Latusa digital – ano 5 – N° 34 – setembro de 2008 Sintoma como acontecimento de corpo* Maria Angela Maia** O viés que privilegio percorrer, exposto no título deste trabalho, parte da questão sobre a busca de uma base material para o mental que está presente, como diz Jacques-Alain Miller, desde o início até o fim das obras de Freud e de Lacan1. Em 1895, em seu “Projeto de psicologia”, Freud já havia elaborado a idéia de uma base neuronal para o psiquismo. Embora a nomenclatura freudiana seja importada da neurologia; embora alguns autores interpretem a presença, nesse escrito, de um desejo de Freud de explicar o anímico em bases neurológicas; embora isso tenha levado alguns pós-freudianos a sustentarem a psicanálise conforme uma psicologia do eu, e outros em incorporá-la aos avanços da neurobiologia e introduzi-la nas neurociências; mesmo assim é fácil perceber, em uma leitura superficial do texto freudiano, a inadequação dessas leituras. É exatamente essa direção que Miller toma ao apresentar as concepções freudianas e diferenciá-las do cognitivismo, que busca fundamentar a base real para o psiquismo na atividade cerebral neuronal, no neuro-real como ele nomeia, em que o psiquismo é um duplo do cérebro. No cognitivismo, a * Trabalho apresentado no Seminário de Orientação Lacaniana, na EBP-Rio, em 15 de setembro de 2008, como produto do cartel composto por Romildo do Rêgo Barros (maisum), Lenita Bentes, Fernando Coutinho, Manoel Barros da Motta, Maria Angela Maia e Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, encarregado da apresentação das linhas gerais do curso de Jacques-Alain Miller de 2007-2008. ** Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). 1 Acompanharei os desenvolvimentos apresentados por Jacques-Alain Miller sobre o sintoma como acontecimento de corpo desde a aula 9 (6 de fevereiro de 2008) até a aula 15 (14 de maio de 2008) de seu Curso de Orientação lacaniana, III, 10 (2007-2008). 1 relação à atividade neuronal “sutura ou foraclui tudo que é do registro do ato”2. Diferentemente, para Freud importa a atividade psíquica e não a cerebral. Podemos verificar que Lacan já havia feito, em 1959-19603 uma leitura do “Projeto” a partir da qual afirmou tratar-se de uma “topologia da subjetividade”, e ressaltou de tal modo a concepção freudiana de Eu real que permite diferenciá-la de sua conceituação de sujeito do inconsciente, o que apenas indico aqui. Encontramos também no seminário em que ele se dedica ao estudo do ato analítico uma referência sobre o estatuto do aparelho psíquico. Lacan nos leva a perceber que os textos de Freud e a totalidade do pensamento analítico “só podem se sustentar colocando na defasagem, no intervalo entre os elementos aferente e eferente do arco reflexo, esse famoso sistema psi dos primeiros escritos freudianos”.4 As teses do Projeto Freud propõe, no “Projeto”, duas teses fundamentais que sustentam a concepção de uma base material para o psiquismo. Cabe lembrar que ele parte de suas observações clínicas referidas a representações excessivamente investidas na histeria e na neurose obsessiva. Valendo-se da ciência da natureza de sua época, na qual os fenômenos do mundo são pensados em termos de quantidade de energia e de massas em movimento, Freud pensa o homem. A primeira tese freudiana5, a concepção quantitativa, acompanha as leis gerais da física para o movimento. A quantidade, cuja magnitude é intercelular, se desloca entre os neurônios e pode se acumular em um 2 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, III, 10 (2007-2008). Inédito, aula 9 de 6 de fevereiro de 2008. 3 LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 4 LACAN, J. O seminário, livro 15: O ato psicanalítico (1967-1968). Inédito, aula de 15 de novembro de 1967. 5 FREUD, S. “Proyeto de psicología” (1895). Em: Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, vol. II, 1989, pp. 340- 341. 2 neurônio ou em um grupo de neurônios. Coloca-se, então, para Miller6 a questão de saber em quê essa energia psíquica se distingue de uma realidade física. Ressaltamos que se trata para Freud de uma quantidade não mensurável, embora sua magnitude sofra acréscimos, somas, diminuições e descargas. Nessas condições, Miller observa que a descrição freudiana parece metafórica, visto que há uma quantidade que permanece como uma incógnita na abordagem de Freud. Digamos também que o princípio fundamental da atividade neuronal, o princípio de inércia postulado por Freud, isto é os neurônios procuram se liberar de qualquer quantidade – a cessação da estimulação – introduz um paradoxo em sua concepção. A segunda tese de Freud compõe a própria teoria dos neurônios, segundo as descobertas da histologia sobre o sistema nervoso ser composto por elementos distintos, embora com morfologia idêntica, que se ramificam e conectam entre e si. Vale nos determos um pouco para demarcar duas características importantes desse primitivo aparelho psíquico, conforme ressaltado por Miller, em seu curso O parceiro-sintoma (1997-1998), recém publicado7. A primeira se refere à reflexibilidade. De um lado, a soma de quantidade que vai desde a sensação, o estímulo, a excitação, até o estado de necessidade; de outro, a resposta, ou seja, a satisfação. No entanto, a intrusão da linguagem complica esse mecanismo reflexo, visto que tanto a resposta vem do campo do Outro, quanto a memória, a inscrição, se interpõe nesse circuito. A segunda característica diz respeito à modalidade de “memória ativa” apresentada por Freud, que não é um simples depósito ou estocagem. Podemos verificar que essa concepção de memória é base para os cognitivistas, o que leva ao problema das associações, para o qual eles se valem como resposta da criatividade e da plasticidade como características humanas e da relação com a cultura. Diferente da estocagem, a concepção 6 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op, cit. 7 MILLER, J.-A. El partenaire-síntoma (1997-1998). Buenos Aires: Paidós, 2008, pp. 193-200. 3 de memória ativa implica que uma segunda experiência pode reformar, constituir de outro modo uma primeira experiência ou vice-versa. Miller explicita8 também que o saber posto em função no cognitivismo é objeto de um armazenamento de memória, de aprendizagem. Já o saber para a psicanálise se refere a um discurso por meio do qual o inconsciente é interrogado sob o modo de decifração. O real da ciência contém um saber, enquanto o real próprio à psicanálise veicula o saber do inconsciente, precisamente, a ausência de lei, o furo no saber. Base material para Lacan Miller afirma9 que a materialidade em Lacan é a materialidade do sintoma, tanto no início quanto em seu derradeiro ensino. No primeiro ensino, a base material para ao psiquismo é a estrutura da linguagem, precisamente o significante como base material do inconsciente. O inconsciente é pensado conforme a enunciação do ser falante, o que leva Miller a lembrar10 que Lacan isolou, nesse momento, as formações do inconsciente, alinhando o sonho, o lapso, o ato falho, o chiste, o sintoma, nas quais é evidente a função de decifração do sentido pela via do significante. Miller destaca11 que Lacan introduz, com o sintoma, um elemento propriamente clínico na direção do tratamento. De nossa parte, ressaltamos na orientação teorica-clínica de Lacan a primazia do significante sobre o sujeito. Em “O seminário sobre a ‘A carta roubada’”12 Lacan ilustra os deslocamentos de uma carta/letra entre personagens, cujas posições são modificadas em função da posse ou não da referida carta. O sujeito é moldado segundo a determinação simbólica da 8 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op, cit. 9 Idem, ibidem. 10 Idem, aula 11 de 12 de março de 2008. 11 Idem, aula 15 de 14 de maio de 2008. 12 LACAN, J. O seminário sobre “A carta roubada” (1957). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. 4 cadeia significante que o percorre em determinado momento. A insistência da cadeia significante e sua lei de formação são onipotentes sobre o sujeito. Miller13 diz que se quisermos falar aqui em contingência, esta só existe no nível do lance ao acaso de uma moeda em cara ou coroa. No nível do lance da moeda não há sujeito, pois só há sujeito quando há uma sintaxe que define determinações, mesmo que estas tornem-se opacas até não se saber mais quais são as vias de sua determinação. Contudo, isso não impede que exista determinação. Miller demarca haver, do começo ao final do ensino de Lacan, a orientação para o abandono da categoria de determinação como bússola da prática analítica em prol da categoria de contingência. Podemos ponderar então ser nessa orientação que ele entende que a teoria dos nós, que Lacan maneja em seu derradeiro ensino, não pode ser designada pela quantidade14. Miller diz que o nodal obedece a leis que não são as leis gerais do movimento prescritas pela física matemática e que os nós ocupam o lugar da quantidade material freudiana. Lembramos então que sete anos após “A carta roubada”, ao relacionar os conceitos de inconsciente e repetição, Lacan enfatiza o termo causa perdida como ruptura, descontinuidade15. A estrutura do inconsciente comporta um furo através do qual alguma coisa de não-realizada se apresenta, fazendo do sentido um instante breve e fugaz, e atestando o inconsciente em seu caráter evanescente. A partir daqui, como diz Miller16, o real próprio ao inconsciente é delineado pelo resíduo de qualquer explicação, pela ausência, pelo que faz furo. Nessa direção, ele situa o último texto escrito por Lacan sobre o espaço de um lapso, que foi tema de seu seminário em 2006-2007, em que Lacan afirma o status do inconsciente no nível do real, do sem lei. 13 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op, cit., aula 10 de 13 de fevereiro de 2008. 14 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op, cit. 15 LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990, pp. 25-32. 16 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op. cit. 5 Ao lado disso, Miller esclarece17 que no derradeiro ensino de Lacan o sintoma responde pela materialidade do inconsciente, porém ele é mais acontecimento de corpo do que estrutura da linguagem. O termo acontecimento em Lacan Apresento então um mapeamento do termo acontecimento na obra de Lacan. Inicialmente ele diferencia os termos realidade do acontecimento e historicidade do acontecimento ao estudar o caso do Homem dos Lobos18. O acontecimiento é algo decisivo, foi uma impressão no sujeito necessária para explicar a continuação de seu comportamento. Em seguida, encontramos em O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação o termo acontecimento psíquico que concerne a diversos modos de assunção do vivido pelo sujeito.19 Em O seminário, livro 7: A ética da psicanálise, Lacan discrimina duas ordens no mundo que o significante introduz: a verdade e o acontecimento20. As relações do homem com a dimensão da verdade supõem a ação nachträglich do significante. Com o acontecimento são pontuais: um presente instantâneo. O essencial não é saber se houve ou não um acontecimento, e sim descobrir como o sujeito pôde articulá-lo como significante. Em outras palavras, como a verdade do sintoma pôde ser relacionada na lógica significante. O valor traumático de um acontecimento é devido ao lugar que ele ocupa na estrutura.21 Em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” ele ressalta ser essa a orientação que Freud visa quando busca datar a cena primária para o 17 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op.cit. 18 LACAN, J. El Hombre de los Lobos (1951-1952). Escuela Freudiana de Buenos Aires. Inédito. 19 LACAN, J. Le séminaire, livre VI: le désir et son interpretation (1958-1959). Inédito. 20 LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 321. 21 LACAN, J. O seminário, livro 8: A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 313. 6 Homem dos Lobos: ele trabalha com “ressubjetivações do acontecimento” que lhe parecem necessárias para explicar a reestruturação do sujeito em suas várias voltas em torno do acontecimento traumático. Em 1968, durante os chamados acontecimentos políticos desencadeados a partir de maio de 68 em Paris, Lacan se vale da terminologia acontecimento de discurso 22. O acontecimento de discurso corresponde a um dizer que não é de alguém em particular, sendo assim, o sujeito é secundário. O acontecimento de discurso é relativo à estrutura e ao acento posto na distribuição, nos deslocamentos de alguns termos. 23 A definição que Jacques-Alain Miller propõe para o sintoma como acontecimento de corpo efetua uma relação entre os termos acontecimento de discurso e acontecimento psíquico, como é possível verificar. “Trata-se sempre, com efeito, de acontecimentos de discurso, que deixaram traços no corpo. E estes traços desorganizam o corpo. Fazem sintoma nele, mas na medida em que o sujeito em questão esteja apto a ler esses traços, decifrá-los. Isto, finalmente, tende a reduzir-se a que o sujeito encontre os acontecimentos que estes sintomas traçam”.24 Sintoma como acontecimento de corpo e lalíngua25 Miller nos faz ver que a conceituação de sintoma como acontecimento de corpo é indissociável da concepção de lalíngua. Penso então, que conforme essa articulação, podemos dizer que a base do sintoma é a inscrição 22 LACAN, J. Le séminaire, livre XVI: D’un Autre à l’autre (1968-1969). Paris: Seuil, 2006, p. 83. 23 LACAN, J. Le séminaire, livre XVIII: D’un discours que ne serait pas du semblant (1971). Paris: Seuil, 2006, p. 10-11. 24 MILLER, J.-A. “Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo”. Em: Opção Lacaniana, nº 41. São Paulo: Eolia, 2004, p. 51. 25 As questões apresentadas neste item se encontram em: MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op. cit., aula 11 de 12 de março de 2008. 7 anímica. Como desdobramento, trago aqui duas hipóteses: a primeira referida a diferentes estatutos de marcas serem devidos a suas inscrições em temporalidades diversas. A segunda à característica de o sintoma como acontecimento de corpo decorrer da expressão repetitiva dessas marcas. Miller explicita que Lacan apoiou a concepção de linguagem na lingüística saussuriana e jakobsoniana que distingue o significante e o significado e remete a significação à substituição e à combinação de elementos significantes; formalização a partir da qual Lacan reorganizou a obra de Freud. Nos anos do Seminário 20, Lacan introduz o conceito de lalíngua, que anuncia a palavra como da ordem da secreção, um fluido lingüístico, sendo por essa fluidez que Miller considera que Lacan preferiu o nó. Em um esboço de cronologia, Miller pontua que de inicio não há linguagem, visto que ela é uma elucubração de saber sobre lalíngua. E então pergunta: em que nível se situa o inconsciente? No nível da linguagem como estruturada? No nível fluidificação de lalíngua, mais como desestruturação? Ele busca respostas no tocante à prática analítica. A análise começaria no nível do inconsciente estruturado como linguagem, particularmente na oposição entre significante e significado. Mas na medida em que a análise avança, a regra de associação livre conduziria à expressão via lalíngua. O que escapa ao que o analisando enuncia não se encontra, então, na via de uma mensagem a ser decifrada. A decifração não atinge todos os efeitos da lalíngua, que abre um campo não balizado pela estrutura de linguagem. O que escapa ao ser falante são os afetos, acontecimentos de corpo que diferem de qualquer fenômeno. Formação do inconsciente e acontecimento de corpo26 Miller reconhece que as três palavras que ele retirou de “Joyce, o Sintoma”, e que Lacan usou uma única vez, “sintoma como acontecimento de corpo”, fizeram um grande sucesso, e indicam a direção, na qual ele próprio está 26 Idem, ibidem. 8 imerso, em distinguir as formações do inconsciente e os acontecimentos de corpo. Miller demarca que o fundamento das formações do inconsciente é a existência do Outro. As formações do inconsciente pressupõem a Lei que está na origem do desejo, e a decifração revela que aquelas ancoram o sentido no desejo. No “sentido de desejo” existe comunicação e o significante que falta na fala do analisando pode ser suprido pela fala do analista na forma de interpretação. A “psicanálise do sujeito” é a tradução teórica das formações do inconsciente e do “sentido de desejo”. Nessa ordem de coisas, o fim da análise é a solução do enigma do desejo: a emergência daquilo que o desejo encoberto pelas formações do inconsciente quer dizer. No entanto, ele considera que, quando o inconsciente é ampliado até os afetos enigmáticos, os acontecimentos de corpo são incluídos, embora nada demonstre que eles tenham a mesma estrutura que as formações do inconsciente. Trata-se, diz, de “sentido de gozo”, que é distinto de “sentido de desejo”; neste último caso há comunicação, enquanto no primeiro, satisfação. De nossa parte, verifico que a concepção de sintoma como acontecimento de corpo aparece em “Joyce o sintoma”, no que diz respeito à cantoria da lalíngua joyciana27. Lacan percebe que Joyce faz literatura com lalíngua e não duvida que “Joyce tenha gozado por escrever Finnegans Wake“, em uma modalidade de gozo que atesta “o gozo próprio do sintoma. Gozo opaco, por excluir o sentido”.28 Miller resume sua proposta de tripartição da experiência analítica da seguinte forma: ela começa sob a vertente da estrutura, com a verdade e o desejo; o fim da análise é da ordem de uma nova satisfação; e no decorrer da análise, no intervalo entre esses dois momentos, lidamos com lalíngua e com os afetos que ela engendra no corpo. Isso acaba conduzindo-o a outra proposta: o privilégio dado ao corte em detrimento da decifração, no que toca à lalíngua. Em outras palavras, ele nos diz que é possível que não seja 27 LACAN, J. “Joyce, o Sintoma” (1976). Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 565. 28 Idem, p. 566. 9 a decifração, e sim o corte o produtor de acontecimentos de corpo. Sendo assim, a sessão denominada curta não é ordenada pelas formações do inconsciente, mas pelos acontecimentos de corpo. Acontecimento de corpo e advento de significações Miller esclarece29 a diferença entre os termos acontecimento (evénement) de corpo expresso por Lacan em “Joyce, o Sintoma” e advento (avènemnet) de significações inconscientes, em “A instancia da letra”30. Neste último caso, o que chamamos de revelação é um acontecimento de desejo, que é sempre um “acontecimento de verdade” no qual se distingue um antes e um depois. No sintoma como advento (avènemnet) de significações inconscientes, o corpo está implicado a título da função significante. Visto bem atentamente, Miller31 também nos lembra que o sintoma é uma fixação de gozo essencial do sujeito, e que Lacan mostrou com esse termo algo totalmente distinto da significação de saber inconsciente. Também que Lacan buscou uma lógica que levasse do saber suposto à descoberta do gozo fixado na fantasia, e depois buscou o mesmo pela via do sinthoma. Miller ressalta ser evidente a diferença entre abordar o gozo por uma via ou por outra. A fixação de gozo traz como questão para a psicanálise a possibilidade ou não de deslocamento do gozo. Miller32 enquadra então o acontecimento de corpo como devido à ruptura com o sentido gozado, que se opõe ao sintoma como advento de significações, efeito de substituição entre dois significantes. Segundo essa fórmula, a substituição entre dois significantes produz uma centelha que se fixa em um sintoma. Miller localiza aí o paradoxo de uma centelha fugidia, por excelência, que se encontra, porém, fixada em um sintoma. 29 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op. cit., aula 15 de 14 de maio de 2008. 30 LACAN, J. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 519. 31 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op. cit., aula 12 de 19 de março de 2008. 32 Idem, aula 15 de 14 de maio de 2008. 10 Ele demarca33 então que o desconcertante no derradeiro ensino de Lacan é que ele coloca exatamente em questão a interpretação da psicanálise como experiência da verdade, e que Lacan parece introduzir a psicanálise como experiência de satisfação. A satisfação aparece como um fim e o sinthoma lacaniano não é relacionado a uma verdade recalcada e inacessível que deve surgir na consciência. Assim, Miller34 verifica que, em “Joyce, o Sintoma”, Lacan dá testemunho ao gozo opaco e, inclusive, marca uma ruptura com o que tinha dito em “Televisão”, três anos antes: as cadeias significantes inconscientes são feitas de gozo, e a escrita possível disso é o sentido gozado (sens joui). Miller enfatiza que a notação de gozo opaco afasta a de sentido gozado. Daí ele pergunta: o gozo-sentido é sentido gozado ou exclui o sentido? Ele considera essa questão central para a psicanálise, uma vez que os meios da psicanálise são os meios do sentido. Por um lado, o sintoma pode parecer opaco, tal como o sonho ou o ato falho podem ser, mas é suposto que a análise o tornaria translúcido. Isto é, que um significado do discurso do Outro poderia traduzir tanto a eclosão quanto a resolução do sintoma. Por outro lado, o gozo que exclui o sentido é muito próximo da experiência quando a análise se prolonga com a impotência da interpretação, como se a própria interpretação liberasse a repetição de um gozo sobre o qual ela não mais opera pela via da decifração. O gozo opaco leva à incandescência o objeto a como condensador de gozo, pois na medida em que a interpretação opera, a libido se concentra sobre alguns pontos e, no limite, em um ponto. Miller35 dá relevo ao valor de forçamento necessário quando se quer que o gozo opaco regresse ao reino do sentido. Lembra que Lacan desvaloriza esse gozo, já que o analista recorre ao sentido para resolvê-lo36, e sendo 33 Idem, aula 13 de 26 de março de 2008. 34 Idem, aula 15 de 14 de maio de 2008. 35 Idem, ibidem. 36 LACAN, J. “Joyce, o Sintoma” (1976). Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 566. 11 assim, ele assinala que recorrer ao sentido para resolver o gozo é um achatamento; é oferecer à análise um final chato do qual Lacan felicita Joyce por ter escapado37. Miller conclui que a análise que se serve da metáfora paterna para resolver a questão do gozo tapa o enigma do gozo porque o transforma em sentido, e que isso é, no derradeiro ensino de Lacan, uma enganação. Miller38 evidencia que o verbo resolver indica a dimensão pragmática da análise. E que Lacan valoriza a tal ponto esse aspecto que ele chega a indicar que o analista só pode se entregar à operação de forçamento do gozo opaco na condição de se fazer tolo do pai. Miller localiza aqui o lugar onde Lacan pôde dizer: podemos prescindir do Nome-do-Pai – quer dizer, Miller esclarece, podemos nos dispensar de acreditar nisso – com a condição de continuarmos nos servindo dele, precisamente para resolver o gozo opaco do sintoma. É nesse sentido que entendo, que apesar de Miller buscar diferenciar formações do inconsciente e acontecimento de corpo, ele nos fornece uma indicação de articulação39, ao seguir o último texto escrito de Lacan no que diz respeito ao que Lacan enuncia, e aqui eu trago a citação completa de Lacan: “a miragem da verdade, da qual só se pode esperar a mentira (é isso que se chama resistência, em termos polidos), não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise”40. Miller diz tratar-se de um curto-circuito que promete que o início, ordenado na “psicanálise do sujeito”, encontrará o seu fim na “psicanálise do falasser”, em que a pergunta a respeito do sentido do desejo e da verdade encontra sua resposta na satisfação. 37 MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op. cit., aula 12 de 19 de março de 2008. 38 Idem, aula 15 de 14 de maio de 2008. 39 Idem, aula 11 de 12 de março de 2008. 40 LACAN, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11” (1976). Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 568. 12 Final da análise41 Miller parte da bipartição entre o nível da decifração do inconsciente e o nível da pulsão encontrada na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, com a qual Lacan introduz em sua Escola a prática do passe. Ele ressalta que Lacan articula ali o início da análise (com o nível da decifração do inconsciente) e o fim de análise (com o nível da pulsão). Miller interpreta Lacan, dizendo que tudo indica que Lacan seguia o caminho de dizer que o final da análise é uma construção do analisando. Ele encontra nisso o sentido da pergunta sobre o que conduz alguém a historizar a si próprio depois de uma análise? O que conduz um analisado a narrar sua análise, a fazer dela um relato que tenha sentido, sobretudo depois de uma análise? Responde que a análise deveria ter ensinado ao analisado aquilo que exclui, do gozo, o sentido. Mas então, diz, ainda resta a pergunta: por que prestar contas, com o tramar de um relato com o sentido, da fixação de gozo? É aqui que Miller situa a indicação de Lacan sobre a clivagem entre a verdade mentirosa, elaborada na dimensão inicial da análise, e a satisfação que se obtém no final da análise. Ele entende que essa clivagem deixa em aberto uma ordem de relato concebível apenas na condição de preservar sua própria incompletude. Assim, ele conclui: o relato de passe, tal qual Lacan o mostra sem dar as coordenadas, é um relato que deve comportar essencialmente o caráter de alusão daquilo que não é dito plenamente nem diretamente; é um relato que traduz o contorno daquilo que, em relação ao sentido, aparece como um vazio. 41 As questões apresentadas neste item se encontram em: MILLER, J.-A. Curso de Orientação lacaniana, op. cit., aula 12 de 19 de março de 2008. 13