Acesso, Uso e Remessa de Material Genético Humano: indicativos de regulamentação no Brasil http://www.ghente.org MESA REDONDA Acesso, uso e remessa de material genético humano: uma perspectiva jurídica Regulamentação no Brasil: panorama da legislação, normas infralegais e tendências Dra. Adriana Diaféria Advogada e Profª. de Direito da Pontifícia Universidade Católica/SP As colocações do Sérgio foram muito importantes porque trouxeram para o debate um dos temas que envolvem toda a discussão em torno do acesso, uso e remessa de material genético humano. O trabalho que eu fiz, seguindo orientação e sugestão do Projeto Ghente e do DECIT, foi voltado para a avaliação do estado da arte em termos de regulamentação desta questão no país. Fazendo uma análise de todos os projetos de lei e uma leitura minuciosa, optei por outra metodologia de apresentação. Quem quiser ter acesso aos textos pode entrar no site do Projeto Ghente, que tem a listagem com todos os projetos. Numa avaliação minha do ponto de vista jurídico, foi possível identificar que existe uma série de disposições bastante conflituosas entre si, muitas disposições que não abrangem a discussão da forma merecida, fazendo um tratamento em alguns momentos de forma incoerente, totalmente inconsistente com a complexidade que o tema tem pela sua própria natureza. Acabei optando por fazer uma abordagem, trazendo alguns elementos para discussão e reflexão de todos, até porque, quando se fala numa proposição de regulamentação, acredito que devemos ter uma noção mais abrangente do tema, das implicações sociais, éticas, políticas e econômicas, para chegarmos à conclusão do que no universo jurídico é possível ser feito para solução dos futuros conflitos que poderão surgir em função da manipulação e utilização do material genético humano. Qual a importância da manipulação de genes e do conhecimento das informações genéticas humanas? Toda discussão está em torno do conhecimento, da manipulação dos genes e o conhecimento dessas informações, o que de benefício e risco pode trazer para a sociedade em geral. 20 Acesso, Uso e Remessa de Material Genético Humano: indicativos de regulamentação no Brasil http://www.ghente.org A partir do momento em que o gene é destacado do corpo original, isolado e preparado mediante a adoção de determinados procedimentos, torna-se suscetível a decodificação das informações genéticas nele contidas, possibilitando, dentre uma diversidade de outras variáveis, o conhecimento de informações estritamente pessoais de seu detentor, portanto, temos aqui um universo bastante significativo no que diz respeito aos direitos da pessoa humana; das proteínas que eventualmente expressem – e aqui começamos a ter uma interface com a questão de propriedade intelectual; das funções que essas informações executam, ou seja, funções de natureza biológica, mas que também pode ter reflexo econômico até para o próprio indivíduo; de doenças genéticas e das respectivas curas; e das potenciais aplicações industriais. Conseguimos identificar que a partir do conhecimento dessas informações genéticas o potencial econômico e social que há por trás do desvendamento dessas informações é significativo. Quando se identifica essa interface com esses potenciais, começamos a questionar a necessidade ou não de estabelecer uma regulamentação e um procedimento para adoção desses critérios e para regulamentação dessa temática. Quais são os impactos sociais, éticos e políticos decorrentes do acesso e uso do material genético? Ao realizarmos um mapeamento a partir da bibliografia atualmente existente, buscando dar tons a uma abordagem ampla, identificamos o seguinte: Do ponto de vista social e ético, temos vários aspectos que devem ser levados em consideração para regulamentação, ou seja, questões referentes a diferenças raciais e étnicas, consentimento informado, autonomia, privacidade, confidencialidade, questões relativas a meio ambiente e saúde, comercialização e industrialização de material genético, investigação de crimes e paternidade, importação e exportação de material biológico, institucionalização de acordo de cooperação, os direitos de saber ou não, a livre investigação científica, questões relativas a bancos de dados genéticos, testes genéticos, terapias, aconselhamento genético, marcadores e sondas, enfim, como podemos ver, cada aspecto desses tem potencial significativo tanto do ponto de vista social como do ponto de vista ético. Do ponto de vista político, temos um universo de situações que devem ser abordados no contexto de uma legislação. Ressaltamos a importância da interface dessa temática com outros campos do conhecimento em relação a políticas públicas para promoção e incentivo ao desenvolvimento científico. Quando se fala no Brasil acerca do acesso e uso do genoma humano, necessariamente estamos falando em políticas de inovação e desenvolvimento de capacitação científica e tecnológica para o desenvolvimento endógeno do país. Capacitação para que as nossas instituições públicas, nossas universidades e empresas brasileiras também tenham potencial para acompanhar todo esse desenvolvimento. O foco principal, a meu ver, está em torno da questão do atendimento das necessidades sociais e públicas, a instituição de mecanismos de controle eficientes na implementação de novas tecnologias. Portanto, como podemos ver, a regulamentação dessa temática também implicará na instituição de todo um arcabouço institucional. Não é somente falar na regulamentação do acesso e uso do genoma humano, temos que desenvolver uma estrutura institucional que dê suporte para implementação efetiva dessa legislação. Apenas diretrizes éticas são suficientes para controlar as atividades envolvendo manipulação de genes humanos e das informações genéticas neles contidas e estabelecer mecanismos eficientes para implementar o sistema adequado? Já com base naqueles dois mapas anteriores, identificamos 21 Acesso, Uso e Remessa de Material Genético Humano: indicativos de regulamentação no Brasil http://www.ghente.org que de fato não. Hoje o que temos em termos de seres humanos é a Resolução 196/96, que estabelece critérios de procedimentos éticos para obtenção de consentimento informado em pesquisas em seres humanos, temos a normativa 251, também do Conselho Nacional, mas que de fato têm demonstrado que não são suficientes para abranger toda a dimensão de questões em torno do acesso e uso do genoma humano. A partir desse momento – e até pela demanda que acompanhamos, e as instituições são as mais capacitadas para colocar-nos isso – há agora uma necessidade urgente. Agora está em andamento projeto de lei de biossegurança em discussão. Toda aquela questão em torno da utilização de células-tronco, se é de fato legítimo fazer a regulamentação através desse projeto de lei. São questões prementes que estão na pauta do dia, precisando de posicionamento e de todo apoio para uma regulamentação adequada. Quais os critérios e princípios que deveriam nortear a regulamentação acerca das atividades envolvendo os genes e as informações genéticas humanas? O universo jurídico tem diversos subsistemas que estão atrelados a essa questão. Com cada um desses campos do Direito, tentarei abordar e trazer essas temáticas do mundo fático para dentro do mundo do Direito para vocês verem quanto terá que ser feito eventualmente numa legislação acerca dessa questão. No campo do Direito Civil, Direito que trata das relações privadas, tanto entre pessoas físicas quanto pessoas jurídicas, uma questão de relevo: qual a natureza jurídica dos genes e das informações genéticas humanas em face das seguintes situações? Ou seja, com o avanço das técnicas de engenharia genética, temos três situações possíveis para identificar a natureza jurídica do material genético humano: (i) o material genético humano em seu estado natural; (ii) o material genético humano em seu estado natural destacado do corpo e isolado através de procedimentos específicos para posterior utilização – ele já tem uma natureza diversa; e (iii) o material já alterado geneticamente. Já temos três situações decorrentes do avanço da ciência e tecnologia que podem influir diretamente na regulamentação desta temática. Cada um implica em efeitos jurídicos distintos. A questão da clonagem humana, tanto terapêutica como reprodutiva, também está atrelada a essa questão. Diagnósticos genéticos para testes pré-implantadórios na reprodução assistida. A questão de seguros de saúde, a preocupação com a discriminação racial e étnica e igualdade de acesso aos cuidados de saúde. Em função do conhecimento e da informação genética, temos uma série de questionamentos. A questão do consentimento informado, ou seja, a instituição desse mecanismo de controle social e ético. Aí, como ficam as pessoas que não tenham capacidade de consentir, pessoas com problema de doença mental? Situações de emergência e manifestação prévia, como lidar com essa qualidade de consentimento informado. Aconselhamento genético, outra grande temática com reflexos jurídicos. A questão da confidencialidade dos dados genéticos. Terapias gênicas, ou seja, utilização de células semáticas. Células germinativas humanas que podem ter alterações irreversíveis às gerações futuras. A questão do recrutamento genético e rastreamento, que tenha aspectos relativos à saúde pública, rastreamento pré e pós-natal, quais os efeitos disso em função, até mesmo, de toda aquela discussão havida na década de 20, como Sérgio colocou, todos os problemas de eugenia, importante tema a ser discutido. 22 Acesso, Uso e Remessa de Material Genético Humano: indicativos de regulamentação no Brasil http://www.ghente.org Melhoramento genético. Pode ser feito em material genético de células germinativas, como ficam as gerações futuras? O fluxo transfronteiriço de dados genéticos humanos pelos setores público ou privado e instituições estrangeiras, como regulamentar, quais são os controles. O cruzamento de dados genéticos. Quais são as conseqüências futuras para a evolução da espécie humana? Como vocês percebem, há um universo absolutamente gigante somente no campo do Direito Civil. Percebemos que o novo Código Civil não aborda questões relativas a material genético humano. O código foi aprovado em 2002 e, por opção do legislador, não se entrou nessas discussões justamente por já se identificar a complexidade da matéria. Talvez, pela prematuridade do tema, por conta do que ainda precisa ser desenvolvido, foi uma opção. Aqui coloquei mais uma questão de Direito Internacional, direitos humanos, acho que Gediel e Eliane terão oportunidade trabalhar isso. Apenas para mencionar que já há diversos documentos internacionais tanto na comunidade européia como em todo planeta. Estes documentos abordam partes dessas temáticas, trabalhando em cima dessas questões para instituir parâmetros para regulamentação dos países. Existe um rol de princípios que esses documentos trazem que de algum forma trarão subsídio para regulamentação. Universo do Direito Penal. O acesso e uso de material genético humano também tem importância significativa na questão da investigação genética criminal, tanto para investigação de paternidade quanto para identificação de potenciais criminosos. Questões relativas a Propriedade Intelectual, ponto fulcral da discussão. A apropriação do material genético e das informações genéticas humanas, ou seja, a limitação e o monopólio em cima desse material. Outras questões relativas aos direitos de propriedade intelectual, ou seja, comercialização e industrialização desse material. Patenteamento de genes e da seqüência de genes de DNA. A nossa lei de propriedade industrial é restritiva na proteção das invenções envolvendo matéria viva, se levarmos em consideração o que está sendo feito em outros países; a nossa legislação restringe o âmbito de proteção dos processos envolvendo genes. Este é outro ponto sobre o qual gostaria de ouvir as pessoas, no caso Margareth Maia, porque é de extrema relevância. No âmbito do Direito Constitucional, temos os princípios constitucionais que dão o norte para essa regulamentação. Quando se fala numa legislação, temos que tomar sempre por regra maior a Constituição Federal e função dos princípios que enuncia: o princípio da dignidade da pessoa humana; o princípio da igualdade de tratamento em saúde; o princípio da liberdade e investigação científica, dentre tantos outros lá previstos. No universo do Direito do Trabalho com relação ao acesso e uso de material genético humano e a discriminação; a partir do conhecimento das informações genéticas, a possibilidade de discriminação na contratação de funcionários. Este é outro aspecto que também merece tratamento. Direitos do consumidor com relação à garantia de acesso seguro às técnicas de terapia genética. A questão da vulnerabilidade do consumidor, a relação médico-paciente, paciente com as instituições que promoverão essas atividades, fornecer os produtos resultantes do acesso e uso da informação genética. 23 Acesso, Uso e Remessa de Material Genético Humano: indicativos de regulamentação no Brasil http://www.ghente.org Temos a questão de controles de biossegurança. A lei vigente, a Lei n° 8.974/95, atualmente está sendo discutida no Congresso Nacional, em razão da necessidade de consensos acerca de novo marco regulatório para este tema no país. Temos também controle do Ministério da Saúde, o papel da ANVISA no controle. A própria lei que instituiu a Agência já estabelece o seu papel nesse contexto. Uma das grandes questões que tem sido discutida é a remessa do material biológico humano para o exterior, a necessidade de definição de procedimentos claros para essa remessa. Não há controle, está-se aproveitando um pouco do sistema feito para a remessa de material biológico para o exterior. Especificamente, com relação a essa questão, temos implicações significativas, até por conta da questão de direitos intelectuais que podem incidir sobre esse material. Esta é uma questão que também merece tratamento bastante delicado. No que diz respeito ao direito dos povos indígenas, a bioprospecção dos genes dos povos indígenas. Temos o estatuto jurídico das populações indígenas e instruções normativas que tratam da disciplina do ingresso em terras indígenas com finalidade de desenvolver pesquisas científicas. Temos uma resolução do Conselho Nacional da Saúde que trata de critérios para toda e qualquer pesquisa em seres humanos, principalmente no que diz respeito à obtenção do consentimento informado do indígena. Há um procedimento diferenciado em função da diferenças culturais. Enfim, são diversas as variáveis que ainda dependem de uma discussão mais aprofundada para a devida regulamentação, se esta for a alternativa identificada como a mais adequada para resolver as controvérsias que futuramente poderão surgir em decorrência da utilização do material genético humano. Minha contribuição foi mais no sentido de tentar identificar o universo e indicar alguns problemas para já iniciarmos uma discussão no campo jurídico. Não adianta pensarmos na regulamentação do acesso e uso do genoma humano porque, se não for de forma adequada, isso pode refletir em outros campos da pesquisa e trazer uma série de empecilhos para o desenvolvimento das ciências e das técnicas no território brasileiro. Isso precisa ser levado em consideração. Hoje existe uma lei no Estado do Rio de Janeiro que dispõe sobre o patrimônio genético humano. E aí surge o questionamento: será constitucional uma lei estadual tratar de uma temática que diz respeito ao patrimônio genético humano? Será que esse tratamento pode ser feito nesse âmbito? Do meu ponto de vista, não, é uma temática que tem que ser trabalhada no âmbito federal. E, mais, não querendo desprezar o tratamento dessa lei, acho até que ela será uma alavanca e um elemento de base para começar a discutir-se uma regulamentação e definir um modelo federal para a questão. Como eu disse, há uma diversidade de projetos de lei, com abordagens não muito precisas e, em alguns momentos já defasadas; há muito que se fazer para a regulamentação adequada. Portanto, há indicativos de que uma regulamentação única poderia se mostrar favorável. Acredito que a tendência é caminhar neste sentido. Temos que refletir se é o caso de ter uma legislação específica que consiga abranger todos esses aspectos, instituindo princípios gerais, estabelecendo uma política nacional de acesso e uso do genoma humano, como tem sido feito em outras áreas, por exemplo, na área ambiental temos a política nacional de meio ambiente, a política nacional de recursos hídricos, e tantas outras. Talvez adotar estes exemplos como modelo seja uma alternativa: uma política nacional enunciando os principais aspectos relativos ao material genético humano, definindo o quadro institucional que irá implementar a política, os instrumentos, as responsabilidades, os objetivos, etc. Vamos refletir conjuntamente nestes pontos apresentados até para saber onde queremos chegar neste caminhar. Seria isso o que eu teria para contribuir. Obrigada. 24