«A BANDA NÃO TOCA PARA ESTE TIPO» Mário Tomé Assim falou o clarim para o general. Quando este lhe mandou dar o sinal para a banda tocar o hino. Estava-se em 12 de Abril de 2002, quando a reacção venezuelana e os EUA pensavam ter o petróleo na mão metendo Chávez na prisão. Era a tomada de posse do presidente por um dia, o oligarca venezuelano Pedro Carmona Estanga, corrupto como todos os oligarcas. Eis uma situação de desobediência qualificada ou um profundo apego à democracia? Talvez nem uma coisa nem outra, mas apenas um soldados a defender as conquistas dos pobres, a que pertence, numa situação revolucionária. De facto, pouco depois, um milhão de pobres desceu sobre o centro de Caracas, e puseram tudo em pratos limpos. Os soldados venezuelanos em serviço de segurança frente ao palácio do governo levantaram as armas enquanto agitavam as boinas a favor do presidente deposto Hugo Chávez. O golpe chegava ao fim. Durara três dias. As Forças Armadas venezuelanas estavam à espera, ordeiramente, de obedecer a quem mandasse. As FA’s do Chile, constituídas como força exemplar, dedicadas à defesa da Constituição desde os anos 80 do século XIX, em 11 de Setembro de 1973 agiram com base na obediência à hierarquia sob ao comando de Pinochet. A definição de Pátria tinha saído em Ordem de Serviço. Os militares brasileiros que durante a ditadura militar torturaram, mataram, no quartel e na rua, têm grande diferença da tropa brasileira de hoje? Os torturadores militares de Abu Grahib, estadounidenses (obedecendo “indisciplinadamente” às orientações superiores), ou os britânicos e polacos doutras cadeias dentro da grande cadeia em chamas que é hoje o Iraque, pertencem às tropas democráticas da NATO ou foram inportados? Em Guantanamo, o tratamento regulamentar dos prisioneiros, que nos chega pelos media, tem a ver com a democracia particular das FA’s estadounidenses ou apenas com a obediência democrática do exército ao governo democraticamente eleito? O exército francês na Indochina e na Argélia era um exército democrático de um país democrático. Matou, chacinou, degolou, torturou. Os massacres de Baixa do Cassange, Mueda, Pidjiguiti, Inhaminga ou Wiriamu foram executados pelas FA’s ao serviço da Pátria. Se os dois últimos podem ser assacados a acção irregular, os outros foram claramente em louvável obediência. Trata-se do mesmo exército que enviou rapazes bem comportados para a Bósnia? (é assim que a TV os mostra e nada nos leva a supor o contrário) As FA’s portuguesas nas vésperas do 25 de Abril combatiam o inimigo e estavam a cumprir a sua missão às ordens da próxima futura brigada do reumático que representava as FA’s, com toda a legitimidade. Na generalidade mostravam incomodidade pelas acções brutais e arbitrárias. Mas nunca se recusaram a cumpri-las mesmo que depois levassem às costas os miúdos órfãos ainda com queimaduras de napalm. Tropa e Democracia A relação do exército e dos militares com a democracia – fala-se de militares em situação regular, naturalmente – foi sempre conflitual. Mas, curiosamente, em Portugal, a democracia muito deve aos militares que muitas vezes tiveram que insubordinar-se e revoltar-se. Os exemplos de Gomes Freire de Andrade, da revolta republicana dos sargentos em 31 de Janeiro, da insubordinação de parte da guarnição de Lisboa e de muitos oficiais e praças da marinha que assegurou a implantação da República, a revolta das praças da Armada, o assalto ao quartel de Beja, e o 25 de Abril de 1974 deviam ser dissecados nas escolas pelo que têm de relevante na história da luta pela liberdade. Mas não são. Quando se fala de exércitos democráticos apenas se quer dizer que se subordinam regular e normalmente ao comando do poder político. Mas isso faz deles um instrumento que nunca pode arvorar-se em referência, até porque as armas e os barões assinalados sempre tiveram exclusivamente a intencionalidade, ou seja o empenho e a vontade, dos chefes comprometidos em cada época ou regime com o poder. A defesa da pátria foi sempre a defesa dos interesses dos que tinham dinheiro para formar exércitos ou que estavam em condições de os formar com o dinheiro dos outros, ou seja com funções de Estado. Depois surgem os heróis em conformidade com as situações, os acasos, as fraternidades, as lealdades, os azares, os desencontros e os encontros com a morte ou com a vida. As forças armadas que obedeceram ao poder fascista e colonialista, eram exactamente as mesmas que obedecem hoje ao poder democrático. Por isso são elas que, curiosamente, acham que asseguram a perenidade dos valores pátrios, e até acham que fora delas mais ninguém. A gente vai por aí a ler e lê o que dizem os grandes símbolos das FA’s. A mais recente iconografia militar, a que apareceu no Carmo e na Pontinha a dar orientações depois do fascismo estar estendido na calçada, até acha que os militares devem dar lições à sociedade da forma como o pessoal se deve comportar. Não, não querem uma sociedade militarizada. Só querem uma sociedade devidamente hierarquizada e que cada um obedeça a quem tem de obedecer, porque senão é a irresponsabilidade e a bagunça. E, no fundo, têm razão. A burguesia, desculpe-se o uso do termo por falta de sinónimo à altura, teve sempre nos exércitos o seu sustentáculo, mais a sua referência de organização social e produtiva. A organização nas fábricas da revolução industrial foi copiada da organização dos exércitos. Durante tempo de mais os militares aceitaram ser cidadãos amputados. Ainda o são mesmo que hoje tenham, ao fim de muita luta, associações corporativas. Mas, na realidade, para os militares deixarem de ser cidadãos amputados, tem de se cumprir uma de duas condições: ou estarem metidos activa e conscientemente numa revolução ou deixam de ser militares. Quando os militares exaltam a limitação dos seus direitos de cidadania, devemos desconfiar. Estão prontos para tudo! Mas a tropa pode mesmo ser democrática? Dentro da tropa pode haver estruturas democráticas? Até onde pode a tropa aceitar a democracia, as associações sindicais e as associações dos seus quadros e soldados? Quantos generais, chefes militares, detentores do poder de decisão propuseram, estimularam ou seq uer aceitaram, essas associações? Elas, as que existem e como existem, tiveram sempre que ser impostas sob o labéu de subversão e da indisciplinada. A democracia na tropa, se fosse possível, teria de afirmar-se, necessariamente, à revelia da hierarquia. Teria de ser ela a gerar hierarquia compatível. Finalmente, basta haver obediência estruturada na hierarquia e na ausência de democracia, ao poder democrático, para se poder fala de exército democrático? Mais, pode um corpo antidemocrático defender a democracia, em situação de crise ou de rotura, ou seja quando isso é realmente necessário? A legitimidade original No princípio foi o fim do fascismo e da guerra. De quem a legitimidade em 25 de Abril? Havia forças armadas ou, liquidada a hierarquia, só havia o movimento revoltoso? Com que legitimidade? Quem lha conferia? O PR posto pelos próprios revoltosos – Spínola? Mas... outorgada por quem? Pelos capitães? E quem lha outorgara a eles? As armas com que venceram na madrugada libertadora? As armas não dão legitimidade a ninguém. Era então o povo que, ao aceder à liberdade, continha em si, mesmo quando estava amordaçado, toda a legitimidade. Sendo assim, durante o PREC, onde residia a legitimidade? Onde estava o povo? Na rua e nas tropas fora dos quartéis? Ou na Cova da Moura e em Belém e nas tropas aquartelada à 28 de Maio, obedecendo àqueles muitos quadros que, não fazendo o 25 de Abril se «gervasionaram» e, em muitos casos, assumiram o comando mandando os capitães revolucionários cortar as patilhas? Onde estava a legitimidade durante o PREC? Nos generais sem patilhas ou nos capitães com patilhas? Ou, como no caso do nosso amigo clarim de Caracas, naqueles que olhavam para o horizonte sempre ali, sempre mais longe, mas onde é preciso chegar? Esses estavam fora da ordem e da disciplina e com que fundamentos? Qual ordem, qual disciplina quando se estava a começar de novo? A Constituinte eleita. E até lá? E depois, função da representação proporcional?! Mas como funcionavam os representantes? Incólumes às pressões? Fiéis ao programa sufragado? Com que amplitude? No essencial ou no acessório? Ou sob a pressão dos novos donos do velho capital, dos testas de ferro do antigo capital, da NATO ou dos que ocuparam as terras dos latifúndios, a Torre Bela, as empresas sabotadas, para garantirem o pão e o trabalho? Questionamos os fundamentos da democracia. O Estado de Direito democrático deve mais à rua do que a S. Bento. Conciliemos: deve a S. Bento o que este foi obrigado a beber da rua. Hoje percebe melhor quem não entendia, naquela época. Basta ver o que se passa com toda esta nitidez assustadora, quando há trinta anos não parecia tão claro. Mas os protagonistas são os mesmos. Os figurantes também. E dos figurões nem se fala. O mundo mudou, claro, mas por via de quê e de quem? Só os exércitos revolucionários puderam reivindicar-se de democráticos. Porque a hierarquia derivava da adesão explícita a um objectivo livremente aceite, a uma ideologia constituinte livremente adoptada; porque a hierarquia reivindicava a legitimação nessa base, e aceitava um processo de escolha não exclusivamente normalizado por um poder exterior, mas sustentado por um poder imanente e assumidamente assente na adesão geral e por ela definido e regulado. Essa a única democracia possível nos exércitos. Como foi no 25 de Abril e durante o PREC em algumas unidades. O 25 de Abril foi, mesmo que não o confessem, um engulho para os «verdadeiros militares», aqueles que sanearam, melhor ou pior, os obreiros do 25 de Abril que, de acto, abriram a caixa de Pandora da democracia na tropa ou seja, o que seria o fim da “tropa”. Da tropa necessária para servir o novo poder democrático. A tropa dos condecorados pela NATO, disponíveis para defender a pátria no conceito natista do termo, mais perto de Bush que daqueles a quem foi recusada credencial NATO nem que tenham feito o 25 de Abril. Claro que há sempre contra argumentação razoável a contrariar “isto”. Mas ela está inquinada pelo partis pris. Tanto quanto “isto” está. Ou seja, o partido está tomado. Os filhos da rua Os capitães não tinham qualquer legitimidade, nem sequer a de salvar o prestígio das FA’s – eles tinham que fazer a guerra colonial o melhor possível porque era essa a sua missão. Como já notei, a sua legitimidade só é adquirida a posteriori porque o povo na rua, desobedecendo, aliás, às ordens dos revoltosos, lha conferiu. Ainda que armada, os capitães só tiveram legitimidade civil, cívica, revolucionária. Nunca, mas nunca, militar. E isto apesar da tentativa de legitimação democrática das FA’s, feita por quase todos os agentes políticos e sociais, a começar pelos próprios militares, através do MFA. Mas foi sol de pouca dura. A democracia exige conflito, a tropa exige silêncio, passo fantasma, continência a sete passos, desfeita a cinco ou vice-versa. Surge então em cena, com fundamento na alteração da base social do recrutamento para a Escola do Exército, logo depois Academia Militar, no fim dos anos 50, na explicação do 25 de Abril, a nova base democrática das FA’s, base essa que teria sido um factor determinante para que houvesse 25 Abril. Eis então um exército de serviço militar obrigatório, com os quadros que passaram a ter extracção pequeno burguesa, filhos da rua face à casta tradicional com pretensões de elite militar, por via hereditária com componentes socio-psicológicas semi-aristrocráticos. Este o exército que durante 13 anos andou a combater nas colónias em obediência à política colonial-fascista de Salazar e Caetano. Andou a defender, com quase um milhão de soldados, a pátria, ou, por extenso, os interesses da família Mello, da família Champallimaud, com associações de passagem ao conde de Caria e ao visconde de Botelho; a família Quina, a família Espírito Santo, as famílias Feteira-Bordalo, Vinhas, Albano Magalhães, Abecassis, Sousa Lara, pelo Grupo Fonsecas e Burnay e mais o Banco Nacional Ultramarino 1 . Esse o exército, de quadros oriundos da pequena burguesia, que estaria predisposto, portanto, para a democracia e para virar o fascismo do avesso. Viva a Liberdade. Permanece todavia uma zona obscura: foram cerca de 700 os capitães que assinaram “o pedido de demissão” e muito menos os que se comprometeram, cerca de 400, na preparação e execução do 25 de Abril, num universo de 5 mil oficiais, a grande maioria de filhos da rua. Ou seja, sobraram grosso modo 4.300 que, ou eram «gervásios» ou não quiseram, de início, claro, ter a ver com o arraial! A «base democrática» não funcionou, ficou nas encolhas, era afinal a base da brigada do reumático. Ou seja, era a base legítima das FA’s legítimas A realidade, portanto: 13 anos de guerra, já “fora da História”, transformaram um objectivo imperial heróico, por todos assumido ou, pelo menos, aceite, numa derrota iminente se não praticamente consumada. Foi aí que a democracia passou a pertencer à agenda dos capitães que nunca à agenda das FA’s. Para derrubar o regime e acabar com a guerra, anseio maior do povo depois que começou a sentir os mortos, feridos, amputados, alienados, desertores e emigrados e percebeu que andava a servir de carne para canhão das famílias mais distintas do país, os capitães tiveram que desarticular o pilar fundamental do regime: a hierarquia militar. E foi aí que a brigada do reumático deixou de ser a respeitável e heróica garantia da 1 Interesses dos vários Grupos/Famílias: Mellos Banca:Totta Standard, de Angola (Ang) e Moçambique (Moç), associado ao Standard da Grã-Bretanha. Têxteis: Siga, (Ang), Pungué e Cicomo (Moç). Minas: Empresa do Cobre de Angola, associada a capitais japoneses, Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes. Ind alimenytares: Induve e Comfabril (Ang), Socaju (Moç) e Companhia da Ilha do Príncipe, Casa Gouveia (Guiné) Sociedade Agrícola do Cassequel (Ang) Tabacos: Tabaqueira (Moç) com o Grupo Rembrandt, da África do Sul. Participação na Zamco. Champallimaud etc. Banca: B Pinto e Sotto Mayor, (Ang e Moç). Seguros: Mundial e Confiança (Ang e Moç) Minas: Mineira do Lobito, associado ao trust Krupp da RFA, à Bethlehem Steel e à GE dos EUA.Siderurgia e metalurgia: Sid (Ang), Cifel (Moç). Cimentos: Compª Cim (Ang) e Compª Cim (Moç). Química Geral (Moç) com trusts franceses e sul-africanos. Ind Alim: Compª da Matola (Moç) Interesses no Banco do Malawi. Cimentos e papel na Suazilâdia. Quina: Banco Comercial e Industrial (Ang) com participação em numerosas empresas. Mabor (Ang) Sogere (cervejas e refrigerantes (Moç). C/ a Sacor na Petrangol e Angol, assoc. a Petrofina, Texaco Compagnie Française des Petroles, General Mining e Anglo-American Corporation da RAS. C/ Sonap e Sonarep (Moç) associado à Petroquímica de Angola. Espírito Santo Compª de Açucar de Ang. e, com o Grupo CUF, Sociedade Agr. do Cassequel. Soc. Agr. do Incomati (Moç), Compª agr. Ang (café), Nocal (Ang) Banco Interunido de Ang c/ First National City Bank, Petrangol e Purfina (Ang) com capitais belgas. Grupo BNU Açucareira de Moç, com Sena Sugar, Diamang c/ capitais EUA e RAS, Compª Celulose do , Ultramar, Socaju (Moç) c/ Cuf, Cotonang (algodão) Ang, c/ belgas e Fonsecas e Burnay. Seguros: Fidelidade e Atlãntico de Ang e Lusitana e nauticus, Moç. Banco emissor em Moç e Guné. Cimentos Cecil, Moç c/ capitais Dinamarca. Grupo Fonsecas e Burnay Cotonang, c/ BNU, Diamang c/ De Beeers RAS e Societá General de Belgique, Compª de Pesquisas Minerais Ang. Grupo Português do Atlântico Banco Comercial Ang, Sociedade de carnes Ang, Compª Azotos Ang, Soc. Agr. Cassequel c/ Cuf e Espírito santo, Compª Açucar Ang, c/ Espírito Santo, Hidroeléctrica do Revué, Moç, Sonefe (energia) Ang, Cuva (cerveajs) Ang, c/ Manuel Vinhas, Vidula (vidradria Ang, Cimentos Ang, Lusalikte, Ang, c/ Abecassis e Textang, Moç. (Fonte: João Paulo Guerra«Os flechas atacam de novo») integridade do império, como fora sempre por definição e por boa prestação dos capitães. SMO e mercenários Com o 25 de Abril impõe-se, então, o novo mito para juntar ao insubstituível e velhinho de que as Forças Armadas defendem a pátria acima de todas as coisas. É o mito que devemos a liberdade às FA’s – caso único na história universal como foi assinalado orgulhosamente - e que tal foi possível porque os seus quadros tinham uma origem humilde, portanto acessível a sentir os problemas do povo e à endoutrinação mais ou menos libertária. Claro que ninguém pode retirar importância a esse facto. Mas ele é apenas colateral. As alegações a favor do serviço militar obrigatório – não falando da ortodoxia estado-novista dos que vêem no exército o exemplo, o símbolo e a referência das virtudes humanas, formador único (mesmo antes da família e da igreja) da personalidade dos verdadeiros portugueses, sendo não só o espelho da nação, mas o espelho em que a nação deve ir buscar a sua imagem – baseiam-se noutro mito criado com o 25 de Abril: “os soldados sempre ao lado do povo”. Essa a garantia dada pelo serviço militar obrigatório, dever cívico republicano inalienável, que nunca as armas se virariam contra o povo! O afluxo permanente às fileiras dos “filhos do povo” impediria, ainda, a formação de uma qualquer guarda pretoriana. Os “soldados ao lado do povo” reflectiram uma situação objectivamente revolucionária, mas o exército regular de SMO não mais representou isso. Os soldados, como sempre fizeram e continuariam a fazer, não fossem os capitães darem o sinal de insubordinação, continuariam a disparar para o lado que lhes era indicado. Os «soldados ao lado do povo» só foram possíveis com o povo na rua e com a hierarquia militar anulada. O serviço militar obrigatório como estrutura base da organização militar dos Estados surge com a revolução francesa, para garantir a defesa da nação revolucionária burguesa. A burguesia mobiliza o povo em nome da pátria, em contraste com os exércitos anteriores, na idade média, de profissionais e militares a soldo, independentemente mesmo da nacionalidade, a que hoje chamaríamos mercenários. A participação popular nesses exércitos cedo passa a ser uma obrigação excessiva e muitas vezes rejeitada, face à alienação sistemática dos interesses populares pelo governo burguês. Ou seja, com o desenvolvimento da luta de classes ao longo do tempo, a burguesia revolucionária francesa, a burguesia revolucionária americana (guerra da independência), a burguesia revolucionária inglesa (Cromwell), cedo se transformam e assumem como classe reaccionária, opressora e, finalmente, imperialista. Durante Comuna de Paris, a primeira revolução proletária, surge pela primeira vez na história o exército proletário, assente na Guarda Nacional, com ampla participação popular. Seguiu-se a repressão sangrenta e brutal pelo exército de serviço militar obrigatório, às ordens do senhor Thiers. A revolução de Outubro na Rússia deu conteúdo, forma e eficácia ao exército revolucionário. Venceu a guerra civil contra a reacção interna e a intervenção de todas as potências ocidentais, incluindo os EUA. O Exército Vermelho Soviético, o Exército Vermelho de Mao-Tsé-Tung, têm características revolucionárias, ligadas à luta em defesa do socialismo e são referência para os exércitos que surgem nas lutas de libertação nacional contra o colonialismo, desde a Indochina depois Vietname com o Vietcong de Ho Chi Min, à Argélia, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Camboja, Laos, Eritreia, Timor (FALINTIL) etc. O carácter revolucionário desses exércitos era-lhes conferido pela sua ligação radical aos interesses populares, pela sua composição popular, pelos seus objectivos anticolonialistas e anti-imperialistas. Normalmente, ou durante a maior parte do tempo, assumiam-se como forças irregulares mas puderam, a partir de certa fase da luta, assumir o carácter de forças regulares: Vietname na luta contra os EUA ou Polisário contra Marrocos - forças armadas assumidamente políticas, como haviam sido, aliás, os exércitos burgueses revolucionários já referidos. Estes últimos organizavam-se, passada a fase aguda revolucionária, de forma a impedir que a conflitualidade social e política, a luta de classes, se insinuasse nas suas fileiras: à democracia inicial, impuseram uma forte disciplina hierarquizada pela burguesia. Também os exércitos decorrentes das revoluções modernas, nascidas na Comuna de Paris, mais cedo ou mais tarde, de acordo ainda com as vicissitudes da história, se foram transformando em exércitos tipo burguês, adequados às alterações de classe no poder. Mas, até à queda do muro de Berlim, mantiveram sempre a fachada de exércitos democráticos, política e ideologicamente empenhados. As forças armadas dos Estados burgueses actuais são definidas como apolíticas: trata-se de incorporar os trabalhadores e mobilizá-los como carne para canhão para a defesa dos interesses das burguesias dominantes. Logo, devem obedecer a normas restritivas que violam nomeadamente os direitos fundamentais dos cidadãos que os integram. Uma das questões cruciais que levaram ao 25 de Novembro foi exactamente o facto de, depois dos tropeções do PREC e, nomeadamente, do verão quente de 1975, as FA’s caminharem, por força da desagregação do exército colonial e por pressão do movimento popular e do movimento democrático dos soldados, em sentido oposto ao do movimento de consolidação do poder político burguês. Se o SMO, no PREC, ajudava o movimento revolucionário, hoje significa apenas carne para canhão da agressividade imperialista materializada na NATO a na cumplicidade com os crimes de guerra dos EUA e Grã-Bretanha ou outros quando tal nos for imposto se não mudar a feição dos governos nem a feição da UE. Há a acrescentar que, para um exército credível, em termos de capacidade técnica necessária para dizer que existe, mesmo que não sirva para nada, o SMO apenas produziria faxinas e básicos elementares, pois o grau de aperfeiçoamento tecnológico exigido não é compatível com uma duração de serviço militar obrigatório aceitável pela própria sociedade. Numa sociedade em que os “valores nacionais” se vão dissolvendo irresistivelmente na enxurrada da globalização financeira, o SMO não tem lugar. Esgotada a base real da mitologia nacionalista, a missão ou missões das FA’s só podem ser cumpridas por mercenários. Por razões técnicas e por razões políticas. Chamem -lhes voluntários ou profissionais. Eles não passam e, se não já, é assim que serão chamados no futuro próximo, de mercenários, ainda que de baixa intensidade. A globalização avassaladora submetida ao império dos EUA, e às suas políticas de terror, só tem uma resposta aceitável e credível. E ela não está na guerra, nem sequer enquanto conceito teórico e abstracto. Está na resistência à guerra. Porque a guerra hoje é terrorismo. Os jovens, mesmo que não tenham consciência disto, não querem ir para o serviço militar. E, como estamos em democracia, por enquanto, isso reflecte-se no sistema político, nos partidos, da direita à esquerda. E nas leis que organizam a sociedade. É bom de ver que, se os jovens se empenharam entusiasticamente no 25 de Abril, foi porque há muito resistiam ao serviço militar e a ir para a guerra colonial. E tinham razão. Como têm hoje razão em não quererem integrar umas forças armadas que não defendem soberania nenhuma, pelo contrário, não passam de um pau mandado – e outra coisa não podem ser – de políticas imperiais e criminosas que impõem a guerra e o terror ao mundo. Mesmo que não pensem assim, os jovens sentem assim. As coisas não surgem por acaso. Os jovens continuam a ter o sentido do futuro e a ter que se defrontar, como sempre foi, mas não é obrigatório que seja, com as classificações mais torpes dos que querem que o mundo não mude. Mas, quando menos dão por isso, já ele mudou. Conclusão A guerra, na era da globalização sob controlo único dos EUA, é igual a terror, também do ponto de vista político. Hoje, os exércitos nacionais tendem a ser ou inúteis ou instrumento de terror, parafraseando uma frase célebre de Lenine sobre a Europa. Não há, nunca houve, não pode haver exércitos democráticos, a não ser como excepção. O que permite as excepções são situações revolucionárias em que os exércitos se envolvem por osmose com os interesses da revolução invertendo, naturalmente, o sentido da hierarquia. Mas raramente tal acontece aos exércitos enquanto todo. As características técnicas e políticas dos exércitos nos dias de hoje só comportam voluntários e profissionais que são mercenários de baixa intensidade. Na era da globalização financeira chegou ao fim a missão dos exércitos como garantia celebrada da defesa nacional, ou seja das burguesias nacionais; entraram inapelavelmente na fase final da perversão: são exclusivamente instrumentos da política imperialista na era da globalização. Ou seja, transformaram-se no seu contrário.