Reflexões sobre qualificação e empreendedorismo em um arranjo produtivo local
Luanne Alves Oliveira *
Fabiana Maria da Costa **
Ângela Santana do Amaral ***
Resumo: Este trabalho reflete sobre as ações de qualificação profissional e a incorporação de
valores do empreendedorismo no contexto do Arranjo Produtivo Local de confecções em
Pernambuco. Este APL tem apresentado um aumento na demanda por trabalho, o que contrasta
com os baixos índices de escolarização e qualificação profissional que apresentam a maioria dos
trabalhadores no ramo. Assim, investigamos as iniciativas para qualificação empresarial e
profissional na região, que dissemina valores do empreendedorismo, da competitividade, do
cooperativismo e da inclusão social sob o discurso da capacidade inovadora e da auto-gestão
empresarial no mercado como alternativa à situação de desemprego.
Palavras-chave:
trabalho;
empreendedorismo.
qualificação
profissional;
arranjo
produtivo
local;
Abstract: This work reflects on the initiatives of professional qualification and incorporation of
values of entrepreneurship in the context of the Local Productive Arrangement of confections in
Pernambuco, Brazil. The APL has filed an increase in demand for labour in contrast to the low
levels of schooling and professional qualifications which have the majority of workers in the
industry. Thus, we investigated the initiatives for business and professional qualification in the
region, which spread values of entrepreneurship, competitiveness, cooperation and social
inclusion in the speech of innovative capacity and self-management in the enterprise market as
an alternative to the unemployment situation.
Key words: labour. professional qualification; local productive arrangement; entrepreneurship.
Introdução
Atualmente o surgimento dos arranjos produtivos locais (APL) tem suscitado
muitas pesquisas e debates, onde se discutem diversos aspectos relevantes à realidade
produtiva e às relações sociais e de trabalho que se dão no âmbito desses novos
empreendimentos. Parte do interesse em estudar os APL está no destaque que os
mesmos têm recebido nos debates e estudos sobre desenvolvimento, sendo afirmado no
discurso governamental e empresarial o potencial de geração de emprego e renda
decorrentes dos investimentos nestas cadeias produtivas, possibilitando um ambiente
propício à inovação, aumentando a competitividade e a articulação das empresas,
instituições de ensino e financiamento. Em razão desse potencial, os Arranjos
Produtivos Locais têm sido considerados relevantes para a formulação de estratégias de
desenvolvimento regional.
*
Graduanda em Serviço Social pela UFPE. End. eletrônico: [email protected]
Graduanda em Serviço Social pela UFPE. End. eletrônico: [email protected]
***
Drª em Serviço Social pela UFRJ, profª da UFPE. End. eletrônico: [email protected]
**
É importante, inicialmente, fazer uma breve apresentação do conceito e da
dinâmica de um arranjo produtivo para, em seguida, discutirmos as iniciativas de
formação profissional voltadas especificamente para esse modelo de atividade
produtiva.
Segundo o Termo de Referência para a Política de Apoio ao Desenvolvimento
dos Arranjos Produtivos Locais, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior (MDIC) um APL é caracterizado,
(...) por ter um número significativo de empreendimentos no território e de
indivíduos que atuam em torno de uma atividade produtiva predominante, e que
compartilhem formas percebidas de cooperação e algum mecanismo de
governança. Pode incluir pequenas, médias e grandes empresas (...).
Esses arranjos surgiram na década de 1970, sob a forma de centros ou pólos de
fabricação de produtos. Reuniam apenas empresas de um mesmo setor, mas atualmente
incorporam uma rede de serviços e instituições públicas e privadas que se relacionam.
Para fins deste estudo, tomamos como referência o APL de confecções de
Pernambuco, segundo pólo de confecções do Brasil, que abrange três municípios do
Estado (Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe e Toritama), sobre o qual tivemos maior
aproximação no que se refere às ações de formação profissional. Este ‘pólo de
desenvolvimento’ é destaque há alguns anos pela produção de peças de vestuário, base
de sua atividade econômica.
O APL de confecções conta hoje, em seu território, com diversas indústrias
têxteis, empresas formais de micro, pequeno e médio porte e uma grande quantidade de
empresas informais, compreendendo entre estas os arranjos familiares prestadores de
serviços. Sobre estes últimos, pode-se afirmar que são grupos de trabalhadores(as),
geralmente formados por membros de uma mesma família que trabalham juntos na
confecção de peças de vestuário, a grande maioria em espaços improvisados dentro das
próprias residências (garagens, varandas, terraços, quintais, salas, etc.). A esses arranjos
familiares chega a demanda das empresas que atuam no ramo da venda ou revenda de
confecções, sem que haja entre ambos uma relação contratual de trabalho, sendo esta
atividade considerada uma prestação de serviço.
Dessa forma, entendemos que há uma dicotomia no que se refere ao trabalho
envolvido no processo produtivo: por um lado é requerida uma força de trabalho
altamente especializada, apta a desenvolver e utilizar as novas tecnologias de produção;
por outro, é empregada, neste mesmo processo, a força de trabalho de um segmento da
população que não teve acesso à educação básica, tradicionalmente alijado do mercado
de trabalho por não possuir qualificação técnica ou não se enquadrar nos perfis
requisitados pelas empresas.
Diante dessa realidade, procuramos investigar alguns aspectos das ações de
formação/qualificação profissional voltadas, especificamente, para os trabalhadores e as
empresas que se encontram nessa região produtiva de Pernambuco, considerada
atualmente promissora no que diz respeito ao desenvolvimento econômico e social do
estado.
As ações de formação profissional e os principais agentes envolvidos
Através de aproximações sucessivas à realidade dos três municípios que
compõem o APL de confecções em Pernambuco foi possível observar in loco as
condições objetivas de vida e de trabalho da população bem como a atuação das
indústrias e empresas localizadas naquela região.
Tem-se evidenciado, sobretudo na mídia, a ampliação do número de postos de
trabalho no setor têxtil da indústria pernambucana, concentrada principalmente no
Agreste do Estado. Com notoriedade nacional e crescimento acelerado da produção, o
APL de confecções tem apresentado um aumento na demanda por trabalho, o que
contrasta com os baixos índices de escolarização e qualificação profissional de grande
parte dos trabalhadores do ramo. Dado isto, empresas e poder público passaram a
investir em cursos de capacitação e qualificação de força de trabalho para atender à
demanda crescente das indústrias e empresas alocadas naquela região. Alguns cursos de
qualificação como, por exemplo, ‘encarregado de acabamento’, ‘encarregado de
malharia’, ‘encarregado de tecelagem’, ‘modelista’ e ‘supervisor da qualidade’ foram
estrategicamente criados pelo Senai especificamente para atender aos requisitos da
indústria têxtil em Pernambuco.
Segundo o Grupo de Trabalho Permanente para os Arranjos Produtivos Locais
(GTPAPL)1,
a especialização dos trabalhadores contribui para incrementar o conhecimento
disponível, e a ser compartilhado, para o APL como um todo e para o
desenvolvimento industrial, em um contexto de bom funcionamento do mercado
de trabalho. (...) A presença de trabalhadores especializados nos limites do
1
Instituído pelo Ministério do Desenvolvimento e Comércio Exterior através da Portaria Interministerial
nº 200 de 03/08/04, reeditada em 24/10/2005, composto por 33 instituições governamentais e nãogovernamentais de abrangência nacional.
aglomerado industrial é sustentada tanto pela oferta quanto de demanda. No
lado da oferta, a sobreposição de comunidade e indústria torna mais fácil a
formação de uma força de trabalho local especializada. Paralelamente, a
fabricação de produtos customizados e de alta classe, que prevalece nos arranjo
produtivo incrementa a demanda por uma força de trabalho especializada.
Adicionalmente, a existência dentro do distrito de um grande número de firmas
especializadas, com oferta de produtos intermediários e serviços relacionados
para um dado grupo de atividades, facilita a formação de firmas subsidiárias,
que absorvem as energias criativas não absorvidas pelos fabricantes de produtos
finais. Destaque-se também, que uma força de trabalho de alta qualidade
influencia positivamente a geração de inovações. De maneira que, o
desenvolvimento de profissionais especializados é o limite para uma estratégia
de revitalização de pequenas e médias empresas (Manual de Apoio aos APL,
2006; pp. 15-16).
É no sentido de compreender os esforços e ações direcionados à formação da
força de trabalho no Arranjo Produtivo pernambucano de confecções que buscamos
refletir sobre as ações de educação profissional (qualificação e requalificação)
desenvolvidas no âmbito desse arranjo. Investigamos o argumento estatal e empresarial
usado para justificar a necessidade de ações de qualificação profissional direcionadas a
esta atividade produtiva. Para isso, foi elaborado um dossiê contendo reportagens de
jornais e revistas de circulação local e nacional, bem como notícias disponibilizadas via
internet sobre o objeto de pesquisa. Através dessas informações obtivemos dados
estatísticos, conhecemos as principais problemáticas, os investimentos públicos e
privados e o discurso do Estado e do empresariado referente às iniciativas de
qualificação profissional voltadas para este Arranjo Produtivo da região Agreste de
Pernambuco.
As agências de formação profissional, em especial aquelas que compõem o
Sistema S, incentivadas pelas mudanças que vêm se operando nessa economia local,
e/ou
pressionadas
por
elas,
procuram
atender
administrativa,
financeira
e
educacionalmente às demandas de parte das empresas e do poder público, de um lado, e
da parte dos trabalhadores, por outro. O APL de confecções conta atualmente com a
presença de grandes organismos de educação profissional que atuam na promoção de
cursos sistemáticos de formação, treinamento dentro de empresas e trabalham em
parcerias com os poderes públicos locais, os Ministérios da Educação e do Trabalho,
com Organizações da Sociedade Civil, Organizações Não-Governamentais e agências
de financiamento.
De acordo com o Grupo de Trabalho Permanente para Arranjos Produtivos
Locais, um dos fatores que garantem a sustentabilidade da competitividade do APL,
compreendendo-o como “estratégia de desenvolvimento” é, entre outros, a formação e
capacitação, na construção de capital humano diferenciado.
Sob a mesma lógica, são gradualmente implementadas e expandidas iniciativas
de formação profissional no APL de confecções de Pernambuco, com cursos de curta e
longa duração ministrados principalmente pelo Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (Senai) e pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). Outros
cursos, em menor quantidade, também são oferecidos por empresas ou por iniciativas
dos gestores municipais.
Destaca-se, também, a forte presença do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas (Sebrae), implementando sua visão “empreendedora” aos
estabelecimentos comerciais de venda ou prestação de serviços no sentido de estimular
a cooperação e a competição entre elas.
O sentido de existência de um APL, segundo o SEBRAE, é construir um
ambiente
favorável
para
que
empresas
do
mesmo
segmento,
localizadas
geograficamente próximas, trabalhem juntas para obterem melhores resultados para os
seus negócios, e para isso trabalhem com a idéia da coopetição, que une cooperação
com competição. No entanto, o que observamos foi a existência de um cooperativismo
desequilibrado, mantenedora das grandes empresas capitalistas do ramo de confecções,
utilizando-se na maioria dos casos dos serviços dos arranjos familiares. Estes últimos
continuam sob condições precárias de trabalho e alienadas da sua condição de
subalternidade e exploração pelas grandes empresas. Parte dessa condição se deve à
ideologia propagada no discurso da autonomia, atrelada à idéia do ‘próprio negócio’,
elemento central na prática empresarial ‘empreendedora’. E a qualificação profissional
está diretamente ligada a essas questões.
Conclusões
No contexto de um ‘pólo de desenvolvimento’, representado pelo Arranjo
Produtivo de confecções em Pernambuco, identificamos que a Política de Qualificação
Profissional encontra-se atrelada à Política de Desenvolvimento Industrial Regional.
Portanto, as principais políticas de suporte ao desenvolvimento dos APL em
Pernambuco incluem desde programas de apoio à competitividade entre empresas;
empreendedorismo e gestão tecnológica, geração e difusão de tecnologias para
modernização dos bens e serviços produzidos na região; desenvolvimento regional; até
capacitação e formação de recursos humanos.
As justificativas identificadas tanto no discurso do Estado como do
empresariado, sobre a necessidade das parcerias entre estas duas instâncias para
realização de ações de formação profissional incitou a reflexão sobre a questão do
emprego enquanto preocupação que envolve os “interesses gerais da sociedade”.
Entretanto, o que podemos observar nas aproximações que temos feito ao nosso objeto
de estudo é que a parceria entre o poder público e a iniciativa empresarial no contexto
do
arranjo
produtivo
de
confecções
pernambucano
tem
conferido
maior
responsabilidade pela educação profissional dos trabalhadores às agências de formação
do Sistema S, sendo o poder público local co-partícipe desse processo, sem que este
assuma, de fato, o papel de agente propulsor de ações públicas no campo da formação
profissional dos trabalhadores.
No caso das agências empresariais de formação, vale ressaltar que o processo de
educação profissional para o mercado inclui a disseminação de valores como
competitividade e formação de competências individuais, bases da teoria do capital
humano2, reatualizada nas iniciativas de desenvolvimento local como as dos Arranjos
Produtivos.
Dada essa característica, é importante apontar que as prioridades de investimento
em educação profissional, justificadas sob o argumento da “oportunidade do mercado”,
são diretamente orientadas pelas demandas das grandes indústrias têxteis e das empresas
que compõem o arranjo produtivo, sem que sejam consideradas as particularidades
locais da população trabalhadora. Este é um exemplo de como a política de educação
profissional e qualificação estão orientadas para adequação aos setores econômicos,
reproduzindo o discurso do conhecimento como o caminho para o “sucesso”.
Para finalizar, a apropriação dos argumentos sobre qualificação por parte do
Estado e do empresariado possibilitou a identificação de um discurso que centraliza a
qualificação como única saída para as classes trabalhadoras marginalizadas econômica e
socialmente em relação à situação de desemprego, habilitando-as, em tese, para a
concorrência a uma vaga no mercado de trabalho. Segundo esta ótica, a formação
profissional deve conter estratégias que apontem para a valorização dos recursos
humanos, centradas na elevação das suas competências.
2
A Teoria do Capital Humano explicita o significado e a importância da educação para o processo
produtivo, defendendo a idéia de que as diferenças entre os países e classes derivam não somente dos
investimentos em tecnologia e capital constante, mas do investimento nos indivíduos, no capital humano,
ou seja, uma compreensão de educação enquanto mercadoria, como fator de investimento para garantir o
retorno financeiro.
A noção de competência vem atender ao princípio da adaptabilidade individual
do trabalhador sujeito às mudanças sociais e econômicas do capitalismo e assim
conformá-lo às imposições das empresas, isto é, reforça a responsabilização do
indivíduo quanto a sua qualificação para o desenvolvimento da chamada
“empregabilidade”.
A importância da qualificação, enquanto elemento indispensável para a
formação
profissional
é
reafirmada
quando
se
menciona
o
promitente
‘desenvolvimento’ do Estado de Pernambuco impulsionado, entre outros fatores, pelos
investimentos crescentes nos Arranjos Produtivos Locais (APL). No entanto, no
contexto do APL em questão, a formação profissional proporcionada pelo ‘diferencial’
da qualificação, do conhecimento técnico e científico ainda não se constitui uma
realidade, haja vista a co-existência entre um setor industrial crescente e carente de
força de trabalho especializada – apesar da intervenção do Sistema S – e um grande
contingente de trabalhadores informais que participam do processo de produção mais
geral, através das facções de costura, cujos trabalhadores com baixa escolaridade para
fazer impulsionar a cadeia produtiva de confecção têm, no “saber-fazer”, seu principal
recurso de qualificação profissional.
Outro aspecto relevante – e não menos importante – é a disseminação de uma
cultura de valores que levanta a bandeira do empreendedorismo, da competitividade, do
cooperativismo e da inclusão social, sob o discurso da capacidade inovadora e da autogestão empresarial no mercado. E esse discurso, propagado tanto para as grandes
indústrias como para os arranjos familiares, atinge de forma direta os modos de
produção de mercadorias e de reprodução da força de trabalho. A diferença está no
modo de apropriação desse discurso: para as empresas representa uma nova forma de
gestão da produção e das vendas; para os arranjos familiares, uma alternativa de
trabalho ‘autônomo’. A ideologia implícita na idéia da autonomia diretamente vinculada
à idéia de ‘ser o próprio patrão’ parece-nos problemática. Isso porque neste arranjo
produtivo, como dito anteriormente, a maioria dos trabalhadores vinculados à produção
de vestuário é informal; prestam serviços sem alguma relação contratual, não têm
acesso à proteção trabalhista, e trabalham por sob precárias condições, muitas vezes por
mais de 8 horas diárias. A idéia de trabalhar por conta própria, nesta realidade, não
desvincula o pequeno produtor das grandes empresas, ao contrário, subordina-o às suas
demandas, não garante mudança efetiva das condições de trabalho e não altera sua
condição de dependência, ocultada pelo discurso da inclusão e cooperação que
caracteriza um arranjo produtivo.
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