria devem ser planejados, estabelecidos, implementados e mantidos pela organização, levando-se em consideração a importância ambiental das operações pertinentes, bem como os resultados das auditorias realizadas anteriormente. Os procedimentos de auditoria devem ser estabelecidos, implementados e mantidos para tratar das responsabilidades e requisitos com o intuito de planejar e conduzir as auditorias, relatar os resultados e manter registros associados e tratar da determinação dos critérios de auditoria, escopo, freqüência e métodos. A justificativa e finalidade da auditoria, segundo Sell, estão no fato de que a alta administração da organização necessita avaliar a “pertinência, eficácia e aptidão do SGA”, se atende os requisitos ambientais legais e outros aplicáveis, (o que é testado por amostragem), a consecução dos objetivos e metas ambientais bem como para continuar “girando o ciclo do PDCA” na gestão ambiental. “Fazem-se auditorias internas para constatar, o mais rápido possível, os pontos fracos do SGA, para, então, eliminá-los”. A auditoria interna quando feita por pessoas da própria 239 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 85. 240 NBR ISO 14001: Sistema de gestão ambiental – Requisitos com orientações para uso. Rio de Janeiro: ABNT, 2004. p. 9. 120 organização e especialmente treinadas para isso, torna-se menos onerosa que a externa e expõe menos as falhas remanescentes da gestão ambiental da organização ao público. 241 Nessa fase em que a organização se submete a auditoria ambiental, cabe a ela comprovar sua conformidade com os padrões de qualidade e ambientais exigidos pela legislação nacional, estadual e local, bem como pelos manuais de qualidade criados e utilizados pela própria organização auditada. De acordo com o estudo de caso publicado pela UNEP/IEO, 1989, denominado “UNEP´s Industry and Environment Office”, trazido por Donaire, entre as atividades que são usualmente auditadas, incluem-se as seguintes: política, responsabilidades e organização das tarefas; planejamento, acompanhamento e relatório das ações; treinamento e conscientização do pessoal; relações externas com os órgãos públicos e comunidade; adequação aos padrões legais; planejamento de emergência e funcionalidade; fontes de poluição e sua minimização; tratamento da poluição e acompanhamento das descargas; economia de recursos; manutenção adequada; uso do solo. Entende o autor que conforme as normas da ABNT para a Auditoria Ambiental se realizar é fundamental existir informações suficientes sobre o objeto da auditoria, recursos adequados para apoiar o processo e cooperação adequada por parte do auditado. Escreve ainda que as recomendações da ISO 14010, que descrevem os princípios gerais da metodologia de auditoria ambiental, vão desde os objetivos definidos entre cliente e responsável pela auditoria, formação dos membros da equipe de auditores, confiabilidade e sigilo do processo, sistematização do processo, constatações de campo, análise dos resultados até o relatório final.242 Cada auditoria pode se concentrar em partes ambientalmente relevantes da organização. Os itens de verificação e critérios a serem observados na avaliação 241 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 79-80. 242 DONAIRE, Denis. Gestão Ambiental na Empresa. 2. ed. São Paulo: Atlas: 1999, p. 123-128. 121 derivam dos requisitos da ABNT/NBR ISO 14001, bem como do que foi planejado na fase de estruturação e implementação do sistema. As conclusões baseiam-se em evidências de amostragem coletadas por entrevistas, exames de documentos, observação das atividades e condições, medições, ensaios, dentre outros.243 Cabe frisar que como a ISO 14001 exige conformação com todas as leis ambientais aplicáveis, como pré-requisito essencial para certificar a organização, essa certificação se restringe ao local físico definido, valendo, portanto, para o estabelecimento que esteja instalado naquele local e fica vinculada ao cumprimento de legislação deste mesmo local. A ABNT/NBR ISO 14011 dispõe sobre as diretrizes para a auditoria ambiental, os procedimentos de auditoria e a auditoria de sistemas de gestão ambiental. De acordo com tal norma, é recomendado que a auditoria de SGA tenha objetivos definidos, como por exemplo avaliar o SGA de uma organização quando existir o desejo de estabelecer uma relação contratual com um potencial fornecedor.244 Salienta Donaire que a Norma estabelece procedimentos de auditoria para todos os tipos e portes de organizações que operam um SGA.245 Refere também que a Câmara de Comércio Internacional (ICC), em 1989, adotou alguns passos básicos para a execução da auditoria ambiental na empresa, que foram desenvolvidos pela Canadian Naranda Corporation, e divide a auditoria em três partes: Atividades Pré-Auditoria, Atividades de campo e Atividades PósAuditoria. Tais partes são identificáveis no processo estabelecido pela ISO 14011. Quanto às atividades de pré-auditoria, diz que elas se iniciam com a descrição da amplitude e dos limites da auditoria, as atividades a serem auditadas, a localização, a duração, os recursos humanos e financeiros, análise da documentação do SGA, atribuições, seleção dos documentos a serem utilizados e terminam na formatação do Plano de Auditoria. As atividades de campo se iniciam com uma reunião de abertura onde são apresentados os participantes, os auditores e os auditados e são explicados os critérios utilizados e o Plano de Auditoria. Na seqüência são 243 SELL, Ingeborg. Guia de implementação e operação de sistemas de gestão ambiental. Blumenau: Edifurb, 2006. p. 80. 244 NBR ISO 14011: Diretrizes para auditoria ambiental – Procedimentos de auditoria – Auditoria de sistemas de gestão ambiental. Rio de Janeiro: ABNT, 1996. p. 3. 245 DONAIRE, Denis. Gestão Ambiental na Empresa. 2. ed. São Paulo: Atlas: 1999. p. 124-129. 122 desenvolvidas as atividades de coleta dos dados que serão posteriormente analisados e avaliados em relatório preliminar a ser apresentado em reunião de encerramento com os participantes. As atividades pós-auditoria se referem ao relatório final, sua distribuição e a retenção dos documentos. A Norma não prevê a execução de um plano de ação baseado nas constatações feitas e no acompanhamento da execução, o que normalmente deve ser etapa posterior a execução da auditoria. Coube a ISO 14012 estabelecer critérios para a qualificação dos auditores ambientais, dissertando sobre quais devem ser seus conhecimentos, habilidades e atitudes, e como deve ser desenvolvido seu treinamento para a função. Importante item para a auditoria ambiental também é o licenciamento ambiental que será solicitado pelo auditor logo no início da auditoria, pois o estudo do impacto ambiental faz parte do processo de implantação e operação de um SGA e da auditoria ambiental. A Resolução 237/1997 do CONAMA (Conselho Nacional sobre o Meio Ambiente) é a legislação nacional que trata do tema, definindo os conceitos sobre licenciamento, características, detalhes, prazos, quais as empresas necessitam receber licenciamento ambiental, dentre outras informações. Para determinados empreendimentos e atividades que sejam considerados possuidores de efetivo, potencial e significativo risco de agressão ao meio ambiente, além do licenciamento ambiental, antes mesmo do início da instalação do empreendimento ou atividade, é necessário a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), conforme o art. 3º da Resolução 237/1997.246 247 No Brasil, a Lei 6.938/81 relacionou a avaliação de impacto ambiental e o licenciamento dentre os instrumentos de política pública e a 246 Art. 3º - A licença ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetivas ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio dependerá de prévio estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto sobre o meio ambiente (EIA/RIMA), ao qual darse-á publicidade, garantida a realização de audiências públicas, quando couber, de acordo com a regulamentação. Parágrafo único. O órgão ambiental competente, verificando que a atividade ou empreendimento não é potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente, definirá os estudos ambientais pertinentes ao respectivo processo de licenciamento. CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Resolução 237, de 19 de dezembro de 1997. Dispõe sobre a regulamentação do licenciamento ambiental. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 29 nov. 2009. 247 ASSUMPÇÃO, Luiz Fernando Joly. Sistema de Gestão Ambiental: Manual Prático para implementação de SGA e Cerificação ISO 14001/2004. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 235. 123 exigência do EIA e do RIMA e foi estabelecida em 1986 pela Resolução 001 do CONAMA que determinou as diretrizes gerais para o uso e a implementação da Avaliação de Impacto Ambiental (AIA). Tal resolução estabelece que o EIA/RIMA deve ser realizado por uma equipe multidisciplinar habilitada que será responsável tecnicamente pelos resultados apresentados, e que não poderá ter dependência direta ou mesmo indireta com o proponente do projeto.248O Relatório de Impacto Ambiental terá como objeto justamente o Estudo prévio do Impacto Ambiental que é um “instrumento para prever e avaliar os impactos negativos de um projeto sobre o ambiente físico, biótico e social”, bem como identificar quais os meios e alternativas possíveis para se evitar tais impactos antes da instalação do projeto249. Importante esclarecer que a Resolução 001/1986 do CONAMA considera impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causadas por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas, que direta ou indiretamente afetam a saúde, a segurança e o bem-estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; a qualidade dos recursos ambientais.250 Quanto ao licenciamento ambiental, é definido pela Resolução 237/97, art. 1º, I, como um procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetivas ou potencialmente poluidoras, ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso.251O licenciamento é de competência das três esferas públicas do Estado (e conforme o art. 6º da Resolução 237/97 são competentes também os Municípios, além dos Estados e a Federação252) e se dará 248 DIAS, Reinaldo. Gestão Ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2008. p. 67. 249 BARBIERI, José Carlos. Gestão ambiental empresarial: conceitos, modelos e instrumentos. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 250. 250 DIAS, op. cit., p. 62. 251 BARBIERI, op. cit., p. 256. 252 Art. 6º - Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por 124 em função do âmbito de abrangência do impacto ambiental, do tipo de atividade que executam e do setor econômico ao qual pertencem, ou seja, dependendo do impacto produzido pela empresa ou atividade será competente uma ou outra esfera pública para a concessão das licenças: Uma indústria química, por exemplo, poderá contaminar mais o ambiente do que uma fábrica de móveis, muito embora essa gradação do impacto seja bastante relativa, pois empreendimentos que aparentemente não causam modificações significativas no meio ambiente, a ponto de afetar o bem-estar da população local, podem causar danos irreparáveis a espécimes de flora e da fauna. Nesse caso, o interesse maior é dado pela necessidade de 253 preservação da biodiversidade global. No Brasil, o Estudo prévio de Impacto Ambiental apenas foi introduzido na legislação brasileira, em 1980, na lei sobre zoneamento industrial (Lei n.º 7.803) que tornou obrigatória a apresentação do EIA para a localização de pólos petroquímicos, cloroquímicos, carboquímicos e instalações nucleares. Atualmente, para as áreas críticas de poluição, é exigência constitucional prevista no art. 225, § 1º, inciso V254, da Constituição Federal de 1988, o que já foi reproduzido pelas Constituições Estaduais e por algumas Leis Orgânicas Municipais, mas a Carta brasileira foi a primeira do mundo a inscrever a obrigatoriedade do estudo no âmbito constitucional.255 A Resolução 237/1997 do CONAMA, em seu art. 8º prevê as licenças ambientais necessárias ao empreendimento que possa causar “impactos ambientais”, podendo elas ser expedidas de forma isolada ou separadamente, quais sejam, Licença Prévia (LP), Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO). A licença prévia é concedida na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou atividade, aprovando sua localização e concepção, atestando a viabilidade e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem instrumento legal ou convênio. CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. Resolução 237, de 19 de dezembro de 1997. Dispõe sobre a regulamentação do licenciamento ambiental. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 29 nov. 2009. 253 DIAS, Reinaldo. Gestão Ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2008. p. 63. 254 Art. 225.Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: […] IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; […]. BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 28 nov. 2009. 255 DIAS, op. cit., p. 64/68. 125 atendidos nas próximas fases de implementação. A licença de instalação autoriza a instalação do empreendimento ou atividade de acordo com as especificações constantes dos planos, programas e projetos aprovados, incluindo as medidas de controle ambiental e demais condicionantes, das quais constituem motivo determinante. A licença de operação autoriza a operação da atividade ou empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que consta das licenças anteriores, com as medidas de controle ambiental e condicionantes determinados para a operação. Realizados todos os procedimentos necessários e exigidos pelo SGA e estando de acordo, a empresa poderá obter a certificação do SGA. A obtenção e mantença da certificação do SGA é, para a organização, mais uma maneira de evidenciar responsabilidade ambiental frente aos grupos de interesse. A certificação do sistema de gestão ambiental não é compulsória a adesão ao sistema, podendo esta ser almejada desde o início da estruturação e implementação, no entanto, faz mais sentido iniciar com o planejamento da certificação depois de o sistema estar totalmente implantado e as tarefas sendo executadas corretamente, com a documentação em ordem, vez que é um processo que exige muitos recursos e a idéia da organização que adere ao SGA, com certeza, não é ver o processo frustrado: Toda empresa que adotar essa nova abordagem sistêmica e proativa, pleiteando sua Certificação Ambiental, estará atingindo, dessa forma, o que se convencionou chamar de ecoeficiência, isto é, estará produzindo bens e serviços melhores ao mesmo tempo que reduz o uso de recursos e a 256 geração de poluentes. Conforme a Certificação de Sistemas de Gestão, PE 004.10, de setembro de 2009, que estabelece o processo específico de concessão, manutenção e renovação da certificação de sistemas de gestão em conformidade com a ABNT/NBR ISO 14001, a organização interessada deve solicitar tal certificado e fornecer as informações necessárias para que a ABNT possa elaborar a proposta técnico-comercial e o contrato de certificação, preenchendo o questionário de avaliação preliminar. Havendo concordância ele é assinado e enviado para a ABNT. A Gerência de Certificação de Sistemas de Gestão recebe a proposta e o contrato 256 VALLE, Cyro Eyer do. Qualidade ambiental: ISO 14000. 5. ed. São Paulo: Senac, 2004. p. 149. 126 assinado, analisa e registra a abertura do processo no sistema operacional, solicitando a documentação requerida na proposta. A auditoria de certificação ocorre em duas fases, podendo a ABNT realizar uma pré-auditoria caso seja de interesse da candidata. A auditoria da fase 1 é realizada para auditar a documentação do sistema de gestão do cliente; avaliar a localização da organização e as condições específicas do local e discutir com o pessoal da organização determinando o grau de preparação para a auditoria de fase 2; analisar a situação e compreensão do cliente quanto aos requisitos da norma, em especial com relação à identificação de aspectos-chaves ou significativos de desempenho, de processos, de objetivos e da operação do sistema de gestão, para coletar informações necessárias em relação ao escopo do sistema de gestão, processos e localização da organização, aspectos legais e regulamentares relacionados e o respectivo cumprimento, por exemplo, aspectos de qualidade, ambientais e legais da operação do cliente, riscos associados, dentre outros; analisar a alocação de recursos para a fase 2 e acordar os detalhes dessa; permitir o planejamento dessa a partir de um entendimento do sistema de gestão do cliente e seu funcionamento no local, no contexto dos possíveis aspectos significativos; e ainda, avaliar se as auditorias internas e a análise crítica pela administração estão sendo planejadas e realizadas e se o nível de implementação do sistema de gestão comprova que a organização está pronta para a fase 2. A auditoria de fase 1 deve ser realizada nas instalações do cliente, via de regra. Depois de realizada, o auditor líder envia para a Gerência de Certificação de Sistema de Gestão um Relatório de Atividade Técnica com as constatações pertinentes e a Gerência envia cópia do relatório à organização. A auditoria de fase 2 tem o objetivo de avaliar a implementação, incluindo a eficácia, do sistema de gestão do cliente e deve ocorrer no local do cliente e incluir, no mínimo, as informações e evidências sobre conformidade com todos os requisitos da norma aplicável do sistema de gestão ou outro documento normativo, o sistema de gestão do cliente e seu desempenho quanto à conformidade legal, controle operacional dos processos do cliente, auditoria interna e análise crítica pela direção, responsabilidade da direção pelas políticas do cliente, ligações entre os requisitos normativos, política, objetivos e metas de desempenho (coerentes com as expectativas da norma aplicável de sistema de gestão ou em outro documento normativo), quaisquer requisitos legais aplicáveis, 127 responsabilidades, competência do pessoal, operações, procedimentos, dados de desempenho e constatações e conclusões de auditoria interna. 257 São estabelecidos um Relatório de Atividade Técnica e um Plano de Atividade Técnica para cada auditoria incluindo dentre outros requisitos a atividade a ser auditada e o tempo de duração. A equipe auditora elaborará as conclusões da auditoria que deverá conter, no mínimo, relatórios de auditoria, comentários sobre as não-conformidades e, onde aplicável, a correção e ações corretivas tomadas pelo cliente, confirmação das informações fornecidas à ABNT e uma recomendação de conceder ou não a certificação, juntamente com quaisquer condições e observações. Quanto as não-conformidades pode a organização realizar ações corretivas e enviar as ações realizadas para a correção à Gerência, que programa a realização de uma auditoria extraordinária. Ao final, a Gerência encaminha todo o processo para a ABNT/CTC que analisa o relatório e recomenda ou não a concessão da certificação, sendo a própria Gerência quem decide se a empresa será certificada ou não. Para a manutenção da certificação são realizadas auditorias de manutenção no local, sendo a atividade de manutenção efetuada pela ABNT. As auditorias de manutenção podem ser semestrais ou anuais, conforme contratado, e a Gerência mantém a certificação com base na demonstração de que o cliente continua a satisfazer os requisitos da norma de referência do sistema de gestão.258No Brasil, um organismo credenciado para dar Certificação de ISO 14001 é uma organização de terceira parte credenciada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO) 259. Quanto à renovação da certificação, ela é realizada após um período de três anos e se dará com base na auditoria de renovação que tem como propósito confirmar a conformidade e a eficácia contínuas do sistema de gestão como um todo e sua contínua relevância e aplicabilidade ao escopo de certificação. É realizada conforme a auditoria da fase 2. Deve ser realizada antes do vencimento do 257 ABNT. Associação brasileira de normas técnicas. Apresenta informações gerais sobre a instituição. Disponível em: <http://www.abnt.org.br>. Acesso em: 03 nov. 2009. 258 Ibidem. 259 BARBIERI, José Carlos. Gestão ambiental empresarial: conceitos, modelos e instrumentos. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 182. 128 certificado e o prazo máximo de validade da certificação é de três anos e não haverá prorrogação de tal prazo.260 Nem toda organização precisa da certificação de seu SGA, visto que demanda muitos recursos, assim é que uma pequena empresa, por exemplo, pode implantar um SGA desenvolvendo políticas e práticas ambientalmente corretas e se beneficiar disso, fazendo sua parte constitucionalmente prevista da preservação ambiental e promovendo o desenvolvimento sustentável sem para tanto necessitar de uma certificação, que será opção dela. Portanto, às micros e pequenas empresas prestadoras de serviços, pode ser mais conveniente, por exemplo, obter certificados, menções, reconhecimentos de órgãos ambientais locais ou do estado, ou mesmo de organizações não-governamentais comprometidas com o meio ambiente.261 Através do SGA e da Certificação, a empresa ou indústria assume um compromisso de melhoria contínua do seu desempenho ambiental por meio das atribuições que assume com a elaboração e publicação da política ambiental. A gestão ambiental deve evoluir visando a melhoria da ecoeficiência bem como para a prática de projetos de produtos e serviços ambientalmente mais corretos e, melhorar a ecoeficiência, significa aumentar a eficiência na utilização dos recursos materiais, econômicos e humano, objetivando sempre a geração de produtos e serviços úteis e ambientalmente corretos, voltados ao desenvolvimento sustentável, e não a geração de riscos ambientais e resíduos sólidos. Segundo Assumpção, são vantagens indicadas pela maioria das unidades ambientalmente certificadas: a) acesso a novos mercados e melhoria na competitividade empresarial; b) melhoria na performance do desempenho ambiental da organização e atendimento a legislação; c) facilidade na identificação de causas de problemas e seus solucionamentos; d) evitar desperdícios e redução de custos; e) redução e eliminação de riscos e responsabilidade ambientais; f) melhoria na imagem e na relação com os funcionários, clientes, fornecedores, vizinhos, fiscalização ambiental e outros detentores de interesses; g) acesso a capital de baixo custo, menores impostos e seguros mais baratos. No entanto, gera alguns 260 ABNT. Associação brasileira de normas técnicas. Apresenta informações gerais sobre a instituição. Disponível em: <http://www.abnt.org.br>. Acesso em: 03 nov. 2009. 261 Ibidem. 129 custos, tais como maior tempo de funcionários no gerenciamento do SGA, a necessidade de eventuais assessoramentos de especialistas externos e o treinamento do pessoal para adaptação e fundamentação de conceitos.262 Dias também discorre sobre alguns “estímulos” para a adoção de métodos de gestão, enumerando como estímulos que considera “internos”, a necessidade de redução de custos, incremento na qualidade do produto, melhoria da imagem da empresa, necessidade de inovação, aumento da responsabilidade social, sensibilização do pessoal interno, e como estímulos que chama de “externos”, refere a demanda do mercado, a concorrência, o poder público e a legislação ambiental, o meio sociocultural, as certificações ambientais e os fornecedores. Quanto à demanda de mercado, diz que muitas corporações não querem assumir os problemas ambientais dos fornecedores e exigem demonstrações claras de que os processos internos e produtos não afetam o meio ambiente e nessas situações é que as empresas que possuem uma certificação ambiental de acordo com a ISO 14001saem ganhando e acabam formando uma cadeia de fornecedores com orientação ambiental correta, como é o caso da Mercedez-Bens, Gradiente, 3M, Cosipa e Usiminas263. No que tange a legislação ambiental, está em ritmo constante o controle dos governos sobre as questões ambientais e, através da Gestão Ambiental e da Certificação, as empresas além de tomarem total conhecimento das normas ambientais atuais, ainda necessitam prever a legislação futura de seus países e dos países para os quais exportam, visando uma adaptação e garantindo a competição no mercado internacional: Em pesquisa realizada junto aos empresários brasileiros, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) constatou que a regulamentação ambiental ainda é um dos fatores mais fortes para que as empresas adotem medidas gerenciais voltadas para a gestão ambiental. […] atender ao regulamento ambiental (45,2%) e atender a exigências para licenciamento (37,8%) ocupam respectivamente o 1º e o 3º lugares nas preocupações dos 264 empresários. 262 ASSUMPÇÃO, Luiz Fernando Joly. Sistema de Gestão Ambiental: Manual Prático para implementação de SGA e Cerificação ISO 14001/2004. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 53-60. 263 TACHIZAWA, Takeshy. Gestão Ambiental e Responsabilidade Social Corporativa: estratégias de negócios focadas na realidade brasileira. São Paulo: Atlas, 2002. p.25. 264 DIAS, Reinaldo. Gestão Ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2008. p. 58. 130 As empresas são responsáveis por seus produtos e serviços durante todo o ciclo de vida dos mesmos, inclusive também no momento de descarte pelo consumidor, tal como ocorre com as baterias de celulares, pilhas, embalagens de agrotóxicos, dentre outros, situações em que o produtor deve assumir o compromisso de recuperar ou dar a destinação correta ao material descartado após o uso, descarte que deveria ser feito sempre nos pontos de coleta disponibilizados pelas próprias empresas, questão que em se tratando de uma empresa Certificada deve ser atendida. Também os princípios ambientais do “poluidor-pagador”, da prevenção e da precaução são observados pelas empresas que possuem o SGA ou a Certificação pela ISO 14001. O princípio do poluidor-pagador impõe ao Estado o dever de estabelecer um tributo a ser pago pelo agente poluidor, destinado a tratar da poluição, possuindo objetivo tanto fiscal quanto extrafiscal, quando induz um comportamento preventivo ou mesmo de reparação265 pelos agentes privados266. Além da internalização dos custos, o primeiro princípio também é visto como forma de se “abolir os direitos adquiridos em matéria de contaminação”, no sentido de que uma empresa licenciada deve ser monitorada com frequência e adequar-se aos padrões tecnológicos e ambientais sob pena de cassação da licença e também da certificação. Quanto aos princípios da prevenção e da precaução, diante da Teoria da Sociedade de Risco, a prevenção é um mecanismo para a gestão no sentido de se inibir os riscos concretos ou potenciais e a precaução desempenha uma função antecipatória, cautelar, em face do risco de dano abstrato. Exemplos típicos de atuação preventiva são o EIA, o licenciamento e a própria ISO 14001, uma vez que a partir do momento que toda a cadeia produtiva e mesmo a destinação final dos produtos e serviços são avaliados e estruturados visando o menor impacto ambiental possível, está a empresa agindo de forma a prevenir e se precaver de possíveis danos ambientais. 267 As Certificações em muitos casos também se evidenciam em selos de qualidade ambiental, se tornando um estímulo externo forte para as empresas, uma 265 LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de Risco e Estado. In:_____; CANOTILHO, J. J. G. (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p.182. 266 BARBIERI, José Carlos. Gestão ambiental empresarial: conceitos, modelos e instrumentos. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 68. 267 LEITE, op. cit., p. 172-173/183. 131 vez que clientes de países desenvolvidos, na grande maioria dos casos, exigem uma certificação reconhecida em nível internacional, como a Certificação da ISO 14001. Nesse sentido que os selos ecológicos muitas vezes são apenas concedidos às empresas que possuem uma Certificação de nível Internacional e são emitidos por entidades, organizações comerciais ou não governamentais, reconhecendo que o produto observou e cumpriu determinados padrões ambientais previamente estabelecidos. A adesão a tais selos também é voluntária e eles estão estabelecidos mais em países desenvolvidos e com consumidores com certa consciência ecológica, tais como a França com o selo NF Environment, de 1989, o Canadá, com o selo Ecological Choice, de 1988, a Alemanha, com o selo Blue Angel, de 1977 e os EUA, em que pese a falta de consciência ecológica do governo estadual, com o selo Green Seal, de 1990.268 No atual contexto de sociedade de risco, frente a certeza da limitação dos recursos naturais e já escassez de alguns, começa-se a tomar consciência da necessidade de um novo paradigma, de uma nova racionalidade, de uma visão sistêmica do universo como um todo. A Certificação Ambiental pela ABNT/NBR ISO 14001:2004 pode ser vista como um entre muitos instrumentos para a abordagem dos problemas ambientais em nível empresarial e, desde que bem implantado e operado, o SGA fará com que a empresa faça sua parte em prol do desenvolvimento sustentável, cumpra com a sua função social e com a determinação constitucional de promover e observar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, responsabilidade que é de todos, melhorando continuamente o seu desempenho e papel ambiental, social e até mesmo econômico, “impactos” que a sociedade e o meio ambiente necessitam sentir. 268 DIAS, Reinaldo. Gestão Ambiental: responsabilidade social e sustentabilidade. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2008. p. 60. 132 CONCLUSÃO Depreende-se do presente trabalho que o meio ambiente deve ser compreendido a partir de uma visão sistêmica e ecológica, assim entendido como o meio físico e biótico em que vivemos, compreendendo a flora, a fauna, os estados físicos e químicos, o conjunto dos elementos artificiais, culturais e do trabalho, bem como o conjunto de condições, leis, influências e interações que permitem, regem e abrigam a vida em suas múltiplas formas, compreendendo também as suas múltiplas e constantes interações e inter-relações, pois todo sistema vivo é integrante de um único ecossistema, com segmentos de complexidade e variação extremamente ricos, que constante e mutuamente interagem como se fosse uma teia ou mesmo redes interconectadas. Tal conceito também decorre da conciliação com a leitura dos dispositivos legais e constitucionais nacionais que evidenciam a adoção de um “antropocentrismo alargado”, atribuindo-lhe caráter de macrobem. Dessa forma é que também devem ser visualizadas as empresas e as indústrias, como seres dotados de vida e complexos, que mantêm múltiplas e constantes interações com os demais seres vivos, com a sociedade como um todo, com os recursos naturais dos quais dependem a sua produção e sobrevivência no mercado, não sendo mais possível pensá-las apenas pelo prisma econômico. No aspecto do equilíbrio, é inegável que o meio ambiente seja considerado direito humano no âmbito da legislação internacional, em razão de sua direta vinculação com a vida humana, e fundamental no espaço nacional, o que decorre da leitura do artigo 225 da Constituição Federal Brasileira de 1988 que reza que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. É direito constitucional materialmente fundamental decorrente do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, embora não esteja previsto no catálogo dos direitos e garantias fundamentais do art. 5º do referido diploma constitucional. Ainda tendo em mente a teoria sistêmica que visualiza as empresas e indústrias como organismos vivos, bem como o reconhecimento internacional e a 133 exigência constitucional de que “todos” têm o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, é que não há como se excluir esses agentes promotores de poder da responsabilidade compartilhada que impõe a idéia de solidariedade e comunhão de interesses sobre esse direito fundamental transindividual, estando vinculados, seja de forma direta ou mesmo indireta, aos direitos fundamentais, devendo promovê-los, respeitá-los e preservá-los, mesmo que seja também a iniciativa privada um direito fundamental. Necessário se reconhecer que são as constantes e mútuas interações entre meio ambiente e seres humanos, em razão do uso do meio ambiente para obter os recursos necessários à produção de bens e serviços e dos despejos de materiais e energias não aproveitados no meio ambiente, que resultam na degradação ambiental e atual crise ambiental acentuada, ainda mais quando essa relação resulta no uso ilimitado e irresponsável dos recursos naturais, o que é visível no contexto atual. A globalização, embora tenha “unido mundos”, trazido enormes avanços científicos que salvam vidas antes desenganadas e “tecnologia de ponta” que permite a comunicação em todo o mundo em tempo real, não trouxe benefícios ao meio ambiente, muito pelo contrário, além das múltiplas exclusões que causou no contexto social, acelerou o processo de degradação ambiental e refletiu em uma sociedade de risco onde, em razão dessa acelerada cientificidade e tecnologia, do consumismo desenfreado, do insaciável desejo de poder e ter, tem-se cada vez mais consciência dos riscos produzidos e sofridos, no entanto, não se tem “tecnologia de ponta” ou mesmo cientificidade suficiente para evitá-los ou que dirá contorná-los. Estamos vivendo em uma era global e capitalista onde na busca do constante progresso econômico todos os dias assumimos os riscos de causarmos uma catástrofe ambiental; convivemos com esse “pesadelo”, mas pouco fazemos, ou melhor, em muitas das situações nem sabemos o que poderá ser feito para contornar tal contexto e nos mantermos vivos no planeta terra, já que há que se ter presente que a existência, a sobrevivência humana, depende da sobrevivência dos demais organismos vivos, pois não somos independentes com relação ao meio, bem 134 pelo contrário, dependemos constantemente dos recursos naturais, vigendo a máxima já conhecida popularmente de que “ninguém sobrevive sozinho”. É visível que a atual economia capitalista globalizada busca o constante progresso econômico através da expansão constante e a qualquer custo, da tecnologia e da ciência, o que caracteriza um processo muito diverso do real desenvolvimento compreendido em seu sentido mais amplo. Progresso e desenvolvimento não se confundem. Ao contrário dessa economia que quantifica o que chama de desenvolvimento através do Produto Interno Bruto (PIB), para que haja o verdadeiro desenvolvimento em seu sentido mais amplo, é necessário a expansão e a promoção das liberdades sociais e individuais; não se está negando o desenvolvimento econômico, ou mesmo a necessidade de recursos financeiros, mas está-se evidenciando a necessidade de uma renovação das principais fontes de privação das liberdades, tais como a tirania, a carência de oportunidades, a destituição social sistemática e a negligência dos serviços públicos. Ainda, diversa do desenvolvimento em seu sentido mais amplo é a idéia de sustentabilidade, fundada em uma racionalidade ambiental com bases ecológicas e no princípio da produtividade neguentrópica, e que perpassa por uma nova teoria da produção, novos valores sociais, pela desconstrução da cultura hegemônica e dominante que valoriza o diferente, pelo uso de tecnologias limpas e pelo diálogo dos muitos e diferentes saberes, tanto populares quanto científicos e tecnológicos. Também o chamado desenvolvimento sustentável é conceito diverso de desenvolvimento amplo, de progresso e de sustentabilidade. É tido como o primado do Direito Internacional porque resulta do conjunto de regras implícitas e expressas realizadas em nível internacional, auto denominadas consagradoras e conciliadoras dos princípios do direito do desenvolvimento e dos direitos fundamentais de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e da vida digna, ou seja, procura preservar o meio ambiente mantendo o desenvolvimento e o progresso econômico. Sua nacionalização refletiu no Princípio Constitucional do Desenvolvimento Sustentável que significa poder atender às necessidades da geração atual sem comprometer o direito de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades que decorre da fusão de dois princípios constitucionais, o do direito ao desenvolvimento e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 135 Além da visão sistêmica e ecológica e do art. 225, a Constituição Federal brasileira de 1988, bem como a legislação nacional esparsa, possuem inúmeras disposições legais que permitem se pensar em uma função social das empresas e das indústrias, de igual forma na vinculação desses entes privados aos direitos fundamentais, e na obrigação de respeitarem e promoverem direitos sociais e o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Tanto que a própria ordem econômica constitucional atual milita pela harmonização entre o capitalismo, a iniciativa privada e o desenvolvimento social e pessoal, quando prevê como princípios gerais da atividade econômica, no seu art. 170, a propriedade privada, a função social da propriedade, e a defesa do meio ambiente, dentre outros. A empresa é atividade econômica organizada e agente dotado de relevante poder de promoção social e econômica que não pode mais servir apenas como arrecadador de poder hierárquico e lucro, e frente a essa consciência, que floresce sozinha ou muitas vezes por coação legal, é que a Gestão Empresarial Ambiental, entendida como diretrizes e atividades administrativas e operacionais realizadas objetivando efeitos positivos sobre o meio ambiente, desponta como instrumento eficaz dessa necessária promoção social e preservação ambiental, em que pese as críticas feitas pela radical Gestão Ecológica. As Normas da série ISO (Organização Internacional para Padronizações), representadas no Brasil pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), são regras de procedimentos-padrão internacional de adesão voluntária criadas pelo próprio mercado capitalista globalizado e ausentes da ingerência e intervenção estatal. A ABNT/NBR ISO 14001 define o Sistema de Gestão Ambiental como parte do sistema da gestão de uma organização que pode conduzir a concessão da chamada “Certificação Ambiental” e, embora não se possa negar que a adesão “voluntária” também decorra de uma questão de marketing da empresa, já que cada vez mais há consumidores conscientes da degradação ambiental e preocupados com a “vida” dos produtos e fornecedores comprometidos com as empresas com quem mantêm negociações, bem como o fato de que apenas podem se lançar no mercado internacional as empresas e indústrias que possuem a Certificação Ambiental pela série ISO. Em que pese também essas Normas não prevejam índices ou valores mínimos que devam ser atendidos e observados para fins da 136 gestão ambiental e de sua melhoria contínua, nem mesmo padrões ótimos de preservação ambiental, salvo melhor juízo, trata-se de um processo sério, imparcial, criterioso e documentado que objetiva reduzir os impactos ambientais e a adesão “voluntária” mostra-se como um possível instrumento eficaz na fomentação e observância do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no art. 225 da Constituição Federal de 1988, na promoção e observância dos direitos sociais e princípios basilares da República Federativa do Brasil, tais como o desenvolvimento sustentável e a função social da empresa. São inúmeras as exigências a serem cumpridas e verificadas quando das auditorias para implementação e manutenção de um Sistema de Gestão Ambiental e durante todo o ciclo de vida dos produtos e serviços, inclusive sendo necessária a realização do estudo de impacto ambiental e a obtenção e mantença regular das licenças ambientais, institutos também exigidos pelo atual ordenamento constitucional com o fulcro de um meio ambiente ecologicamente equilibrado que cabe a “todos” promover. É perceptível que tais Normas visam cumprir com o primado do Direito Internacional do desenvolvimento sustentável, e quem sabe não sejam instrumentos suficientemente eficazes em se tratando de promover um desenvolvimento em sentido amplo, com a promoção das mais variadas liberdades ou mesmo em promover a sustentabilidade de raiz ecológica, no entanto, o desenvolvimento sustentável é Princípio Constitucional brasileiro que decorre da leitura do próprio art. 225 da Constituição Federal de 1988 que prevê o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente correto. Portanto, aderindo “voluntariamente” a essas Normas de padronização para o mercado internacional, criadas pelo próprio mercado capitalista global, a iniciativa privada estará dispondo de ferramentas eficazes para conciliar, de acordo com a nossa atual previsão e exigência constitucional, o crescimento econômico, o desenvolvimento e a preservação do meio ambiente e da vida digna para as presentes e futuras gerações, pois estará observando e fomentando tanto os direitos fundamentais ao desenvolvimento e a iniciativa privada quanto ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a vida digna. 137 REFERÊNCIAS ABNT. Associação brasileira de normas técnicas. Apresenta informações gerais sobre a instituição. Disponível em: <http://www.abnt.org.br>. Acesso em: 03 nov. 2009. ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996. ASSUMPÇÃO, Luiz Fernando Joly. 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