Universidade Federal do Pará
Núcleo de Altos Estudos Amazônicos
Curso Internacional de Mestrado em
Planejamento do Desenvolvimento - PLADES
Sustentabilidade incógnita:
Análise de fluxos materiais em três comunidades
impactadas pela instituição da Floresta Nacional de
Caxiuanã - PA
Karina Ninni Ramos
Belém-Pará
2001
Universidade Federal do Pará
Núcleo de Altos Estudos Amazônicos
Curso Internacional de Mestrado em
Planejamento do Desenvolvimento – PLADES
Sustentabilidade incógnita:
Análise de fluxos materiais em três comunidades impactadas
pela instituição da Floresta Nacional de Caxiuanã - PA
Karina Ninni Ramos
Dissertação apresentada ao curso Internacional de
Mestrado em Planejamento Do Desenvolvimento
– PLADES, do Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos, Universidade Federal do Pará, como
requisito para obtenção do grau de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Armin Mathis
Belém- Pará
2001
Dedico
A minha mãe, Ignez, uma grande referência, e
a meu pai, Fábio, que pouco conheci. A meu
marido Luís, com quem aprendi a dividir - e
que deve começar, no próximo semestre, a
jornada que termino agora.
Agradecimentos
Agradeço especialmente, e em primeiro lugar, ao meu marido Luís e meu
filho Lucca: o primeiro por ter suportado comigo a carga que a execução deste trabalho
acarretou em nossas vidas, e também por ter sido pai e mãe de nosso bebê enquanto eu
me ocupava com a finalização da monografia (fora o fato de ter escutado e debatido
comigo meus argumentos por noites a fio e de ter sido o responsável pelo raciocínio que
resultou na primeira versão formal dos meus enunciados). O segundo por ter impresso
em minha vida um certo sentimento de urgência, algo tão intenso e forte que só uma
criança mesmo poderia trazer à tona, com suas necessidades e sua demanda por atenção.
Eu devo a este sentimento o ‘empurrão’ necessário à finalização deste trabalho.
De coração, agradeço também aos ribeirinhos de Pedreira, Caxiuanã e
Laranjal, por terem me recebido com tanto carinho, por terem sido pacientes comigo
enquanto eu media suas casas e pesava o que comiam, pelas longas conversas com as
quais aprendi mais do que qualquer livro poderia ensinar, pela disponibilidade que
sempre demonstraram para responder aos meus inúmeros questionários, e por outras
coisas, como os beijus de castanha e as periquitas de açaí que provavelmente eu jamais
teria a oportunidade de provar numa cidade grande como Belém.
Igualmente desejo demonstrar minha gratidão ao pessoal do Museu
Goeldi, especialmente ao Dr. Pedro Lisboa, ex-coordenador da Estação Científica
Ferreira Penna, à antropóloga Isolda Maciel da Silveira, que nunca me negou ajuda ou
dados (emprestou-me até uma ‘relíquia’: uma edição original de Santos e Visagens, de
Eduardo Galvão, hoje já fora de catálogo), à socióloga Graça Ferraz, ao Alcy, ao
Gemaque, ao Sarrafi e todo o pessoal da casa de Breves, às cozinheiras da Estação (se
não fossem elas e seus sanduíches de queijo e presunto, o trabalho de campo seria bem
mais difícil...) e a todos aqueles que trabalham para manter a ECFPn.
Agradeço à Selma Gomes (a Selminha) por ter me cedido as bases das
cartas geográficas apresentados no trabalho e plotado as coordenadas geográficas nelas,
gerando assim os mapas aqui expostos. Ao Paulo Oliveira que, ao me admitir na FASE
Gurupá, acabou por me ajudar na obtenção de dados adicionais (e que nunca me negou
um dia ‘de folga’ no escritório quando eu precisei fazer um esforço extra para entregar a
monografia no prazo). Ao Girolamo Treccani, que mesmo ocupadíssimo se dispôs a me
ajudar com a interpretação de algumas leis e decretos. À Lila Bemerguy, que me ajudou
a fotografar as casas e os locais de trabalho e me fez companhia durante uma viagem de
campo na qual eu estava grávida de seis meses. À Dra. Selma Melgaço e à Dra. Portal,
do Ibama, pela disponibilidade e pelas informações que me forneceram.
Não poderia me esquecer dos colegas de turma, pelos papos e pela
companhia, especialmente o Fernando – por algumas ‘sacadas’ preciosas – e a Laura,
por ter se disposto a estudar economia comigo. E também, naturalmente, o meu
orientador, Prof. Dr. Armin Mathis - pela metodologia, os toques, a paciência e a
amizade. Um obrigada especial à Luzia Jucá, do Projeto Amazônia 21, e ao Raimundo
Pinto, da Gazeta Mercantil Pará que, ao garantir a publicação de minhas três matérias
sobre a ECFPn, em 1998, possibilitou minha primeira viagem à Caxiuanã e,
conseqüentemente, a elaboração de meu Projeto de Pesquisa de Mestrado.
Por fim, agradeço a toda a minha família, principalmente minha mãe,
minha irmã e minha avó Lourdes, pela força que sempre me deram nos estudos e na
vida, minha tia Beth, pela tradução de última hora que lhe pedi e também minha sogra,
que veio ajudar a cuidar do Lucca quando eu tive de fazer minha última viagem de
campo, em setembro último. Sem esquecer a Andréia, a babá do Lucca, sem a qual,
definitivamente, esta monografia não teria saído.
O trabalho contou com apoio financeiro da Comunidade Européia
através do Projeto Amazonia 21. Operational Features for Managing Sustainable
Development in Amazonia.
“Será um mundo no qual os
que desejarem ter pressa poderão
fazê-lo livremente e no qual os que
não
são
apressados
serão
fortalecidos, de modo a poder pensar
na reconstrução da paz mundial e na
luta por uma convivência digna e
humana
dentro
de
cada
país”
(Milton Santos, Folha de S. Paulo,
caderno Mais, março de 2001).
SUMÁRIO
Introdução ..................................................................................................................... 14
1 – Origem e preceitos das Políticas Públicas adotadas na Flona Caxiuanã entre
1961 e 2001..................................................................................................................... 19
1.1 – A idéia de preservação de recursos ‘intocados’................................................. 19
1.2 - Sustentabilidade para quem? .............................................................................. 23
1.3 - Desenvolvimento sustentável: um conceito em permanente questionamento ... 27
1.4 - Por um ritmo local de desenvolvimento ............................................................. 31
2 – História da Flona Caxiuanã e de seus habitantes ................................................ 33
2 .1 – A criação da Floresta Nacional de Caxiuanã .................................................... 33
2.2 – As agências ambientais do governo federal....................................................... 35
2.3 - O homem e seu modo de vida dentro da Flona Caxiuanã .................................. 43
2.4 - O Museu Paraense Emílio Goeldi ...................................................................... 49
2.5 – Pedreira, Caxiuanã e Laranjal............................................................................ 55
2.5.1) CAXIUANÃ................................................................................................. 56
2.5.2) PEDREIRA .................................................................................................. 59
2.5.3) LARANJAL ................................................................................................. 63
2.6 - As instituições e seus papéis .............................................................................. 66
3 – O MFA: conceitos e procedimentos relacionados à análise de fluxos materiais69
3.1 – Conceituação de sistemas abertos, metabolismo e colonização ........................ 69
3.2 - O MFA (Material Flow Account) ...................................................................... 71
3.2.1 - O MFA em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal.................................................. 76
3.2.1.1 - Extração de recursos domésticos.......................................................... 77
3.2.1.2 - Uso de recursos domésticos ................................................................. 86
3.2.1.4 - Indicadores de input e de consumo ...................................................... 88
3.2.1.5 - Composição das exportações por comunidade e indicadores de output
............................................................................................................................ 89
3.2.1.7 - Produtos manufaturados: farinha e artesanato...................................... 96
4 - Considerações finais e conclusão............................................................................ 98
4.1 – Considerações finais .......................................................................................... 98
4.2 - Conclusão ........................................................................................................... 99
Referências Bibliográficas.......................................................................................... 104
Lista de Gráficos e Tabelas
Figura 1: Renda Caxiuanã (ano 1999) ............................................................................ 59
Figura 2: Tamanho médio das casas ............................................................................... 60
Figura 3: Médias de Renda e Gastos Mensais por Unidade Familiar............................. 61
Figura 4: Média de espaço disponível per capita por casa ............................................. 64
Figura 5: Extração Doméstica - Matéria Bruta Abiótica – Pedra [kg per cap per ano]. 78
Figura 6: Renda anual oriunda da extração mineral - [R$/cap/ano]............................... 79
Figura 7: Extração doméstica de biomassa [média anual per cap]................................. 80
Figura 8: Extração doméstica de biomassa - Peixe [kg/cap/ano] .................................. 81
Figura 9: Extração doméstica de biomassa - Caça [kg/cap/ano] .................................... 81
Figura 10 : Extração Doméstica de Biomassa - Extrativismo ....................................... 82
Figura 11: Composição das Exportações Caxiuanã - Peso............................................. 83
Figura 12: Extração Doméstica de Biomassa - Madeira ................................................ 85
Figura 13: Consumo individual de alimentos importados [kg/cap/ano]......................... 87
Figura 14: Composição da Matéria Total Injetada ......................................................... 88
Figura 15: Composição das Exportações - Peso............................................................. 90
Figura 16: Composição das Exportações - Peso - Laranjal............................................ 91
Figura 17: Composição das Exportações - Valor - Laranjal........................................... 92
Figura 18: Composição Exportações - Peso - Pedreira .................................................. 93
Figura 19: Composição Exportações - Valor - Pedreira ................................................. 93
Figura 20: Composição Exportação - Valor ................................................................... 94
Gráficos e Tabelas anexos
Tabela 1 – Frutos consumidos pelos habitantes das três comunidades
Gráfico anexo 1 – Usos da Madeira Pedreira
Gráfico anexo 2 – Usos da Madeira Caxiuanã
Gráfico anexo 3 – Usos da Madeira Laranjal
Gráfico anexo 4 – Composição da Extração de Frutos Caxiuanã
Gráfico anexo 5 – Composição da Extração de Frutos Pedreira
Gráfico anexo 6 – Composição da Extração de Frutos Laranjal
Lista de Figuras, Mapas e Croquis
Mapa 01 – Localização dos Municípios de Breves, Melgaço e Portel no Estado do Pará
Mapa 02 – Vista da baía de Caxiuanã e afluentes, com a localização da ECFPn e das
comunidades de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal
Mapa 03 – Flona Caxiuanã
Lista de Siglas
IBAMA
- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
DMC
- Domestic Material Consumption
DMI
- Direct Material Input
DPO
- Domestic Processed Output to Nature
ECFPn
- Estação Científica Ferreira Penna
EMBRAPA
- Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FCAP
- Faculdade de Ciências Agrárias do Pará
FLONA
- Floresta Nacional
FUNDEF
- Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Ensino Fundamental
IBDF
- Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal
IIED
- International Institute for Environment and Development
INCRA
- Instituto Brasileiro da Colonização e Reforma Agrária
IQV
- Índice de Qualidade de Vida
IUCN
- International Union for the Conservation of Nature
MEC
- Ministério da Educação e Cultura
MFA
- Material Flow Account
MMA
- Ministério do Meio Ambiente
MPEG
- Museu Paraense Emílio Goeldi
NPP
- Net primary -production
NUC
- Núcleo de Unidades de Conservação
ODA
- Overseas Development Administration
OIF
- Oxford Institute of Forestry
ONU
- Organização das Nações Unidas
RESEX
- Reserva Extrativista
SECTAM
- Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente.
SNUC
- Sistema Nacional de Unidades de Conservação
SUDAM
- Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia
TDO
- Total Domestic Output to Nature
TMC
- Total Material Consumption
TMI
- Total Material Input
TMO
- Total Material Output
TMR
- Total Material Requirements
UC
- Unidade de Conservação
UFPA
- Universidade Federal do Pará
WBCSD
WCED
- World Bussines Council for Sustainable Development
- World Commission on Environment and Development
Resumo:
Muitas Unidades de Conservação no Brasil foram criadas sem que se
tomasse conhecimento das populações que habitavam os espaços que passaram a ser
áreas protegidas. Ou, por outra, tomou-se conhecimento delas superficialmente, apenas
o suficiente para se supor que fossem ‘prejudiciais’ ao meio, o que abriu caminho para
expulsá- las dos lugares que habitavam e conheciam.
A história da criação da Flona Caxiuanã não é muito diferente da história
da criação de outras Flonas, como a do Tapajós, por exemplo. Depois que o governo (na
época, o IBDF) expulsou a maior parte dos moradores, os que ficaram foram se
adaptando às novas condições impostas pelo órgão ambiental federal (hoje Ibama).
Há cerca de dez anos, o Museu Paraense Emílio Goeldi instalou no local
uma base de pesquisas – a Estação Científica Ferreira Penna (ECFPn) – e vem
preenchendo certos espaços que outros setores do Estado deveriam estar cumprindo:
dando escola para as crianças, providenciando cursos com as parteiras, levando médicos
para avaliar o estado de saúde das populações – mormente de três comunidades:
Pedreira, Caxiuanã e Laranjal.
Utilizando-se de uma metodologia conhecida como MFA (Material Flow
Account), esta pesquisa contabilizou os fluxos materiais das três comunidades e a partir
destes dados obteve uma média de consumo de matéria per capita ao ano. Na
comparação com os dados de esfera nacional, estimou-se que a média de consumo de
matéria de um brasileiro é o dobro da média de um morador da Flona Caxiuanã e
arredores. Ao retirar as populações tradicionais de seus locais de origem, o Estado
contribuiu para fragilizar as fronteiras da Flona com as adjacências, em nome de um
‘perigo’ que elas não representam. Os indicadores de sustentabilidade que esta
metodologia reconhece indicam que Caxiuanã, Pedreira e Laranjal geram entropia quase
zero e são, além de auto-suficientes, também sustentáveis.
Palavras chave: populações locais, sustentabilidade, Unidades de
Conservação.
Abstract
Several Preservation Units in Brazil were established without considering
the population that inhabits the new protected areas. In another words, the knowledge of
these population was superficial, just enough to presume that they were ´prejudicial´ to
the environment, what opened the way to expulse them from the places they live in and
knew well.
The history about the creation of the Caxiuanã National Forest is not too
different from other similar ones, such as the Tapajós. After the Government - Brazilian
Institute for Forest Development – IBDF at the time – expulsed the majority of the
inhabitants, the remainders have started adapting themselves to the new conditions
imposed by the federal environmental organ (presently IBAMA).
About 10 years ago, the Emilio Goeldi Museum from Para installed a
research headquarter – Scientific Station Ferreira Penna (ECFPn) - on the premises and
has been performing the roles that other State´s sectors should be accomplishing, e.g.,
providing school for children, courses on how to deliver a child for midwifes, bringing
in physicians to evaluate the health conditions of the population, specially for three of
the communities, i.e., Pedreira, Caxiuanã and Laranjal.
Making use of a methodology known as the MFA - Material Flow
Account - the survey accounted the material flow of the three communities, and from
this data has obtained a yearly material consumption mean per capita. Compared to
countrywide data, it could be estimated that the mean of material consumption of one
Brazilian is double of the mean for an inhabitant of Caxiuanã and surroundings. By
retreating the traditional population from its place of origin, the Government contributed
to weaken the frontiers of the National Forests and surroundings, in the name of a
´danger´ which is not represented by this native population. The sustainable indicators
recognized by such methodology indicate that Caxiuanã, Pedreira and Laranjal generate
almost zero entropy and besides being self- sufficient, they are also sustainable.
Key words: local population, sustainability, Preservation Units.
Introdução
Este trabalho é uma tentativa de provar que as populações agroextrativistas do interior da Amazônia são sustentáveis, pois consomem menos matéria
que as populações urbanas e manejam seu estoque de recursos naturais de acordo com
normas fundadas na convivência com a floresta. Também se pretende demonstrar que as
idéias preservacionistas sobre as quais, por muito tempo, se nortearam as políticas
públicas ambientais no Brasil, não só contribuíram para a difusão da falsa noção de que
a Amazônia seria um vazio desabitado, mas têm sido prepostos da ingerência do Estado
na administração das Unidades de Conservação.
Este trabalho também pode ser considerado como a materialização de um
empreendimento que, à primeira vista, parece bem simples: o de contar uma história –
ou, parafraseando o compositor baiano, a história ‘do povo de um lugar’. Em agosto de
1998 estive na Floresta Nacional de Caxiuanã pela primeira vez. Uma matéria veiculada
em um jornal local semanas antes, sobre atividades do Museu Paraense Emílio Goeldi
com parteiras da região da floresta, havia me chamado a atenção sobre o local. Eu havia
chegado de São Paulo para fixar residência em Belém há pouco mais de um ano. Na
época, trabalhava como repórter free- lancer para diversos veículos, sendo um deles o
suplemento regional do jornal A Gazeta Mercantil.
Procurei a coordenação da Estação Científica Ferreira Penna (ECFPn), a
base que o Museu mantém desde 1993 dentro da Flona Caxiuanã, e mostrei meu
interesse em conhecer o lugar. A Gazeta Pará compraria as matérias, mas não pagaria
pela viagem. Fui por minha conta e lá fiquei uma semana. Produzi uma série de
reportagens sobre o desempenho do Programa de Desenvolvimento Sustentável Floresta
Modelo de Caxiuanã, uma iniciativa de atuação do Museu sobre três comunidades do
entorno da estação: Caxiuanã, Pedreira e Laranjal.
Somadas, as localidades configuram hoje 31 casas, situadas em diferentes
áreas de várzea: Caxiuanã fica às margens do rio Curuá; Pedreira, no extremo norte da
baía de Caxiuanã, e Laranjal está à beira de um lago que se forma no final de um
igarapé cuja entrada fica também na baía. Voltei decidida a escrever sobre as
transformações que vinham sendo operadas nestas sociedades com a instalação da
Estação Científica e o advento da utilização da energia solar, uma novidade
15
possibilitada pelo Museu Goeldi (pensava na época em escrever sobre a ‘chegada’ da
TV a estes lugares, mas logo vi que os acontecimentos que vinham se operando
singularmente apontavam, a um só tempo, para muito aquém e muito além das minhas
expectativas).
Pode-se dizer que o trabalho aqui apresentado é, então, o resultado de um
acaso, no qual a curiosidade - talvez auxiliada pelo destino - conduziu alguém desejoso
de contar histórias a um lugar repleto de histórias que pouca gente contara. Histórias do
chamado ‘caboclo’ amazônico, um tipo ao mesmo tempo anônimo e mítico. Conforme
ia conhecendo as pessoas e presenciando os acontecimentos de cada uma das
localidades, meus objetivos foram se modificando e ampliando. Compreendi, por
exemplo, que seria impossível discorrer sobre as transformações que se me operavam
diante dos olhos sem atentar para a combinação de fatos que, nos últimos 40 anos, vem
concorrendo para configurar as comunidades da maneira como atualmente se
apresentam.
Daí que minha idéia inicial, de tentar auferir as metamorfoses operadas
pela ação do MPEG, sobretudo por conta da disponibilização de energia (limpa) para
Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, alargou-se e acabei por me propor a realizar uma tarefa
um pouco mais abrangente: identificar a trajetória sócio-econômica das três
comunidades por intermédio da ação, em momentos não necessariamente coincidentes
no tempo, de duas instituições: o órgão ambiental do governo federal que lá está desde
1961 (atualmente representado pelo Ibama) e o Museu Paraense Emílio Goeldi
(MPEG).
Concretamente, os objetivos desta pesquisa são quantificar as trocas
materiais e energéticas que essas comunidades realizam com o meio exterior e esboçar
seu metabolismo, na tentativa de auferir seu grau de sustentabilidade para, então, poder
tecer considerações acerca da eficácia e da operacionalidade das políticas públicas que
vêm sendo implementadas na unidade de conservação, desde a criação da Flona.
Também as transformações operadas sobre seus hábitos, costumes e acontecimentos
sociais foram registradas, ainda que de maneira assistemática na maioria das vezes. Já a
tarefa de evidenciar o processo metabólico de Caxiuanã, Pedreira e Laranjal foi
realizada mediante um levantamento de campo que constou de cinco viagens, no qual se
utilizou um arcabouço metodológico conhecido como MFA (Material Flow Accounts).
Os dados conseguidos foram complementados por quatro grandes entrevistas,
registradas em fitas cassete, com personagens de cada um dos lugares e também com o
16
ex-gerente da floresta (exonerado há cerca de um mês, em novembro de 2001, ele
exerceu durante 30 anos o cargo de gerente da Flona Caxiuanã). Isso sem contar as
inúmeras e deliciosas conversas com os moradores ou a pouca, mas intensa, convivência
com eles. Também entrevistei o ex-coordenador da ECFPn.
Inserida no ecossistema das várzeas estuarinas do Amazonas, a Flona
Caxiuanã fica a noroeste do estado do Pará, nos municípios de Melgaço e Portel. O
universo de pesquisa deste trabalho limita-se a 28 residências, das quais apenas 12
encontram-se dentro da área da Flona. O restante está no entorno da floresta, nos limites
daquilo que é considerado, pelo Ibama, como ‘zona de transição’: uma faixa estratégica
para a proteção da Unidade de Conservação propriamente dita e onde, segundo a
Resolução nº 13 do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente), o órgão pode agir
para coibir intervenções antrópicas consideradas ‘nocivas’ ao meio.
Estabelecida pelo Código Florestal aprovado em 1934 (decreto nº
23.793), a Floresta Nacional é definida hoje pelo Ibama como:
“... área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas
e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a
pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas
nativas” (ver Lei nº 9985 de 18 de julho de 2000, em anexo).
Apesar de instituídas na década de 30, as Flonas só viriam a ser
regulamentadas 29 anos depois, pelo Decreto nº 1.298 de outubro de 1994 (ver decreto
em anexo). No caso de Caxiuanã, unidade criada pelo Decreto nº 239 de 28 de
novembro de 1961 (ver decreto de criação da Flona em anexo), esse hiato legislativo
perfaz 33 anos.
Do ponto de vista administrativo, as Flonas são consideradas pelo Ibama
como Unidades de Conservação de uso direto: onde a exploração e o aproveitamento
econômico dos recursos são permitidos, ‘mas de forma planejada e regulamentada’,
sendo hoje identificadas como Unidades de Uso sustentável ao lado das Áreas de
Proteção Ambiental (APAs); das Áreas de Relevante Interesse Ecológico (ARIEs); das
Reservas de Fauna; das Reservas de Desenvolvimento Sustentável; das Reservas
Particulares do Patrimônio Natural e das Reservas Extrativistas (Resex).
É curioso observar que as Flonas e as Resex estejam alinhadas na mesma
categoria gerencial pelo Ibama. Pois, ao passo que as últimas existem por obra e graça
dos recentes movimentos organizados das populações que vivem do extrativismo, as
Flonas foram – e têm sido - instituídas à revelia das famílias que ocupam, muitas vezes
17
historicamente e por várias gerações, os espaços transformados em Unidades de
Conservação. Enquanto as Resex são concebidas como espaços “de domínio público,
com uso concedido às populações extrativistas”, as Flonas são consideradas “áreas de
posse e domínio público” (ver Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, em anexo).
No decreto que instituiu Caxiuanã, a única menção aos moradores locais
aparece no artigo nº 5 que cunha a expressão ‘eventuais proprietários de áreas e
benfeitorias’ para designar as mais de 350 famílias que habitavam o lo cal na época da
criação da Flona - 80% das quais saíram da floresta sem receber indenização ou
desapropriação, de acordo com o ex-gerente da Flona porque, além de não possuírem
documentos das terras, também não tinham documentos pessoais com os quais
pudessem comprovar identidade.
Em outro documento do Ibama, um laudo intitulado Unidades de
Conservação do Estado do Pará que data de maio de 1994 (ver relatório em anexo) - e
que provavelmente foi produzido para embasar a redação do decreto nº 1.298 de
outubro de 1994 - encontram-se referências à Flona Caxiuanã. Das cinco páginas
dedicadas a esta Unidade de Conservação, oito linhas apenas se referem à população
local, sob o intertítulo de 'Aspectos sócio-econômicos da Flona'. No segundo parágrafo
se pode ler: “Não se verificam comunidades organizadas, estando a população dispersa
em toda a área”.
Percebe-se por esta única linha, claramente, o processo de depreciação
das comunidades chamadas tradicionais em áreas nas quais são criadas Unidades de
Conservação. O mesmo Estado que desarticulou a população local, expulsando-a por
meio de coerção e opressão incumbe-se de atestar, mais de trinta anos depois, que não
existe 'organização' entre as famílias remanescentes - como se esse modus vivendi
desarticulado fosse 'natural', e não forjado pelas políticas públicas implementadas
décadas antes - ou, por outra, como se isso tivesse sido apagado da memória oficial, o
que, de fato, realmente aconteceu.
Estas e outras questões são capítulos da história daqueles que vivem no
espaço conhecido hoje como Flona Caxiuanã. É de se imaginar que, com o interesse
cada vez maior que recai sobre as áreas ricas em madeira e outros recursos – e mediante
a intenção do governo federal de arrendar as Florestas Nacionais, como já fez com a
Flona Tapajós (ver matérias do jornal Gazeta Mercantil em anexo) – este enredo reserve
ainda muitos fatos e surpresas pela frente. De todo modo, o importante seria questionar
qual é o papel que estas comunidades vão desempenhar nesta trama num futuro próximo
18
- se, a despeito das restrições que a elas se vêm impondo no tocante ao uso dos recursos
naturais, até o presente momento não se discutiu seriamente a possibilidade de que
venham a se beneficiar, de alguma maneira, com a abertura da Flona para a exploração
da madeira e outros recursos.
Defendo a hipótese de que o processo de instituição e ‘gestão’ da Flona
Caxiuanã tem se constituído no encolhimento da capacidade produtiva e reprodutiva dos
seus moradores, transformados em ‘algozes’ da floresta - posição que parece ser social e
politicamente atenuada com a chegada do Museu Goeldi ao local, ainda que este
também se guie, como se procurará mostrar, pela premissa de que se deve reeducar e
monitorar os habitantes da floresta a fim de que se comportem de maneira ‘sustentável’,
ou seja, de que se mantenham de modo a afetar o meio o mínimo possível.
Irônico é notar que esta capacidade de manutenção ‘sustentável’, se
entendida como conjunto de padrões de comportamento humano em relação ao meio,
está muito mais próxima do modo de vida dos ribeirinhos da floresta do que dos hábitos
daqueles que, com o poder arbitrário da autoridade ou a pretensão da ciência, vêm se
esforçando para enquadrar Pedreira, Caxiuanã e Laranjal no que as políticas públicas
ambientais e a comunidade científica mundial vêm consagrando como modelo de
‘sustentabilidade’.
Para demonstrar este afirmação utilizei- me, como já mencionei, do MFA,
com o propósito de efetuar um balanço energético- material de cada uma das
comunidades, e assim comprovar que seus padrões de utilização de recursos naturais e
de dissipação de resíduos são muito mais compatíveis com o meio ambiente do que os
dos moradores de qualquer cidade brasileira, como Belém, por exemplo.
Estive em campo quatro vezes, depois a primeira viagem: julho de 1999,
março de 2000, julho de 2000 e setembro de 2001. Utilizei- me de questionários
genéricos e direcionados, entrevistas gravadas em fitas cassete e conversas informais.
Para pesar as amostras materiais usei uma balança de cozinha, com capacidade para 5
kg – e também a balança eletrônica da ECFPn, utilizada para pesar a comida no
refeitório. Para as medidas, empreguei uma trena de fibra de vidro de 30 metros e para
estimar o consumo de água e outros recursos usei um recipiente plástico de 1 litro. As
casas foram numeradas de acordo com a ordem em que as visitei pela primeira vez.
Por fim, cabe esclarecer que este trabalho faz parte das atividades do
Projeto Amazônia 21, uma iniciativa financiada pela União Européia e voltada à
cooperação entre os países do terceiro mundo e organizações internacionais para
19
fomentar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. Sua função no Projeto está ligada
à necessidade de testar a aplicabilidade da contabilidade dos fluxos materiais em escala
local nos países pan-amazônicos. Isso faz desta a primeira pesquisa a utilizar-se dos
procedimentos metodológicos preconizados pelo MFA em nível local no Brasil.
1 – Origem e preceitos das Políticas Públicas adotadas na Flona Caxiuanã entre
1961 e 2001
1.1 – A idéia de preservação de recursos ‘intocados’
Desde a criação das primeiras unidades de conservação no Brasil1 o
objetivo foi sempre o de resguardar áreas ‘virgens’ para a pesquisa científica e o lazer
das populações urbanas. Importado dos Estados Unidos, tal modelo de conservação
baseia-se na idéia de que “existiriam áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem,
apresentando componentes num estado ‘puro’... Esse mito supõe a incompatibilidade
entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação da natureza” (Diegues,
1998: 53).
No Brasil, o objetivo do estabelecimento das unidades de conservação
“tem sido o de manter os recursos naturais em seu estado original, para usufruto das
gerações atuais e futuras” (IBAMA - Base, Princípios e Diretrizes da Diretoria de
Unidades de Conservação e Vida Silvestre, 1997, p. 1). As UCs, muitas vezes, são
instituídas aleatoriamente em locais já povoados, suscitando conflitos e tensão entre
órgãos do governo e as populações locais.
A incorporação acrítica do modelo norte-americano de preservação por
parte do ambientalismo brasileiro é explicada por Viola & Leis (1995) que identificam,
na formação do movimento ambientalista nacional, dois atores: associações
ambientalistas e agências estatais de meio ambiente. Para estes autores, a emergência
das preocupações ambientais no Brasil está diretamente conectada à profundidade e à
1
O Parque Nacional de Itatiaia, no Rio de Janeiro, foi o primeiro a surgir, em 1937.
20
‘violência’ com que as modificações modernizadoras se deram localmente, sobretudo na
década de 70, nos âmbitos político, econômico e social. Entretanto, eles salientam que
problemas como o crescimento populacional e o uso racional dos recursos naturais não
chegaram a fazer parte da agenda do ambientalismo brasileiro.
Importou-se não somente o modus operandi de criar espaços
supostamente intocados para preservar, mas também os objetivos do movimento
ambientalista norte-americano, sem dar atenção ao que os autores chamam de
‘especificidade da deterioração ambiental brasileira’ no que diz respeito ao déficit de
saneamento básico que havia (e ainda há) no país – problema que não tinham as nações
desenvolvidas (Viola & Leis, 1995).
Embora a idéia de progresso tenha sido redefinida, e limitada, nos vinte
anos decorridos entre Estocolmo 72 e Rio 92 - modificação impulsionada, segundo
Carvalho (1995), pelo conceito de ecologia que também se transformava - o efeito dessa
mudança de paradigma não parece guardar, no âmbito das políticas públicas brasileiras,
as mesmas proporções durante o período. A atuação do Ibama - criado em 1989 em
lugar do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal) e apontada por Viola
& Leis (1995) como uma reforma na ‘definição da problemática ambiental’ brasileira
por associar proteção ambiental ao ‘uso conservacionista dos recursos naturais’ - ainda
que tenha significado um avanço sob o ponto de vista da cultura ambiental brasileira,
tem se limitado, de um lado, pela linha conservadora que importantes setores da
instituição mantêm (Diegues, 1998) e de outro pela utilização de parâmetros de
eficiência duvidosa na busca da sustentabilidade, como o conceito de biodiversidade,
por exemplo.
O conceito de biodiversidade tem sido apresentado como ‘elemento
integrador na conservação da natureza’. Ao contrário do que acontecia anteriormente,
quando se buscava a conservação de amostras representativas de ecossistemas, hoje o
enfoque principal das agências estatais de meio ambiente é o da conservação da
biodiversidade (Ibama, 1997).
Mas, como demonstra McGrath (1997), a despeito da gama de opiniões
diversificadas que o conceito de biodiversidade conseguiu agregar ele tem utilidade
limitada quando a meta é definir estratégias de desenvolvimento sustentável para o
planeta. “No fundo, o conceito de biodiversidade é inadequado como base de uma
estratégia de manejo porque é essencialmente orientado para a preservação e não para o
manejo” (McGrath, 1997: 54).
21
Nota-se então que as estratégias que vêm norteando as políticas públicas
ambientais no Brasil mudaram de conteúdo ao longo dos anos, mas seus objetivos
pouco se modificaram. A ‘preservação’ de ‘espaços intocáveis’ ainda é uma das metas
principais - hoje não necessariamente daqueles que encerram belezas cênicas
excepcionais, mas dos que concentram o maior contingente possível de espécies por
hectare em seus limites. E se hoje é evidente para as agências ambientais e fundiárias do
governo que muitos destes espaços e/ou seus arredores são habitados, isto não quer
dizer que se pense prioritariamente em uma política que inclua essas pessoas. Pelo
contrário. Como salienta Benatti (1998), nas UCs criadas até hoje o aspecto natural vem
se sobrepondo ao cultural, havendo mesmo casos - como é o de Caxiuanã - em que se
destruiu um em favor do outro.
A recente lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o SNUC
(lei nº 9.985 de 19 de julho de 2000) refere-se a “proteger os recursos naturais
necessários à subsistência das populações tradicionais, respeitando e valorizando seu
conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente” (ver lei em
anexo). E embora já existam estudos dando conta de que a presença humana –
representada pelas chamadas populações tradicionais 2 – contribui para a variedade de
espécies, como no caso da região do Alto Juruá, no Acre (ver Revista Veja, junho de
2001 – em anexo), em alguns setores das agências governa mentais brasileiras subsiste a
idéia de que o homem, mesmo em seu modo de reprodução social ‘tradicional’, é
prejudicial ao meio.
2
O CNPT (Centro Nacional das Populações Tradicionais), define populações tradicionais como “todas as
comunidades que tradicional e culturalmente têm sua subsistência baseada no extrativismo de bens
naturais renováveis” (Murrieta e Rueda, 1995: 51, citados em Benatti, 1998: 35). Para Diegues (1998: 8788), são características das culturas e sociedades tradicionais:
a) a dependência da natureza para a construção dos modos de vida;
b) o conhecimento aprofundado desta, que se reflete em estratégias próprias de manejo dos recursos
naturais;
c) a noção do espaço ou território onde o grupo se reproduz social e economicamente;
d) a sucessão de gerações na ocupação deste território;
e) a importância das atividades de subsistência para estes grupos;
f) a reduzida acumulação de capital;
g) a importância da unidade familiar e das relações de parentesco observadas nestes grupos;
h) a importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e às atividades
extrativistas;
i)
as simbologias, mitos e rituais ligados a atividades como caça, pesca e extração;
j) a simplicidade das tecnologias utilizadas para a consecução dos meios de vida;
k) o fraco poder político local e finalmente
l) a auto-identificação de acordo com a noção de pertencimento a uma cultura distinta das outras.
22
Na Amazônia, como bem ressalta Costa (1997), soma-se a esta realidade
o fato de que os movimentos ecológicos de caráter abertamente preservacionista
acabaram por condenar o campesinato agrícola – considerando-o tão daninho ao meio
ambiente quanto as grandes empresas agro- industriais – e elegendo como parceiros
apenas os índios e os camponeses extrativistas. Segundo o autor, essa condenação se dá
porque os primeiros transformam a natureza em seu processo reprodutivo, ao passo que
os outros têm no ecossistema original sua base de produção e reprodução. Para Costa,
este processo de transfiguração do camponês agrícola contribui para a manutenção da
concentração fundiária na região – sem garantir a preservação dos recursos da floresta além de obstaculizar o fato de que estas estruturas campesinas constituem-se
alternativas viáveis de desenvolvimento agrícola para a Amazônia 3 .
Diegues (1998) pontua que esta visão - compartilhada por agências
governamentais, organismos internacionais e vários movimentos ecológicos - levou à
desocupação de muitos espaços naturais no Brasil, onde foram criadas Unidades de
Conservação que, claramente, têm como objetivo beneficiar as populações urbanas em
detrimento das tradicionais. Destas, pode-se acrescentar, cobra-se hoje, mais do que
nunca, a busca da sustentabilidade. Na Amazônia há inúmeros projetos – encabeçados
por Ongs e entidades semelhantes, ou por setores da administração pública, ou ainda por
alianças entre ambos – que enfocam as populações tradicionais e a ‘necessidade’ de que
elas se comportem de maneira ‘sustentável’ (de maneira a afetar o meio o mínimo
possível).
Em que pese a importância da presença de ongs e entidades como o
MPEG em áreas de conservação (Lima Ayres, 1997; Viola & Leis, 1995; Machado,
1998; Diegues, 1998) - que em muitos casos têm servido como mediadores entre as
agências governamentais e as comunidades que habitam as UCs, provendo elementos
para que estas se organizem politicamente e regularizem suas posses - assinala-se neste
trabalho a necessidade de que a dinâmica de exploração e uso de recursos naturais
própria de comunidades como as economias agro-extrativistas estudadas seja observada
mais minuciosamente, antes que lhes sejam aplicados preceitos ou tarjas de
sustentabilidade.
3
“Uma tal condenação, de um lado, contraria possibilidades não desprezíveis dessas estruturas se
constituírem em via alternativa de eficiente desenvolvimento agrícola regional ...; de outro, confirma o
23
1.2 - Sustentabilidade para quem?
Em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, o consumo de recursos oriundos do
meio natural é bastante equilibrado, como se poderá ver adiante pelas baixas taxas de
matéria não aproveitada em relação à matéria aproveitada pelos sistemas sócioeconômicos. Praticamente a metade da matéria que as três comunidades retiram do
ambiente é destinada à exportação e, entretanto, isto não acarreta a ‘desordem’ 4 destes
sistemas sócio-econômicos, como preconiza Altvater (1993). O consumo de importados
– produtos que vêm de fora da comunidade - é mínimo, limitado economicamente pela
capacidade da pequena produção familiar, que se traduz no mercado principalmente em
circulação simples de mercadorias ou em formas ‘mais modernas’ de aviamento.
Sobretudo, estas comunidades produzem pouca ou quase nenhuma entropia 5 e estão
longe da capacidade de exportar ‘externalidades negativas’ que comprome tam
globalmente o ambiente, conforme as palavras de Altvater (1993). Pelo contrário, elas
estão na outra ponta, do outro lado da moeda: estão na posição de impactadas, e não de
impactantes.
Para entender como essas pessoas passaram de um extremo a outro no
ideário que sustenta a adoção de políticas públicas ambientais no Brasil é necessário
rever a história recente, adotando como balizas as idéias de desenvolvimento, de
crescimento econômico e de globalização na acepção que lhes confere o arcabouço
teórico do capitalismo. Porque é com base em argumentos desta natureza que se
justifica a cobrança de ‘sustentabilidade’ de sociedades como as observadas em
Caxiuanã, Pedreira e Laranjal.
Tomando como ponto de referência a Amazônia, Nugent (1993) guarda
uma visão bastante crítica sobre a idéia de sustentabilidade. Para ele, o que interessa é
aquilo que os argumentos acerca do conceito têm em comum, ou seja, uma preocupação
ostensiva com a conservação do ambiente e com sua viabilidade econômica. O autor
rumo da reoligarquização em curso e as dinâmicas de concentração da propriedade da terra, sem qualquer
garantia preservacionista” (Costa, 1997: 260-261)
4
Para Altvater (1993), a elevação da sintropia em determinadas regiões tem como conseqüência a
produção de entropia em outras, o que caracteriza o progresso, a industrialização e a modernização como
responsáveis tanto pelo aumento da ordem em determinados locais, quanto pela produção e reprodução da
desordem social, política e econômica em outros locais do planeta. Neste sentido, Altvater enfatiza que a
produção seria – tanto do lado do insumo quanto do lado do produto – produção de estragos, pois
necessariamente o processo de produção gera efeitos externos.
5
Entropia representa “uma estimativa de desordem de um processo de transformação”, configurando-se
uma “medida da degradação energética” (Alekseev, 1986 citado em Cavalcanti, 1997).
24
chama a atenção para o fato de que as várias vertentes que utilizam o conceito de
sustentabilidade também dividem o interesse em manter os sistemas sociais como são 6 .
De um lado, afirma Nugent, o conceito de sustentabilidade supõe que o
crescimento econômico pode ser sustentável e os danos ao ambiente, mitigados. De
outro, a sustentabilidade seria um eufemismo para subsistência. No meio, interpõe-se a
idéia de que haveria possibilidade de se satisfazer os dois extremos: as demandas das
pequenas comunidades e as da economia global.
Nestes termos, então, talvez fosse propício indagar a respeito da noção de
necessidades, preconizada pelo Relatório Brundtland 7 com uma das bases do conceito
de desenvolvimento sustentável. Não propriamente sobre seu significado restrito, mas
sim sobre sua utilização, por assim dizer, em contexto ‘global’. Supostamente, seria
óbvio afirmar que diferentes sociedades, em diferentes lugares, têm diferentes
necessidades. Cândido (1978: 23), ao dissecar a incorporação dos agrupamentos rurais
do interior de São Paulo à esfera da economia capitalista já assinalou que “as sociedades
se caracterizam, antes de mais nada, pela natureza das necessidades de seus grupos, e os
recursos de que dispõem para satisfazê- las”.
Assim, ao preconizar as necessidades dos mais pobres, o referido
relatório atua na esfera do que é passível de generalização: só se poderia mesmo
priorizá- las, pois elas saltam aos olhos, estão nas calçadas, nos noticiários – são
símbolos da crueza do modelo capitalista. No mais, não se faz questão de evidenciar que
necessidades variam. E que os pobres não são iguais em todo o mundo porque o mundo
não é igual. Como lembra Cândido (1978), as soluções dependem da quantidade e da
qualidade das necessidades a serem satisfeitas, necessidades estas que, por sua vez,
possuem um duplo caráter: natural (pois são manifestas por impulsos orgânicos) e social
(pois são saciadas por meio de iniciativas humanas, que se vão complicando cada vez
mais).
A globalização engendra o artifício de evidenciar preferencialmente as
carências universais - focando as necessidades emblemáticas vitais ‘do mundo todo’
6
What the sustainability arguments have in common is an ostensible concern for environmental
conservation and economic viability. What they also share, although infrequently addressed, is an interest
in maintaining social systems as they exist, albeit in some formulations in a reformed way (e.g. through
the establishment of extractive reserves) (Nugent, 1993: 237).
7
Publicado em 1987, este documento da Comissão das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento pontuava que as questões sobre o desenvolvimento econômico das nações teriam de ser
debatidas junto com as questões ambientais. Nosso Futuro Comum (Our Common Future) ficou
conhecido como Relatório Bruntland porque este era o sobrenome da ministra da Noruega que presidia a
Comissão.
25
como prioridade e ofuscando a existência de necessidades locais. Utiliza-se para isso de
um arcabouço de conceitos científicos cuja legitimação se dá, muitas ve zes, através da
implementação de políticas públicas orientadas por eles. Embora seja óbvio que um
habitante da Pedreira, um paulistano, um parisiense ou um japonês qualquer tenham
carências essenciais comuns - que só podem ser satisfeitas, em última instância,
lançando-se mão de recursos naturais - é também evidente que os governos não agem
exclusivamente para suprir as demandas absolutamente vitais dos indivíduos, senão para
manter o modelo econômico vigente em ‘funcionamento’, com todos os seus vícios e
suas virtudes. Se é verdade que, como salienta Machado (1999: 42), “...as mazelas
sociais e impasses ecológicos que se registram na Amazônia são expressões explícitas
na natureza do projeto global de capitalismo industrial, como modelo econômico
(sic)...” então ao sublinhar as necessidades ‘globais’ e encobrir as locais o que se faz é
perpetuar as bases sobre as quais estes ‘impasses e mazelas’ se originaram.
Não há nada errado com a idéia de que a busca da sustentabilidade
represente, em princípio, a eleição de prioridades. Mas é preciso esclarecer que, se
existe realmente o desejo de fazer com que todos sejam favorecidos por esta nova
perspectiva de relação com o meio, as prioridades devem ser pensadas em um primeiro
momento para o benefício local, e depois em escala global – ou, numa linguagem direta,
de baixo para cima, e não ao contrário. Parece inconcebível sustentabilidade global sem
sustentabilidade local.
Aiking et al (1999) classificaram os vários ‘approaches’ utilizados para a obtenção de
indicadores de desenvolvimento sustentável, identificando cinco principais: o da
distribuição de riqueza (de natureza econômica); o ‘mosaic systems approach’ (que
distingue três diferentes dimensões relevantes para o desenvolvimento sustentável: a
econômica, a ambiental e a sócio-cultural); o ‘mosaic principle approach’ (que busca o
balanço entre princípios econômicos, ecológicos e de eqüidade); o ‘systematic
principles approach’ (que considera que os elementos importantes para o
desenvolvimento são derivados das necessidades que os sistemas têm de se
reproduzirem) e, finalmente, o ‘approach’ político (que sugere que a definição do que
pode ser desenvolvimento sustentável depende de um processo de decisão
voluntariamente concordante entre os governos democráticos).
Talvez o mais próximo de gerar indicadores realistas sobre a
sustentabilidade seja o ‘systematic principles approach’, pois considera os sistemas
individualmente, ressaltando que os elementos importantes para seu desenvolvimento
26
dependem de suas necessidades de reprodução. Todos os outros pressupõem uma noção
global de sustentabilidade, o que esconde a real situação: a de que continuam a existir
sistemas sustentáveis e sistemas não sustentáveis, uns com a ‘missão’ de compensar os
outros. A de que a não-sustentabilidade é uma característica intrínseca às sociedades
industriais e que, portanto, as aspirações de sustentabilidade devem começar pela
adequação destas sociedades aos limites da biota, e não pela ratificação da
sustentabilidade dos sustentáveis. Então, perseguir o desenvolvimento deveria significar
a tentativa de garantir que todos tivessem qualidade de vida, respeitadas as
características e as necessidades regionais e locais. O crescimento de uma estrutura
sócio-econômica seria medido então não apenas pelos valores de troca que esta
economia é capaz de produzir e trocar no mercado, mas pela sua capacidade de
possibilitar ao maior número possível de pessoas a satisfação de suas diversas e variadas
necessidades. Evidentemente, isto implica em um esforço mundial, em um
compromisso que tenha por meta a redução das desigualdades sociais. Então a busca
pelo desenvolvimento deveria se configurar em uma mobilização global para a
diminuição das desigualdades – em outras palavras, na globalização do esforço,
possibilidade que parece infinitamente mais remota que a de globalização dos recursos
naturais disponíveis no planeta, embora seja muito mais necessária.
Ainda que o apelo do conceito de sustentabilidade conecte-se diretamente
ao fato de o sistema capitalista estar longe de garantir a satisfação das necessidades de
todas as pessoas que habitam o planeta, o que se nota é que nem sempre a justiça social
está entre os objetivos daqueles que usam a terminologia ‘sustentável’. A idéia também
está a serviço dos que desejam tão somente um meio termo entre a acumulação
capitalista e a conservação ambiental e tem norteado ações dos mais diversos setores,
cada um deles buscando legitimar junto à sociedade aquilo que entende por
sustentabilidade.
Para que a idéia de sustentabilidade supere a visão corrente de
desenvolvimento, colocando os países do primeiro mundo não mais como modelo, mas
como problema, como preconizam Fatheuer & Arroyo (1998), seria necessário que os
países ‘não desenvolvidos’ elaborassem uma alternativa viável de desenvolvimento que
suplantasse a lógica do capitalismo. Para que o modelo atual de desenvolvimento seja
apresentado ao mundo como um modelo problemático é preciso provar que existem
outras formas de desenvolvimento menos problemáticas.
27
1.3 - Desenvolvimento sustentável: um conceito em permanente questionamento
O conceito de desenvolvimento sustentável tem sido apresentado como
uma tentativa relativamente bem sucedida no sentido de rever as premissas sobre as
quais se concebe o desenvolvimento no sentido capitalista. Como lembra Rodrigues
(1998), a sociedade ocidental adotou um modelo de progresso considerado positivo, que
virou referência para o mundo. As sociedades indígenas foram dizimadas porque não
seguiam os mesmos moldes. A idéia de desenvolvimento, lembra a autora, está neste
contexto relacionada à noção de progresso, que por sua vez está atrelada ao crescimento
econômico. “A terminologia desenvolvimento significa neste ideário a diversidade do
processo do modo industrial de produzir mercadorias, através de parâmetros que têm
identificado os países em ‘desenvolvidos’ ou ‘subdesenvolvidos’...”(1998: 33).
Mas a evidência de que o desenvolvimento capitalista teria limites,
primeiramente apontada pelo Clube de Roma, levou à crítica do crescimento da maneira
pela qual vinha sendo concebido, ou seja, como uma grandeza que se “...expandiria
automaticamente a todas as esferas da atividade humana, uma vez alcançados os níveis
dos patamares industriais dos países avançados” (Carvalho, 1995: 66). À parte as
análises catastrofistas que dão o tom do relatório Os Limites do Crescimento - elaborado
pelo Clube de Roma com ênfase no crescimento populacional e na retração das reservas
de recursos naturais - tornou-se claro que o desenvolvimento, no sentido capitalista, não
poderia se estender a todas as nações do mundo porque os estoques de matéria e energia
disponíveis na biota não seriam suficientes para tanto. Sobretudo os estoques de
combustíveis fósseis, responsáveis, como salienta Altvater (1993), pelo impulso
necessário ao aumento de produtividade 8 do trabalho que possibilitou ao fordismo o
alcance de altas taxas de produção e consumo e que, segundo o autor, inclui uma
alteração radical nas relações do homem com a natureza.
Entretanto, apesar de configurar-se a única alternativa considerada
paralelamente à idéia de desenvolvimento cunhada pelo regime capitalista, longe de ser
8
Altvater (1993) salienta que, enquanto a produção de mais valia absoluta redunda no encurtamento do
tempo de vida da força de trabalho humana, a produção de mais valia relativa tem como resultado,
sobretudo, uma exploração mais intensa dos recursos naturais.
Isso porque o aumento de produtividade - base do crescimento econômico no modelo de produção e
consumo de massa - tem como preço, de acordo com o autor, a pilhagem do que ele chama de ‘ilhas de
sintropia’ e o conseqüente aumento da entropia nos países ‘pilhados’. As ‘ilhas de sintropia’ são, nas
palavras de Altvater, depósitos de materiais de fácil acesso na crosta terrestre, como minas de ferro,
jazidas de bauxita e filões de ouro, formados no decurso da história do planeta. O conceito de sintropia é
oposto ao de entropia.
28
consenso, o conceito de desenvolvimento sustentável tornou-se o mote de embates que
incluem uma gama de argumentos. Um deles é que, sendo muito amplo, pode ser
interpretado sempre dependendo de interesses específicos, estando facilmente sujeito à
banalização. Outro sugere que encerra tanta ambigüidade que seu significado é ilusório
(Rodrigues, 1998), já que a sustentabilidade (manutenção do equilíbrio de modo a
garantir a continuidade das formas de vida) seria um paradoxo levando-se em conta a
maneira pela qual se construiu o ideário do desenvolvimento, atrelado à máxima do
crescimento econômico.
Para Viola & Leis (1995: 78), o reconhecimento que o conceito de
desenvolvimento sustentável ganhou com a divulgação do Relatório Brundtland teve
como preço um caráter polissêmico, pois “o amplo espectro de suas significações tende
a fortalecê- lo politicamente muitas vezes à custa de seus conteúdos científicos”.
Talvez estas ‘propriedades’ sejam conseqüências da gênese e da trajetória
do termo, como a descreve Mebratu (1998). Ele concebe a evolução do conceito de
desenvolvimento sustentável em ‘três etapas’: antes de 1972 (Conference on Human
Environment, em Estocolmo); de 1972 a 1987, cujo marco é a publicação do Relatório
Brundtland (Our Common Future) pela World Commission on Environment and
Development (WCED); e de 1987 a 1997, período pontuado pela ocorrência da Rio-92
(United Nations Conference on Environment and Development). Na fase préEstocolmo, o autor identifica a gestação do termo com base em fatores de três ordens: as
tradições e crenças religiosas; a ciência econômica e a ‘teoria dos limites’, de Thomas
Malthus; e a política econômica, com ênfase no conceito de ‘escala de organização’, de
Ernest F. Schumacher.
Mebratu afirma que a religião teve atuação ambivalente na construção da
relação entre homem e natureza, agindo tanto no sentido de reforçar a visão de que o
homem deve dominar a natureza quanto no sentido de propagar a idéia de que ele á
parte integrante dela 9 . Segundo Mebratu (1998), também as tradições de povos
indígenas e outros dão sua contribuição ao conceito, pois exaltam a importância de se
viver em harmonia com a natureza.
A noção de que o crescimento teria limites por conta da escassez de
recursos - atribuída a Thomas Robert Malthus e à sua teoria de que o aumento da
população se dá em escala geométrica, enquanto que os recursos crescem, quando
9
O Autor credita esta análise a R.S. Gottleib (1996).
29
muito, em escala aritmética – é apontada pelo autor como precursora do conceito de
desenvolvimento sustentável. Malthus dizia que o suprimento de alimentação estaria
atrelado à quantidade de terra disponível para a agricultura e que, sendo esta quantidade
fixa, e desgastando-se ao longo do tempo, o aumento da população teria como
conseqüência a diminuição do suprimento de comida per capita.
Outra componente da gênese do conceito de desenvolvimento sustentável
é, nas palavras de Mebratu (1998), a ‘tradição subterrânea’ de economias orgânicas e
descentralizadas, que se pode chamar de anarquismo. Essa tradição abrange desde
estilos de vida de tribos, comunidades e pequenos vilarejos até as antigas culturas
neolíticas. O autor toma como ponto de referência científica a publicação do livro Small
is Beautiful (1979), por Ernest F. Schumacher. Idéias contidas neste volume, como a de
‘appropriate technology’ (definida como a tecnologia que leva em conta a técnica, os
níveis de população e a disponibilidade de recursos naturais), e a de pressing social
needs (em última instância, as pessoas) são, para Mebratu, as precursoras imediatas do
conceito de desenvolvimento sustentável.
Diegues (1998) atribui ao engenheiro florestal Gifford Pinchot o clamor
pelo uso racional dos recursos naturais e pela defesa de sua conservação. Pinchot argüia
que os recursos deveriam ser usados para o bem da maioria dos cidadãos e que a
conservação tinha como um de seus princípios a prevenção dos desperdícios. Suas
idéias tiveram grande importância para a formulação de conceitos como o de
ecodesenvolvimento que, de acordo com Sachs (1986: 112 - 115), oferece ao planejador
“um critério de racionalidade social diferente da lógica mercantil” e postula uma visão
solidária que abrangeria toda a humanidade.
Ainda que não tenha o apelo do conceito de desenvolvimento sustentável,
que surgiu logo depois, o uso do termo ecodesenvolvimento acabou por evidenciar que
as idéias de desenvolvimento e meio ambiente tinham de ser consideradas
concomitantemente. Em 1987, a Comissão Brundtland incorpora um documento
denominado World Conservation Strategy, elaborado pela International Union for the
Conservation of Nature (IUCN) em 1980, para cunhar as idéias chaves da noção de
desenvolvimento sustentável: o conceito de necessidades (com prioridade expressa para
as necessidades dos pobres) e as limitações impostas pelo atual estágio de organização
social e tecnológica com relação ao meio ambiente e sua capacidade de satisfazer as
necessidades presentes e futuras (Mebratu, 1998).
30
Como observaram Viola & Leis (1995), o relativo consenso que o
Relatório Brundtland reuniu em torno do conceito, cujas bases referem-se ao ideal de
aliar desenvolvimento econômico à proteção ambiental, situa-se mais nos fins do que
nos meios, ou seja, mais nos objetivos do que nos procedimentos estratégicos para sua
consecução. Talvez por esta razão alguns autores tenham adotado, dentro das
perspectivas abertas após a divulgação do documento, parâmetros básicos para que se
alcance o desenvolvimento sustentável - como o fizeram Fischer-Kowalski & Haberl
(1993, citados em Fenzl, 1998). Para eles, em primeiro lugar o consumo de recursos
renováveis não pode exceder sua capacidade de renovação; em segundo, a quantidade
de rejeitos depositados no meio não deve ultrapassar a capacidade de absorção dos
ecossistemas e, em terceiro, os recursos não renováveis só devem ser usados se puderem
ser substituídos por equivalentes renováveis.
O caráter quase utópico, em nível global, deste conjunto de normas
evidencia o dilema que se coloca para o desenvolvimento sustentável atualmente, de
acordo com Viola & Leis (1995): a necessidade de consolidar-se política e socialmente
para realmente se transformar em uma alternativa ao modelo de desenvolvimento
dominante. A múltipla dimensão do conceito encontra-se permeada por diferentes
valores ético-sociais, afirmam os autores, que classificam as ‘versões’ de
desenvolvimento sustentável em três: estatista, comunitária e de mercado. A primeira
considera que a qualidade ambiental é um bem púb lico que deve ser resguardado pelo
Estado. A segunda advoga às ongs e organizações de base da sociedade um papel
prioritário na transição para uma sociedade sustentável. E, por fim, a terceira atribui à
lógica do mercado a capacidade de conduzir a sociedade à sustentabilidade – com base
na apropriação privada dos recursos naturais (Viola & Leis, 1995: 79-80).
Esta visão guarda alguma semelhança com a leitura de Mebratu (1998),
que categoriza a variedade de definições sobre o desenvolvimento sustentável em três
grupos majoritários: a versão institucional (representada por organizações como a
World Commission on Environment and Development – WCED; o International
Institute for Environment and Development – IIED; e a World Business Council for
Sustainble Development – WBCSD); a versão ideológica (cujas teorias predominantes
são a eco-teologia, o eco- feminismo e o eco-socialismo) e a versão acadêmica (cujas
vertentes mais proeminentes seriam a economia ambiental, a ecologia profunda e a
ecologia social).
31
Para Ba rtelmus (1999), há uma paranóia presente na idéia de
desenvolvimento sustentável, cuja origem é o embate entre economistas e
ambientalistas. Os primeiros, diz o autor, argumentam a urgência de que se utilizem
instrumentos de mercado para alcançar a sustentabilidade, como selos verdes e
subsídios para empreendimentos ‘eficientes’ – o que diz respeito, em última instância, a
preferências e iniciativas individuais. Já os ambientalistas advogam que estas
preferências não são um bom parâmetro para se julgar o impacto das atividades
econômicas nos meios ambiental e social, e que a tomada de decisão e o julgamento
devem ser coletivos. Ao contrário da sustentabilidade econômica 10 , a sustentabilidade
ecológica, segundo Bartelmus, demanda a preservação total de bens naturais vitais e
seus serviços.
1.4 - Por um ritmo local de desenvolvimento
A chave para o desenvolvimento talvez esteja na busca da ‘construção do
bem estar coletivo’, nas palavras de Santos (2001). Para ele, os diferentes tipos de
utilização do território pelo homem fazem com que coexistam, no espaço nacional,
povos, regiões e lugares evoluindo em velocidades e tempos diversos. Trata-se, então,
para garantir uma convivência harmoniosa e socialmente justa, de “... deixar que o
território nacional constitua uma verdadeira casa coletiva...”. O caminho para a
construção de uma nação sustentável passaria, então, pela afirmação da cidadania social,
econômica e política. Quanto mais se ratificam estas vertentes da cidadania, “... maior é
a garantia de que a ‘ve locidade’ pode ser limitada, ao mesmo tempo em que os
benefícios da modernidade encontram a possibilidade de uma difusão democrática”
(Santos em Folha de S. Paulo, 2001, caderno Mais:15).
A idéia de um mosaico de estruturas sócio-econômicas evoluindo no
mesmo território em tempos diferentes – cujas velocidades devem ser respeitadas – é de
grande valia para referendar o tipo de conceito de desenvolvimento que se busca neste
trabalho. E automaticamente, ao imaginar este sem número de estruturas e suas infinitas
peculiaridades, pergunta-se: como saber sobre o bem estar coletivo? Como medí- lo?
Como se mede a satisfação?
10
The long-term preservation of produced and natural capital, income or consumption is the focus of
economic sustainability (Bartelmus, 1999: 3).
32
Talvez utilizando-se a noção de qualidade de vida - parâmetro que vem emergindo nos
estudos de ciências sociais como uma alternativa a índices limitados ambiental e
socialmente, como o PIB por exemplo. Bertels & Vellinga (1999) afirmam que a
qualidade de vida é um bem que depende da obediência aos limites da ‘capacidade de
carga’ (carrying capacity) da biosfera. Que um ambiente saudável influencia
diretamente e indiretamente, por exemplo, muitos postos de trabalho. Ora, nos últimos
anos, isso vem ficando cada vez mais claro. A chamada qualidade de vida não depende
apenas daquilo que cada um pode assegurar para si via consumo – ou seja, bem-estar e
conforto - mas, nas palavras de Herculano (1998: 90), seria “... a soma das condições
econômicas, ambientais, científico-culturais e políticas coletivamente construídas e
postas
à
disposição
dos
indivíduos
para
que
estes
possam
realizar
suas
potencialidades...”. É, sem dúvida, um parâmetro mais abrangente que o mercado para
dar conta da dependência do homem em relação ao ambiente – até porque, como
salienta a autora, seu grande trunfo seria agregar ao já existente IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano, medido pela ONU), a ‘questão ambiental’.
Mas também é necessário cuidado com esse enfoque ambiental na concepção do que
seria qualidade de vida, ao incorporar essa discussão no debate sobre modelos mais
viáveis de desenvolvimento. Simplesmente porque a natureza é vista de diferentes
maneiras pelos diferentes tipos de sociedades humanas, que dela dependem. A mesma
Herculano 11 - afirmando que a proporção de áreas verdes para a população urbana e a
proporção de áreas de biodiversidade protegidas são dois quesitos que devem ser
medidos para formular um índice de qualidade de vida (que chama de IQV) - colabora
para difundir uma idéia predominantemente ‘urbana’ de qualidade de vida.
O problema com o ‘enfoque ambiental’ na noção de qualidade de vida não se relaciona
então prioritariamente ao fato de ter sido esta particularizada, pela mídia e o senso
comum, como um ‘privilégio’ de uma certa camada urbana, mas à condição de que,
como a própria autora reconhece, até hoje “a noção equivocada do que é qualidade de
11
Segundo Herculano (1998: 90-91), mensurar qualidade de vida significaria mensurar:
1- níveis de conhecimento e tecnologia já desenvolvidos e os mecanismos para o seu fomento;
2- canais institucionais para participação e geração de decisões coletivas e para resolução de dissensos;
3- mecanismos de acesso à produção (financiamento);
4- mecanismos de acessibilidade ao consumo (distribuição de renda, de alimentos e acesso aos
equipamentos coletivos – água, luz, saneamento etc.);
5- canais democratizados de comunicação e informação;
6- proporção de áreas verdes para a população urbana; proporção de áreas de biodiversidade protegidas;
7- organismos governamentais e não-governamentais voltados para a implementação da qualidade de vida
(volume de recursos financeiros e de pessoal alocados para as políticas socioambientais).
33
vida tem sido eminentemente metropolitana...”. Quando delimitado de maneira
unidimensional, o conceito de qualidade de vida perde seu apelo, que é justamente o de
ser plural, podendo-se referir tanto às necessidades de um habitante da Flona Caxiuanã
quanto às de um citadino qualquer, da Amazônia ou do resto do mundo. Um outro
inconveniente é que a ‘metropolização’ do conceito encobre a questão da posse dos
meios de vida. Nas cidades, a imensa maioria é destituída dos meios de vida e vende sua
força de trabalho, conseguindo assim reproduzir suas estruturas sem depender, por
exemplo, da posse da terra. No campo e na floresta, vive-se daquilo que se consegue
tirar da terra. O conceito de qualidade de vida serve a uns e a outros, contanto que seja
adequadamente dimensionado. Por mais diversa que seja a situação do homem do
campo nas diferentes regiões do Brasil, seria difícil falar em qualidade de vida no meio
rural e na floresta sem considerar a questão da posse da terra, da regularização fundiária
das terras ocupadas, demandas que aparecem como pré-requisito para qualquer política
pública.
Por isso, para dar conta desta ‘casa coletiva’ que deve ser o país, entende-se que a
qualidade de vida deve ser medida em nível local. Um IQV deveria levar em
consideração as particularidades regionais - deveria partir delas, para formar um
mosaico nacional de vários IQVs locais. Só assim seria possível dar conta da
multiplicidade de estruturas sócio-econômicas que, a exemplo das comunidades aqui
estudadas, evoluem em uma velocidade diferente daquela que o sistema capitalista
cunhou como ideal.
2 – História da Flona Caxiuanã e de seus habitantes
2 .1 – A criação da Floresta Nacional de Caxiuanã
A Flona Caxiuanã foi a segunda Floresta Nacional criada no Brasil, em
novembro de 1961. Encravada em território pertencente aos municípios de Portel e
Melgaço, a Flona Caxiuanã ainda faz fronteira, ao norte, com o município de Gurupá,
na foz do Amazonas; e a leste, com a cidade de Porto de Moz (cujo núcleo urbano situase às margens do rio Xingu). Calcula-se, por depoimentos das pessoas que ainda
habitam o local, que na área transformada em Unidade de Conservação pelo governo
existiam cerca de 350 famílias, vivendo dos recursos da floresta. Sem títulos das terras,
sob o ponto de vista legal os moradores da Flona Caxiuanã eram, e ainda são, posseiros.
Durante os primeiros dezoito anos, a população residente permaneceu na área, mediante
34
o pacto de que atividades como a retirada de madeira em toras, a exploração do látex da
maçaranduba 12 (Manilkara bientata ssp surinamensis) e a confecção de roças na mata
fossem abandonadas.
A extração da seiva da maçaranduba era, então, uma das principais atividades
produtivas dos habitantes da floresta. Mas, para consegui- la, era preciso derrubar a
árvore - cuja madeira, curiosamente, apesar de nobre, não era aproveitada nem
comercialmente e nem pelos próprios ribeirinhos. As espécies mais procuradas na época
eram a virola (Virola sp.) e a sucupira (Bowdichia nitida), que os moradores também
retiravam, fazendo descer as toras pelos rios e igarapés até o rio Camuim, onde uma
balsa atracava para buscá- las.
Não se pode precisar o número de patrões 13 que andavam pela área da
Flona a comprar mercadorias, mas relatos dão conta de pelo menos cinco. Havia
também uma casa de comércio no local que todos chamam de Caiçara, dentro do rio
Curuá, onde 'se criava até gado'. Os donos do negócio teriam abandonando as terras
depois que o velho patrão morreu, deixando o local aos cuidados de uma das famílias
que reside até hoje na Flona.
É provável que alguns ribeirinhos que residiam na floresta naquela época não
estivessem completamente conformados com as restrições impostas pelo governo.
Conta-se que, em meados da década de 70, um deles, desafiando as normas
estabelecidas pelo então IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), teria
subido com os três filhos o rio Puraquecuara (que passa acima da ECFPn), atrás de
árvores de maçaranduba. Este morador, que vivia às margens do rio Caxiuanã onde
12
Mais popularmente conhecida como balata, a borracha da maçaranduba tinha menos elasticidade do
que a da seringa. De acordo com Dean (1989), era por isso muito apreciada para a confecção de correias
de máquinas. Para se conseguir o látex, era necessário derrubar a árvore, depois fazer grandes sulcos ao
redor do tronco (anéis) com espaçamento de cerca de 50 cm e deixar a seiva correr. O líquido era cozido,
depois ‘espichado’ e pisoteado, como um tapete, que então era enrolado e endurecia.
13
O patrão é uma figura recorrente na história das relações de produção e comércio na Amazônia. Grosso
modo é um intermediário que adianta mercadorias predominantemente industrializadas para os ‘caboclos’
do interior, em troca de produtos da floresta. No apogeu do modelo extrativista de borracha descrito por
Oliveira Filho (1979), o patrão era o dono do barracão, casa de comércio à qual os seringueiros estavam
ligados por uma teia de relações de aviamento, sistema sobre o qual operava a extração, comércio e
exportação da goma. Aqui, no caso de Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, a expressão patrão refere-se aos
donos dos regatões, barcos volantes que viajam pelo interior da Amazônia trocando produtos da floresta
por mercadorias. McGrath (1997) observou que, no início da atividade gomífera, os regatões foram
importantes instrumentos de penetração comercial a serviço das casas aviadoras situadas em Belém e
Manaus. Posteriormente, quando o sistema de aviamento estava suficientemente estabelecido mediante o
monopólio dos recursos e o controle das atividades comerciais no interior, os regatões, segundo McGrath,
foram marginalizados no âmbito das redes de comércio locais, sendo obrigados a operar ‘nos interstícios
do sistema’ (1997: 7). Representavam, neste caso, uma alternativa ao seringueiro, preso por dívidas a um
só patrão. Por esta característica, McGrath atribui aos regatões um importante papel na resistência cabocla
ao sistema de monopolização da atividade econômica típico do auge do complexo da borracha.
35
ainda hoje reside seu irmão, teria sido delatado aos funcionários do órgão federal, todos
oriundos da região.
Depois do serviço feito, ele se preparava para descer o rio com o produto colhido em
seu casco quando uma diligência do IBDF chegou: o ex- gerente da Flona Caxiuanã,
Iranildo, que ocupou o cargo até novembro de 2001, e mais dois ribeirinhos da
comunidade de Caxiuanã (um irmão de Seu Mariano 14 , da casa nº 10, e um irmão de
Seu Tato, da casa nº 8). Um terceiro homem, também irmão de Seu Mariano, teria
ficado esperando no casco, rio abaixo.
A história contada por Seu Tato é a de que o morador ‘rebelde’ teria puxado um terçado
para a expedição e ameaçado o atual gerente. Um dos irmãos de Seu Mariano, então,
desferiu um tiro e matou o vizinho. Segundo o relato, este rapaz foi morto logo depois
por um dos filhos do homem, que nessa hora emergia do mato junto com os irmãos.
Como estavam em minoria, os funcionários do IBDF teriam fugido e os três filhos
ficaram esperando no mato por algum tempo. Dois deles resolveram fugir pela floresta,
mas o outro insistiu em descer o rio. Lá embaixo, com um homem a mais, a diligência
os esperava, e o irmão do funcionário morto atirou no rapaz e o matou.
Segundo contam os que ficaram na Flona, a viúva do ribeirinho morto mora em Breves,
no sul da ilha do Marajó. O filho responsável pela morte do funcionário do IBDF está
em algum lugar do Amazonas desde então, e o ribeirinho que matou seu irmão hoje é
funcionário do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis).
De acordo com uma fonte que já trabalhou na Flona e hoje está lotada no NUC (Núcleo
de Unidades de Conservação), este episódio resultou em um processo no Ibama, cuja
localização mostrou-se uma tarefa impossível. A procuradora que representou o órgão já
é aposentada e aparentemente não há como recuperar nenhum registro desse
acontecimento no Ibama. Contactada, afirmou lembrar do episódio, mas não das partes
do processo, nem do ano e tampouco de sua natureza.
2.2 – As agências ambientais do governo federal
Em 1979 o IBDF começou a retirar do local as famílias residentes, como
insinuava o artigo 5º do decreto nº 239 de 28 de novembro de 1961, que instituiu a
14
Os nomes dos ribeirinhos citados ao longo deste trabalho são fictícios.
36
Flona Caxiuanã. O IBDF surgira em 1967, em lugar do Serviço Florestal do Ministério
da Agricultura. O responsável pela retirada das famílias foi Iranildo. De acordo com ele,
em 1971, quando assumiu a direção da Flona, havia na área 352 famílias.
Como se viu, esta estratégia fazia parte da política do governo militar
levada a cabo nos anos 70 e 80 que previa, sob a ótica do preservacionismo importado
do modelo norte-americano, o esvaziamento das áreas onde seriam criadas unidades de
conservação ambiental. As comunidades que nelas se encontravam e seus modos de
vida não foram levados em conta nos planos governamentais de preservação que, como
ressalta Diegues (1998), objetivavam contrabalançar os efeitos ecológicos das
atividades dos grandes programas para a Amazônia.
Pode-se dizer que nestes 40 anos decorridos desde a instituição da Flona
Caxiuanã, praticamente só uma atitude foi tomada na 'gestão' desta Unidade de
Conservação: a retirada das famílias que lá residiam. O destino da maior parte dos
'expulsos' foram as várzeas de outros rios nos arredores da Flona, como o Maparauá e o
Mujuá, bem como os centros urbanos mais próximos, como as cidades de Portel e
Melgaço. Não sendo proprietárias das terras que habitavam, as famílias que viviam na
Flona não poderiam ser compensadas por desapropriações embora, por conta das
benfeitorias, algumas tenham recebido indenizações. Das 352 famílias existentes,
apenas 75 saíram indenizadas - aproximadamente 21% da população residente. Segundo
o ex-gerente, as outras não teriam recebido indenização porque a maioria das pessoas
não possuía documentos, nem de identificação pessoal, nem de posse das terras
ocupadas.
A vulnerabilidade a que esta forma de apossamento da terra condicionava
os moradores da área - e que ainda hoje caracteriza a relação dos remanescentes com o
território que ocupam - reforça a 'invisibilidade' que, de acordo com Nugent (1993),
caracteriza as comunidades que habitam o interior da Amazônia.
Segundo este autor, aqueles que habitam a floresta são invisíveis porque,
a despeito de estarem à vista, raramente são enxergados como uma classe que se deva
consultar para implementar políticas públicas na Amazônia. Nos depoimentos que
revelam a dinâmica do processo de desocupação da Flona Caxiuanã alguns aspectos
ilustram esta 'tendência à invisibilidade'. Um deles diz respeito aos argumentos que,
segundo o ex-gerente da floresta, foram empregados para convencer as famílias a deixar
o local:
37
"... a gente chegava prás pessoas e dizia olha, isso aqui é uma Unidade de
Conservação, e do outro lado ainda tem muita terra sobrando, se vocês não ocuparem
hoje, amanhã vocês não vão ter mais essas terras disponíveis na mão de vocês. Então, se
vocês forem inteligentes, até vocês se afirmam lá dentro. Tem duas pessoas na família,
então um vai prá lá e o outro fica aqui morando" (ver a íntegra da entrevista com o exgerente da Flona, em anexo).
Ao menos duas idéias implícitas nesta argumentação merecem atenção:
em primeiro lugar o fato de o Estado continuar a perpetuar o velho mito da Amazônia
como um imenso território livre e desocupado, que estaria 'esperando' por aqueles que
chegassem primeiro - um dos pilares da 'estratégia de ocupação' da Amazônia, levada a
cabo através de planos elaborados principalmente pelos governos militares, mas
também por alguns governos civis que os antecederam - (D'Araújo, 1992; Magalhães,
1990; Oliveira Filho, 1979; Benevides, 1976; Ianni, 1971; Mendes,1978; Holanda,
1975) .
O que se afirmava em outras palavras era que, fora das terras da União,
os ribeirinhos poderiam viver com mais tranqüilidade, gozando dos mesmos abundantes
recursos naturais e mantendo, com a terra, a mesma relação informal de ocupação. Não
se procurou intervir para modificar esta forma de apossamento, pelo contrário. Ao
'aconselhar' os moradores da Flona a deixar a floresta, o Estado - através da autoridade
local - estava simplesmente deslocando o 'problema' da ocupação não regularizada para
fora de seus domínios, com base na crença de que havia 'muita terra sobrando'. O
raciocínio parece ter sido o seguinte: Se eles são posseiros aqui na Flona, podem
continuar a ser posseiros fora dela.
Mais do que escamotear o problema da relação informal dessas pessoas
com a terra que habitavam, a política do esvaziamento deixa entrever o conceito de
gestão de recursos naturais que norteou as políticas públicas na Amazônia, qual seja o
de criar espaços de preservação a qualquer custo e deixar as demais áreas ao livre
arbítrio de quem se propuser a explorá- las, aí se incluindo desde mineradoras e
madeireiras de grande porte até pequenos produtores familiares. Machado (1998) faz
referência a esta dicotomia entre terras públicas e privadas e alerta para o perigo de uma
visão segundo a qual, nas primeiras, tudo é proibido, ao passo que, nas outras, tudo é
permitido. A pressão sobre as terras privadas, afirma o autor, automaticamente coloca
em situação delicada as terras públicas.
38
Este processo transparece quando se olha para o passado recente da Flona
Caxiuanã. Ao relatar que usou como argumento o fato de que mais tarde os ribeirinhos
não teriam mais as terras adjacentes disponíveis, a autoridade local deixa entrever até
que ponto existia a consciência de se estar empurrando essas pessoas para locais onde a
pressão por terras e recursos naturais só tendia a aumentar. O Estado aparece, assim,
como elemento que não apenas potencializa conflitos (McGrath et al., 1988, citados em
Castro, 1999; Araújo, 1994), mas que gera circunstâncias nas quais as probabilidades de
conflito são iminentes, ou até mesmo causa diretamente situações de conflito.
Em segundo lugar, merece atenção a proposta de 'separação da família'
presente nos argumentos oficiais que preconizaram a desocupação. Além da
desarticulação dos laços de parentesco, no contexto da pequena produção familiar a
perda de mão-de-obra significa, em última instância, um encolhimento da capacidade
produtiva dessas populações, como reconhece Freitas ao afirmar que (2000: 10): "...
quando as unidades econômicas camponesas apresentam o mesmo padrão técnico,
famílias que tenham maior número de membros, na faixa etária entre 15 e 55 anos,
tendem a dispor de maior capacidade produtiva".
Quanto à indenização, ao que tudo indica, não foi uma proposta imediata
do governo, tendo surgido ao longo do processo de desocupação. A primeira 'estratégia'
do então IBDF teria sido, simplesmente, a de pressionar os habitantes locais a deixar a
área. Muitos teriam saído logo que as pressões começaram - de acordo com o ex-gerente
e com alguns moradores remanescentes, aqueles que se haviam estabelecido na floresta
para explorar a maçaranduba e outras riquezas, mas que não eram nativos de lá. O
processo envolveu a participação da polícia, para 'tirar do local aqueles que tinham
comportamento agressivo' (ver transcrição da entrevista com o ex- gerente da Flona
Caxiuanã, em anexo).
Segundo consta, a indenização foi feita com base em um levantamento
do que cada família possuía em seu sítio (tanto as benfeitorias quanto as espécies
plantadas), aliado ao número de anos vividos pela família dentro da Flona. As
informações foram encaminhadas para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária), em Brasília, e as famílias indenizadas receberam valores estipulados
de acordo com os parâmetros utilizados por este órgão em processos de ‘reforma
agrária’.
Somente por volta de 1987 é que a população da Flona se estabilizou. De
acordo com o ex- gerente, teriam ficado nessa época 26 famílias - que hoje já seriam 29.
39
Entretanto, dados colhidos pelas pesquisadoras Isolda Maciel da Silveira, Dirce Clara
Kern e Helena Dóris Quaresma em levantamento realizado na área em 2000 (MPEG, no
prelo), dão conta de que vivem atualmente em toda a Floresta Nacional 46 famílias,
totalizando 283 pessoas. Elas se encontram divididas em núcleos situados em três
diferentes lugares: o rio Curuá, o rio Cariá e o rio Pracupi.
Em 1994, com a edição do decreto aprovando o regulamento das Florestas Nacionais,
ficou estabelecido que a preservação e o uso racional e sustentável das Flonas seriam
realizados de acordo com Planos de Manejo que o Ibama trataria de encomendar a
profissionais capacitados. Até hoje, para a Flona Caxiuanã, nenhum plano foi elaborado
– mas, circunstância singular, o local já consta da lista de Florestas Nacionais que o
atual governo manifestou a intenção de ‘arrendar’ (ver reportagem da Gazeta Mercantil,
1997, em anexo).
A desarticulação social que a política do 'esvaziamento' causou na Flona
Caxiuanã não é difícil de ser mensurada, pelas histórias e fatos garimpados junto aos
moradores da floresta e seu entorno. Na verdade, o que salta aos olhos é a intensidade
desse passado como elemento de estruturação do presente, o que reitera as palavras de
Godelier (1981: 187), segundo as quais "As idéias não aparecem como 'uma instância'
separada das relações sociais...". Sobre as experiências vividas nesse passado recente, os
que ainda habitam aquela área vêm construindo suas relações com o poder, com o
Estado e as instituições, nas instâncias em que elas se dão. Também a disposição
territorial das comunidades dentro e no entorno da Flona está ligada aos acontecimentos
que marcaram a instituição da Floresta Nacional.
Um dado sintomático dos efeitos da expulsão das famílias é que, das 190
pessoas que foram contadas nas localidades em 1999, apenas quatro tinham mais de 60
anos. Segundo os ribeirinhos, muitos dos moradores mais velhos foram embora nas
décadas de 70 e 80 e nunca mais voltaram. Outra observação é que não há, em nenhuma
das três comunidades, uma só benzedeira - figura ainda tão tradicional não apenas no
interior da Amazônia como também em capitais como Belém e Manaus. Dona
Conceição, da casa nº 7 da comunidade de Caxiuanã, em uma conversa informal,
afirmou ter precisado dos serviços de uma rezadeira, pois sua filha era 'engripada'
(muito brava, muito geniosa). Para conseguir o tratamento (duas benzeduras), teve de ir
à cidade de Melgaço. Esta situação também pode ter parte de sua origem ligada à
chegada dos evangélicos na região, durante a década de 80.
40
Talvez a evidência mais flagrante da desagregação causada pela política
preservacionista adotada na época seja a ausência de festas de santos, ainda hoje tão
típicas em muitas das comunidades amazônicas nos moldes descritos por Galvão
(1976). De acordo com o depoimento de Seu Policarpo, líder da comunidade do
Laranjal, hoje evangélico, antes da ‘debandada’ promovida pelo governo as
comunidades da Flona comemoravam os dias de vários santos: havia festa de São
Benedito, de São Sebastião (duas por ano), de Santana, de Santo Antônio, de São João,
do Espírito Santo, de Nossa Senhora da Conceição e de São José. Hoje, nenhuma delas
existe mais. De acordo com um dos moradores de Caxiuanã, depois da remoção das
famílias pelo Ibama, ainda foram feitas uma ou duas festas na Caiçara, no início da
década de 80, mas o órgão governamental insistia em coibí- las, argumentando que
muita gente estranha entrava na Flona por ocasião dos festejos.
É crível que a proibição das festas de santo como meio de inibir a
penetração de 'gente estranha' na floresta configure-se uma tática encontrada pelo Ibama
para evitar casamentos de moradores da Flona com pessoas de fora, já que isso poderia
gerar conflitos no sentido de se estender ou não ao cônjuge o direito de utilização dos
recursos locais. Como lembra Lima (1999:23) a respeito dos assentamentos rurais do
médio Solimões: "Os indivíduos não nascidos na localidade, mas que têm uma ligação
de parentesco reconhecida com uma família local têm garantidos os direitos aos
recursos da comunidade ".
Mais do que a preocupação com a entrada de novos moradores na
floresta via casamentos (no caso, a palavra correta seria 'união' já que, como foi
constatado em campo, a maioria dos casais não é legalmente unida), a autoridade local
que chefiou a Flona até novembro deste ano vinha tentando impingir regras com relação
à formação de novos núcleos familiares na Flona. Até a última viagem a campo, em
setembro último, estava 'proibida' aos recém-casados a construção de casas fora do
espaço já ocupado por seus pais, para evitar o surgimento de novos núcleos de
habitação. O ex-gerente explicou seu ‘raciocínio’:
"Se tu casares com gente de dentro da Flona, mora com os sogros e com
as sogras. Pode fazer casa separada? Pode. Desde que seja naquele núcleo familiar. Para
nós, os donos da posse são seus pais ou sogros. Para evitar que os núcleos se
multipliquem. Aí com isso há uma opressão. Uma opressão branca, né ? Porque seu
marido não vai gostar, vai ter que ficar restrito ali. Agora, isso não é norma, no papel. É
um procedimento" (ver entrevista em anexo).
41
Na comunidade de Caxiuanã, que reúne 15 das 46 famílias hoje
existentes na floresta (utilizando a base de Silveira et. al), este 'procedimento' vinha
causando conflitos entre os ribeirinhos e o referido funcionário do Ibama. Segundo
relatos, um dos moradores ergueu os esteios de uma casa e, quando ia armá-la, foi
interceptado por funcionários do órgão que teriam ameaçado 'derrubar a casa com
motosserra' se ela fosse terminada. Entretanto, meses depois, ela já estava sendo
reerguida, desta vez ao lado da casa do genro do rapaz (casa nº 2 de Caxiuanã), com
parte das estruturas sob a água. O ex- gerente da Flona admitiu que 'tinha uns problemas'
sempre que pedia para alguém desmanchar uma casa. E diz que vinha aconselhando
aqueles que querem ocupar novos espaços a colocarem no papel sua história, para
enviar a Belém e ver o que se decide a respeito - aparentemente sem se dar conta de
estar praticando um ato ilegal e protagonizando uma situação absurda na qual uma
autoridade age sem ter de seguir nenhuma norma escrita e um habitante da floresta seja
chamado a escrever para tentar anular os efeitos de uma regra que, oficialmente, não
existe.
A lei do SNUC, embora não se remeta diretamente à proteção da
diversidade cultural das populações que habitam UCs, tem um mérito: o de reconhecer a
existência das populações tradicionais. No caso das Unidades de Conservação – tanto de
uso sustentável quanto indireto - isso garante a essas pessoas ao menos o direito à
permanência na área e só o Plano de Manejo pode especificar restrições quanto à
utilização do espaço, resguardando
áreas de nascente, por exemplo, como zonas de
preservação. Antes da lei do SNUC, o decreto nº 1.298 de 27 de outubro de 1994, que
regulamenta as Flonas, rezava, em seu artigo 8º, que o MMA regulamentaria a forma
pela qual seria autorizada a permanência, dentro da Flona, de populações que
comprovadamente habitassem o local. A nova lei já se refere a proteger os recursos que
permitem às populações tradicionais sua sobrevivência na área.
Outro ponto que merece ser considerado no tocante às relações entre o
Ibama e a comunidade de Caxiuanã diz respeito à exploração de castanha dentro da
Flona. Com base nas indenizações que concedeu, o órgão federal cobra uma taxa em
espécie daqueles que exploram castanhais localizados em terras indenizadas. A taxa
também é cobrada daqueles que retiram castanhas de terras não ocupadas (que perfazem
a grande maioria da Flona). "Os valores são de 50% do que for coletado dos castanhais
'da beira' (próximos ao rio) e 30% dos castanhais 'de dentro' (no interior da floresta)"
(Silveira et al., 1997: 67). Assim, nos anos em que a cotação do produto está muito
42
aquém do desejável, o estímulo para exercer a coleta sofre um abalo considerável.
Ainda mais se for levado em conta o fato de que essa taxação não volta para os
ribeirinhos na forma de melhorias ou benefícios.
Questionado a respeito desse procedimento, o ex-gerente respondeu que
o Ibama simplesmente reproduz uma regra que já existia nas próprias comunidades,
alegando que, se um morador local faz uma roça e dá para uma outra pessoa
desmanchar, cada um vai ficar com 50% de tudo o que for colhido. A atual
superintendente do Ibama em Belém, Selma Melgaço, afirma que nada sai de uma Flona
sem taxação, mas que isso tem de estar estipulado por um convênio, tem de estar escrito
em algum lugar 15 .
Não se pode deixar de notar o quão contraditória tem sido postura
institucional do Ibama - na verdade personificada por Iranildo - que ora exigia
obediência por parte dos moradores locais, ora vinha querendo posar de parceiro ou
meeiro junto a eles. Na verdade, revestido de autoridade, o ex-gerente vinha tentando
perpetuar uma relação de espoliação que pouco ou nada difere do aviamento 16 , exceto
pela aberração visível de ser um patrão que, mediante a entrega de um produto local,
nada tem retornado em troca.
Aos daquela que foi durante três décadas a autoridade local, todos os que
ali residem são posseiros, ocupantes de terras do governo que devem ser preservadas
(mantidas intocadas). Posseiros que, a julgar pela 'política' implementada com a retirada
da maioria das famílias que habitavam a área, seriam nocivos ao ambiente natural
mantendo, com o meio, uma relação imprópria. Esta premissa justificou não apenas a
15
As autoridades consultadas não souberam informar qual a lei que determina tal necessidade. A LEI No
10.165, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2000, que institui a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental –
TCFA sobre várias atividades, em seu anexo VII, item 20, estabelece o pagamento pelo Uso de Recursos
Naturais. Seu artigo 17-F, porém, isenta do pagamento as populações tradicionais :
"São isentas do pagamento da TCFA as entidades públicas federais, distritais, estaduais e municipais, as
entidades filantrópicas, aqueles que praticam agricultura de subsistência e as populações tradicionais."
(Pesquisa: Girolamo Treccani).
16
Sistema sobre o qual se alicerçou a exploração de borracha na Amazônia brasileira que consiste, grosso
modo, no adiantamento de mercadorias, por parte do comerciante ou patrão, mediante o
comprometimento do ‘caboclo’ de quitar sua dívida em um certo período de tempo, com produtos da
floresta. Na verdade, o aviamento era uma estratégia que mantinha o trabalhador preso ao mesmo patrão,
por meio de dívidas que pareciam não ter fim. O aviamento se dava, no auge do complexo gomífero, de
uma ponta a outra da cadeia produtiva: as casas aviadoras de Belém e Manaus adiantavam dinheiro ao
seringalista, que adiantava ao comerciante, que adiantava ao ‘caboclo’ (ver Wagley, 1957: 136). As casas
aviadoras eram, em sua maioria, estabelecimentos que remetiam os lucros para seus países de origem. Por
isso, apesar das somas astronômicas que a borracha movimentou quando o sistema ruiu as cidades
amazônicas ligadas à exploração do látex rapidamente declinaram. O capital investido na atividade
gomífera não se inverteu em outras atividades porque não se acumulou na região, mas no exterior.
43
intervenção estatal, mas dissimulou durante décadas atitudes tomadas aleatoriamente
pela autoridade local.
Por tudo o que foi exposto, optou-se por uma abordagem que ressalta a
história recente das três localidades estudadas neste trabalho: Caxiuanã, Pedreira e
Laranjal. Elas são parte do resultado da rearticulação que se deu com a ocupação
daquele espaço pela Floresta Nacional, embora apenas a comunidade de Caxiuanã esteja
dentro da área da Flona. Área que, aliás, nunca foi delimitada: não há coordenadas
geográficas nem no decreto de criação, que refere-se a uma área de 200 mil hectares e
nem em documentos que incluem a Flona Caxiuanã, como um laudo sobre Florestas
Nacionais realizado em 1994 por um engenheiro florestal do Ibama que referenda uma
área de 280 mil hectares. O ex- gerente da floresta afirma que são 333 mil hectares,
número que, aliás, foi utilizado como base para a concessão da área do MPEG (10% da
Flona).
2.3 - O homem e seu modo de vida dentro da Flona Caxiuanã
A região de Caxiuanã abriga grande diversidade de ecossistemas. Como
salientaram Lisboa et. al (1997), além das florestas de terra firme, que ocupam a maior
parte da Flona, também existem florestas de inundação (várzea e igapó), vegetação
savanóide, vegetação secundária (capoeiras) e áreas de sítios de pomares, dispersas
pelas margens dos rios e igarapés da bacia de Caxiuanã. Estas áreas formavam o
entorno das habitações que pertenciam aos moradores retirados da região.
A terra firme é rica em castanha (Bertholletia excelsa), seringa (Hevea
brasiliensis) e madeiras nobres, como a sucupira amarela e a itaúba (Mezilaurus itauba).
Nas várzeas, além de palmeiras como o açaí (Euterpe oleracea) e o buriti (Mauritia
flexuosa), ocorrem espécies como a ucuúba (Virola surinamensis) e a mamorana
(Pachyra aquatica).
Os rios da bacia de Caxiuanã são de águas negras, com pouca ocorrência
de sedimentos. As florestas de várzea, sujeitas a uma considerável variação do nível dos
rios, apresentam biomassa vegetal maior do que as de igapó, nas quais quase não há
flutuação de nível das águas e os solos são ácidos e pobres em nutrientes. Estudos
realizados em 4 hectares da área da ECFPn (que tem 85% de ambientes de terra firme,
10% de florestas inundáveis de igapó e várzea e 5% de vegetação savanóide),
constataram que a biomassa da floresta de terra firme é bastante pesada, com volume de
44
madeira com casca acima de 200 m³/ha (Lisboa et al. 1997). Em outro levantamento,
feito em 13 hectares da floresta de terra firme do entorno da Estação, chama a atenção a
grande presença de espécies consideradas raras (aquelas representadas por 1 a 4
indivíduos): em torno de 375, para um total de 582 espécies inventariadas. De acordo
com Lisboa et al. (1997), o acapu (Voucapoua americana), a maçaranduba e o angelim
(Dinizia excelsa), bem como outras espécies importantes do ponto de vista econômico,
ocorrem com freqüência na terra firme.
Tendo sido a Flona Caxiuanã criada em 1961 - quando a era de grandes
projetos para a Amazônia estava apenas começando - e estando na chamada região das
ilhas, nas cercanias de municípios que tiveram um importante papel no complexo
regional da exploração gomífera, como Gurupá, por exemplo - é certo que as pessoas
que a habitam tenham seu passado ligado, em maior ou menor grau, à exploração de
produtos da floresta para satisfazer demandas externas. Mas, para caracterizar as
famílias que vivem em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal é fundamental esclarecer que, na
época do boom da borracha, a organização da produção local não chegou a obedecer,
pelo que se tem notícia, à lógica do modelo de seringal classificado por Oliveira Filho
(1979) como modelo do apogeu, ou seja, aquele no qual existe a figura do seringalista, a
instituição do barracão e a 'obrigatoriedade', por parte do seringueiro, de estabelecer
cotas de produtividade que o impediam de executar qualquer outra tarefa, como o
roçado, por exemplo, tornando crônica sua relação de dependência para com o
seringalista, relação que consistia em uma teia de endividamentos e configurava uma
espécie de reinvenção planejada do trabalho compulsório.
Ao contrário, até onde se tem notícia o homem que vivia em Caxiuanã
encontrava-se organizado sob a lógica chamada pelo autor de modelo caboclo, no qual a
extração do látex era desenvolvida em conjunto com outras atividades - o roçado, a
coleta da castanha, a exploração das drogas do sertão, a venda de carne de caça e de
peles de lontra e de felinos como o maracajá e a onça, e ainda, conforme observou o
naturalista Domingos Soares Ferreira Penna em sua expedição ao local em 1864, a
comercialização do cumaru17 , da estopa, de breus 18 e óleos, grude, resina, madeira e
peixe (De La Penha et al, 1990).
17
Árvore (Coumarona odorata) da família das leguminosas que fornece madeira de lei muito apreciada.
Os frutos contêm grandes sementes negras, odoríferas, ricas em cumarina.
18
Substância obtida pela evaporação parcial ou destilação do carvão ou de outras matérias orgânicas. Os
breus aqui referenciados ocorrem grudados nos troncos de árvores como a jutaí (Hymenaea Courbaril) e a
sucuuba (designação comum a árvores do gênero Himatanthus) e são utilizados pelos ‘caboclos’ como
45
Seu Mariano, que habita a várzea do Curuá, afirma que se trabalhou
muito com a sucupira nos anos 60 e 70. Depois que a área virou Flona, faziam-se
'expedições' de dez pessoas, em média, para fora da floresta para tirar a madeira. O local
era um igarapé chamado Atuá, próximo à Baía dos Botos, no rio Anapu. Tiravam-se
toras de 4,20 m de comprimento de sucupira, sendo que as árvores de terra firme
rendiam até cinco toras deste tamanho. A circunferência das espécies abatidas chegava
até 3 metros (uma única vez, o entrevistado se lembra de ter abatido, com os
companheiros, uma árvore com 5 metros de roda, da qual foram tiradas oito toras).
Segundo Seu Mariano, um homem podia derrubar, sozinho, quatro ou cinco árvores por
dia, por ser a sucupira uma madeira 'macia' (ver a íntegra da entrevista com Seu
Mariano, em anexo). Vendia-se por metro cúbico (toras com 200 cm de circunferência
por 4,20 m de comprimento que, na verdade, perfazem um pouco mais do que isso: 1,3
m³). Seu Policarpo, do Laranjal, e Seu Tato, de Caxiuanã, também citam a virola como
espécie explorada dentro e nos arredores da área transformada em Flona.
Após a chegada do então Instituto Florestal, o trabalho com a
maçaranduba também foi deslocado para o entorno da Flona Caxiuanã. Segundo Seu
Tato, da casa nº 8 de Caxiuanã, os patrões vinham buscar seus fregueses no início do
inverno, em janeiro, levando-os, pelo rio Pracupi, até dois igarapés conhecidos como
Água Branca e Braço Esquerdo. Lá, os homens montavam um acampamento e
trabalhavam em duplas durante todo o inverno. O trabalho exigia muito esforço físico:
era preciso derrubar a árvore, anelá- la, juntar o leite, cozinhá-lo e fazer os blocos para
vender, que podiam chegar a até 500 kg. Segundo Seu Mariano, também havia
maçarandubais no alto Anapu. Seu Policarpo, do Laranjal, afirma que três homens
adultos eram capazes de produzir cerca de uma tonelada do produto por quinzena, sendo
que esta variava entre quinze e dezoito dias (ver transcrição da entrevista com Seu
Policarpo, em anexo).
De acordo com Seu Tato, a maçaranduba era uma mercadoria muito
valiosa. “Quando a gente trabalhava com a maçaranduba, não tinha miséria. A gente
encomendava cartucheira para o patrão como quem pede um quilo de açúcar”, compara.
Ele diz que os moradores locais davam preferência ao produto porque, ao contrário da
seringa, o látex da maçaranduba não tinha ‘tara’. Na linguagem dos seringueiros, a tara
é o desconto dado pelo patrão no peso da borracha extraída da Hévea por conta da
repelentes durante as caçadas ou outras atividades em que tenham de permanecer por muitas horas ou dias
no mato.
46
absorção de água. Esse desconto era de 10%. Como a balata não absorvia água, não se
descontava no preço final. Segundo Seu Tato, trabalhar com a balata era tão rendoso
quanto vender peles.
Os patrões apareciam mensalmente (no máximo em intervalos de 40
dias) para buscar este e outros produtos. Rodavam pela área por mais ou menos uma
semana e depois seguiam, alguns diretamente para Belém, outros para cidades mais
próximas como Portel, Melgaço ou Breves. Eram regatões volantes, que traziam
mercadoria manufaturada e trocavam por produtos da floresta. Também se vendia a
seiva da maçarand uba, a madeira e a seringa para a casa de comércio que existia na
Caiçara, dentro do rio Curuá. O comércio era igualmente feito na base da troca simples
de produtos da floresta por industrializados e do aviamento, sendo a circulação
monetária entre os moradores locais, ao que tudo indica, restrita.
Outra mercadoria bastante requisitada pelos regatões na época era a carne
de caça. Segundo relatos, as presas mais abundantes eram o porco do mato (catitu), a
paca e a queixada. A carne, pelo que se conta, era vendida em Portel, sendo que no
verão era mais difícil comercializá- la porque havia muita oferta no mercado. Seu
Mariano, da comunidade de Caxiuanã, citou de cabeça quatro caçadores profissionais
(que viviam do dinheiro da caça). Segundo ele, em uma noite eram capazes de pegar de
doze a vinte pacas cada um. Talvez esta tradição explique o alto consumo de caça que
ainda hoje se verifica entre os ribeirinhos da região, como se demonstrará mais adiante.
No verão, trabalhava-se com a seringa, mas então dentro da reserva, onde
os ribeirinhos tinham suas estradas. A seringa, pelo que contam os moradores das três
comunidades estudadas, foi explorada até a primeira metade dos anos 80. Os
trabalhadores de Caxiuanã davam preferência à chamada borracha cametá (aquela que
era comercializada sem beneficiamento, ou seja, retirada diretamente das vasilhas
colhidas das árvores e embalada em fardos). Entretanto, a diminuição da demanda e a
depreciação do produto fizeram com que a atividade fosse paulatinamente deixada de
lado por eles. O palmito foi outra fonte de renda citada por alguns remanescentes,
também proibida com a criação da Flona. Entre as 15 famílias estudadas que vivem fora
dos limites da Flona, apenas um chefe de família relatou ainda hoje exercer a
exploração do palmito para venda esporadicamente. Também se comercializava o peixe
mas, ao que tudo indica, em quantidades menores do que a caça. Os prediletos, segundo
Seu Tato, eram o pirarucu, o peixe-boi, o tucunaré, a pescada e o filhote.
47
Hoje, o homem que vive dentro da Flona Caxiuanã caça e pesca apenas
para subsistência, planta e coleta castanhas para vender, além de frutos da mata para
consumo. Os que estão no entorno extraem outros produtos da floresta, como pedras,
madeira e às vezes palmito (embora essas duas últimas atividades sejam coibidas pelo
Ibama também nas áreas tampão). Todos usam a farinha 19 que produzem e as demais
mercadorias de que dispõem como moeda para troca por importados. No âmbito local,
pode-se dizer que estas famílias ainda reproduzem suas estruturas sociais em um
sistema onde compra e venda ocorrem concomitantemente. Como antes da retirada
promovida pelo governo, as famílias vivem em casas de madeira nas beiras dos rios
(várzeas) e se locomovem em cascos e canoas.
Alguns poucos habitantes têm barcos a motor. Os centros urbanos que
visitam com mais freqüência são as cidades de Portel e Melgaço, onde fazem suas
compras, geralmente no mesmo 'patrão', figura que ainda existe encarnada no
comerciante que vende a crédito bens industrializados ou troca-os pelos produtos
oriundos da coleta e da lavoura, quase nos mesmos termos descritos por Wagley (1957:
141). Belém e Macapá aparecem como as maiores referências urbanas, sobretudo para
os que possuem parentes nestas capitais.
A referência que se fez até aqui aos atuais habitantes ou moradores da
Flona Caxiuanã não deve ser julgada como uma tentativa de passar ao largo da
discussão em torno do uso de conceitos como populações tradicionais, sociedades
caboclas ou povos da floresta. Sabe-se da recorrência do problema que envolve a
identidade (e o auto-reconhecimento) das populações que habitam o interior da
Amazônia, bem como da celeuma em torno dos critérios que levam ao reconhecimento
de uma população como 'tradicional'. Não é absolutamente essencial, sob a ótica dos
objetivos desta pesquisa, aderir ao embate que a utilização de tal conceito, em
detrimento de outro, suscita. Antes, parece mais proveitoso, já que os moradores se
auto-intitulam membros de comunidades, definir aqui o que se entende por uma
comunidade.
Segundo Lima (1999), os habitantes de agrupamentos rurais na
Amazônia brasileira utilizam o termo comunidade como referência ao uso comunal de
19
Na farinha produzida na região, utiliza-se 60% de mandioca crua e outros 40% de mandioca ‘puba’
(amolecida por imersão na água por dois ou três dias). A massa que se forma da mistura das duas é então
ralada e prensada no tipiti ou em prensas de madeira, para extração do tucupi, e depois passada na peneira
para a retirada dos caroços mais grossos (a coroeira). Então, é torrada em tabuleiros de cobre ou zinco.
48
recursos relacionados ao território que ocupam, como terra e água. Guidi (1962)
identifica três elementos presentes no conceito de comunidade: uma definida área
ecológica, um grupo de pessoas interagindo socialmente e certos interesses e valores
comuns: "... uma comunidade representa a integração de três sistemas de cultura:
adaptativo, associativo e ideológico. A organização da cultura pelo grupo é que
individualiza uma comunidade, tornando-a uma entidade, separada das demais e
capacitada a resolver os seus próprios problemas e a defender os seus próprios valores e
interesses comuns" (Guidi, 1962: 48).
Nas comunidades da Flona e seu entorno, a intervenção das políticas
públicas vem desorganizando e reorganizando os sistemas identificados por Guidi. Da
maneira como hoje se apresentam, duas das localidades estudadas - Caxiuanã e Laranjal
- podem ser consideradas comunidades reconstituídas: formadas a partir de núcleos que
se desmantelaram. As razões deste desmantelamento, pelo que já se relatou, apontam
para circunstâncias externas que se sobrepuseram à vontade dos habitantes. Sob esta
ótica, é válida a contribuição de Sachs & Weber (1997) que, trabalhando com habitantes
das chamadas Reservas da Biosfera, definem comunidade como “um grupo de pessoas
que reconhecem que a comunidade existe e que seus membros a ela pertencem” (1997:
12).
Como a história que culminou na constituição das três localidades
estudadas contribui hoje para sua identidade, característica preconizada por Diegues
(1998) 20 , este trabalho também se refere aos moradores da Flona e entorno como
populações tradicionais, ainda que se reconheça a força dos argumentos de Nugent
(1993), que afirma que a designação de ‘populações humanas’ não faz justiça às
complexas formas sociais representadas pelo que ele chama de‘sociedades caboclas’ 21 .
20
O autor afirma que o auto-reconhecimento de tais agrupamentos sociais “...é freqüentemente, nos dias
de hoje, uma identidade construída e reconstruída, como resultado, em parte, de processos de contato cada
vez mais conflituosos com a sociedade urbano-industrial, e com os neomitos criados por esta” (Diegues,
1998: 88).
21
Segundo este autor, ao utilizar termos como ‘populações’ e ‘habitantes’ da Amazônia o discurso
desenvolvimentista contemporâneo construiu um retrato que caracteriza os caboclos como passivos. Para
Nugent (1993), as ‘sociedades caboclas’ vêm sendo depreciadas social ou culturalmente, em favor de um
ponto de vista que enfatiza sua dependência do meio ambiente como fator estruturante fundamental21 . A
isto ele chama de ‘marginalização forçada’ das ‘sociedades caboclas’: elas apareceriam, na literatura
científica em geral, como socialmente pouco relevantes, diluídas no cenário natural e por ele absorvidas.
49
2.4 - O Museu Paraense Emílio Goeldi
Há cerca de dez anos, um novo e determinante fator vem concorrendo
para a modificação da relação entre homem e natureza em parte da Flona e seu entorno:
a instalação, dentro da floresta, de uma base científica do Museu Paraense Emílio
Goeldi (MPEG).
Resultado de um convênio firmado em 1989 entre Museu e Ibama - pelo
qual foi cedida ao primeiro, por 30 anos, uma área de 33 mil hectares (teoricamente
10% da área da FLONA) - a Estação Científica Ferreira Penna (ECFPn) localiza-se às
margens do rio Curuá (01º44'11'' S e 51º27'10'' W). A comunidade de Caxiuanã fica
dentro da área cedida ao MPEG. Inaugurada em outubro de 1993, a base foi construída
com ajuda de mão-de-obra local.
Com capacidade para alojar 50 pessoas, a ECFPn conta com laboratórios,
enfermaria, biblioteca, refeitório, sala de jogos, cozinha industrial, estação
meteorológica, além de uma torre de observação de mais de 50 metros de altura. O
projeto inicial previa uma área construída de 2116 metros quadrados (0,21 hectares),
mas foram efetivamente construídos 1900 metros quadrados (0, 19 hectares). Também
fazem parte da infra-estrutura montada pelo Museu para viabilizar a ECFPn uma casa
de apoio na cidade de Breves (que nunca passou por nenhuma reforma e encontra-se
hoje bastante deteriorada) e uma pequena frota fluvial: a embarcação Ferreira Penna,
que faz o transporte de Breves até a Estação, algumas voadeiras – quase todas com os
motores avariados - e um barco com motor de meio. Há ainda uma lancha, que também
está fora de uso por falta de manutenção.
Durante os primeiros anos, a infra-estrutura localizada na mata foi
totalmente movida com energia proveniente de um gerador alimentado a óleo diesel,
que queima 5 litros de combustível por hora. Hoje, placas de energia fotovoltaica
suprem grande parte das necessidades da Estação, mas o gerador ainda funciona 4 horas
por dia, queimando 600 litros de combustível por mês. As placas alimentam dois
freezers, os seis apartamentos, três casas (de apoio, do administrador e do vigilante), o
laboratório de botânica e a sala dos computadores. As obras foram financiadas pela
Overseas Development Administration (ODA), órgão do Reino Unido, com a
participação do Oxford Institute of Forestry (OIF).
De acordo com o ex-coordenador da Estação não havia, a princípio,
nenhuma intenção de se trabalhar com as comunidades de dentro e do entorno da
50
ECFPn. Entretanto, a expectativa gerada pela instalação da base, aliada a boatos que
começaram a circular entre a população local (como o de que não seria permitido
'chegar perto' da estação científica), teriam levado os técnicos do Museu a elaborar, em
1997, o chamado Programa de Desenvolvimento Sustentável Floresta Modelo de
Caxiuanã (ver programa em anexo).
Trata-se de um programa de ações voltadas para as áreas de saúde,
educação, ecoturismo, comercialização, infra-estrutura, manejo florestal, agricultura e
agroindústria. Para cada uma das áreas, foram estipuladas metas a serem alcançadas, em
um prazo de cinco anos. O programa foi idealizado em parceria com outras instituições
como a Prefeitura de Melgaço, Ibama, Embrapa (Empresa Brasileira para o
Desenvolvimento da Amazônia), FCAP (Faculdade de Ciências Agrárias do Pará),
UFPA
(Universidade
Federal
do
Pará),
Sudam
(Superintendência
para
o
Desenvolvimento da Amazônia), Fundação Serra das Andorinhas, Sectam (Secretaria de
Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado do Pará), e Fundação Casa de Cultura
de Marabá .
O principal veículo de transmissão do conteúdo do Programa Floresta
Modelo são as oficinas, que vêm sendo realizadas desde a implementação do projeto.
De 1997 até abril de 2001 foram oferecidas cerca de 30 oficinas nas áreas de higiene,
saúde e treinamento de parteiras; artesanato; ecoturismo; alimentação; meio ambiente;
manejo de recursos naturais e outras. Algumas destas oficinas incluíram não só a
população das comunidades estudadas, mas também da área urbana de Melgaço.
Paralelamente, cada comunidade ganhou uma escola, resultado de uma
parceria entre MPEG, Prefeitura de Melgaço e Ministério da Educação, que liberou
verba do FUNDEF para a construção. Foram implantados kits de energia fotovoltaica
nas escolas e em 23 casas das três localidades. As residências receberam uma placa de
captação e um jogo com três baterias para armazenar a energia gerada. Dois bicos de luz
e uma tomada foram instalados em cada casa. Em maio de 2000, o MPEG, em convênio
com o MEC e a prefeitura de Melgaço, entregou às comunidades dois barcos (um para
servir Caxiuanã e outro para a Pedreira e o Laranjal). A idéia era, segundo os técnicos
do Museu, comprar duas embarcações pequenas e novas. Ao invés disso, a prefeitura de
Melgaço, responsável pela compra, parece ter 'empurrado' dois barcos grandes,
reformados, que lhe pertenciam e não estavam sendo utilizados. O de Caxiuanã tem
problemas no motor e nunca foi usado. O barco entregue às outras duas comunidades
51
gasta muito diesel para os padrões de consumo locais, e sai em viagem quando várias
famílias se juntam para dividir a conta.
Antes da chegada do Museu, os professores das três comunidades eram
leigos. Tinham até a 2a ou 3a série do ensino fundamental e recebiam, da Secretaria
Municipal de Educação de Melgaço, meio salário mínimo por mês. As aulas eram
ministradas em suas casas ou, como no caso da comunidade de Caxiuanã, em uma
pequena palafita. As turmas, mistas, revezavam-se em dois ou três períodos diferentes,
pois as 'salas de aula' não comportavam muitos alunos. O MPEG, além da construção
das escolas, possibilitou aos professores a participação no Projeto Gavião, em Melgaço,
onde concluíram o ensino fundamental de 1a à 8a séries. Recentemente terminaram o
ensino médio (magistério), e a colação de grau aconteceu em outubro de 2001.
Os três professores têm recebido e fornecido informação por meio de
oficinas oferecidas pelo MPEG, que também têm como público alvo professores da rede
pública do núcleo urbano de Melgaço. Foram realizadas, até agora, duas oficinas
especificamente para os professores: de sensibilização ambiental e de levantamento do
universo vocabular local. Os resultados desta última estão sendo aproveitados para a
produção de material didático a ser utilizado pelos professores locais (já existe uma
cartilha, que se chama Viver em Caxiuanã).
Os efeitos da chegada do MPEG e seu Programa Floresta Modelo
apontam para diversos aspectos da vida dos habitantes de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal.
No aspecto econômico, o incentivo a novas fontes de renda, sobretudo a prática do
artesanato em tala, aumenta a circulação de moeda nas localidades. Também é resultado
da ação direta do Museu a recente organização dos moradores locais em uma
cooperativa (Coopercaxiuanã). Criada em meados de 1999, a cooperativa atuou por oito
meses consecutivos, em um primeiro momento, durante os quais os ribeirinhos
passaram a fazer suas compras em conjunto, barateando seus custos com importados. A
idéia era que tudo o que saísse das comunidades (exportações) passasse também pela
cooperativa - como no caso dos objetos artesanais. Entretanto, uma série de malentendidos paralisou temporariamente as atividades da cooperativa, que só foram
retomadas com a eleição de um novo presidente e um outro tesoureiro, no primeiro
semestre de 2001.
Uma boa medida da intensidade da interferência do Programa Floresta
Modelo nas localidades são os dados referentes à utilização da energia fotovoltaica.
Desde a instalação dos kits, em novembro de 1998, diversas atividades tornaram-se
52
possíveis a partir das 19h, de acordo com enumeração feita pelos próprios ribeirinhos:
tecer, costurar, estudar, ler, lavar louça, buscar água, reunir os amigos para ouvir
música, lavar roupa e até mariscar. Atividades como cozinhar e 'jantar' demandam
menos esforço. Pode-se jantar mais tarde porque se tornou mais fácil cozinhar e até
mesmo pescar à noite, nos arredores das moradias.
Ao longo destes quase três anos (novembro de 1998 a setembro de 2001),
a energia acumulada nas baterias tem sido basicamente direcionada para alimentar os
bicos de luz - que ficam acesos diariamente das 18h30 às 6h - os aparelhos de som e,
nas residências que os possuem, os televisores (3 aparelhos antes da chegada da energia
e 5 agora). Notou-se, então, que aquelas pessoas ganharam algumas horas em seus dias.
Instituiu-se um novo regime de tempo, onde a rotina foi esticada.
Em meados de 1999, um hábito adquirido depois da disponibilidade da
luz já vinha ocupando, em muitas casas, grande parte das 'horas ganhas', principalmente
de mulheres e crianças: a tecelagem noturna. O hábito de tecer talas de arumã 22 não é
novo na região. As mulheres de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal já utilizavam o material
para a confecção de objetos de uso doméstico como tipitis 23 , cestos, paneiros 24 e
peneiras. No início de 1998, a coordenação da ECFPn começou a incentivar a prática
artesanal através de oficinas que tinham como objetivo melhorar o acabamento dos
artefatos confeccionados pelos habitantes locais.
Após a primeira oficina, o MPEG passou a encomendar objetos de arumã
para as comunidades, pagando por eles em dinheiro. A atividade pouco a pouco passou
a ocupar mais tempo, sobretudo das mulheres (mas também de jovens e adolescent es de
ambos os sexos). Entretanto, durante o dia, os afazeres domésticos, os filhos e a roça
impediam que as mulheres pudessem dedicar muitas horas ao trabalho artesanal.
Com o advento da energia, essas horas ganhas acabaram se tornando,
rapidamente, horas úteis no melhor sentido moderno. A comparação de alguns dados
retroativos com informações mais recentes ilustra esse processo. Na primeira
encomenda feita pelo MPEG, em junho de 1998 (portanto antes do advento da energia
fotovoltaica), foram pedidas 300 peças ao todo para as três comunidades (100 peças
para cada uma delas). Na data marcada, apenas 75 objetos foram entregues pelas três
22
Planta da família das marantáceas (Ischnosiphon ovatus) com a parte interna da haste flexível e
resistente com a qual se tece artefatos de uso doméstico e ornamental.
23
Utensílio longo e cilíndrico feito de talas com uma alça em cada ponta que serve para extrair o suco da
mandioca (tucupi).
53
juntas. Em junho de 1999 novamente foram encomendados 300 artigos, com prazo de
entrega estipulado para a primeira semana de agosto - mas o Museu deixou explícito
que compraria toda a mercadoria existente, caso a produção ultrapassasse o número
encomendado. Findo o prazo, foram entregues 774 peças 226 de Caxiuanã, 457 do
Laranjal e 91 da Pedreira. Ou seja, a produção foi 158% superior ao número de artefatos
pedidos.
De acordo com os depoimentos colhidos na época infere-se que, sem o
advento da luz, não teria sido possível gerar mercadoria além do que fora pedido. No
Laranjal, onde se registrou a ocorrência mais significativa de aumento de produtividade,
60% das pessoas admitiu tecer até as 22h ou 23h. O próprio líder da comunidade
resumiu, em uma conversa informal, o que vinha se passando no local com a novidade
representada pela luz: “...quando chega a noite ninguém mais quer ir dormir. Ficam
tecendo e conversando até tarde aí no terreiro ...” Já em 1999, constatou-se que em 15
das 22 casas então pesquisadas nas três comunidades o artesanato era uma atividade
geradora de renda, ainda que intermitente.
Posteriormente, também foram ministradas oficinas de artesanato com
argila, cipó e fibras, que igualmente geraram objetos comprados pelo MPEG e
encaminhados para venda na loja então existente no Parque Zoobotânico 25 , em Belém.
Em setembro de 2001, artefatos confeccionados em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal
podiam ser vistos no estande do MPEG na feira Pará Arte, em um ponto turístico de
Belém.
O que se nota no âmbito social é que, por conta do advento da escola e
das oficinas profissionalizantes oferecidas pelo MPEG, as famílias estão deixando de
exercer com exclusividade a função de 'núcleos de formação profissional', embora
continuem a ser unidades de produção e consumo diretos dentro do sistema de
reprodução simples que caracteriza as comunidades estudadas. Elas já não são as únicas
referências do ribeirinho, tanto no tocante à sua sobrevivência no sentido físico
(biológico) quanto no sentido social. A importância da família como força motriz e
auto-suficiente que garante a sobrevivência de seus membros, descrita por vários
24
Cestos de trançado largo, de cipó ou talas, com uma alça que o usuário pendura na cabeça. Serve para
carregar o produto da lavoura, a lenha e a caça.
25
Na sede do Museu Paraense Emílio Goeldi, no bairro de Nazaré, em Belém, há um parque com
exemplares de animais típicos da região, como a onça, o pirarucu, tartarugas e jacarés. Neste local, o
MPEG manteve, até setembro de 2001, uma loja onde eram comercializados, entre outros produtos, os
artefatos produzidos em Caxiuanã.
54
autores que trabalharam e trabalham com as categorias camponesas conhecidas
(Cândido, 1955; Galvão, 1975; Wagley, 1957; Albersheim, 1962; Furtado, 1994;
Pierson, 1972), começa a se redefinir por força de outras relações, mais modernas,
derivadas de fatores exógenos.
Por tudo o que foi exposto, pode-se dizer que o dia-a-dia das
comunidades vem sofrendo modificações após a chegada do MPEG ao local, pois as
ações do Programa Floresta Modelo visam, em última instância, interferir na relação
que a população local tem com o meio que habita: a natureza. De um modo geral, apesar
de funcionar como mediador entre as relações das comunidades com o Ibama, o Museu
parte do mesmo pressuposto para justificar sua interferência na vida das comunidades
locais: o de que a relação entre estas e o meio precisariam ser revistas, redimensionadas:
aperfeiçoadas.
É evidente que, sob diversos ângulos, a presença do MPEG vem
promovendo uma melhora nas condições de vida das três localidades do entorno. O
aumento do padrão de conforto e a garantia de certos direitos básicos, como o direito à
educação e à saúde, são bons exemplos. O ambulatório existente na ECFPn, além de
socorrer vítimas de acidentes com ofídios e outros animais vindas de localidades de
dentro e de fora da floresta, acaba funcio nando como um posto de saúde, onde se pode
conseguir remédios para 'males menores' como uma febre ou uma diarréia, pois na
Flona não existe nenhum tipo de estrutura para prestação de assistência médica. Nestes
casos, o MPEG preenche também um vácuo do poder público municipal, o que o
reveste de certa 'polivalência' aos olhos das comunidades locais.
Entretanto, para elucidar o processo em curso nas localidades referidas
com a chegada do MPEG à Flona há que se ressaltar ao menos três aspectos de sua
intervenção: o primeiro é que se procedeu à implementação do Programa Floresta
Modelo não porque primordialmente se tenha pensado nas comunidades da Flona e
entorno, ou detectado que estas localidades necessitassem de ‘ajuda’, mas porque o
MPEG viu-se diante da necessidade de legitimar, junto aos habitantes locais, sua
presença na área. Em segundo, o Programa foi implantado sem que se soubesse, de fato,
quais eram as relações que estas populações mantinham com o meio, já que não havia
nenhum estudo dando conta da não- sustentabilidade delas. Finalmente, em terceiro,
vale ressaltar que o MPEG não designou nenhum pesquisador para acompanhar os
impactos que seu Programa poderia surtir – como de fato está fazendo - em Caxiuanã,
Pedreira e Laranjal, o que torna mais complicado precisar se as atividades incentivadas
55
nas referidas localidades têm tornado mais ou menos ‘sustentáveis’ as relações destas
com o meio natural.
Se, por um lado, o MPEG conseguiu melhorar as condições de vida e o
nível de conforto dos ribeirinhos das três localidades, por outro – e paradoxalmente –
parece ser também um fator de instabilidade local. Esta propensão do MPEG a gerar
instabilidade local se intensifica sempre que a instituição passa por modificações de
ordem político-administrativa que se refletem diretamente na gestão da Estação. A
manutenção da ECFPn (contratação e pagamento de pessoal, compras mensais de
mantimentos , etc) é terceirizada. Quando os contratos com a empresa responsável
expiram, alguns funcionários são demitidos e depois que o contrato se renova,
readmitidos.
Em setembro de 2001, a ECFPn foi fechada para novos projetos. De
acordo com informações obtidas junto à reduzida equipe que ainda trabalhava na
coordenação da estação, o local ficaria fechado para novos projetos até novembro de
2001, meses durante os quais o Programa Floresta Modelo também seria suspenso.
Nesse meio tempo, o coordenador da Estação entregou o cargo e um novo pesquisador o
assumiu.
2.5 – Pedreira, Caxiuanã e Laranjal
Antes de iniciar a caracterização das três localidades, é necessário
salientar as diferenças existentes entre elas, para evitar a generalização de aspectos que
não são comuns. Em Caxiuanã, além das residências estarem dispersas ao longo do rio e não concentradas em um ou mais núcleos de terra firme, como as outras duas - nota-se
uma estreita ligação com a ECFPn. Isso sem contar o fato de ser a única das três que,
efetivamente, se encontra sob a jurisdição do Ibama (não sendo permitidas, portanto,
atividades como a implantação de roça na mata, a retirada de madeira e palmito para
venda, a construção de novos núcleos familiares, a caça e a pesca para comercialização,
etc). Na verdade, as pessoas que vivem dentro da área cedida ao MPEG pouco
freqüentam as duas comunidades vizinhas, exceção feita aos funcionários da Estação,
que estão sempre levando pesquisadores e visitantes de voadeira para trabalhar nelas ou
conhecê- las. Pedreira e Laranjal, pela proximidade física, pelas atividades econômicas
em comum, que serão descritas mais adiante, e até por afinidades religiosas entre alguns
de seus membros, mantêm contato mais intenso entre si. Caxiuanã, como seria de se
56
esperar, estreitou seus laços com a Estação.
Pedreira e Laranjal guardam a semelhança de estarem constituídas no espaço que se
chama de ‘zona tampão’ ou, como define o Ibama, ‘zona de transição’: locais
estratégicos para a manutenção do núcleo propriamente protegido – no caso, a Flona
Caxiuanã – e que sofrem, por isso mesmo, mais pressões por recursos. Como já se
disse, a Resolução nº 13 do Conama (ver resolução nº13 em anexo) permite ao Ibama
interferir nestas comunidades, pois estipula uma faixa de 10 km ao redor das UCs na
qual “... qualquer atividade que possa afetar a biota deverá ser obrigatoriamente
licenciada pelo órgão ambiental competente” (Ibama,1997).
A Pedreira tem a peculiaridade de ser a única das três que fisicamente apresenta-se,
grosso modo, da mesma maneira desde sua formação. Naturalmente, os mais velhos
foram morrendo, ou se mudando, e suas casas foram derrubadas, ao mesmo tempo em
que os filhos constituíam moradias separadas. Mas esta é uma dinâmica intrínseca a
qualquer local que, neste caso, pouco tem a ver com a intervenção do antigo IBDF.
Já o Laranjal pode ser considerado uma conseqüência direta da intervenção estatal, uma
vez que todos os seus membros residiam dentro da Flona e dela saíram para formar um
novo núcleo.
2.5.1) CAXIUANÃ
No passado, o rio Curuá era habitado até muito além de onde, hoje, se
localiza a Estação Ferreira Penna. Segundo relatos, eram cerca de 80 casas antes do
esvaziamento. Atualmente, as unidades familiares existentes na comunidade de
Caxiuanã estão alocadas entre a ECFPn e o rio Caxiuanã (com exceção de quatro casas
que se encontram do outro lado deste rio, localizadas a nordeste e a oeste do Ibama). É a
mais antiga das comunidades estudadas: a mãe de Seu Antônio, morador mais velho
(casa nº 4), nasceu em Caxiuanã e lá morreu, pelo que dizem, com mais de cem anos.
Formada pelas famílias que resistiram à desocupação da área, diferenciase das demais localidades no que concerne à apropriação dos recursos naturais, já que se
encontra sob a jurisdição do Ibama, e no aspecto físico - pois as casas não configuram
um núcleo ou mais, estando dispersas ao longo dos rios Curuá e Caxiuanã. No início
destas pesquisas (1999), treze casas compunham a comunidade, mas hoje são quinze.
As uniões entre os membros mais jovens de Caxiuanã vêm, aos poucos,
transformando o aspecto físico da comunidade pois, no lugar de casas solitárias, nota-se
57
que se vão formando núcleos de habitação. Nestes casos, verifica-se o uso comum das
terras, sendo que os núcleos familiares dividem o quintal, a casa de farinha e,
eventualmente, uma horta. Em 1999 foram contadas 95 pessoas, das quais 63 tinham
entre 0 e 18 anos. Em 2001 já eram 106 pessoas.
Todos os funcionários da ECFPn que são da região pertencem à
comunidade de Caxiuanã, sendo atualmente cinco o número de homens empregados
pelo MPEG. Quando a Estação tinha pouco tempo de existência, alguns membros da
comunidade trabalhavam por diária (R$ 10,00), abrindo picadas na mata para os
pesquisadores. Hoje quase não existe mais esse tipo de prestação informal de serviços.
As relações desta comunidade com o Ibama também são mais intensas do
que as das outras duas, não só porque o referido órgão atua diretamente sobre o espaço
físico em que está localizada, mas também porque alguns parentes de moradores de
Caxiuanã trabalham para ele. O ex- gerente da Flona é cunhado de Seu Mariano (casa nº
10) cujo irmão, como já se disse, trabalha para o governo federal desde os tempos do
extinto IBDF. Recentemente, Seu Mariano recebeu uma represália por ter feito uma
roça de mandioca de 40 braças na mata, mas enfrentou o cunhado e manteve a roça (ver
entrevista em anexo). Seu Mariano afirma que possui documentos das terras que ocupa justamente aquelas que teriam sido deixadas pelos proprietários do estabelecimento de
comércio localizado na Caiçara, onde hoje estão, além de sua casa (nº 10), as casas de
Dona Naza e Rui, respectivamente sua madrasta e seu irmão26.
Hoje, todas as famílias cultivam roças - embora em anos anteriores
alguns dos funcionários da ECFPn tenham deixado, temporariamente, de trabalhar na
lavoura. As donas-de-casa mantêm hortas com culturas como cebolinha, couve, ‘orelha
de macaco’ e pimenta verde (como também acontece nas outras duas comunidades).
Planta-se mandioca e macaxeira (Manihot esculenta), milho (Zea mays),
cana (Saccharum spp.), jerimum (Cucurbita moschata), feijão (Phaseolus vulgaris),
banana (Musa spp.), abacaxi (Ananas comosus), maxixe (Cucumis anguria) e cará
(Dioscorea sp.).
Nas cinco casas em que se realizou o levantamento das frutas
consumidas (silvestres ou plantadas nos quintais), as espécies citadas foram abiu
(Pouteria caimito), açaí, ajuru (Chrysobalanus icao), ameixa (Eugenia cumini), bacaba
(Oenocarpus bacaba), bacuri (Platonia insignis), bacuri-açu, bacuri-pari, biribá
26
Para uma descrição mais pormenorizada de cada uma das famílias residentes nas comunidades, ver
anexos.
58
(Rollinia mucosa), buriti, cacau (Theobroma cacao), cacaúba, caju (Anacardium
occidentale), castanha (Bertholletia excelsa), cuia, cubiu (Solanum sessiliflorum),
cupuaçu (Theobroma grandiflorum), cupuí (Theobroma subnicanum), cutitiribá
(Pouteria macrophylla), fruta-pão (Artocarpus incisa), goiaba (Psidium guajava),
graviola (Annona muricata), inajá (Maximiliana maripa), ingá (Inga edulis), jambo
(Eugenia jambos), jenipapo (Genipa americana), jutaí, laranja (Citrus spp.), limão
(Citrus spp.), limão-cidra, mamão (Carica papaya), manga (Mangifera indica), mucajá
(Acrocomia sclerocarpa), murici (Byrsonima crassifolia), piquiá (Caryocar villosum),
pupunha (Bactris gasipaes), puruí (Borojoa sorbilis), sapotilha, taperabá (Spondias
mombin), tucumã (Astrocaryum vulgare), umari (Poraqueiba sericea), urucum (Bixa
orelana) e uxi (Duckesia verrucosa).
Salvo
os
trabalhadores
assalariados
e
aqueles
que
recebem
aposentadoria, os demais dependem daquilo que conseguem produzir e vender,
sobretudo farinha, feijão e melancia (Citrullus lanatus), e dos produtos oriundos da
coleta, como a castanha (cuja safra vai geralmente de janeiro a abril) e o açaí (que só dá
a partir do segundo semestre). Atualmente, a confecção de objetos artesanais (sobretudo
feitos com tala de arumã), também se configura uma fonte de renda para as famílias de
Caxiuanã. O MPEG, que patrocinou as oficinas de aperfeiçoamento do artesanato em
tala, compra praticamente toda a produção local.
59
Figura 1: Renda Caxiuanã (ano 1999)
USD 300,00
USD 50,00
USD 40,00
Renda/ cap
USD 35,00
USD 200,00
USD 30,00
USD 150,00
USD 25,00
USD 20,00
USD 100,00
Per Capita
Unidade Familiar
USD 45,00
Renda
USD 250,00
USD 15,00
USD 10,00
USD 50,00
USD 5,00
USD 0,00
USD 0,00
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Fonte: Levantamento de campo
Quanto à religião dos moradores de Caxiuanã, em seis das casas
visitadas, os casais (ou seja, o dono e a dona da casa) eram católicos. Em duas, os casais
eram evangélicos. E em uma, a dona da casa era evangélica e o marido, católico. Os
evangélicos se reúnem na casa de nº 4 mensalmente, e para estes encontros vem, às
vezes, gente do Laranjal, da Pedreira e da Ilha de Terra. Quanto aos católicos, alguns
freqüentam as igrejas que existem em povoados localizados nas várzeas de rios
vizinhos, como o Marinaú, por exemplo.
2.5.2) PEDREIRA
A Pedreira foi fundada pelo marido já falecido de Dona Luzia (casa nº 8)
que, recém casado, para lá carregou toda a família da mulher: pai, mãe e sete irmãos.
Isso foi há 45 anos. Eles viviam em um local próximo chamado Ilha de Terra, mas Dona
Luzia, a mais velha dos oito filhos, nasceu em Marajoí do Amazonas, também no
município de Melgaço. A Pedreira é anterior à chegada do Serviço Florestal na região.
Hoje reúne basicamente as residências dos três irmãos de Dona Luzia que ficaram - Seu
Amaro, Seu Benedito e Seu Paulo - e as dos filhos deles que foram se casando. A única
60
exceção é a casa nº 9, de Seu Orlando, que é primo de Dona Luzia e irmãos, por parte
de mãe.
Pode-se dizer que, fisicamente, a comunidade está dividida em três
núcleos: o maior, onde existem seis casas, o médio, onde há outras três, e um último, de
apenas uma casa, a de Seu Orlando (ver croqui em anexo). Um caminho de
aproximadamente 200 metros liga os dois primeiros núcleos, sendo esta a distância
entre a casa de farinha da casa nº 8 (a casa de Dona Luzia, no extremo esquerdo do
segundo núcleo) e o barranco que conduz à entrada da casa nº 6 (a casa de seu Paulo,
localizada no extremo direito do primeiro núcleo). Já a residência do terceiro núcleo é
acessível por uma trilha no meio de uma capoeira antiga, ou pelo rio, de casco. O
tamanho médio das casas a Pedreira é de 42,23 m², maior que os índices do Laranjal e
de Caxiuanã.
Figura 2: Tamanho médio das casas
43,00
42,23
42,00
41,58
41,00
40,00
39,00
38,00
37,30
37,00
36,00
35,00
34,00
Laranjal
Fonte: Levantamento de campo (ano: 2000)
Caxiuanã
Pedreira
61
Quando a pesquisa de campo foi iniciada existiam oito casas; hoje, são
dez. Em 1999, foram contadas na comunidade 45 pessoas, das quais 29 tinham entre 0 e
18 anos. Em 2001 já eram 53 habitantes.
A maior renda mensal da comunidade é a de Seu Paulo e Dona Francisca,
da casa nº 6 (renda fa miliar mensal R$ 400,00 em 1999). Ele é comerciante, tem um
barco motorizado e absorve praticamente toda a produção dos moradores locais. A
baiúca de Seu Paulo fornece cerca de 54 itens que vão de água sanitária a biscoitos,
passando por linha de costura, espoleta, produtos de higiene pessoal e copos de vidro,
sal, café, açúcar e cachaça. Seus preços são de 30% a 50% mais altos que os preços de
cidades como Portel ou Melgaço e os irmãos reclamam.
Figura 3: Médias de Renda e Gastos Mensais por Unidade Familiar
Gastos
Renda
USD 120,00
USD 100,00
USD 80,00
USD 60,00
USD 40,00
USD 20,00
USD Caxiuanã
Pedreira
Total
Fonte: Levantamento de campo (1999)
Seu Paulo compra toda a produção de açaí, castanha, farinha, tarugos 27 e
esteios28 da Pedreira, e também compra inúmeros outros produtos das comunidades por
onde passa com seu barco. Ele diz que compra cada tarugo por R$ 0,70, mas um
morador do Laranjal afirmou receber R$ 0,50 por peça, em dinheiro, sendo que a
mesma mercadoria vale R$ 0,60 na troca por outros produtos da mercearia.
27
28
Pedaços de madeira de cerca de 2,40m de comprimento por 10cm de largura.
Toras de madeira utilizadas para alicerçar as casas, que podem medir de 4m a 6m de comprimento.
62
Como já foi dito, a Pedreira produz pouca castanha. No ano 2000, Seu
Paulo comprou pelas redondezas 1200 latas de 20 litros para comercializar, das quais
apenas 100 foram produzidas pela Pedreira. Segundo ele, paga R$ 5,00 pela lata de 20
litros do fruto, que vende para o atravessador (o regatão do Tangará) a R$ 5,50.
A mercearia na Pedreira tem dez anos, mas Seu Paulo tem fregueses no
rio Juparijó, em Melgaço e em Portel, além de moradores da Caxiuanã e Laranjal. Ao
todo, em 2000, foram contados em seu livrinho 96 fregueses residentes nestas
localidades. A moeda mais corrente é a farinha, pois sua produção não se trata de uma
atividade sazonal, mas perene. No barco volante de Seu Paulo, as pessoas geralmente
trocam por farinha produtos importados, ou vindos de outras comunidades. Um saco de
30 kg de farinha vale, hoje, R$ 14,00. Em 2000, valia R$ 12,00. Seu Paulo compra, da
Pedreira, cerca de 150 kg de farinha por mês.
Apesar da comunidade estar dividida fisicamente, o espaço utilizado
pelos moradores é comum, diferentemente de Caxiuanã, onde cada casa ou
agrupamento de famílias tem seu próprio quintal. No quintal da comunidade e nas
capoeiras e matas do entorno existem, de acordo com uma listagem confeccionada com
a ajuda dos ribeirinhos, aproximadamente 45 tipos de árvores frutíferas, que dão as
seguintes frutas: abiu, abacate (Persea americana), abacaxi, açaí, ajará, ajurú, aratiau,
bacaba, bacabinha (Oenocarpus mapora), bacuri, banana, biribá, buriti, cacau, cacaúba,
caju, castanha, caranã (Mauritiella armata), café (Coffea arabica), coco (Cocos
nucifera), cupuaçú, cupuí, goiaba, graviola, inajá, ingá, jatobá (Hymenaea courbaril),
laranja, limão, limão galego (Citrus spp.), mamão, manga, maracujá (Passiflora spp.),
marajá (Bactris marajá), mucajá, murici, piquiá, pupunha, taperabá, tange rina, tucumã,
umari, e uxi.
Quanto ao aspecto religioso, das oito casas visitadas, duas tinham
moradores evangélicos (nº 2 e nº 3) e seis, católicos. Seu Amaro e Dona Ana, da casa nº
2, converteram-se há cerca de 20 anos. Dona Ana foi, durante muito tempo, a herdeira
da festa do Espírito Santo que seu pai realizava, entre os meses de maio e junho.
Quando se converteu, vendeu o santo – motivo que rende críticas por parte dos
católicos, ainda que não declaradas explicitamente. A comunidade comemorava
também a festa de Santana, na casa do pai de Dona Luzia, no final do mês de julho.
Segundo ela, a última aconteceu há cerca de 20 anos.
Apesar de serem em menor número, os evangélicos são bastante unidos
e organizados. Realizam culto todo sábado, na escola, pela facilidade de acesso que têm
63
a esse prédio, pois a professora da comunidade é evangélica. Já os católicos se reúnem
às terças, sábados e domingos para rezar novenas na casa de Mara (nº 7). Essas reuniões
acabam se tornando ‘festinhas’, chamadas pelos moradores locais de ‘mucuras’. Antes
da chagada da energia, as mucuras tinham hora para acabar: quando terminavam as
pilhas do toca- fitas, cada um ia para sua casa. Hoje, ligados na tomada, os aparelhos de
som animam as ‘mucuras’ até mais tarde.
Hoje, todas as famílias plantam roças para subsistência e eventual
comércio do excedente. Em 1999, as casas nº 6 e nº 7 não tinham roçado. As culturas
citadas pelos moradores da Pedreira foram mandioca e macaxeira (Manihot esculenta),
milho, cana (Saccharum spp.), jerimum, feijão, melancia, banana, maxixe, cará e
ananás.
Ao contrário de Caxiuanã, existem poucos castanhais no entorno da
Pedreira. Mas, como já foi dito, os ribeirinhos complementam a renda extraindo
madeira e pedras – atividade realizada por Seu Amaro e filhos em conjunto com alguns
chefes de família do Laranjal, e também por seu Orlando. Vendem, eventualmente, o
azeite de copaíba e o de andiroba. O artesanato vem se configurando, nos últimos
meses, uma alternativa de renda para as famílias locais, sendo praticado mais pelas
mulheres e crianças.
Não existem assalariados na Pedreira, com exceção da professora (casa
nº 3). Seu Amaro recebe aposentadoria no valor de um salário mínimo por mês (em
números de hoje, aproximadamente R$ 180,00).
2.5.3) LARANJAL
A mais afastada, com relação à ECFPn, é o Laranjal. Ao todo são seis
casas, cujo acesso se dá pela travessia de um estreito igarapé, que no verão seca muito.
Em 1999, na primeira viagem de campo, contabilizou-se um total de 55 pessoas, das
quais 37 tinham entre 0 e 18 anos. Em 2001, já eram 59 pessoas. No Laranjal não há
barco a motor, nem televisores. As casas têm poucos cômodos - a maior mede 53,76 m²
- e as famílias têm mais filhos que as de Caxiuanã e Pedreira.
64
Figura 4: Média de espaço disponível per capita por casa
25,00
20,00
15,00
10,00
5,00
0,00
L1
L2
L3
L4
L5
L6
P2
P3
P4
P5
P6
P7
P8
P9
C1
C2
C3
C4
C5
C6
C7
C8
C9
C10 C12
Fonte: Levantamento de campo (ano: 2000)
A comunidade, como se encontra hoje, foi formada há doze anos. Seu
Policarpo, o líder local, afirmou que as famílias mudaram-se para lá porque ha viam sido
despejadas pelo Ibama de onde moravam - um sítio de frente para a baía de Caxiuanã,
entre a casa nº 5 da comunidade de Caxiuanã e a comunidade da Pedreira, chamado por
todos de Minas (ver mapa anexo). Viveram durante cerca de 16 anos nas Minas, até
1983, quando se mudaram e formaram o Laranjal.
Este, a exemplo da Pedreira, também está dividido em três núcleos: no
primeiro está a casa de Seu Policarpo e Dona Rosário (nº 1), a da professora (nº 3) e a
de Seu Pequeno e Dona Arlene (nº 2). Lá também ficam a escola, inaugurada em maio
de 2000, o poço d'água e uma casa de farinha, usada comunitariamente. No segundo
núcleo há mais três casas: a de Seu Evandro e Dona Dora (nº 5) e a de seu Bento (nº 6),
um senhor aposentado que divide sua moradia com o casal Arnaldo e Selma (filha de
Seu Policarpo). Por fim, o terceiro núcleo tem apenas uma residência, a de Seu Ilídio e
Dona Lúcia (nº 4), que possui sua própria casa de farinha. Os locais são interligados por
trilhas que, no inverno, costumam alagar.
No Laranjal, todos são evangélicos, sendo que o líder da comunidade é
também o líder religioso local. É quem organiza os cultos, em sua própria casa, às
quartas, sábados e domingos à noite. Também organiza as festinhas de aniversário, as
65
únicas que acontecem no local fora os encontros religiosos. É estranho notar, entretanto,
que a igreja que um dia se planejou construir nunca passou de quatro estacas enormes
fincadas no chão.
A renda das famílias provém basicamente do extrativismo. Além de
pedra, retirada por três famílias em conjunto com os residentes da casa nº 2 da Pedreira,
igualmente crentes, também extraem madeira e açaí para venda, e ainda o óleo de
copaíba, o óleo de andiroba e o mel. Outro produto extraído da floresta é um cipó muito
procurado, o timbuí - mais conhecido como cipó titica - usado para a confecção de
cestos, cadeiras e outros objetos artesanais. Não há castanhais no Laranjal. Fora o
extrativismo, os habitantes do local praticam a agricultura e fazem artesanato. Com
exceção da professora, não existem assalariados, e apenas uma pessoa recebe
aposentadoria, no valor de um salário mínimo.
Em 1999, a média de filhos por casal no Laranjal era maior que a
registrada nas duas outras comunidades: 7,2. Em Caxiuanã, esse número era de 5,1 e na
Pedreira, 3,8. Em 2001, esta média se manteve praticamente inalterada para Caxiuanã e
Pedreira (respectivamente 5,0 e 3,7 filhos por casal), tendo caído no Laranjal para 6,1 –
o que ainda faz, desta, a comunidade com maior número de filhos por casal, embora
estes números, em comparação com referentes às outras duas, esteja declinando.
Planta-se mandioca, milho, cana, jerimum, macaxeira, feijão, melancia,
banana, maxixe, cará e ananás, batata (Solanum tuberosum) e abacaxi.
Dentre as frutas que existem no local - tanto nos quintais quanto no mato
- foi relatada a ocorrência das seguintes espécies: abacate, açaí, ajará, ajurú, ameixa,
bacaba, banana, biribá, buriti, cacau, cacaúba, café, cajú, cana, caranã, castanha, coco,
cupuaçú, cupuí, jenipapo, goiaba, graviola, jambo, jatobá, inajá, ingá, laranja, lima da
pérsia (Citrus spp.), limão de caiana, limão-tangerina (Citrus spp.), mamão, manga,
maracujá, marajá, mari- mari, mucajá, murici, piquiá, pupunha, tangerina, taperebá,
umari, urucum (Bixa orelana) e uxi. Nos quintais, os moradores também plantam o
jambú (Spilanthes oleracea), a pimenta vermelha (Capsicum sp.) e o dendê (Elaeis
guineensis).
66
2.6 - As instituições e seus papéis
Uma questão a ser levantada, na tentativa de delinear a visão que os
ribeirinhos têm da ação das instituições na área da Flona, aponta para o 'acordo'
implícito entre populações locais e Ibama, no tocante ao uso dos recursos naturais, e
para o papel do MPEG como co-participante neste cenário.
A peculiaridade da situação reside no fato de que, na Flona Caxiuanã, a
'parceria ecológica' - definição utilizada por Lima (1997) para a aliança observada em
alguns lugares da Amazônia brasileira entre ongs e movimentos de populações locais
nos últimos anos - é composta por outros parceiros. Estes parceiros são o governo
federal (Ibama e MPEG) e as populações locais não organizadas. No jogo de forças que
se estabelece, o MPEG aparece como uma instituição que compensa os sacrifícios
exigidos pela outra. A longo prazo, a presença do Museu no local pelos próximos 30
anos e mais se afigura, aos olhos das comunidades, como uma garantia de certo
'sossego'. No triângulo que se formou, é aceitável viver sob as normas restritivas que
preconizam o 'desenvolvimento' (Lima, 1997) não pela atuação do Ibama - que não
retornou em troca benefício algum - mas pela do MPEG. Este consegue carrear recursos
para investir em seus projetos nas localidades, enquanto que o outro e as instituições
que o antecederam, durante 33 anos nunca foram provedores nem mesmo de infraestrutura de saúde e educação para a população local. Aliás, a ausência dessa infraestrutura é uma das questões apontadas por Machado (1998) para explicar a falta de
êxito na gestão de grande parte das Unidades de Conservação no Brasil.
Por outro lado, as relações do MPEG com o Ibama apontam para uma
parceria - no sentido de que o órgão federal de fiscalização é chamado a participar do
Programa Floresta Modelo - mas também sugerem certa subordinação, já que qualquer
iniciativa que remeta a intervenções em nível territorial, mesmo na área cedida ao
Museu pelo convênio, deve contar com a autorização do segundo. Assim aconteceu, por
exemplo, quando se quis construir a escola na comunidade de Caxiuanã. Ela foi erguida
em uma ilhota próxima à ECFPn que, segundo o ex-coordenador da base, já fora
ocupada antes por uma moradora, configurando-se uma área de capoeira muito antiga.
Consta, porém, que o processo de liberação do local foi longo e exigiu uma série de
negociações com o Ibama.
67
A despeito das tentativas deste órgão de se impor junto aos moradores
locais, nota-se que sua autoridade é, muitas vezes, ignorada, e até mesmo contestada. Na
Comunidade de Caxiuanã, por exemplo, conforme depoimentos, na última boa safra de
castanha (início do ano 2000) ninguém pagou a taxa em espécie exigida pelo órgão
federal. Outro exemplo de que a autoridade local pode ser desafiada é a casa de nº 9 da
comunidade de Caxiuanã. Segundo os ribeirinhos, o Ibama não havia autorizado o
morador (filho do casal residente na casa nº 4) a erguê-la. Mas a comunidade se uniu
para garantir que a casa fosse terminada e ela não foi derrubada. Isto se deveu,
provavelmente em parte, ao fato do ex-gerente da Flona ter laços de parentesco com
uma das famílias da comunidade, como já foi referido. Possivelmente, também se deva
a certo receio do ex-gerente quanto a protagonizar mais histórias violentas como a
relatada no início deste trabalho e, assim, perder o pouco de respeito que ainda consegue
angariar junto aos moradores locais.
O desgaste nas relações entre ribeirinhos e Ibama – e a conseqüente
perda de prestígio do órgão junto aos habitantes da Flona – é um fenômeno já
diagnosticado por autores como Machado (1998), para quem a autoridade e a
legitimidade dos órgãos encarregados da fiscalização das reservas são deterioradas por
sua própria atuação deficiente. Tanto na comunidade de Caxiuanã quanto nas do
entorno, ouvem-se comentários e reclamações com relação à lassidão do Ibama em
coibir, sobretudo, atividades ligadas à extração de madeira nas proximidades da floresta
onde, como já se disse, uma resolução do Conama permite que se atue. Enquanto a
população local - e aí se incluem os moradores de Pedreira e Laranjal - é proibida de
retirar da floresta madeira em toras, madeireiros estariam agindo com motosserras nos
limites da Flona 29 .
Frente à expansão da influência do Museu Goeldi - que, apesar de
atravessar uma crise de escassez de recursos, ainda tem mais funcionários, mais barcos
e conta com uma estrutura maior e melhor do que a do Ibama - resta ao órgão federal
agarrar-se à sua função de fiscalização, junto às populações residentes na Flona, para
legitimar sua função. É preciso atentar ainda para o fato de que a chegada do Museu à
29
O ex-gerente da floresta afirma que problemas com relação à extração ilegal de
madeira 'não são de seu conhecimento'. Entretanto, recentemente a imprensa noticiou existência de uma
estrada para puxar madeira que passa por dentro da Flona Caxiuanã, e que teria sido aberta com tratores
por um madeireiro que estaria invadindo terras no município vizinho de Gurupá. (ver matérias publicadas
no dia 15 de março de 2001 nos jornais O Estado de São Paulo, o Diário do Pará, O Liberal e a Província
do Pará em anexo). Segundo depoimentos de técnicos de uma ong que trabalha em Gurupá, o Ibama foi
chamado ao local e quem comandou a diligência foi justamente o ex-gerente da Flona Caxiuanã.
68
região tornou explícita a existência de uma demanda por serviços públicos por parte das
populações locais. Também há que se ressaltar que, embora a situação dos habitantes
locais seja, em ternos oficiais, vulnerável, eles têm consciência de que, com relação às
outras populações amazônicas que se auto- intitulam 'pobres', gozam de certo 'privilégio'.
Em primeiro lugar, a despeito de serem posseiros, não enfrentam conflitos agrários
diretos. Em segundo, dispõem de recursos naturais para subsistência - embora tenham
de obedecer a certas normas para sua utilização. E, em terceiro, não dependem
totalmente do mercado para sobreviver, ainda que estejam conectados a ele pelas vias
tênues que caracterizam os resquícios do sistema de aviamento. Pelo que se observa, as
comunidades estudadas aspiram ao mínimo possível que garanta a manutenção de sua
capacidade de reprodução social - nem mais, nem menos.
O MPEG utiliza métodos de intervenção que aparecem, à primeira vista,
como incentivo à manutenção da dinâmica de reprodução social local, embora
comungue da mesma conjectura segundo a qual o meio natural teria um 'limite' de
suporte que faria com que a presença e a atuação de grupos humanos na Flona tivessem
de ser vigiadas. Esta idéia de ‘capacidade de carga’ é originária da ecologia (‘carrying
capacity’) e, segundo Bertels & Vellinga (1999: 20) refere-se ao número máximo de
indivíduos de uma população em determinada área. 30
Em que pese o fato de o Museu ter restabelecido a confiança das
populações locais nas instituições, cabem questionamentos acerca de sua interpretação
das demandas locais. Pelo que se observa, o impacto que sofreram essas famílias com as
políticas públicas adotadas na Flona tem origem em uma vulnerabilidade histórica: a
forma de relação com a terra e a situação condicional de sua estada dentro da Flona
(pois teoricamente, pela lei, eles estão ‘autorizados’ a habitar a Flona). A busca de uma
sustentabilidade que tivesse como prioridades as estruturas sociais locais deveria estar
levando em conta o futuro próximo das Flonas, qual seja, sua exploração por empresas
privadas mediante concessão, sobretudo a empresas madeireiras. Na verdade, um
planejamento local sustentável sob o ponto de vista comunitário estaria se batendo pela
idéia de que a gestão da Flona – seja esta posteriormente aberta a madeireiros,
ecoturistas ou pesquisadores – tem de passar pelas famílias locais, como preconizam
Sachs & Weber (1997) e Singh (1997). As famílias não devem somente participar da
30
The term carrying capacity originates from ecology, where it refers to the maximum number of
individuals of a population within a certain area (1999:20).
69
elaboração de um Plano de Manejo, mas devem ser as primeiras e principais
beneficiárias do arrendamento da floresta à iniciativa privada, seja qual for a natureza
do ramo a ser explorado dentro da UC.
3 – O MFA: conceitos e procedimentos relacionados à análise de
fluxos materiais
3.1 – Conceituação de sistemas abertos, metabolismo e colonização
Metodologicamente, as comunidades aqui referidas serão abordadas de
acordo com a teoria dos sistemas abertos. Grosso modo, são sistemas que não estão em
equilíbrio e que, para garantirem sua manutenção e reprodução, têm de importar matéria
e energia do meio no qual se encontram inseridos. Em troca, eles devolvem ao meio os
rejeitos de seu processo próprio de funcionamento, que não podem ser assimilados, sob
risco de intoxicá- los. Este processo constitui o que se convencionou chamar de
metabolismo de um sistema. Fisher-Kowalski (1998) salienta que foram Marx e Engels
os primeiros a empregar a noção de metabolismo para caracterizar a Sociedade,
emprestada da biologia por vários cientistas sociais sob a influência da Teoria da
Evolução, de Darwin. Os materialistas fisiológicos conc eituaram o metabolismo como
uma troca de matéria entre um organismo e seu ambiente.
A melhor analogia que se pode fazer para compreender o funcionamento
de um sistema aberto é justamente com o corpo humano - um sistema aberto que
consome energia e matéria do meio e devolve a ele energia e matéria desvalorizadas. O
metabolismo de um sistema aberto é, portanto, a forma pela qual esse sistema funciona,
ou seja, sua conexão com o meio, representada pelos processos de importação,
processamento e exportação de matéria e energia. Essa idéia remete ao que se
convencionou chamar de metabolismo energético-material de um sistema aberto
(MEM). As quantidades de trabalho e energia necessárias para reproduzir esse sistema
fazem parte do conceito de metabolismo, uma vez que se sabe que, quanto mais
escassos os recursos vitais à manutenção de um sistema, mais trabalho será necessário
para a consecução desses recursos.
Um sistema não é uma unidade compacta, mas formada internamente por
elementos entre os quais deve haver uma coerência – ou um ‘padrão médio de
comportamento’ (Fenzl, 1997: 10) - que garanta a manutenção do chamado estado
70
estacionário em que o mesmo se encontra. Mas tampouco um sistema se resume a seus
elementos, até porque a coerência entre eles depende diretamente do ambiente que lhes
fornece energia e matéria. Todo sistema aberto é formado, basicamente, por três
dimensões: uma microscópica (relativa ao espaço interno do sistema), uma
intermediária (relativa ao nível de suas fronteiras estruturais) e uma macroscópica
(referente ao meio com o qual esse sistema troca energia e matéria). "Assim, sistemas
abertos são constituídos por uma estrutura e um campo de interação, ambos
intermediados por um plano de referência, a fronteira estrutural" (Fenzl, 1997: 7).
A idéia de uma fronteira com o meio remete ao conceito de colonização,
que é relativo ao uso da terra pelo ser humano, ao modo de apropriação da terra. A
noção de colonização está intimamente ligada ao montante de trabalho atribuído ao
homem que a habita: quanto maior ele é, mais intensamente se dá a colonização (Singh
et al., 2000) 31 . A intensa colonização que a sociedade moderna vem exercendo sobre seu
meio natural é que referenda e idéia de que se quisermos sobreviver enquanto sistema é
necessário que mudemos nosso metabolismo. Estamos ocupando cada vez mais espaço
e o lixo que produzimos vem testando a capacidade de assimilação da biosfera, que é
um sistema fechado, pois importa apenas energia de seu meio circundante – o universo.
Em outras palavras: na biosfera, a matéria é finita, está dada. Os recursos, uma vez
usados, foram dissipados e ainda que possam gerar novos produtos mediante
reciclagem, ou servir como fonte de energia alternativa, não se encontram mais
disponíveis em sua forma original. Uma latinha de refrigerante reciclada pode gerar
alumínio para ser reutilizado, mas a bauxita, sua matéria prima, foi dissipada no
momento em que deu entrada no sistema produtivo.
Em suma, o conceito de colonização refere-se ao aspecto do metabolismo
de um sistema pelo qual este é obrigado a formatar constantemente seu ambiente
relevante para garantir sua manutenção. No caso da humanidade, o metabolismo próprio
do sistema capitalista vem moldando a colonização da Terra sobre padrões
insustentáveis. Redclift (1987) chamou a atenção para este processo, sintetizando o
espírito que, na época da publicação do Relatório Brundtland 32 , movia as discussões em
31
Colonization is intimately linked to human labour – the higher the amount of human (possibly also
animal, machine) labour, the more intensive the colonization occurs.
32
Publicado em 1987, este documento da Comissão das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento pontuava que as questões sobre o desenvolvimento econômico das nações teriam de ser
debatidas junto com as questões ambientais. Nosso Futuro Comum (Our Common Future) ficou
conhecido como Relatório Bruntland porque este era o sobrenome da ministra da Noruega que presidia a
Comissão.
71
torno do conceito de desenvolvimento sustentável: "...the problem we are facing is not
simply how to compensate for the interruption of ecological succession, it is frequently
how to ensure that production itself does not degrade resources beyond the point of
renewal" (1987:18).
Os recursos naturais (renováveis e não renováveis) vêm sendo usados
com irresponsabilidade e o desperdício inerente a esse modo de utilização - assim como
a emissão de resíduos que caracteriza as sociedades industriais - não são computados
pelos índices que medem a saúde dos sistemas econômicos. Nossa intervenção afeta os
chamados ciclos biogeoquímicos da biosfera (água, oxigênio, carbono, nitrogênio,
fósforo e enxofre), de cuja circulação e estoques depende o equilíbrio dinâmico do
Planeta (Bertels & Vellinga, 1999). Em escala mundial, a Sociedade vem produzindo
interferências no funcionamento do ambiente natural da Terra em seu exercício
contínuo de adapta- lo às suas necessidades e, ainda que quatro quintos do mundo sejam
relativamente não industrializados, a atividade industrial tem sido intensa o suficiente
para modificar principalmente os ciclos globais de carbono e de nitrogênio. Um
exemplo emblemático desta interferência é a taxa de concentração atmosférica de
dióxido de carbono, que subiu de 280 partículas por milímetro (ppm) nos tempos préindustriais para 367 ppm hoje (Keeling & Whorf, 1998, citados em World Resources
Institute, 2000).
3.2 - O MFA (Material Flow Account)
Cavalcanti (1997) afirma que a primeira característica intrínseca a um
modelo de processo econômico ecologicamente sustentável é que o sistema econômico
saiba de que maneira depende do ecossistema, seja como fonte de recursos ou depósito
de dejetos. Embora pareça trivial, essa idéia embute a necessidade de quantificação de
tudo aquilo que cruza as fronteiras do sistema, tanto na entrada (input) quanto na saída
(output). Nesse contexto, o conceito de metabolismo sócio-econômico mostra-se
bastante pertinente para tentar prover medidas da utilização e do consumo de recursos
pela Sociedade, tanto em nível local quanto global, e da deposição de dejetos no
ambiente. Fischer-Kowalski (1999: 6) define metabolismo sócio-econômico como a
soma dos fluxos de energia e material para dentro, para fora e no interior de um
72
sistema 33 . Todo sistema sócio-econômico tem duas fronteiras: uma com outros sistemas
sócio-econômicos e outra com o meio natural onde está inserido.
Para 'medir' a eficiência do metabolismo sócio-econômico, tanto em nível
mundial como nacional e local, cientistas e pesquisadores de várias partes do mundo
têm trabalhado na confecção de metodologias e procedimentos que produza m
indicadores capazes de quantificar a essência das relações entre homem e natureza nas
mais variadas áreas em que se dão (Aiking et al, 1999; Marzall, 1999; Calorio, 1997).
Neste trabalho, foi utilizada uma série de métodos conhecida como MFA (Material
Flow Accounts). O MFA - que pode ser considerado um arcabouço de ferramentas para
a construção de um índice de sustentabilidade - é medido em dois níveis: nacional e
local. O caso aqui apresentado é a primeira tentativa realizada, no Brasil, em âmbito
local.
Neste contexto, cabe apresentar outro conceito referente também à teoria
dos sistemas abertos: o de eficiência energético-material (EEM). Grosso modo, a EEM
é um parâmetro que avalia a saúde do metabolismo de um sistema. O modelo
capitalista, como se vem provando, apresenta um baixo grau de eficiência energéticomaterial, consumindo recursos naturais em abundância, com alta percentagem de
desperdício, e devolvendo ao meio um índice de rejeitos que não leva em conta sua
capacidade de absorção. Machado (1999), ao utilizar o MFA em âmbito nacional para
comparar o metabolismo das economias do Brasil, Alemanha, Holanda, EUA e Japão sob o ponto de vista das respectivas demandas materiais - concluiu que, com exceção da
Holanda, em todas as outras se gasta, em desperdícios ignorados, mais de 50% da
matéria retirada do ambiente. Realidade muito distante do que pode ser considerado um
metabolismo saudável, segundo Fenzl (1997: 25), "capaz de produzir um mínimo de
rejeitos com um máximo de aproveitamento do input".
Os ‘inputs’ e ‘outputs’ são as bases sobre as quais se constróem os dados
dos quais a metodologia necessita para mensurar as trocas entre um sistema e seu meio.
Os primeiros se referem à extração de matéria do meio ambiente com o propósito de
transformação, via trabalho e tecnologia, por um sistema sócio-econômico. Já os
‘outputs’ compreendem o fluxo de materiais depositados no meio durante ou depois do
processo produtivo (Eurostat, 2001). Eles correspondem, geralmente, a emissões de
resíduos para o ar e a água, restos do processo de queima de lixo a céu aberto, uso
33
"Socio-economic metabolism refers to the sum of the material and energetic flows into, within and out
of a socio-economic system" (1999:6).
73
dissipativo de produtos, perdas, extrações de matéria não utilizada nos processos
produtivos e exportações.
Os procedimentos do MFA compreendem ainda algumas idéias centrais
que são, segundo Fischer-Kowalski (1999) 34 , as seguintes:
a) a lei de conservação de massas - segundo a qual o total de matéria e
energia injetado no sistema é igual ao total de matéria e energia ejetada do sistema, mais
o aumento do estoque de energia e matéria, menos o decréscimo desse estoque
(Output = Input + stock increases - stock decreases);
b) o fato de que o metabolismo de um sistema sócio-econômico é
composto do metabolismo de seus compartimentos físicos, aos quais, isoladamente, a lei
da conservação de massas se aplica. Esses compartimentos seriam: seres humanos,
animais criados pelos homens e artefatos em geral (construções, máquinas, veículos e
também estradas, açudes etc.). Naturalmente, essa idéia implica no 'cálculo' do completo
metabolismo dos seres humanos e dos animais pertencentes a determinado sistema, bem
como na inclusão dos materiais e da energia utilizados para manter as estruturas 'não
vivas' desse sistema;
c) os conceitos de estoque e de circulação, que determinam se um sistema
está 'crescendo' (em termos físicos), ou 'encolhendo'. Essa noção se refere geralmente ao
tamanho da população, de animais criados e ao peso da infra-estrutura existente em um
sistema.
d) a utilização de água, ar e outros materiais como biomassa,
combustíveis, minerais e semi- manufaturados. Esses três grupos de materiais injetados
em um sistema não podem ser calculados através de soma ou subtração, como os outros
já citados;
e) os conceitos de 'direct materials input' e 'hidden flows' (ou 'rucksacks',
termo que em português foi traduzido por ‘mochila ecológica’). O primeiro se refere à
fração de materiais que, não sendo ar nem água, cruzam a fronteira de um sistema
sócio-econômico. Fora das fronteiras de um determinado sistema sócio-econômico,
ocorre também um fluxo de materiais que podem ser vistos como pré-requisitos para o
input concernente ao sistema estudado, mesmo que eles nunca cruzem a fronteira do
sistema. A isso se chamam 'rucksacks'. Geralmente, compreendem emissões e resíduos
que ocorreram durante o processo de produção de um bem importado em seu local de
34
Tradução da autora do original em inglês. Trata-se de um manual aplicativo dos procedimentos
metodológicos do MFA em nível local.
74
origem. Pode-se entender a noção de ‘hidden flows’ com mais clareza associando-a à
porção de matéria retirada do meio mas não utilizada no processo produtivo. As
expressões ‘domestic unused extraction’ e ‘unusued extraction associated to imports’
(Eurostat, 2001) referem-se justamente a esses fluxos 35 .
Do ponto de vista do fluxo material, cabe o esclarecimento de alguns
conceitos. Primeiro, é preciso definir o que são materiais ‘used’ e ‘unused’. No primeiro
caso entram os materiais que adquirem status de produto dentro da lógica de
determinado sistema. No segundo, aqueles que são extraídos do meio, mas não são
utilizados – geralmente são extraídos juntamente com aquilo que vai ser usado, ou por
outra, também podem ser retirados para possibilitar a apropriação dos materiais do
grupo ‘used’.
Outros conceitos importantes são os de ‘domestic flows’ (fluxos
domésticos), ‘direct flows’ (fluxos diretos) e ‘indirect flows’ (fluxos indiretos). Chamase de fluxos domésticos aos fluxos de materiais extraídos e depositados dentro dos
limites de um dado sistema. A expressão fluxos diretos engloba os materiais que entram
fisicamente em uma economia, como input. Fluxos indiretos refere-se ao conjunto de
materiais que ocorrem como conseqüência de um processo produtivo, ou no caminho
para a obtenção de determinado bem.
Dentro dos grupos de ‘inputs’ e ‘outputs’ formam-se indicadores que dão
conta da entrada, consumo e saída de materiais no âmbito de determinada economia. No
grupo dos inputs, a categoria que demonstra a intensidade de matéria necessária para
manter um determinado metabolismo é chamada de DMI (‘direct materials input’, ou
‘matéria diretamente injetada’). Ela se refere à matéria que dá entrada em um sistema
econômico, seja de origem doméstica ou importada, excluindo-se o ar e a água, cuja
quantificação não pode ser feita por meio de soma ou subtração pois envolve, como
assinalou Fischer-Kowalski (1996), a utilização local de bens realmente transnacionais
da natureza. Chama-se de TMI (‘total material input’, ou ‘matéria total injetada’) à
soma da DMI com os ‘hidden flows’ (fluxos ignorados ou mochilas ecológicas) de
origem doméstica. Já TMR (‘total material requirement’, ou ‘matéria total requerida’)
inclui na somatória acima as mochilas ecológicas dos produtos importados, medindo,
assim, a base material total de determinada economia (Eurostat, 2001).
35
O documento original, em inglês, é um manual aplicativo dos procedimentos do MFA em nível
nacional, que explicita os conceitos referentes a esta metodologia. Apesar da presente pesquisa utilizar o
75
Dentre os indicadores de consumo, o mais relevante para esta pesquisa é
o chamado DMC (‘domestic material consumption’, ou ‘consumo doméstico de
matéria’), que mede o montante de matéria realmente usado pelo sistema. O DMC pode
ser representado pela seguinte equação: DMC = DMI (matéria diretamente injetada, que
corresponde às extrações domésticas mais a importação) – exportações. Note-se que a
diferença entre os indicadores de consumo e de input é uma medida do grau de
integração de um sistema econômico com a economia global.
No grupo dos ‘outputs’, deve-se destacar o indicador chamado de DPO
(‘domestic processed output’ ou ‘ejeção doméstica processada’), referente ao peso total
dos materiais usados em determinada economia (tanto de origem doméstica quanto
importada) antes de fluírem para o ambiente. A soma do DPO com o montante de
extrações não usadas pelo sistema forma o TDO (‘total domestic output to nature’ ou
‘ejeção doméstica total’), que representa a quantidade total de material depositado no
meio como conseqüência das atividades econômicas. E o TMO (‘total material output’
ou ‘ejeção material total’) mede o total de matéria que é ejetado de um determinado
sistema econômico (TMO = TDO + exportações). Já o indicador DMO (‘domestic
material output’ ou ‘ejeção material doméstica’) refere-se à soma do DPO com as
exportações.
Do ponto de vista da circulação de energia, segundo Fischer-Kowalski
(1996), a ‘produção primária global’ anual - energia solar incorporada à biomassa das
plantas em um dado período de tempo, base nutricional de toda a vida heterotrófica do
planeta - é o mais relevante como medida limite da participação da natureza no
fornecimento de energia. “Humans live on this energy as well as all animals and all
microorganisms that are not capable of photosynthesis” (1996: 89). A NPP (‘net
primary-production’) depende do clima, da qualidade do solo e da disponibilidade de
água. Ela só pode ser ampliada marginalmente por tecnologias desenvolvidas pelo
homem. É mais fácil, salienta a autora, que o homem a reduza, como tem sido
efetivamente observado, por exemplo, através do uso abusivo da terra e da emissão de
resíduos tóxicos.
Estima-se que sociedade industrial se apossa atualmente de um terço da
NPP (Vitousek et al., 1986 citado em Fischer-Kowalaski, 1996), sendo que essa
percentagem pode vir a dobrar nos próximos 35 anos, impulsionada pelo crescimento
MFA em nível local, entende-se que vários aspectos de sua utilização, incluindo os conceitos que a
fundamentam, são comuns.
76
populacional. A autora comparou o consumo per capita de energia em uma sociedade
industrial (Áustria) com o registrado em sociedades de caçadores-coletores e em um
agrupamento de pequenos agricultores (Törbel, uma vila na Suíça), concluindo que a
primeira consome 3,5 vezes mais energia do que as sociedades agrícolas que, por sua
vez, consomem 4 vezes mais energia do que as de caçadores-coletores. Ela ressalta que
a idéia de que uma única espécie venha a necessitar de mais da metade da ‘base
nutricional’ de todas as espécies animais é claramente um prólogo da extinção de
determinadas espécies (Fischer-Kowalaski, 1996). E, em última instância, se nada for
feito para que este impacto seja assimilado pela biosfera de maneira a possibilitar, ao
menos, a manutenção dos ciclos biogeoquímicos que a mantém e a produtividade dos
recursos naturais renováveis que sustentam a população humana (McGrath, 1997),
explicita possibilidade de colapso do sistema formado pela sociedade humana.
É importante salientar que as ferramentas aqui expostas permitem, em
nível nacional e local, uma contabilidade distante daquela realizada pela economia
tradicional, na qual não se computa o custo dos recursos naturais utilizados - e dos nãoutilizados - nos processos de transformação ou, pior, onde o consumo destes recursos
acaba sendo computado como riqueza, como bem salienta Cavalcanti (1997: 75): “... as
estatísticas do PIB e outros agregados da caixa de ferramentas dos economistas
confundem o esgotamento de recursos com a geração de renda, permitindo que se fale
em ‘criação de riqueza’ quando a riqueza está simplesmente diminuindo!”.
O conceito de ‘mochila ecológica’ (de que todo material e todo produto
carregam custos para o ambiente que não entram no balanço do sistema industrial, e
nem na formação dos preços) também remete à visão global de que a sobrecarga
acumulada e dissipada no ambiente pelo sistema de produção capitalista não respeita
fronteiras, o que tem ficado cada vez mais claro com as súbitas mudanças climáticas às
quais o mundo vem assistindo nos últimos anos, com o aumento da temperatura do
planeta e o conseqüente aumento do degelo nos pólos.
3.2.1 - O MFA em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal
Uma característica que dimensiona bem o Material Flow Account,
surgido na última década, é sua adaptabilidade. Como se trata de uma série de
procedimentos recentemente adotados, cada pesquisador pode experimentar e
77
incorporar novas estratégias ao conhecimento já existente, dependendo do local em que
trabalha.
Em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, o trabalho de coleta de dados foi
realizado em cinco viagens realizadas entre julho de 1999 e setembro de 2001, nas quais
se procedeu à contagem do número de pessoas e casas, à medição de todas as casas e
seus quintais, bem como de todos os espaços comuns de cada uma das localidades, à
contagem dos bens de consumo duráveis que cada casa possui, e à aplicação de
questionários no sentido de verificar dados relativos às famílias (religião, renda,
parentesco...). Em um segundo momento, foram selecionadas três casas por comunidade
(as de maior e menor renda e uma intermediária) para o levantamento de informações
mais específicas, como: quantidade retirada de madeira para venda, quantidade retirada
de pedras para venda, consumo de frutos silvestres, etc. Nestas casas também se
realizou, sempre que possível, a pesagem de frutos, caça, peixe e produtos oriundos das
roças dos ribeirinhos, além de produtos alimentares, tanto confeccionados localmente
(como o beiju e o vinho do açaí) quanto importados. A lenha utilizada nos fogões destas
casas foi igualmente contabilizada e a água foi medida em um recipiente com
capacidade para 1 litro.
O fabrico da farinha foi acompanhado passo a passo e a lenha utilizada
foi pesada. Os cálculos sobre retirada de pedra e madeira foram feitos por amostra e
mediante o cruzamento de diversas informações fornecidas pelos ribeirinhos. Os dados
foram contabilizados em quilo per capita ao ano, portanto o que se obtém é uma média
do consumo de recursos por habitante, para cada uma das localidades. Foram divididos
em três grupos: extração de recursos domésticos, uso de recursos domésticos e
importações. A partir destes dados é que são tirados os indicadores de sustentabilidade
preconizados pela metodologia do MFA.
3.2.1.1 - Extração de recursos domésticos
A) Matéria bruta abiótica
a.1) Pedras
Toda a produção de pedras do Laranjal e da Pedreira é destinada à
exportação. Ao todo, entre a Pedreira e o Laranjal, cinco famílias extraem pedras para
construção civil. Na Pedreira são as casas nº 2 e nº 9. No Laranjal, a casa nº 4, a nº 1 e a
nº 2. A atividade é realizada durante o inverno, quando as águas sobem e então é
78
possível acessar de casco o local da pedreira para extrair o material e puxá- lo para a
baía, onde um patrão de Breves vem buscá- lo (
Figura 5 e Figura 6). Na Pedreira, exporta-se 6.086,04 kg/cap/ano.
Segundo os depoimentos dos ribeirinhos que trabalham com pedras, um homem é capaz
de quebrar cerca de 1 m³ por dia, sozinho. A exp loração da pedra é uma atividade que
requer imenso esforço físico: os blocos são extraídos das rochas a marretadas e depois
quebrados em pedaços menores. Isso explica o fato de apenas uma família da Pedreira
se dedicar à extração de pedras, embora a mina esteja localizada nesta comunidade.
Figura 5: Extração Doméstica - Matéria Bruta Abiótica – Pedra [kg per cap per
ano]
6.086,0
8.005,4
Laranjal
Fonte: Levantamento de campo (ano 2001)
Pedreira
79
Figura 6: Renda anual oriunda da extração mineral - [R$/cap/ano]
R$ 40,08
R$ 45,86
Laranjal
Pedreira
Fonte: Levantamento de campo (ano 2001)
B) Matéria bruta biótica (biomassa)
A média total de biomassa extraída das comunidades é 3.630,51
kg/cap/ano. Deste total, 34% corresponde à coleta de frutos (1.230,94 kg/cap/ano), 29%
a produtos agrícolas (1.046,56 kg/cap/ano) e 32% é relativo à madeira para todos os
usos (1.154,63 kg/cap/ano). A caça e a pesca respondem, respectivamente por 4%
(132,04 kg/cap/ano) e 2% (66,34 kg/cap/ano).
80
Figura 7: Extração doméstica de biomassa [média anual per cap]
Caça
3,6%
Agricultura
28,8%
Extrativismo
33,9%
Pesca
1,8%
Madeira
31,8%
Fonte: Levantamento de campo
b.1) Peixe e caça
O consumo da carne de caça supera o do peixe nas três comunidades. A
Pedreira tem o maior consumo tanto de uma quanto de outro: 86,60 kg/cap/ano de caça
(limpa) e 68,87 kg/cap/ano de peixe (Figura 8 e Figura 9). As caças mais comuns são o
tatu, a paca, o macaco, o quati, o veado (branco e vermelho), o porco do mato, o catitu e
a capivara. A média bruta de consumo anual per capita das três comunidades ficou em
132,04 kg/cap/ano de caça – o que dá 83,51 kg de carne, já limpa. A média de matéria
não usada ficou em 48,54 kg/cap/ano 36 (ver Figura 9). Quanto aos peixes, destacam-se a
caratinga e o tucunaré entre outros.
36
Os valores de taxa de aproveitamento foram construídos com base em informações dos habitantes das
comunidades. Isso explica as diferenças entre eles.
81
Figura 8: Extração doméstica de biomassa - Peixe [kg/cap/ano]
65,44
68,87
64,73
Caxiuana
Laranjal
Pedreira
Fonte: Levantamento de campo
Figura 9: Extração doméstica de biomassa - Caça [kg/cap/ano]
161,56
180,00
160,00
140,00
132,04
123,71
110,85
120,00
83,14
100,00
80,78
86,60
83,51
80,00
80,78
60,00
40,00
27,71
37,11
48,54
TOTAL kg/cap year
20,00
Parte consumida kg/cap year
Caxiuana
Parte não aproveitada kg/cap year
Laranjal
Pedreira
MÉDIA
Fonte: Levantamento de campo
b.2) Frutos
A coleta de frutos corresponde a 34% da extração doméstica de biomassa
das três localidades (ver tabela em anexo para relação de frutos e Figura 7 para extração
doméstica). Como se sabe, grande parte das frutas amazônicas têm uma porção
82
comestível muito pequena com relação ao resto. Por esta razão, a percentagem das
porções não utilizadas e não consumidas dos frutos coletados é muito grande para todas
as comunidades.
Na Pedreira, 45% do total coletado vira lixo, 6% são computados como
fluxos ignorados ligados ao consumo doméstico e 5% perfazem os fluxos ignorados das
exportações. No Laranjal, o lixo é estimado em 55% do montante coletado, enquanto os
fluxos ignorados relativos ao consumo doméstico somam 9%. Em Caxiuanã, os fluxos
ignorados ligados às exportações somam 25%, pois o principal produto de exportação
da comunidade é a castanha. Calcula-se que para 1 kg de castanha estejam relacionados
4 kg de matéria não usada, referente aos ouriços, que ficam no ambiente (Villachica et.
al, 1996). Do total de 1.482,90 kg/cap/ano de frutos coletados na comunidade, 30% são
estimados como lixo e 20% como fluxos ignorados ligados ao consumo doméstico (ver
gráficos em anexo).
A média de lixo oriundo da coleta de frutos é de 38% para o conjunto das
três comunidades. Os fluxos ignorados respondem por 29% (15% ligados à exportação e
14% ao consumo doméstico). A média de biomassa consumida é de 27% e de biomassa
exportada é de 6% (ver Figura 10).
Figura 10 : Extração Doméstica de Biomassa - Extrativismo
Fluxos ignorados referentes ao
consumo doméstico
13,8%
Parte consumida
26,6%
Fluxos ignorados referentes à
exportação
14,8%
Exportação
6,5%
Lixo
38,3%
Fonte: Levantamento de campo
83
É interessante atentar para os fluxos ignorados da extração de frutos –
cuja maior parte está diretamente relacionada aos frutos silvestres. Em Caxiuanã, onde a
coleta de castanha é uma atividade que representa 94% do peso das exportações (Figura
11), os fluxos ignorados relativos à extração doméstica somam 1.331,72 (dos quais
1.200,01 kg/cap/ano referentes à castanha). Na Pedreira, este número é de 786,14
kg/cap/ano.
Figura 11: Composição das Exportações Caxiuanã - Peso
Pedra
0%
Madeira
0%
Farinha
6%
Castanha
94%
Fonte: Levantamento de campo (2001)
No Laranjal, estes fluxos correspondem a 782 kg/cap/ano – apesar da
comunidade apresentar uma alta taxa de biomassa não consumida em relação à
consumida: respectivamente 64% para 33%. Isto se explica por uma nuance da
metodologia: contabilizou-se como fluxo escondido tudo aquilo que ‘fica no mato’ no
momento da coleta. O restante – o que vai para dentro das casas e de lá é dispensado - é
contabilizado como lixo (cascas e caroços de frutas, basicamente). Como o Laranjal não
tem castanhais, sua taxa de fluxos ignorados foi bem pequena - representada
basicamente pelos cachos de açaí e bacaba, cujos caroços entraram no balanço como
lixo, juntamente com as cascas e caroços de todos os outros frutos. Vale le mbrar que o
Laranjal tem mais variedade de frutos do que as outras duas localidades, daí sua
produção de lixo relacionada à extração de frutos ter sido maior.
84
b.3) Madeira
O consumo de madeira inclui a lenha (tanto usada nas cozinhas quanto
nas casas de farinha), a madeira retirada para venda e a utilizada em reparos na casas. A
retirada para venda ainda é significativa na Pedreira e no Laranjal, aparecendo como a
segunda modalidade de consumo de madeira (ver gráficos em anexo) - apesar da
extração em toras ter sido proibida na área do entorno da Flona em 1997. Atualmente,
os moradores da Pedreira e do Laranjal fornecem apenas tarugos e esteios. Os tarugos
medem cerca de 2,20 m de altura por 0,1 m de diâmetro. Os esteios variam entre 4, 5 e 6
metros, com 0,1 m de roda, e geralmente são de acapu, por ser esta uma madeira
extremamente resistente e de durabilidade praticamente ilimitada.
De acordo com um morador do Laranjal, uma tora média pode ser
dividida em até 20 tarugos, e conforme a altura da árvore podem ser feitos até 100
tarugos por árvore. Seu Paulo, o comerciante da Pedreira, diz que uma árvore de 2
metros de diâmetro pode render até 150 tarugos. Segundo ele, a Pedreira produz, por
mês, de 150 a 200 tarugos e cerca de 10 esteios – isso durante o inve rno, quando é mais
fácil escoar a madeira pelos rios. No Laranjal, as casas que mais exportam madeira são
as de número 1, 2, 3 e 4.
Na contabilidade da média da extração local doméstica de biomassa, a madeira (em
todas as suas formas) representa 30,5% do total, aparecendo logo atrás dos frutos e dos
produtos agrícolas (Figura 7). A média de consumo de madeira registrada nas três
comunidades ficou em 1.154,63 kg/cap/ano, para os quais se calculou uma média de
matéria não usada de 108,62 kg/cap/ano (Figura 12).
85
Figura 12: Extração Doméstica de Biomassa - Madeira
1.400,00
1.281,52
1.229,83
1.200,00
1.154,63
952,54
1.000,00
800,00
600,00
400,00
200,00
170,19
155,66
-
108,62
Caxiuana
Laranjal
r
p yea
kg/ca
itada
e
v
ro
ap
Parte
year
/cap
os kg
norad
ig
s
o
Flux
Pedreira
MÉDIA
Fonte: Levantamento de campo
A lenha responde pelo grosso do consumo de madeira nas três
comunidades, utilizada tanto nos fogões das casas quanto para torrar a farinha. Em
Caxiuanã, onde é proibida a extração da madeira para venda, dos 952,54 kg/per capita
consumidos anualmente, 908 kg/per capita são referentes à lenha, o que corresponde a
95% (ver gráficos em anexo). Entretanto, é preciso salientar que a madeira usada para
este fim é proveniente da queima dos terrenos utilizados para o roçado. São madeiras
leves, como o pracaxi (Pentaclethra filamentosa) e o curipajó, que vão sendo
amontoadas a um canto do terreno quando é feita a capina (limpeza), depois da queima.
A maior parte da lenha utilizada pelos moradores da Flona e entorno é
consumida nos fogões a lenha. Em Caxiuanã, 75% da madeira consumida tem este fim.
Já a lenha usada na produção de farinha para venda e para consumo chega, no Laranjal
– onde se registrou a maior percentagem - a apenas 24% do total (ver gráficos em
anexo).
b.4) Produtos agrícolas
86
A principal cultura é a mandioca, que é plantada em consórcio com
outras culturas, como o jerimum, o milho, o cará, a cana ou a melancia, e às vezes o
abacaxi, na beira das roças – todas de ciclo menor do que a primeira. Entre julho e
agosto planta-se a melancia, e o restante depois, junto com a maniva (mandioca). O
milho e a melancia são colhidos depois de aproximadamente três meses, o cará após seis
meses e a cana depois de oito meses. Também se planta feijão, maxixe e batata.
É difícil mensurar o quanto de terra cada família utiliza para roçar, no
total. A maioria faz um sistema de rodízio de terrenos, e os tamanhos das roças variam
muito, conforme mostra a tabela 2.
A média total de extração de produtos agrícolas é de 1.046,56
kg/cap/ano. O maior número é o do Laranjal, de onde são colhidos 1.311,32 kg/cap/ano
(ver o balanço total, em anexo). Os produtos agrícolas, no cômputo geral das
exportações das três comunidades, por peso, superam os frutos oriundos da coleta: a
média de exportação é de 310,66 kg/cap/ano, enquanto a de frutos silvestres é de 111,57
kg/cap/ano. Foram calculados os fluxos ignorados relativos apenas à extração da
mandioca, cuja média perfaz 169,62 kg/cap/ano.
3.2.1.2 - Uso de recursos domésticos
Água
Quantificou-se o consumo de água para dois fins: água utilizada para
lavar louças e cozinhar, e água utilizada para beber. Os banhos são tomados
evidentemente nos rios, onde também se lava a roupa. Em julho de 1999, as
comunidades ainda bebiam água proveniente dos rios. Logo depois, o MPEG começou a
incentivar a construção de poços nas casas, pois uma pesquisa indicara que a grande
maioria dos habitantes das localidades tinha algum tipo de verme.
Hoje, na maioria das casas, a ‘água de beber’ vem dos poços, enquanto a
água de lavar louça e cozinhar é proveniente dos rios. No total, as três comunidades
consomem 10.272,24 kg/cap/ano para lavar louça e cozinhar, e bebem 1.007,29
kg/cap/ano.
3.2.1.3 - Importações
87
Os dados apresentados até agora dão conta da extração total de matéria
doméstica de Caxiuanã, Pedreira e Laranjal. Parte desse material fica nas localidades –
sendo consumida e/ou descartada pelos moradores - e outra parte é exportada. Há ainda
a matéria que vem de fora, as importações, cuja média geral é de 302,69 kg/cap/ano
(entre matéria bruta abiótica e produtos manufaturados, como mostra o balanço total).
O de matéria bruta abiótica (diesel e gás butano) corresponde a 182,69
kg/cap/ano e responde pela maior parte das importações das três localidades. Nas listas
de compras mensais das casas foram levantados 70 itens dos mais variados – de água
oxigenada a agulha para máquina de costura, passando por pólvora e pregos. Os
gráficos de consumo, entretanto, apresentam apenas os principais produtos importados,
que são: açúcar, café, carne seca, macarrão, arroz, biscoito e leite em pó. As maiores
médias de consumo são de açúcar (53,3 g/cap/dia), arroz (19 g /cap/dia) e biscoito (17,8
g/cap/dia), como mostra o gráfico abaixo.
Figura 13: Consumo individual de alimentos importados [kg/cap/ano]
20,00
19,19
18,00
16,00
14,00
kg
12,00
10,00
8,74
8,00
6,86
6,40
5,42
6,00
3,55
4,00
3,26
2,00
Arroz
Biscoito
Leite em pó
Macarrão
Carne seca
Açucar
Café
Fonte: Levantamento de camp o (ano 1999)
De posse destes dados, pode-se calcular alguns dos indicadores
mencionados acima. Para esta pesquisa, os mais relevantes são DMI (matéria
88
diretamente injetada), DMC (consumo doméstico de matéria), TDO (ejeção doméstica
total) e TMO (ejeção ma terial total).
3.2.1.4 - Indicadores de input e de consumo
A matéria diretamente injetada (DMI) média das três localidades foi
calculada em 7.773,20 kg/cap/ano e o DMC em 3.623,33 kg/cap/ano. O montante
injetado de matéria de origem doméstica é de 7.470,51 kg/cap/ano e os fluxos ignorados
de origem doméstica perfazem 930,99 kg/cap/ano. A TMI (matéria total injetada) média
de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal é de 8.704,20 kg/cap/ano (TMI = DMI + fluxos
ignorados de origem doméstica) e a TMC (matéria total consumida) média é de
4.152,82 kg/cap/ano.
Figura 14: Composição da Matéria Total Injetada
Extração Doméstica NãoAproveitada
22%
Importações
3%
Extração Doméstica
75%
Fonte: Levantamento de campo
INDICADORES DE INPUT E DE CONSUMO POR COMUNIDADE
Laranjal
89
O cálculo das extrações domésticas no Laranjal resultou em um número
maior do que nas outras duas localidades: 11.415,09 kg/cap/ano, sendo os fluxos
ignorados calculados em 782,26 kg/cap/ano. A DMI do Laranjal foi estimada em
11.703,48 kg/cap/ano e o DMC em 3.091,01 kg/cap/ano. No total, o montante de
matéria consumida pela comunidade (TMC) ficou em 3.760,08 kg/cap/ano.
Pedreira
As extrações domésticas da Pedreira foram calculadas em 10.306,51
kg/cap/ano, sendo os fluxos ignorados estimados em 786,14 kg/cap/ano. A matéria total
injetada (TMI) foi estimada, para a Pedreira, em 11.428,09 kg/cap/ano e a matéria
diretamente injetada (DMI) em 10.641,95 kg/cap/ano (ver o comparativo dos
indicadores em anexo). Quanto ao consumo de matéria, os índices são os seguintes: a o
consumo domé stico de matéria (DMC) é de 3.913,00 kg/cap/ano e o total de matéria
consumida é de 4.552,90 kg/cap/ano.
Caxiuanã
Na contabilidade final de Caxiuanã, 75% da matéria oriunda da extração
de frutos aparece como matéria não utilizada (isto representa, tanto no caso das
exportações quanto no consumo de frutos pela comunidade, os ouriços das castanhas, os
cachos de açaí e mais o lixo – que são as cascas e caroços de todos os outros frutos,
mais as cascas das castanhas).
Entretanto, diferentemente do que acontece nas sociedades industriais,
esta relação não compromete nem ameaça o funcionamento do sistema sócioeconômico. Antes, pelo contrário, é um dos preceitos de seu desenvolvimento, pois a
matéria orgânica que volta para a natureza realimenta o sistema. As extrações
domésticas da comunidade foram estimadas em 3.403,90 kg/cap/ano. A TMI é então em
Caxiuanã, neste caso, 5.020,07 kg/cap/ano (ver balanço total em anexo). A DMI perfaz
3.688,35 e o DMC 3.451,47 kg/cap/ano. O total de matéria consumido pela comunidade
é de 4.093,57 kg/cap/ano.
3.2.1.5 - Composição das exportações por comunidade e indicadores de output
90
A composição das exportações das três comunidades a seguinte: 91,6%
de pedras, 6,5% de matéria bruta biótica (2,7% de frutos e 3,8% de produtos agrícolas),
1% de madeira e 0,9% de farinha (Figura 15).
Figura 15: Composição das Exportações - Peso
Produtos
manufaturados
0,9%
Produtos extrativos
Madeira 2,7%Produtos agrícolas
1,0%
3,8%
Pedra
91,6%
Fonte: Levantamento de campo
EXPORTAÇÕES POR COMUNIDADE
Laranjal
O Laranjal, curiosamente, foi a comunidade que registrou maior índice
de produção voltada para exportação: 8.612,47 kg/cap/ano o que, traduzido em reais,
perfaz uma renda de R$ 174,13 cap/ano. Diz-se curiosamente porque a análise dos
dados referentes aos estoques poderia não conduzir a esta conclusão: é a comunidade
que tem as menores casas (tamanho médio 37 m²) e o menor número de bens-deconsumo duráveis por habitante – embora registre um número intermediário de itens
importados de outra natureza, como alimentos e madeira para construção (menor do que
a Pedreira e maior do que Caxiuanã).
Entretanto, os valores referentes à exportação passam a fazer sentido
quando se observa que a pedra responde por 93% do peso total das exportações do
91
Laranjal. Logo em seguida aparecem os produtos agrícolas com 3,6% (310,66
kg/cap/ano), a madeira com 2,5% (216,61 kg/cap/ano), a farinha com 0,8% (67,12
kg/cap/ano) e os frutos oriundos da coleta, com 0,1%. Vale lembrar que, no Laranjal,
três núcleos familiares se dedicam à extração de pedras, enquanto na Pedreira somente
um. Do total de matéria exportada pela comunidade, que é de 8.612,47 kg/cap/ano,
8.005,4 kg/cap/ano referem-se à pedra, como mostra o gráfico 16. Em dinheiro, isso
corresponde a R$ 45,86 kg/cap/ano, ou 54% do total de moeda injetado na comunidade
anualmente (Figura 17).
Figura 16: Composição das Exportações - Peso - Laranjal
pedra
93,0%
farinha
0,8%
madeira
2,5%
coleta
0,1%
agricultura
3,6%
Fonte: Levantamento de campo
92
Figura 17: Composição das Exportações - Valor - Laranjal
R$ 45,86
R$ 62,50
Pedra
Madeira
Farinha
Melancia
R$ 11,91
R$ 26,85
Fonte: Levantamento de campo (ano 2001)
Pedreira
Do peso total exportado na Pedreira, que é de 6.728,95 kg/cap/ano, a
pedra responde por 91% (6.086,04 kg/cap/ano), perfazendo uma renda de R$ 40,08
cap/ano, ou 29% do montante de moeda que entra na comunidade via exportações, que é
de R$ 137,50 cap/ano (Figura 19). Os produtos agrícolas representam 5% das
exportações, enquanto a madeira corresponde a 3% (198,1 kg/cap/ano), o que rende R$
11,89 cap/ano. A farinha responde por apenas 1% do peso das exportações da Pedreira e
os frutos coletados por praticamente nada (Figura 18).
93
Figura 18: Composição Exportações - Peso - Pedreira
Madeira
3%
Farinha
1%
Castanha
0%
Melancia
5%
Pedra
91%
Fonte: Levantamento de campo
Figura 19: Composição Exportações - Valor - Pedreira
Pedra
29%
Melancia
45%
Madeira
9%
Castanha
7%
Fonte: Levantamento de campo (ano 2001)
Farinha
10%
94
Note-se que, nas duas comunidades que exportam madeira em forma de
tarugos e esteios, o valor recebido anualmente por esta mercadoria (R$ 11,91 cap/ano
para tanto para Pedreira quanto para o Laranjal) é mais baixo que o valor recebido por
ano pela farinha (Figura 20), muito embora a produção de madeira para venda seja
maior que a de farinha em ambos os lugares – o que reforça a certeza de que a venda de
madeira não beneficiada realmente não se configura um ‘bom negócio’, sobretudo se for
levada em conta a quant idade de trabalho necessária para a produção dos tarugos e
esteios nos moldes locais (sem motoserra e sem animais de tração para puxar as toras de
dentro da mata).
Figura 20: Composição Exportação - Valor
R$ 80,00
R$ 70,00
R$ 60,00
R$ 50,00
R$ 45,86
R$ 6,00
R$ 73,88
R$ 40,00
R$ 62,50
R$ 30,00
R$40,08
R$62,50
R$ 20,00
R$ 11,91
R$ 26,85
R$ 10,00
0
R$11,91
Caxiuanã
R$13,58
Laranjal
R$ R$9,42
Pedra
Madeira
Pedreira
Farinha
Castanha
Melancia
Fonte: Levantamento de campo (ano 2001)
Caxiuanã
Em Caxiuanã, a coleta responde por 94% do peso total de matéria
exportada (ou 221,88 kg/cap/ano), como se vê pelo gráfico 9, sendo a castanha o
principal produto exportado. A farinha perfaz os 6% restantes (15 kg/cap/ano) 37 . Dos R$
79,88 cap/ano oriundos das exportações, R$ 73,88 cap/ano correspondem à venda de
37
No caso de Caxiuanã, foi excluída da contabilidade a exportação da melancia, por se tratar de um valor
não estimado durante os levantamentos de campo.
95
castanha. Em quilos, as exportações de Caxiuanã totalizam 236,88 cap/ano – dado que
puxa a média das três localidades para baixo (4.149,87 kg/cap/ano), pois, como se viu,
no Laranjal este número está na casa das 8t/cap/ano e, na Pedreira, perfaz mais de
6t/cap/ano.
Atente-se para os fluxos ignorados relativos à exportação de frutos
silvestres em Caxiaunã, que totalizam 25% de toda a biomassa correspondente à
extração - o maior índice dentre as três localidades (ver gráficos anexos). A relação dos
fluxos ignorados das exportações para as exportações propriamente ditas é de 3 para 1.
INDICADORES DE OUTPUT
Quanto aos indicadores de output, calculou-se em 5.797,10 kg/cap/ano a
média de matéria total ejetada (TMO) pelos três sistemas sócio-econômicos, em
1.647,23 kg/cap/ano a média de ejeção doméstica total (TDO) e em 716,23 kg/cap/ano a
média de ejeção doméstica processada (DPO).
Evidentemente, o Laranjal, que apresentou o maior valor tanto de matéria
total injetada (TMI) quanto de matéria diretamente injetada (DMI), apresenta o maior
número referente ao total de matéria ejetada (TMO): 9.560,54 kg/cap/ano. Entretanto,
nota-se que seus índices de TDO (ejeção doméstica total) de DPO (ejeção doméstica
processada) são os menores entre as três localidades: respectivamente 948,07
kg/cap/ano e 449,19 kg/cap/ano. Isso se explica pelo fato de que do montante total de
matéria injetada na comunidade (TMI = 12.485,74 kg/cap/ano), 8.005,42 kg/cap/ano
refere-se à pedra, cuja extração, como já se viu, é toda voltada para a exportação. Como
a TMO é igual à soma da TDO com as exportações, ainda que a ejeção doméstica total
seja pequena, o valor referente às exportações puxa para cima o valor da TMO.
Já em Caxiuanã, a situação se inverte. Naturalmente, apresenta a menor
TMO (1.714,66 kg/cap/ano), pois sua TMI é a menor das três. Mas seu índice de TDO é
o maior: 1.477,78 kg/cap/ano. Isso se explica pelo peso da extração de castanha no
metabolismo sócio-econômico da comunidade – e os respectivos fluxos ignorados
referentes a esta atividade, que perfazem grande parte da ejeção doméstica total (TDO =
DPO + hidden flows).
Quanto à Pedreira, vale ressaltar que a DPO apresenta-se maior do que a
de Caxiuanã e a do Laranjal: 863,83 kg/cap/ano. Pode-se atribuir este número ao fato de
que, dentre as três, esta é a comunidade cujo input apresenta maior variedade de
96
produtos. Como a DPO se refere ao peso total dos materiais usados em determinada
economia antes de fluírem para o ambiente, seria natural que a Pedreira apresentasse a
maior taxa, que no balanço coincide com a produção de lixo (emissions and waste).
Por fim, cabe destacar os valores relativos aos fluxos indiretos ligados às
exportações. Em Caxiuanã, apesar do montante de exportações somar apenas 236,88
kg/cap/ano, os ‘hidden exports’ perfazem 689,63 kg/cap/ano – a maior taxa das três. No
Laranjal, que exporta mais do que as outras duas, estes fluxos são de apenas 113,19
kg/cap/ano – o menor valor dentre as três. Para a Pedreira, o valor dos ‘hidden exports’
é de 146,24 kg/cap/ano.
3.2.1.7 - Produtos manufaturados: farinha e artesanato
As três localidades fabricam farinha o ano todo, sendo que cada família
possui, pelo menos, duas roças de mandioca, número que pode chegar a três (uma em
preparo, outra esperando para ser colhida e uma terceira em colheita). As roças são
medidas em braças, sendo que a braça varia entre 2,5m e 3m (no padrão local, o
tamanho do lavrador, com o braço erguido, mais o terçado). Assim, uma roça de 25
braças (ou uma tarefa, como se diz) corresponde a mais ou menos 125 metros
quadrados; uma de 40 braças são mais ou menos 200 metros quadrados e 50 braças
correspondem aproximadamente a 250 metros quadrados.
Nas três localidades, o peso da farinha no rol de produtos exportáveis
varia bastante de acordo com as casas. Mas pode-se dizer que, geralmente, as famílias
que mais produzem – aquelas que realmente visam produzir excedente para comércio –
torram farinha ao menos duas vezes por semana 38 . Na Pedreira, Seu Benedito e Dona
Tonica (casa nº 5), ajudados pelo filho e a nora, produzem 40 kg de farinha em um dia
de trabalho (das 7h às 16h mais ou menos, com pequenas pausas para a ‘merenda’).
Para cada quilo de farinha produzido, são consumidos em média 4 quilos de mandioca.
O tubérculo é plantado geralmente no verão (a partir de agosto, até dezembro) e depois
de seis meses já pode ser colhido, embora o ideal seja colhê- lo após10 a 12 meses.
Seu Benedito e Dona To nica colhem por mês, de sua roça, cerca de 684 kg de mandioca
e consomem, juntamente com a casa da filha (nº 4), uma saca de 60 kg de farinha por
38
Em setembro de 2001, 30 kg de farinha estavam sendo vendidos a R$ 14,00.
97
mês. Em 2000, a família mantinha três roças, sendo duas de 25 braças (125 m²) e uma
de 40 por 30 braças (175 m²). A maioria das roças, na Pedreira, é feita nos arredores da
comunidade, pois a mata já está distante e existem capoeiras antigas no entorno.
Em Caxiuanã, a maior produção de farinha é a da casa nº 2. A cada
semana, Seu Jorge e Dona Raquel, auxiliados por dois dos três filhos pequenos,
produzem uma saca de 60 kg de farinha (cerca de 4 latas de 20 litros). Para isso,
geralmente, mantêm duas roças de 25 braças cada uma, só de mandioca (no total de 250
m²). Além de vender em Portel e na ECFPn, o casal também supre a demanda local
daqueles que não produzem, ou que estão em época de entre safra.
A casa nº 6 é um exemplo de produção apenas para consumo. Dona Naza
afirma que produz farinha duas vezes por mês, aproximadamente 60 kg a cada vez. O
produto é consumido pela casa nº 6 e pela casa nº 7 (ver tabelas em anexo com o
número de moradores por casa).
No Laranjal, a venda da farinha é uma atividade relevante nas casas nº 4,
nº 5 e nº 6. Na primeira, são vendidas de 7 a 12 sacas por ano (entre 30 e 50 latas), a um
preço que varia entre R$ 5,00 e R$ 7,00 a lata. A farinha ‘de qualidade’ – mais fina,
passada em peneiras de aço, atinge de R$ 8,00 a R$ 10,00 a lata 39 . Os moradores de
Pedreira, Caxiuanã e Laranjal aprenderam essa nova técnica em uma oficina do MPEG,
mas não a utilizam, aparentemente porque o material utilizado seria caro demais e o
retorno talvez não compensasse.
A cada 1 kg de farinha produzido, são fabricados 0,2 kg de coroeira (o
refugo do processo, que geralmente se dá para as galinhas e patos, mas que também é
consumido pelos ribeirinhos em forma de mingau) e queimados 2 kg de lenha. A farinha
é cara sob este ponto de vista. Entretanto, a lenha gasta com a farinha é pouca, em
comparação à consumida nas casas (ver gráficos em anexo).
Mandioca 4,0 kg
Farinha 1,0 kg
Lenha 2,3 kg
39
Dados de setembro de 2001.
Coroeira 0,2 kg
98
O artesanato, como já se disse, foi impulsionado com a chegada dos kits
de energia fotovoltaica. Não se contabilizaram os fluxos relativos à confecção de
objetos de arumã, pois se entende que o peso desta matéria-prima seria quase
insignificante, o que dificultaria o cálculo das partes utilizadas e não utilizadas. Para se
ter uma idéia do quão complicado seria estimar estes fluxos basta dizer que uma peneira
pequenina, de 17cm x 17cm, leva 96 talas de arumã de aproximadamente 2 palmos e
meio, sendo que de um pedaço de arumã de dois palmos e meio tira-se de 8 a 12 talas e,
de uma haste de arumaí, que é a espécie mais comprida, obtém-se 3 pedaços de dois
palmos e meio de comprimento.
O artesanato é uma atividade mais desenvolvida por mulheres, crianças e
adolescentes, mas sua participação na composição da renda local varia pois, como o
MPEG é o principal comprador, as encomendas dependem, em última instância, das
políticas que o MPEG adota. Recentemente, por exemplo, a loja do parque zoobotânico
foi fechada.
4 - Considerações finais e conclusão
4.1 – Considerações finais
Nos últimos dois meses vêm ocorrendo mudanças de ordem política que
deverão resultar em conseqüências decisivas para as comunidades de dentro e do
entorno da Flona Caxiuanã. De acordo com a atual superintendente do Ibama em
Belém, Selma Bara Melgaço, existe dinheiro do PNUD para que finalmente seja
elaborado o Plano de Manejo da Flona. Em novembro último, o homem que ocupou
durante 30 anos o cargo de gerente da Floresta Nacional de Caxiuanã foi exonerado
pois, segundo Melgaço, responsável por sua exoneração, seria impossível levar adiante
qualquer tentativa de planificação de uso de recursos com esta pessoa à frente da
Unidade de Conservação.
O responsável pelo escritório do Ibama em Breves também foi
exonerado, pelos mesmos motivos. Para o lugar de ambos, foram designadas duas
99
jovens engenheiras florestais, formadas pela FCAP (Faculdade de Ciências Agrárias do
Pará).
Na ECFPn também houve mudanças. A coordenação foi assumida por
um engenheiro florestal, professor da FCAP e pesquisador do Museu. Ele esteve em
Brasília, na primeira semana de novembro, juntamente com a nova gerente da Flona,
tratando dos preparativos para a elaboração do Plano de Manejo. As previsões são de
que os primeiros levantamentos comecem já no início do ano que vem. O MPEG deverá
capitanear esta iniciativa, aglutinando instituições e entidades que possam colaborar
com pessoal capacitado, metodologias de campo, etc.
A exemplo do que ocorreu com a Flona Tapajós, deverão ser
estabelecidas zonas para a exploração de recursos, tanto por parte das populações
tradicionais (as chamadas zonas populacionais) quanto por parte das empresas que,
porventura, venham a explorar os recursos da Flona Caxiuanã. Segundo Selma
Melgaço, a intenção é fazer com que a população local participe da elaboração do Plano
de Manejo. Pela lei do SNUC, as Flonas dispõem de Conselhos Consultivos presididos
pelo Ibama, dos quais fazem parte representantes de órgãos públicos, de organizações
da sociedade civil e, quando é o caso, das populações tradicionais residentes.
4.2 - Conclusão
Em primeiro lugar, pode-se afirmar que as comunidades são
independentes do meio ambiente de outros locais – ou seja, são auto-suficientes.
Importam apenas 302,69 kg/cap/ano e exportam 4.149,87 kg/cap/ano, mais da metade
daquilo que retiram do ambiente (54,44% das extrações domésticas). As exportações
representam 71,58% do total de matéria ejetada dos sistemas formados pelas
comunidades. Dos 3.623,33 kg/cap/ano efetivamente consumidos pelas comunidades,
92% corresponde a matéria de origem doméstica (3.320,64 kg/cap/ano). Este percentual
praticamente coincide com o do Brasil onde, segundo Machado (1999), a participação
de materiais de origem doméstica na totalidade da demanda industrial é de 92,3%.
Em segundo lugar, atentando-se para o metabolismo destas localidades,
pode-se dizer que as comunidades apresentam grande eficiência energético-material. De
um input total de 8.704,20 kg/cap/ano, exportam 4.149,87 kg/cap/ano, utilizam 3.320,64
kg/cap/ano de matéria doméstica e inutilizam apenas 930,99 kg/cap/ano. Conclui-se que
o ‘desperdício’ (neste caso, seria mais correto falar em fluxos ignorados, pois a matéria
100
orgânica que fica no solo não é desperdiçada, voltando para a terra e realimentando o
sistema natural) de matéria nestes sistemas sócio-econômicos é bem menor do que a
média nacional, computada por Machado (1999) em 56,9% da TMI. Ou seja: do total de
matéria injetada na economia brasileira, mais da metade é gasta em desperdícios
ignorados, perdas que não são computadas pelas ferramentas utilizadas para ‘medir
riqueza’ e produtividade. Em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal os fluxos ignorados
representam apenas 11% da TMI40 .
Em terceiro lugar, levando-se em conta que os padrões de consumo de
importados são praticamente os mesmos nas três localidades, pode-se inferir, pelos
valores absolutos de matéria consumida pelas três separadamente, que o consumo de
matéria está conectado à variedade de produtos à disposição. A Pedreira foi a que
registrou maior consumo absoluto (674 toneladas/ano), seguida do Laranjal (661
toneladas/ano) e de Caxiuanã (551 toneladas/ano).
Uma análise comparativa entre Caxiuanã e as comunidades de fora da
Flona logo mostra que, apesar de inputs diferentes, as três dividem o mesmo padrão de
matéria diretamente consumida (DMC): 3.451,47 kg/cap/ano em Caxiuanã, 3.091,01
kg/cap/ano no Laranjal e 3.913 kg/cap/ano na Pedreira. O retorno relativo à exportação
de pedras e madeira não altera o padrão de consumo de outros recursos (domésticos ou
não) – ou, se isso acontece, a diferença talvez seja mínima.
Seria particularmente interessante atentar para os dados referentes ao
Laranjal, que apresentou os maiores índices per capita de extração doméstica e de
matéria total injetada: respectivamente 11.703,48 kg/cap/ano e 12.485,74 kg/cap/ano.
Pelo balanço final, nota-se que a comunidade responde pela menor taxa de matéria
diretamente consumida. Isso desmonta alguns argumentos que insistem em confundir
sustentabilidade com subsistência. Pelos dados apresentados, é possível afirmar que as
comunidades são sustentáveis, mas, como se vê pela seu metabolismo, não extraem
matéria doméstica única e exclusivamente para subsistir.
Note-se também que a produção de fluxos ignorados, no Laranjal, é a
menor das três: 782,86 kg/cap/ano, enquanto a de Caxiuanã – comunidade com a menor
taxa de extração doméstica – é de 1.331,72 kg/cap/ano. O que quer dizer que, nos casos
40
Vale lembrar que os fluxos ignorados de origem não-doméstica não foram calculados, o que, entendese, não alteraria significativamente os resultados aqui apresentados, uma vez que o montante das
importações é bastante pequeno se comparado ao montante das extrações domésticas.
101
estudados, a importância referente aos fluxos ignorados não é diretamente proporcional
ao montante de matéria doméstica que dá entrada nos sistemas.
Comparando-se os dados locais obtidos em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal
com os dados de Machado (1999) para o Brasil, pode-se dizer que um morador de
dentro ou do entorno da Flona pesa, para o ambiente, menos da metade do que pesa, em
média, um brasileiro. É de 2,4 vezes a diferença entre o total de matéria injetada no
Brasil (21,6 ton/cap/ano) e nas comunidades (8,8 ton/cap/ano). A extração doméstica de
matéria foi calculada pelo autor para o país em 14,6 ton/cap ao ano, enquanto a das
comunidades é de 7,4 ton/cap/ano. A matéria diretamente injetada (DMI) no sistema
sócio-econômico brasileiro é de 15,2 ton/cap/ano, enquanto a da área da Flona é 7,7
ton/cap/ano.
Assim, o consumo doméstico de matéria no Brasil, de 13,9 ton/cap/ano, é
quatro vezes maior que o calculado para as comunidades da floresta (3,6 ton/cap/ano).
Cabe
esclarecer,
por
fim,
que
auto-suficiência
não
implica
automaticamente em sustentabilidade. O maior exemplo é o próprio Brasil onde, como
já se disse, 92,3% da matéria consumida é oriunda da extração doméstica, mas onde
ainda se desperdiça mais da metade do que entra no sistema. Por isso, considera-se que
nos locais estudados a sustentabilidade se afigure como um estado que não depende
somente da ação no tempo e no espaço daquelas pessoas que ali residem, mas sim de
um conjunto de variáveis. Para ilustrar esta assertiva, tome-se o exemplo da extração de
pedras. Pelos dados aqui expostos, percebe-se que a atividade responsável pela maior
extração material doméstica é também, grosso modo, a única diligência realmente capaz
de gerar entropia 41 nos locais estudados (pois não se pode chamar de degradação
energética o depósito de ouriços de castanha no solo, já que isto se configura, pelo
contrário, uma medida de renovação energética).
Ao afirmar que Pedreira, Caxiuanã e Laranjal são sustentáveis, não se
deve concluir que esta condição advenha primordialmente do fato de que sejam autosuficientes, mas sim também do tipo de conexão que elas mantêm com o mercado,
estabelecida sobre velocidades próprias, locais, de processos produtivos – e nem por
41
A contabilidade dos fluxos ignorados das pedras não levou em consideração a cobertura vegetal da área
explorada, dada a impossibilidade de cálculo das diferentes densidades das madeiras ali encontradas. Para
um índice confiável, seria necessário primeiro um inventário das espécies encontradas sobre a mina,
seguido de cálculos individuais por espécie. Considerou-se, assim, como ‘hidden flows’ da extração de
pedras, apenas a capa de biomassa existente sobre a mina, de cerca de 20 cm.
102
isso tênues ou incertas, como demonstram os dados locais 42 . Não se persegue nem se
exige aumento de produtividade, o que implicaria, ato contínuo, em aumento de
entropia. Esta velocidade local - autêntica - é a chave da eficiência que permite às
populações tradicionais o equilíbrio entre as demandas do mercado e da conservação
dos recursos. A relação entre o que as famílias exportam e o que importam – da ordem
de 14 para 1 – não deixa entrever apenas o quanto os sistemas são auto-suficientes, mas
também o quanto outros sistemas dependem de seus recursos. Por isso é que se deduz
que a sustentabilidade, nos casos de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal, é um estado que
depende da capacidade que as comunidades têm de impor sua velocidade natural no que
concerne à produção e troca de mercadorias, e ao consumo propriamente dito – o que
depende hoje, cada vez mais, de sua articulação com os outros atores presentes na Flona
e ao redor dela. Como a demanda é uma realidade ‘líquida e certa’, independentemente
da produtividade, se por algum motivo (avanço tecnológico, instalação de outras
comunidades no local que também explorem pedras, etc.) esta velocidade é modificada,
então o arranjo que garante a sustentabilidade destas famílias automaticamente se
reconfigura. É bem possível que continuem a ser auto-suficientes, mas, talvez, a
sustentabilidade seja ameaçada.
A nova realidade geopolítica que se apresenta com a mudança da
gerência da Flona - a perspectiva de um Plano de Manejo e da conseqüente presença de
outros atores cujos interesses estarão voltados para a exploração dos recursos locais apontam os caminhos prioritários para a manutenção da sustentabilidade e da autosuficiência das comunidades locais. Em primeiro lugar, é mister garantir a estas pessoas
a regularização de suas posses. Isso porque, para os moradores de Pedreira, Caxiuanã e
Laranjal, sustentabilidade é usar os recursos da floresta para o sustento de suas famílias
e para a satisfação de suas necessidades. A eles se deve garantir acesso a uma área tal
que lhes permita a prática do extrativismo de matéria biótica e abiótica e o uso do solo
para a confecção de roças, tendo em vista a taxa de reprodução dos núcleos familiares.
Até porque, qualquer plano de manejo comunitário de recursos naturais só pode ser
apresentado ao Ibama para aprovação se o local a ser manejado estiver devidamente
regularizado. Há hoje na Amazônia muitos exemplos de comunidades tradicionais que
42
A diferença entre o DMI e o DMC representa a medida da ligação de um sistema com o mercado. Em
Laranjal e Pedreira, esta diferença é da ordem de 8ton/cap/ano e 6 ton/cap/ano respectivamente (maior do
que o próprio consumo doméstico de matéria de ambas). O que desmistifica a idéia de que uma das
causas da ‘estagnação’ das comunidades agro-extrativistas da Amazônia seria sua conexão tênue com o
mercado.
103
vêm requerendo a regularização de suas terras perante o governo de maneira coletiva43 .
A concessão de direito real de uso da terra parece ser, juridicamente, uma solução
bastante plausível no caso das comunidades da Flona Caxiuanã, a exemplo do que
aconteceu na Flona Tapajós. Esta necessidade de um vínculo formal com o território
ocupado se mostra ainda mais premente quando se tem na memória que a falta de
documentação da terra tem sido o motivo da desestruturação social, cultural, econômica
e política das localidades.
Entende-se que cabe ao Estado cuidar para garantir que a velocidade dos
processos produtivos locais não seja atropelada pela integração à modernidade a
qualquer preço. A sobrevivência de tais comunidades na Amazônia é a maior prova de
que um mundo em que coexistam sistemas desenvolvendo-se em diferentes velocidades
é possível e saudável para a humanidade. O Estado deve zelar por estas diferenças pois,
em uma perspectiva de desenvolvimento que tenha por condição o ‘bem estar coletivo’,
elas serão indicadores da saúde dos sistemas sócio-econômicos.
43
Em uma área do mu nicípio de Gurupá que faz fronteira, ao norte, com a Flona, dez comunidades
remanescentes de quilombos conseguiram a titulação coletiva de cerca de 84 mil hectares no ano passado.
No mesmo município, a vila de Camutá do Pucuruí, de 107 habitantes, conquistou o direito real de uso de
cerca de 17 mil hectares, por trinta anos renováveis (ver também FASE Gurupá, 2001: Documentar a
Terra – Uma luta Constante). Conceitos como o de ‘posse agroecológica’ vêm aparecendo no cenário
jurídico como possíveis soluções para o problema da regularização fundiária na Amazônia. Segundo
Benatti (1998), na ‘posse agroecológica’ existem três dimensões: a casa, a roça e a mata. Fisicamente, ela
seria “a somatória dos espaços familiares e das áreas de uso comum da terra” (1998:45). O Autor
pressupõe que para ‘ter’ uma posse é preciso interagir com o meio – o que faz dessa forma de posse um
empreendimento sustentável.
104
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Caxiuana
Laranjal
Pedreira
INPUTS
Total Material Requirements
8.704,20
4.202,79
11.900,99
9.900,62
Total Material Input
8.704,20
4.202,79
11.900,99
9.900,62
Direct Material Input
7.773,20
2.871,07
11.118,73
9.114,48
Domestic Extraction
7.470,51
2.586,63
10.830,34
8.779,04
Import
302,69
284,44
288,39
335,44
Domestic Unused Extraction
930,99
1.331,72
782,26
786,14
Indirect Flows assoc. to Imports
n.c
OUTPUTS
Total material output
6.773,59
1.714,66
9.560,54
9.573,44
Total domestic output to nature
2.623,72
1.477,78
948,07
2.844,49
Domestic processed outout to nature
716,23
835,68
449,19
863,83
Emissions and waste
716,23
835,68
449,19
863,83
Dissipative use of products & losses
n.c
Disposal of unused domestic extraction
1.907,49
642,10
498,88
Exports
4.149,87
236,88
8.612,48
6.728,95
401,51
689,63
113,19
146,24
Domestic Material Consumption
3.623,33
2.634,20
2.506,26
2.385,54
Total Material Consumption
4.152,82
3.276,29
3.175,33
3.025,44
Indirect Flows assoc. to Exports
1.980,66
Material Consumption Indicators
15
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Sustentabilidade incógnita - Universidade Federal do Pará