Pós-Modernidade e Ensino de Línguas: Materna e Estrangeira
Profa. Dra. Márcia Aparecida Amador MASCIA
Universidade de Taubaté e Universidade São Francisco
Resumo:
O texto que se segue consiste em confabulações oriundas de leituras e discussões
empreendidas por mim e pelos meus alunos, ao longo da disciplina, cujo título é o mesmo
deste artigo, “Pós-Modernidade e Ensino de Línguas: Materna e Estrangeira” e oferecida no
Mestrado em Lingüística Aplicada da UNITAU, ao longo de três anos. O foco principal da
discussão tem sido o estatuto do sujeito no mundo contemporâneo e os efeitos de sentido
dos macro-discursos no micro-discurso de ensino-aprendizagem de línguas. Afinal, estariam
emergindo “novos regimes” de verdade? Tal é a problematização que estou tentando
levantar.
Nós não falamos uma língua, somos falados por ela...
(Melman, 1992 “Imigrantes”)
Escrever não é escrever, escrever é inscrever-se em
formas discursivas existentes...
Tomarei esses dois enunciados para discutir e problematizar o ensino-aprendizagem de
línguas, à luz da pós-modernidade.
Para tanto, partirei de duas perspectivas que atravessam os estudos da linguagem na
contemporaneidade: uma de ordem logocêntrica e uma que tem como proposta questionar
esse logocentrismo. A primeira pode ser denominada Modernidade e a segunda como PósModernidade.
A educação nasce como filha da modernidade e dento do Iluminismo. Educar significa “dar
luzes”, de onde o termo “aluno”, “a-lumnem”, “aquele que não tem luz”. Encontra-se nas
entranhas da educação a meta, a tarefa de incluir os excluídos, excluídos esses que, aos
poucos, foram se travestindo de novos sujeitos - do homem branco, para a mulher, o negro,
a criança, o velho, o sujeito com necessidades especiais , o falante de uma variedade nãopadrão (LM), o estrangeiro (LE) e assim por diante. E a educação tem pretendido oferecer o
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quê para esses sujeitos? Saberes culturalmente construídos, organizados, analisados,
estruturados e pedagogizados. E o ensino-aprendizagem de línguas é um desses saberes.
Assim, sob a ótica do “penso, logo existo”, construímos todo o edifício educacional, com
saberes que, pressupostamente, são vistos como naturais, intocáveis, como objetos “dados”,
sempre-lá, “a-priori”, objetos de desejo e do desejo, inquestionáveis, portanto, à luz dessa
teia discursiva educacional.
O ensino de qualquer conteúdo (vejamos que “conteúdo” é aquilo que é contido, que se
amolda ou é amoldado) e, no nosso caso específico, das questões que envolvem o ensinoaprendizagem de línguas (LM e LE), costuma ser visto como “aquisição” ou “apreensão” de
modelos, formas, sejam elas de ordem da estrutura lingüística ou de conteúdo, mas sem
problematizar o papel dos sujeitos, das condições de produção, de onde “surgem” esses
modelos, das relações ideológicas (ou relações de poder-saber, de acordo com Foucault,
2004) que subjazem a esses discursos, ou seja, que tipos de sujeitos esses discursos estão
formando (ou fomatando) e em que tipo de sociedade irão atuar. Trata-se da escola bancária
que nos fala Freire ou da escola reprodutora que nos fala Bourdieu (1975). E a escola, neste
modelo, ao longo dos séculos, tem produzido sujeitos que, ilusoriamente, acreditam serem
donos de seu dizer e dos efeitos de sentido de seu dizer, sem saberem que, na verdade,
estão “sendo mais ditos” do que “dizem”. Esse efeito da “mesmidade” da educação é
apontado por Gee, quando assevera que “we should not fool ourselves into thinking that
access to essay-text literacy automatically ensures equality and social success or erases
racism or minority disenfranchisement” (Gee, 1986:743), ou seja, não devemos nos enganar
que o letramento, por si só, seja uma arma para a libertação. Eu diria, então, que precisamos
nos perguntar, na verdade, com qual noção de letramento (e eu entendo o ensinoaprendizagem de línguas como uma das facetas desse letramento) a escola tem trabalhado?
Por sua vez, podemos pensar a educação, a partir de uma perspectiva pós-moderna ou
crítica. Isso não significa “jogar fora todos os modelos”, mas trabalhar dentro uma
perspectiva de problematização, des-velando as tramas discursivas a partir das quais tais
modelos são construídos, sob quais jogos de poderes e saberes, sob quais racionalidades
são construídas as suas (do texto, das metodologias) verdades.
Para tanto, trazemos à tona alguns pressupostos teóricos que embasam nossos
questionamentos acerca dessas “ordens de discurso” dentro das quais nos aprisionamos
e/ou nos significamos enquanto sujeitos da educação.
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Assim, duas noções parecem ser significativas: de discurso e de sujeito.
Entendo discurso enquanto prática discursiva, nos termos de Foucault (1995, p. 136) como:
(...) um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições
de exercício da função enunciativa.
Ou seja, não podemos falar o que quisermos, do modo que quisermos e para quem
quisermos. Somos “obrigados” (embora não saibamos disso, pois essas regras que nos
obrigam são anônimas, apagadas, camufladas e tão camufladas que acreditamos que
somos autônomos, que escolhemos os nossos dizeres, como se eles estivessem dispostos
nas prateleiras do supermercado das línguas) a falar de um certo modo, para determinados
sujeitos e usando conteúdos autorizados.
Nossos discursos são rituais, somos atores nos palcos da vida, repetindo o “script” que as
escolas nos ensinaram. Haveria, portanto, duas possibilidades, a meu ver, continuar a repetir
esses “scripts”, sem questioná-los ou, apesar de vir a fazer uso deles (pois, caso contrário,
não seremos ouvidos e, aí, o nosso papel de questionamento perderia todo o seu valor),
proceder à sua problematização. Como? Torcendo e retorcendo a trama discursiva, puxando
os fios, alargando os nós, olhando atrás dessa trama, procurando o que ela pretende nos
esconder (e que nem ela sabe que está escondendo), amassando, amarrotando, cortando,
esburacando, em suma, tentando trazer à tona os procedimentos, os mecanismos de
construção de regimes de saberes, o conjunto de regras anônimas de que fala Foucault
(1979). E, por serem anônimas e operarem na microfísica, não podemos acusar ninguém,
somos, também, responsáveis.
Nesses termos, desmantela-se um outro edifício logocêntrico, a noção de sujeito autônomo,
centrado, capaz de criar seu próprio discurso, dono de seus saberes, de sua fala e dos
efeitos de sentido dessa fala. Capaz de transformar o mundo em sua volta. É o sujeito do
desejo da completude e em torno do qual se construiu todo o edifício da lingüística e da
lingüística aplicada. Da máxima logocêntrica do “penso, logo existo”, os estudos discursivos,
com viés lacaniano, nos oferecem a seguinte ironização “existo naquilo que não penso”.
Esse é o sujeito que os estudos discursivos da pós-modernidade fazem emergir. O sujeito do
inconsciente, que não tem controle (total, pois ele é, também, uma parte consciente e
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agenciadora) total de seu dizer, dos efeitos de sentido de seus dizeres. Somos acometidos
por ilusões, na verdade, trata-se, segundo Pêcheux (1997), de duas ilusões: da originalidade
de nosso dizer e da unicidade de sentido de nosso dizer. Toda trama discursiva se organiza
em torno dessas ilusões ou esquecimentos, esquecemos disso e nos engatamos nos
discursos vigentes, com a “doce ilusão” que somos origem, que controlamos os sentidos,
mas, na verdade, todo dito é um já-dito, todo discurso é interdiscurso, não criamos
verdadeiramente nada, se tal viesse a ocorrer não seríamos entendidos. Falamos, também,
através de atos falhos, sendo que, na verdade, os deslizes, a ambigüidade são constitutivas
da linguagem.
O que essas confabulações têm a ver com o ensino-aprendizagem de línguas?
Tudo ou nada...
Nada, se continuarmos a ver o sujeito-aluno como um recipiente que vai receber conteúdos;
nada, se continuarmos a ver o ensino como mera repetição de modelos, nada, se
continuarmos a impor a variedade padrão apagando as outras, no caso da LM; nada, se
continuarmos a impor modelos de falantes nativos, no caso da LE; nada, se continuamos a
nos ver como meros repassadores de fórmulas prontas; nada, se continuarmos a desvincular
as pesquisas acadêmicas e o nosso fazer em sala de aula...
Tudo, se nos dispusermos a trabalhar no desconforto da problematização da escola e dentro
da sala de aula; tudo, se tivermos humildade acadêmica e não quisermos ser donos da
verdade; tudo, se levarmos essas angústias (do não-controle, por exemplo) para a sala de
aula e nos dispusermos a discutir com os alunos; tudo, se, ao (des)construirmos discursos,
tentarmos ao mesmo tempo mostrar os mecanismos de sua construção; tudo, se
historicizarmos, levantando as condições de produção dos discursos com os quais estamos
trabalhando e não ficarmos no meramente lingüístico; tudo, se problematizarmos o
estrangeiro, ou seja, as imagens que transitam em nossa sociedade acerca do falante e da
LE-inglês e, como contraposição do falante e da LP...
Birman, em “Mal estar na atualidade” (2005), ao discutir o papel da psicanálise na
contemporaneidade traz à tona os novos modos de subjetivação do indivíduo, estamos
vivendo, segundo ele, citando Debord (1997), em uma “sociedade do espetáculo”, em que o
exterior amolda o interior, o sujeito, em nossa sociedade, não suporta o não, o adiamento;
tudo é emergencial, mas também passageiro, possuímos um objeto e já estamos querendo
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um outro, que nos é oferecido imediatamente. O sujeito da contemporaneidade não
consegue mais conviver com a angústia, com a espera, com a tolerância da alteridade.
Nunca se falou tanto em alteridade, em respeito ao outro, em multiculturalismo e, talvez,
segundo o autor, nunca se tenha intolerado tanto a diferença. O papel do analista parece ter
perdido o seu valor, já que ele deveria atuar como aquele que ajuda o analisando a sustentar
a sua angústia de vida, pois tal angústia é inerente ao sujeito, de modo que possa a conviver
com ela.
Tais leituras me têm feito questionar o nosso papel de professores, não estaríamos, também,
nos engatando nessa sociedade do espetáculo, ao tentar oferecer desenfreadamente, e
cada vez mais, modelos prontos em nossa sala de aula? Tal qual o analista, vejo o papel do
professor no sentido de manter e fazer o aluno conviver com essa angústia marcante e
profunda, essa ferida narcísica que uma certa área dos estudos da lingüística não deseja
enxergar, já que somos sujeitos da linguagem e, portanto, incompletos eternamente...
A pós-modernidade não é um modelo teórico, muito pelo contrário, trata-se de uma
“sensibilidade de questionar o mundo em nossa volta” (Mascia, 2003, p.58), perguntando e
perguntando-nos, sempre, SERÁ?
Termino com uma fala de Bauman (1999, p.11), na introdução do livro “Globalização; as
conseqüências humanas”. O autor nos diz que “o problema da condição contemporânea de
nossa civilização moderna é que ela parou de questionar-se. Não formular certas questões é
extremamente perigoso (...). Fazer as perguntas certas constitui, afinal, toda a diferença
entre sina e destino, entre andar à deriva e viajar.”
Devemos, portanto, parar de procurar as respostas para velhos questionamentos e começar
a fazer novas perguntas, aquelas que nos pareciam inquestionáveis, intocáveis,
indiscursivizáveis...
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Z. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1999.
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BIRMAN, J. Mal-Estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio
de Janeiro: Civilização, 2005.
BOURDIEU, P. & PASSERON, J. C. A Reprodução (elementos para uma teoria do sistema
de ensino) Reynaldo Bairrão (trad.) Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Ed. S.A., 1975.
DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
GEE, J. P. Orality and Literacies: From the Savage Mind to Ways with Words.In: TESOL
Quartely 20 (4), Dec. 1986, p. 719-746.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Org. e trad. De Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed.
Graal, 1979.
______. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
MASCIA, M. A. A. Investigações Discursivas na Pós-Modernidade. Campinas: Mercado de
Letras/Fapesp, 2003.
MELMAN, C. Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e país. Trad.
Rosane Pereira, org. Contardo Calligaris. São Paulo: Escuta, 1992.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Pontes,
1997.
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