RESSONÂNCIA MAGNÉTICA NUCLEAR: Gradus Primus* Cláudia Jorge do Nascimento Professora do Instituto de Química - UnB Carlos Bloch Jr. PESQUISA Professor do Instituto de Química - UnB Pesquisador da EMBRAPA Recursos Genéticos e Bioctenologia [email protected] * Primeiros passos INTRODUÇÃO Por quase meio século, a determinação de estrutura tridimensional (3D) de proteínas vem sendo feita por métodos de cristalografia e difração de raio-X; é inquestionável a importância e a contribuição que aplicações dessa técnica têm proporcionado à Bioquímica. Entretanto, há mais ou menos vinte anos, a Ressonância Magnética Nuclear (RMN), que já ocupava um local de destaque nos estudos estruturais de pequenas moléculas, começou a ser utilizada na determinação da estrutura tridimensional de peptídeos e proteínas em solução, independentemente de dados cristalográficos. Para que isso fosse possível, sensíveis avanços na instrumentação e na metodologia dessa técnica tiveram que ocorrer, incluindo-se, entre os mais importantes, o uso de campos magnéticos homogêneos de alta intensidade, novas técnicas de pulso e a introdução de métodos computacionais mais avançados para a produção e a interpretação dos dados de RMN de macromoléculas. Atualmente, mais de duas mil estruturas 3D de proteínas determinadas por RMN têm suas coordenadas atômicas depositadas no Brookhaven Protein Data Bank (http:// www.rcsb.org/pdb/) e esse número vem crescendo rapidamente. Verificaram-se também significativos progressos na determinação estrutural de outros biopolímeros por RMN, como é o caso dos ácidos nucléicos e dos oligossacarídeos, antes obtidos 52 Figura 1: A Radiação Eletromagnética apenas por difração de raio-X. Com a chegada da era pós-genômica, nunca se exigiu tanto dos métodos para obtenção de estruturas 3D de biomoléculas. Tradicionalmente, esse trabalho tem sido efetuado com características quase artesanais devido à alta complexidade da tarefa, ao tempo necessário para a obtenção de apenas uma estrutura (vários meses) e aos elevados custos com infraestrutura e manutenção. Por essas e por outras razões é que o uso da RMN em Bioquímica ainda se encontra restrito a poucos grupos de excelência espalhados pelo mundo e que seus fundamentos teóricos permanecem obscuros para a maioria daqueles que têm algum interesse nos mais recentes avanços dessa nova era de descobertas científicas. O presente artigo tem como objetivo primordial oferecer a leitores que não sejam da área de RMN, mas Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21 - julho/agosto 2001 que possuam noções básicas em física e em química, uma visão global dos fenômenos que fundamentam essa técnica, e da maneira como tais fenômenos são utilizados no processo de determinação estrutural de substâncias relativamente simples, permitindolhes dar os primeiros passos para uma melhor compreensão das metodologias desenvolvidas na obtenção de estruturas 3D de moleculas bem mais complexas (peptídeos, proteínas e ácidos nucléicos) disponíveis na literatura. É importante ressaltar que a abordagem escolhida será bastante simplificada, uma vez que para uma verdadeira compreensão do fenômeno que representa a Ressonância Magnética Nuclear seria necessária uma descrição em termos de Mecânica Quântica, com a utilização de operadores quânticos e matrizes de densidade, 1-4 o que está fora dos objetivos deste artigo. PRINCÍPIOS BÁSICOS DA ESPECTROSCOPIA DE RESSONÂNCIA MAGNÉTICA NUCLEAR A Espectroscopia é o estudo da interação da radiação eletromagnética (REM) com a matéria. Essa radiação pode ser vista como uma onda com duas componentes, uma elétrica e outra magnética, que oscilam perpendicularmente entre si, sendo ambas também perpendiculares à direção de propagação da luz (Figura 1). A interação entre a radiação eletromagnética e a matéria pode ocorrer de duas formas: pela sua componente elétrica ou pela sua componente magnética. Uma das diferenças fundamentais entre a RMN e as outras formas de espectroscopia reside no fato de que, na RMN, essa interação se dá com o campo magnético da REM e não com o campo elétrico, como é o caso, por exemplo, do infravermelho ou do ultravioleta. A REM de interesse em análises químicas vai desde os raios gama (alta energia) até as ondas de rádio (baixa energia). Para cada tipo de espectroscopia é exigido um tipo de excitação e, para cada uma delas, existe uma quantidade definida de energia, ou seja, esses fenômenos são quantizados. Isso quer dizer que uma radiação de freqüência determinada e característica é absorvida para uma determinada transição. A RMN encontra-se na região das ondas de rádio (radiofreqüências). Em princípio, pode-se dizer que a RMN é uma outra forma de espectroscopia de absorção. Em um campo magnético, sob determinadas condições, uma amostra pode absorver REM na região da radiofreqüência (rf), absorção essa governada por características da amostra. Essa absorção é função de determinados núcleos presentes na molécula, que são sensíveis à radiação aplicada e, por isso, esses núcleos são alvo de estudo para a compreensão da RMN. 1- A DEFINIÇÃO DE SPIN NUCLEAR Tabela 1: Mostra a correlação existente entre o número atômico (Z) e o número de massa (A) com o número de spin (I) A Z Exemplos * I 1 Ímpar Par ou ímpar H(1/2), 17O (5/2), 15N (1/2) Meio inteiro 2 Par Ímpar H (1), 14N (1), 10B (3) Inteiro 12 Par Par C (0), 16O (0), 32S (0) Zero * O número entre parênteses indica o número de spin I do núcleo exemplificado A grandeza física envolvida em RMN é o spin nuclear. O conceito de spin nuclear provém da Mecânica Quântica, não possuindo conceito equivalente na Mecânica Clássica. Esse conceito é fundamental para a compreensão do fenômeno e pode ser compreendido como uma propriedade que determinados núcleos apresentam. Tais núcleos, devido à sua configuração nuclear, assumem um comportamento característico de momento angular, capaz de gerar um momento magnético (Figura 2), pois uma carga em movimento gera um campo magnético. O momento magnético µ gerado pode ser descrito em termos do número de spin I, cujos valores, calculados pela mecânica quântica5,6, podem ser 0, 1/2, 1, 3/2 etc. Como se sabe, núcleos que apresentam tanto massas atômicas quanto números atômicos Figura 2: Momento magnético µ gerado a partir do momento angular pares não possuem spin, sendo, conseqüentemente, o número de spin igual a zero. É o caso do 12C, 16O, 32S etc. (Tabela 1). Esses núcleos não têm momento angular associado e, portanto, não exibem propriedades magnéticas, o que implica a ausência de sinais detectáveis por RMN. Núcleos com spin I ≠ 0 são, em princípio, detectáveis por RMN. A detecção desses núcleos está relacionada a condições experimentais especiais, que não serão aqui abordadas. Dentre os diferentes núcleos detectáveis por RMN, núcleos com I = ½ são bastante apropriados para uma compreensão mais simplificada da técnica. 2- APLICAÇÃO DE UM CAMPO MAGNÉTICO: A ENERGIA E A FREQÜÊNCIA EM RMN Na ausência de um campo magnético, os spins nucleares estão orientados randomicamente, não apresentando nenhuma orientação definida (Figura 3). Entretanto, quando uma amostra é submetida a um campo magnético externo B0, de alta intensidade e homogêneo, os spins nucleares tendem a assumir determinadas orientações. Segundo a mecânica quântica, o número de spin I determina o número de orientações que um núcleo pode assumir diante de um campo magnético externo pela relação7: número de orientações possíveis = 2I + 1 No caso de um núcleo com número de spin I = ½, apenas duas orientações são possíveis, quando há aplicação de um campo magnético: uma parcialmente alinhada com o campo magnético aplicado e outra parcialmente contra o campo magnético (Figura Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21- julho/agosto 2001 53 Figura 3: Spins randomicamente orientados 4). O ângulo θ que define a orientação do vetor com relação a B0 também é determinado pela mecânica quântica (seus valores aproximados são 55º e 125º). As duas orientações representam diferentes estados energéticos. Isso acontece porque um núcleo com spin cria seu próprio campo magnético, como já mencionado. Quanto mais paralelo forem esses dois campos (o do núcleo e o campo magnético externo), menor será a energia desse estado. Assim, o estado de menor energia é aquele que se encontra parcialmente alinhado com o campo e é denominado estado α (ou +½), e o estado de maior energia, o parcialmente contra, é denominado estado β (ou -½) (Figura 5). As energias desses níveis podem ser descritas como Eα = - µB0 e Eβ = µB0, o que equivale a dizer que a diferença de energia entre os dois níveis pode ser expressa por8: ∆E = (Eβ - Eα) = 2µB0, desde que I = ½. A diferença de energia ∆E que surge entre os dois níveis está relacionada com vários fatores, dentre eles, segundo a equação anterior, a intensidade do campo magnético B0 aplicado: quanto maior for o campo magnético aplicado, maior será a diferença de energia entre os dois níveis (Figura 6) e maior a diferença de população associada a esses níveis. Isso significa que, para uma melhor resolução de spins nucleares em ambientes químicos semelhantes, são desejáveis espectrômetros com campos cada vez mais intensos. É interessante observar que a diferença entre níveis de energia inicialmente inexistente surge devido ao 54 efeito do campo magnético externo B0 aplicado sobre o sistema de spins em estudo. Essa é mais uma das diferenças básicas entre a RMN e outros tipos de Espectroscopia: em infra-vermelho e ultra-violeta, por exemplo, já existem diferentes níveis energéticos (vibracionais e eletrônicos, respectivamente), bastando a aplicação de uma radiação de freqüência apropriada para que uma transição (vibracional ou eletrônica) ocorra. No caso da RMN, os diferentes níveis energéticos devem ser primeiramente criados pela aplicação de um campo magnético de alta intensidade (B0); só assim é que se pode proceder à Espectroscopia, aplicandose, então, a radiação de freqüência apropriada para cada núcleo. O fenômeno da RMN ocorre na região das radiofreqüências (MHz) e a Figura 4: Direções quantizadas assumidas pelos spins sob ação de um campo magnético B0 interação da radiação eletromagnética com a matéria dá-se com a sua componente magnética. Portanto, para se proceder a RMN, deve ser aplicado um segundo campo magnético (chamado de B1), proveniente de uma fonte de radiofreqüência aplicada perpendicularmente ao campo B0. É esse segundo campo magnético que permite a observação de absorções em RMN. entretanto, um estado é mais estável que o outro, devido a uma interação entre o campo e o momento magnético associado ao spin nuclear. A absorção em RMN é, portanto, uma conseqüência das transições entre o nível de menor energia e o de maior energia, possíveis pela aplicação de um segundo campo magnético na região da radiofreqüência. O momento angular L e o momento magnético µ podem ser representados por vetores e a proporcionalidade entre eles é chamada de constante (ou razão) giromagnética. Essa constante, que determina a freqüência de ressonância do núcleo, constitui um parâmetro muito importante em RMN e é representada por γ, apresentando um valor próprio para cada núcleo, podendo ser expressa pela relação: γ = 2πµ / hI onde h é a constante de Plank (∆E = hν). Se a constante giromagnética γ for positiva, como é o caso dos núcleos de 1 H e 13C, o estado +½ representa um nível de menor energia. Caso a constante giromagnética seja negativa, como, por exemplo, para o 15N, ocorre o oposto.9 Além de ser responsável pela freqüência de ressonância de cada núcleo, a constante giromagnética influencia outros fenômenos importantes da Ressonância Magnética Nuclear,10 como é o caso do acoplamento de spins (que será abordado mais adiante), da sensibilidade dos núcleos, em processos de polarização cruzada, entre outros. 3- O CONCEITO DE CONSTANTE GIROMAGNÉTICA - A EQUAÇÃO FUNDAMENTAL DA RMN Na ausência do campo magnético externo B0, os estados α e β são degenerados, uma vez que não há distinção de energia. Aplicando-se o campo B0, Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21 - julho/agosto 2001 Figura 5: Níveis energéticos criados pela ação do campo magnético B0 Figura 6: Efeito do campo B0 na diferença de energia entre os estados α e β nα/nβ = e∆E/kT onde k é a constante de Boltzmann e T, a temperatura expressa em escala Kelvin. Pode-se deduzir que, à temperatura ambiente, como a diferença de energia ∆E é muito menor que kT (∆E << kT), haverá um pequeno excesso de população de spins no estado menos energético. Assim, para um valor positivo de γ, haverá um ligeiro excesso de população para o estado α, ou seja, para os núcleos que estão alinhados com o campo magnético. Esse excesso Substituindo-se as equações anteriores (∆E = hν e γ = 2πµ / hI) , podese chegar a: ν = γB0 /2π que é a equação fundamental utilizada em RMN e que define a condição de ressonância para um núcleo com spin I = ½. 4- A MAGNETIZAÇÃO LÍQUIDA Em um campo magnético externo, o momento magnético µ apresenta um ângulo θ com a direção do campo magnético B0 aplicado (Figura 4). Segundo a Mecânica Clássica, bastante útil para a visualização de muitos conceitos de RMN, a interação entre um núcleo com um momento magnético µ e o campo B0 faz com que o momento magnético precesse em torno daquele eixo (Figura 7). A freqüência desse movimento é chamada freqüência de Larmor, e seu valor é dado pela expressão anterior ν = γB0 /2π em Hertz. Os dois estados energéticos correspondem, então, à precessão de µ em torno do eixo, alinhado (menor energia, se γ for positiva) ou oposto ao campo magnético aplicado B0. Considerando que o campo B0 esteja aplicado na direção z, no equilíbrio, os vetores dos momentos magnéticos estarão distribuídos em dois cones, em torno dos eixos +z e z (Figura 8).11 A população dos dois diferentes estados energéticos α e β (respectivamente nα e nβ) pode ser obtida a partir da equação de Boltzmann:7 Figura 7: Precessão nuclear de população resulta em uma magnetização líquida na direção +z, uma vez que no plano xy, a resultante é nula (Figuras 9, 10). 5- O EFEITO DA APLICAÇÃO DE B1 SOBRE A MAGNETIZAÇÃO Em RMN, a aplicação do campo B1 é feita perpendicular ao campo B0 aplicado (portanto, na direção x ou y). Assumindo que B1 seja aplicado na direção x, o campo oscilante nessa direção é equivalente à soma vetorial de dois vetores de igual amplitude, movendo-se em direções opostas no plano xy (Figura 11). A magnitude de cada uma dessas componentes corresponde à metade do vetor B1 e somente uma delas tem efeito no vetor magnetização. A outra pode, portanto, ser negligenciada.12,13 O campo B1 é aplicado na forma de um pulso, ou seja, a fonte de r.f. permanece ligada por períodos con- trolados da ordem de microssegundos (µs) a milissegundos (ms). O pulso eletromagnético é criado por manipulação da fonte de radiação eletromagnética, ligando-a ou desligando-a, e a duração do pulso (µs a ms) é o tempo para o qual a fonte de radiação se encontra ligada. No método pulsado, os núcleos são excitados em uma região de freqüências por um ou mais pulsos. Na ressonância, o campo B1, aplicado na forma de um pulso, faz com que alguns núcleos que se encontravam em situação de equilíbrio (magnetização líquida em z), apenas sob influência de B0 absorvam energia e seus momentos magnéticos nucleares passem a precessar no plano xy (Figura 12).14 Ou seja, o campo B1 altera a direção de precessão da magnetização, acarretando, portanto, uma perturbação do sistema, retirando-o do equilíbrio. A nova componente gerada no plano xy pode ser observada com auxílio de um detector no mesmo plano de precessão. Para isso, a fonte de r.f. deve ser desligada. Quando isto ocorre, o sistema tende a retornar à situação original de equilíbrio. Este retorno é conhecido por processo de relaxação, que faz com que os núcleos percam o excesso de energia e retornem às suas posições originais de equilíbrio. O decaimento da magnetização xy que dá origem ao sinal de RMN para retornar à sua posição de equilíbrio é exponencial e dá origem ao chamado sinal FID (Free Induction Decay). Os Figura 8: Cone de precessão nuclear Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21- julho/agosto 2001 55 Figura 9: Resultante no plano xy seja, para que a interpretação do espectro seja facilitada, os sinais da FID são convertidos para um domínio de freqüências de ressonância, características de cada núcleo, através de uma operação matemática chamada transformada de Fourier. A transformada de Fourier dos diferentes sinais de FID dá origem ao espectro de RMN comumente analisado15 (Figura 15). Em outras palavras, um espectro de RMN consiste em uma série de ressonâncias em diferentes freqüências, denominadas deslocamentos químicos. 6- O DESLOCAMENTO QUÍMICO sinais da FID (Figura 13) são detectados como uma função do tempo, encontrando-se aí todas as informações sobre acoplamento e deslocamento químico (fenômenos que serão vistos a seguir) contidos em um espectro de RMN. Como existem vários núcleos em uma amostra, também são originados vários sinais de FID que se superpõem, de forma que se torna muito difícil a extração das informações desejadas (Figura 14). Para que as informações se tornem acessíveis ao usuário, ou Segundo a equação fundamental da RMN já apresentada (ν = γB0 /2π), em um espectro de RMN, todas as absorções devidas a um mesmo tipo de núcleo deveriam ocorrer a uma mesma freqüência, uma vez que, segundo essa equação, a freqüência ν depende apenas do campo B0 aplicado e da constante giromagnética de cada núcleo. O espectro obtido experimentalmente, no entanto, mostra que a situação não é exatamente assim, poden- Figura 10: Magnetização líquida Figura 11: Em vermelho estão mostradas as componentes de B1 56 Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21 - julho/agosto 2001 do ser observadas diferentes absorções a diferentes freqüências (Figura 15). O fator que rege essa diferença de freqüências de absorção é denominado blindagem. Esse fenômeno pode ser compreendido levando-se em conta a vizinhança (núcleos e elétrons) na qual se encontra o núcleo que está sendo objeto de análise. Cada uma dessas partículas carregadas está sujeita à influência de campos magnéticos. Tomando como exemplo um átomo de hidrogênio em uma molécula, observa-se que, quando ela é submetida a um campo magnético, o campo induz uma circulação dos elétrons em torno do hidrogênio, em um plano perpendicular ao campo externo. Essa carga circulante gerada é tal que o campo magnético gerado (chamado induzido) pode se opor ou não ao campo externo. No primeiro caso, diz-se que os elétrons produzem um efeito de blindagem sobre o hidrogênio, no segundo, o efeito é de desblindagem desse núcleo (Figura 16). Dessa forma, o núcleo fica sujeito a um campo magnético efetivo (Befet = B0 Binduzido), e o grau de blindagem ou desblindagem dependerá da densidade eletrônica próxima dele, ou seja, do ambiente químico em que ele se encontra. Isso justifica diferentes absorções para núcleos próximos a átomos eletronegativos, onde a desblindagem é maior, uma vez que átomos eletronegativos diminuem a densidade eletrônica dos átomos de hidrogênio que estejam em suas vizinhanças. Para o etanol (Figura 15), por exemplo, os átomos de hidrogênio do grupo -CH2 encontram-se mais próximos do átomo de oxigênio do que os do grupo CH3. Por isso, a densidade eletrônica na região próxima ao grupo CH2 será menor que na região próxima ao grupo CH3, o que torna os primeiros mais desblindados com relação a esses últimos. Conclui-se, então, que núcleos em diferentes ambientes químicos apresentarão diferentes freqüências de absorção devido a diferentes graus de blindagem ou desblindagem. A diferença entre essa freqüência de absor- Figura 12: Influência de B1 na magnetização líquida ção com relação a um determinado núcleo-referência (chamado padrão) é denominada deslocamento químico. Assim, núcleos quimicamente equivalentes (em semelhantes ambientes eletrônicos) apresentam o mesmo deslocamento químico. No etanol, todos os três núcleos de hidrogênio do grupo CH3 apresentam o mesmo deslocamento químico, ocorrendo a mesma coisa com os dois núcleos de hidrogênio do grupo CH2. Os valores de deslocamento químico em unidades de freqüência são valores muito próximos. Por isso, é δ), muito usual a chamada escala delta (δ dada pela relação: δ = νamostra x 106 / νespectrômetro onde νamostra é dada em Hertz e νespectrôem MHz. A escala δ é, portanto, metro adimensional com valores expressos em ppm. Os núcleos mais blindados apresentam valores de δ menores, enquanto os mais desblindados apresentam valores de δ maiores. No espectro de RMN de hidrogênio (RMN-1H) do etanol (Figura 15), podem ser observados dois valores de deslocamento químico: um primeiro, próximo a 1 ppm, mais blindado em relação ao segundo, próximo a 3,5 ppm. Como os Figura 13: Decaimento exponencial do sinal de RMN núcleos de hidrogênio da CH3 são mais blindados que os do -CH2, os primeiros absorvem a 1 ppm e esses últimos a 3,5 ppm. 7- ACOPLAMENTO SPIN-SPIN Observando-se um espectro de RMN, pode-se ver que os sinais originados das absorções nem sempre aparecem como picos únicos ou singletos, mas podem aparecer também como dupletos, tripletos, quartetos etc. (Figura 15), o que está relacionado com o que se chama acoplamento spinspin. Esse fenômeno é originado quando núcleos em diferentes ambientes eletrônicos estão próximos entre si (normalmente o efeito é observado em até três ligações, exceto quando existirem duplas ou triplas ligações). Basicamente, existem dois tipos de acoplamento spin-spin: o acoplamento homonuclear, quando o acoplamento ocorre entre o mesmo tipo de núcleos, como, por exemplo, quando hidrogênios em diferentes ambientes químicos acoplam entre si, e o acoplamento heteronuclear, que ocorre entre núcleos diferentes, como, por exem- Figura 14: FID do etanol plo, entre hidrogênio e carbono. Por meio da Mecânica Quântica,7 sabe-se que o desdobramento de um sinal de singleto para dupleto, tripleto, etc. (chamado de multiplicidade) pode ser dado pela relação 2nI+1, onde n é o número de núcleos vizinhos em diferentes ambientes químicos e I é o número de spin do núcleo que está sendo analisado. Para núcleos com spin I = ½ , a multiplicidade será dada simplesmente por (n+1). Assim, no espectro de hidrogênio do etanol (Figura 15), desprezandose o hidrogênio do grupo OH, devido ao processo de troca química, (não abordado aqui), serão observados dois sinais devidos a acoplamento homonuclear: um relativo aos hidrogênios da metila e outro aos hidrogênios do grupo CH2, uma vez que se encontram em diferentes ambientes eletrônicos e que, portanto, apresentarão diferentes deslocamentos químicos. Esses sinais, entretanto, não aparecem como singletos (Figura 15). A multiplicidade é dada por (n+1): os três hidrogênios da metila têm dois vizinhos (os dois hidrogênios do grupo CH2); logo, o seu sinal aparecerá no espectro como um tripleto (2 + 1 = 3), observado em torno de 1 ppm. Analogamente, os dois hidrogênios do grupo CH2 têm como vizinhos os três hidrogênios da metila e seu sinal será um quarteto (3 + 1 = 4), cuja absorção é obervada em torno de 3,5 ppm. A intensidade dos picos de um multipleto não é a mesma. Ela está associada ao número de transições naquela determinada freqüência de cada um dos picos observados. Para núcleos com I = ½, a intensidade dos picos do multipleto pode ser obtida a partir do triângulo de Pascal (Figura 17), dispensando o cálculo dos números de transições associadas a cada um dos picos. Assim, para um dupleto, por exemplo, a intensidade dos sinais será de 1:1; para um tripleto, de 1:2:1; para um quarteto, de 1:3:3:1; e assim por diante, segundo os valores expressos no triângulo de Pascal. A distância entre cada um dos picos de um multipleto é chamada de constante de acoplamento J (Figura 18), e Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21- julho/agosto 2001 57 Figura 15: Espectro de hidrogênio do etanol indica o quanto um acoplamento entre núcleos é efetivo: uma maior constante de acoplamento significa um acoplamento mais efetivo. Além disso, a constante de acoplamento também pode servir para identificar diferentes acoplamentos no espectro. Essa identificação é facilitada tendo-se em conta que, se um núcleo A acopla-se a um núcleo B com uma constante de acoplamento JAB, a constante de acoplamento de B com A (JBA) deve ser igual a JAB (JAB = JBA). Tabelas contendo diferentes valores de constantes de acoplamento para diferentes grupos funcionais e moléculas podem ser encontradas na Literatura,7-10 o que facilita a interpretação dos sinais em um espectro de RMN de uma maneira inequívoca. Os valores das constantes de acoplamento J são dados em unidades de freqüência (Hz) e são chamadas 1 2 3 J, J, J, , nJ, dependendo do número de ligações existentes entre os núcleos que acoplam (1, 2, 3, , n ligações, respectivamente). poderosa técnica para a elucidação estrutural de moléculas orgânicas, inorgânicas e principalmente de biomoléculas. Essas moléculas apresentavam espectros de difícil interpretação devido, principalmente, à superposição de sinais ao longo de toda a faixa espectral e/ou em uma dada região de freqüência17 (Figura 19). A RMN-2D possibilitou a interpretação dos espectros dessas moléculas, antes dificilmente identificadas pelos métodos em uma dimensão. Para entender as razões disso e o que é um espectro de RMN em duas dimensões, assim como o seu processamento, é necessário compreender conceitos como tempo de preparação, tempo de evolução e tempo de detecção. Tempo de preparação é o período durante o qual um sistema de spins é preparado para atingir o equilíbrio térmico. Esse tempo pode incluir a aplicação de um ou mais pulsos ou, simplesmente, ser um período t ≠ 0; pode até mesmo nem existir, dependendo do experimento que está sendo realizado. O importante é que o sistema de spins se encontre em equilíbrio antes que o experimento seja iniciado. O tempo de evolução (chamado t1) constitui o experimento de RMN propriamente dito, durante o qual o sistema de spins evolui fora da situação de equilíbrio pela aplicação de um ou mais pulsos, dependendo da informação que se deseja obter. O tempo de detecção (ou tempo de aquisição, chamado t2) é o período durante o qual se adquire o sinal do FID. Um experimento unidimensional pode apresentar esses três tempos (Figura 20). O tempo de evolução (t1) é fixo e o sinal recebido é apenas função do tempo de detecção (t2), que é variável. Em um experimento convencional em uma dimensão, o tempo de evolução t1 é zero e a detecção é realizada imediatamente após o pulso de radiofreqüência (Figura 21). Os spins sofrem ação do campo B1 e o resultado é, então, detectado. O sinal A RESSONÂNCIA MAGNÉTICA NUCLEAR EM DUAS DIMENSÕES Nas últimas quatro décadas, a realização de experimentos de RMN em várias dimensões elevou sobremaneira a capacidade de resolução dessa técnica, ampliando, conseqüentemente, os seus horizontes de aplicação. A RMN em duas dimensões (RMN-2D) foi proposta em 1971,16 e hoje representa uma 58 Figura 16: Blindagem e desblindagem de um núcleo Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21 - julho/agosto 2001 Figura 17: Triângulo de Pascal mostrando a intensidade relativa dos picos para diferentes valores de multiplicidade (n+1): para um tripleto, n=2; para um quarteto, n=3; e assim por diante. Figura 18: Constante de Acoplamento (J) detectado no domínio temporal (FID) é transformado para o domínio das freqüências mediante a transformada de Fourier e o espectro resultante é um gráfico de amplitude x freqüência, chamado unidimensional porque apenas um dos eixos corresponde a freqüências de absorção (Figura 15). Em um experimento bidimensional, é válido o mesmo diagrama temporal (Figura 20). A principal diferença é que existem obrigatoriamente dois períodos variáveis: o tempo de evolução (t1, que em um experimento 1D pode ser zero) e o tempo de aquisição (t2). Fazendo-se uma série de experimentos nos quais variem progressivamente os valores do tempo de evolução, desde zero até t1, tem-se duas variações no domínio temporal: uma devida a t1 e outra devida a t2. Se uma série de FIDs for detectada a partir desses experimentos nos quais se variam os valores de t1, a transformada de Fourier ao longo de t2 dessas diferentes FIDs fornecerá uma série de espectros 1D. Se uma outra transformada de Fourier for realizada ao longo de t1, então poderemos obter um espectro bidimensional, com sinais observados ao longo de duas dimensões, F1 e F2.18 Dessa forma, informações complexas, que antes apareciam em apenas uma dimensão (por exemplo, hidrogênios em ambientes químicos semelhantes que apresentam deslocamentos químicos muito próximos, o que pode levar à superposição de sinais), aparecem agora em duas dimensões, facilitando a interpretação do espectro para determinação da estrutura molecular. O espectro bidimensional resultante pode ser representado de duas formas: o gráfico superposto (stacked), que mostra o espectro em três dimensões (F1, F2 e intensidade); e o gráfico de contorno, que representa um corte horizontal do gráfico stacked. Esse corte é selecionado pelo próprio usuário de acordo com a intensidade que se deseja obter. O corte leva a um gráfico bidimensional F1 x F2 (Figuras 22, 23). Embora o gráfico stacked seja mais fácil de ser visualizado, é, entretanto, mais difícil de ser analisado, uma vez que interpretação em três dimensões se torna mais complexa. Por isso, um corte transversal que gera um gráfico de contornos (Figuras 22, 23) é muito mais utilizado, já que com ele se obtém um diagrama bastante claro, constituído por linhas de contorno que são bem mais convenientes de ser analisadas. Existem hoje diferentes tipos de experimentos em RMN multidimensional (2D e 3D) que utilizam diferentes recursos tanto em termos de software como de hardware.13 Experimentos menos recentes também continuam sendo muito utilizados para elucidação estrutural. Os experimentos COSY (Correlated SpectroscopY) e HETCOR (HETeronuclear CORrelation) são exemplos disso. O espectro COSY fornece correlações para o mesmo núcleo (por exemplo, 1H com 1H, Figura 22). O espectro de 1H aparece ao longo da diagonal. Os pontos fora dessa diagonal representam correlações entre hidrogênios não-equivalentes e são denominados cross-peaks. Os cross-peaks, como mostra a Figura 22, devem, obrigatoriamente, formar um triângulo retângulo com relação aos picos correspondentes na diagonal, em razão da simetria do espectro, dado de grande importância na interpretação do espectro, pois é uma garantia de que os picos realmente estão acoplando. Caso não seja formado um triângulo retângulo, pode-se garantir que os picos em análise não estão acoplando. Além disso, o experimento COSY apresenta também a vantagem de obter os valores das contantes de acoplamento J em unidades de freqüência Hz, o que representa mais uma garantia do acoplamento entre os picos que estão sendo analisados. No caso do espectro obtido pelo experimento HETCOR (Figura 23), o espectro não aparece na diagonal. Em uma dimensão, aparece o espectro do hidrogênio, por exemplo, enquanto em outra dimensão aparece o espectro do outro núcleo (no caso do espectro da Figura 23, o outro núcleo é o de carbono-13). O espectro bidimensional mostra as correlações existentes entre os dois núcleos como em um gráfico do tipo xy. Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21- julho/agosto 2001 59 Figura 19: Espectro de RMN-2D de uma proteína (Bloch Jr. C., et al. 1998) CONCLUSÃO Apesar de relativamente recente, a Ressonância Magnética Nuclear já é referência mundial para a análise de estruturas moleculares em diversas áreas do conhecimento. Na Bioquímica moderna, essa técnica permitiu, de forma inédita, a investigação de estruturas tridimensionais de biomoléculas em condições próximas do estado fisiológico (soluções aquosas). Tal fato pos- Figura 20: Tempos possíveis em um experimento de RMN 60 sibilitou um considerável avanço nos estudos de dinâmica molecular que, antes da RMN, limitavam-se quase que exclusivamente a dados cristalográficos. Mesmo com todo o avanço tecnológico registrado ultimamente nesse campo, a determinação da estrutura tridimensional de uma biomolécula ainda não pode ser considerada uma tarefa trivial. As limitações e peculiaridades dessa técnica, bem como a gigantesca demanda imposta pelos vári- os projetos genomas concluídos neste começo de século, além daqueles que ainda estão por vir, indicam as dimensões do trabalho que se tem pela frente. De fato, vários grupos de pesquisa têm-se unido em consórcios (The Research Collaboratory for Structural Bioinformatics, http://www.rcsb.org/ index.html), assim como empresas de biotecnologia (Celera Genomics; http:/ /www.celera.com/), para atacar de for- Figura 21: Experimento de RMN em uma dimensão Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento - nº 21 - julho/agosto 2001 Morales, pelos elaboração e arte de várias figuras apresentadas neste artigo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Figura 22: Espectro COSY do etanol Figura 23: Espectro HETCOR do etanol ma mais eficiente a etapa considerada mais fascinante e desafiadora desses vários projetos, que é a determinação das estruturas tridimensionais de todas as proteínas sintetizadas por um dado ser vivo, ao longo de todas as etapas metabólicas de seu desenvolvimento. É possível que os próximos anos testemunhem iniciativas ousadas, a exemplo do projeto genoma humano, na área de determinação estrutural de proteínas, nos quais, tanto a cristolografia de raio-X quanto a RMN multidimensional deverão ocupar papéis de- cisivos na obtenção de estruturas 3D em larga escala. Espera-se que o presente artigo possa dar uma contribuição, por menor que seja, nessa direção a partir da difusão dos fundamentos aqui apresentados e como introdução a uma próxima publicação dedicada exclusimente à RMN de proteínas. AGRADECIMENTOS Ao Professor José Daniel Figueroa Villar pelos espectros do etanol gentilmente fornecidos e a Rodrigo A.V. 1- Farrar, T.C. (1990), Concepts Magn. Res. 2, 1-12. 2- Farrar, T.C. (1990), Concepts Magn. Res. 2, 55-61. 3- Farrar, T.C. (1992), Concepts Magn. Res. 4, 1-33. 4- Sφrensen, O.W.; Eich, G.W.; Levitt, M.H.; Bodenhausen, G. and Ernst, R.R. (1983), Progress NMR Spect. 16, 163-192. 5- Strauss, H.L. 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