Universidade Federal do Pará Núcleo de Altos Estudos Amazônicos Curso Internacional de Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento - PLADES Sustentabilidade incógnita: Análise de fluxos materiais em três comunidades impactadas pela instituição da Floresta Nacional de Caxiuanã - PA Karina Ninni Ramos Belém-Pará 2001 Universidade Federal do Pará Núcleo de Altos Estudos Amazônicos Curso Internacional de Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento – PLADES Sustentabilidade incógnita: Análise de fluxos materiais em três comunidades impactadas pela instituição da Floresta Nacional de Caxiuanã - PA Karina Ninni Ramos Dissertação apresentada ao curso Internacional de Mestrado em Planejamento Do Desenvolvimento – PLADES, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, como requisito para obtenção do grau de mestre. Orientador: Prof. Dr. Armin Mathis Belém- Pará 2001 Dedico A minha mãe, Ignez, uma grande referência, e a meu pai, Fábio, que pouco conheci. A meu marido Luís, com quem aprendi a dividir - e que deve começar, no próximo semestre, a jornada que termino agora. Agradecimentos Agradeço especialmente, e em primeiro lugar, ao meu marido Luís e meu filho Lucca: o primeiro por ter suportado comigo a carga que a execução deste trabalho acarretou em nossas vidas, e também por ter sido pai e mãe de nosso bebê enquanto eu me ocupava com a finalização da monografia (fora o fato de ter escutado e debatido comigo meus argumentos por noites a fio e de ter sido o responsável pelo raciocínio que resultou na primeira versão formal dos meus enunciados). O segundo por ter impresso em minha vida um certo sentimento de urgência, algo tão intenso e forte que só uma criança mesmo poderia trazer à tona, com suas necessidades e sua demanda por atenção. Eu devo a este sentimento o ‘empurrão’ necessário à finalização deste trabalho. De coração, agradeço também aos ribeirinhos de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal, por terem me recebido com tanto carinho, por terem sido pacientes comigo enquanto eu media suas casas e pesava o que comiam, pelas longas conversas com as quais aprendi mais do que qualquer livro poderia ensinar, pela disponibilidade que sempre demonstraram para responder aos meus inúmeros questionários, e por outras coisas, como os beijus de castanha e as periquitas de açaí que provavelmente eu jamais teria a oportunidade de provar numa cidade grande como Belém. Igualmente desejo demonstrar minha gratidão ao pessoal do Museu Goeldi, especialmente ao Dr. Pedro Lisboa, ex-coordenador da Estação Científica Ferreira Penna, à antropóloga Isolda Maciel da Silveira, que nunca me negou ajuda ou dados (emprestou-me até uma ‘relíquia’: uma edição original de Santos e Visagens, de Eduardo Galvão, hoje já fora de catálogo), à socióloga Graça Ferraz, ao Alcy, ao Gemaque, ao Sarrafi e todo o pessoal da casa de Breves, às cozinheiras da Estação (se não fossem elas e seus sanduíches de queijo e presunto, o trabalho de campo seria bem mais difícil...) e a todos aqueles que trabalham para manter a ECFPn. Agradeço à Selma Gomes (a Selminha) por ter me cedido as bases das cartas geográficas apresentados no trabalho e plotado as coordenadas geográficas nelas, gerando assim os mapas aqui expostos. Ao Paulo Oliveira que, ao me admitir na FASE Gurupá, acabou por me ajudar na obtenção de dados adicionais (e que nunca me negou um dia ‘de folga’ no escritório quando eu precisei fazer um esforço extra para entregar a monografia no prazo). Ao Girolamo Treccani, que mesmo ocupadíssimo se dispôs a me ajudar com a interpretação de algumas leis e decretos. À Lila Bemerguy, que me ajudou a fotografar as casas e os locais de trabalho e me fez companhia durante uma viagem de campo na qual eu estava grávida de seis meses. À Dra. Selma Melgaço e à Dra. Portal, do Ibama, pela disponibilidade e pelas informações que me forneceram. Não poderia me esquecer dos colegas de turma, pelos papos e pela companhia, especialmente o Fernando – por algumas ‘sacadas’ preciosas – e a Laura, por ter se disposto a estudar economia comigo. E também, naturalmente, o meu orientador, Prof. Dr. Armin Mathis - pela metodologia, os toques, a paciência e a amizade. Um obrigada especial à Luzia Jucá, do Projeto Amazônia 21, e ao Raimundo Pinto, da Gazeta Mercantil Pará que, ao garantir a publicação de minhas três matérias sobre a ECFPn, em 1998, possibilitou minha primeira viagem à Caxiuanã e, conseqüentemente, a elaboração de meu Projeto de Pesquisa de Mestrado. Por fim, agradeço a toda a minha família, principalmente minha mãe, minha irmã e minha avó Lourdes, pela força que sempre me deram nos estudos e na vida, minha tia Beth, pela tradução de última hora que lhe pedi e também minha sogra, que veio ajudar a cuidar do Lucca quando eu tive de fazer minha última viagem de campo, em setembro último. Sem esquecer a Andréia, a babá do Lucca, sem a qual, definitivamente, esta monografia não teria saído. O trabalho contou com apoio financeiro da Comunidade Européia através do Projeto Amazonia 21. Operational Features for Managing Sustainable Development in Amazonia. “Será um mundo no qual os que desejarem ter pressa poderão fazê-lo livremente e no qual os que não são apressados serão fortalecidos, de modo a poder pensar na reconstrução da paz mundial e na luta por uma convivência digna e humana dentro de cada país” (Milton Santos, Folha de S. Paulo, caderno Mais, março de 2001). SUMÁRIO Introdução ..................................................................................................................... 14 1 – Origem e preceitos das Políticas Públicas adotadas na Flona Caxiuanã entre 1961 e 2001..................................................................................................................... 19 1.1 – A idéia de preservação de recursos ‘intocados’................................................. 19 1.2 - Sustentabilidade para quem? .............................................................................. 23 1.3 - Desenvolvimento sustentável: um conceito em permanente questionamento ... 27 1.4 - Por um ritmo local de desenvolvimento ............................................................. 31 2 – História da Flona Caxiuanã e de seus habitantes ................................................ 33 2 .1 – A criação da Floresta Nacional de Caxiuanã .................................................... 33 2.2 – As agências ambientais do governo federal....................................................... 35 2.3 - O homem e seu modo de vida dentro da Flona Caxiuanã .................................. 43 2.4 - O Museu Paraense Emílio Goeldi ...................................................................... 49 2.5 – Pedreira, Caxiuanã e Laranjal............................................................................ 55 2.5.1) CAXIUANÃ................................................................................................. 56 2.5.2) PEDREIRA .................................................................................................. 59 2.5.3) LARANJAL ................................................................................................. 63 2.6 - As instituições e seus papéis .............................................................................. 66 3 – O MFA: conceitos e procedimentos relacionados à análise de fluxos materiais69 3.1 – Conceituação de sistemas abertos, metabolismo e colonização ........................ 69 3.2 - O MFA (Material Flow Account) ...................................................................... 71 3.2.1 - O MFA em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal.................................................. 76 3.2.1.1 - Extração de recursos domésticos.......................................................... 77 3.2.1.2 - Uso de recursos domésticos ................................................................. 86 3.2.1.4 - Indicadores de input e de consumo ...................................................... 88 3.2.1.5 - Composição das exportações por comunidade e indicadores de output ............................................................................................................................ 89 3.2.1.7 - Produtos manufaturados: farinha e artesanato...................................... 96 4 - Considerações finais e conclusão............................................................................ 98 4.1 – Considerações finais .......................................................................................... 98 4.2 - Conclusão ........................................................................................................... 99 Referências Bibliográficas.......................................................................................... 104 Lista de Gráficos e Tabelas Figura 1: Renda Caxiuanã (ano 1999) ............................................................................ 59 Figura 2: Tamanho médio das casas ............................................................................... 60 Figura 3: Médias de Renda e Gastos Mensais por Unidade Familiar............................. 61 Figura 4: Média de espaço disponível per capita por casa ............................................. 64 Figura 5: Extração Doméstica - Matéria Bruta Abiótica – Pedra [kg per cap per ano]. 78 Figura 6: Renda anual oriunda da extração mineral - [R$/cap/ano]............................... 79 Figura 7: Extração doméstica de biomassa [média anual per cap]................................. 80 Figura 8: Extração doméstica de biomassa - Peixe [kg/cap/ano] .................................. 81 Figura 9: Extração doméstica de biomassa - Caça [kg/cap/ano] .................................... 81 Figura 10 : Extração Doméstica de Biomassa - Extrativismo ....................................... 82 Figura 11: Composição das Exportações Caxiuanã - Peso............................................. 83 Figura 12: Extração Doméstica de Biomassa - Madeira ................................................ 85 Figura 13: Consumo individual de alimentos importados [kg/cap/ano]......................... 87 Figura 14: Composição da Matéria Total Injetada ......................................................... 88 Figura 15: Composição das Exportações - Peso............................................................. 90 Figura 16: Composição das Exportações - Peso - Laranjal............................................ 91 Figura 17: Composição das Exportações - Valor - Laranjal........................................... 92 Figura 18: Composição Exportações - Peso - Pedreira .................................................. 93 Figura 19: Composição Exportações - Valor - Pedreira ................................................. 93 Figura 20: Composição Exportação - Valor ................................................................... 94 Gráficos e Tabelas anexos Tabela 1 – Frutos consumidos pelos habitantes das três comunidades Gráfico anexo 1 – Usos da Madeira Pedreira Gráfico anexo 2 – Usos da Madeira Caxiuanã Gráfico anexo 3 – Usos da Madeira Laranjal Gráfico anexo 4 – Composição da Extração de Frutos Caxiuanã Gráfico anexo 5 – Composição da Extração de Frutos Pedreira Gráfico anexo 6 – Composição da Extração de Frutos Laranjal Lista de Figuras, Mapas e Croquis Mapa 01 – Localização dos Municípios de Breves, Melgaço e Portel no Estado do Pará Mapa 02 – Vista da baía de Caxiuanã e afluentes, com a localização da ECFPn e das comunidades de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal Mapa 03 – Flona Caxiuanã Lista de Siglas IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis DMC - Domestic Material Consumption DMI - Direct Material Input DPO - Domestic Processed Output to Nature ECFPn - Estação Científica Ferreira Penna EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária FCAP - Faculdade de Ciências Agrárias do Pará FLONA - Floresta Nacional FUNDEF - Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Ensino Fundamental IBDF - Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal IIED - International Institute for Environment and Development INCRA - Instituto Brasileiro da Colonização e Reforma Agrária IQV - Índice de Qualidade de Vida IUCN - International Union for the Conservation of Nature MEC - Ministério da Educação e Cultura MFA - Material Flow Account MMA - Ministério do Meio Ambiente MPEG - Museu Paraense Emílio Goeldi NPP - Net primary -production NUC - Núcleo de Unidades de Conservação ODA - Overseas Development Administration OIF - Oxford Institute of Forestry ONU - Organização das Nações Unidas RESEX - Reserva Extrativista SECTAM - Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente. SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação SUDAM - Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia TDO - Total Domestic Output to Nature TMC - Total Material Consumption TMI - Total Material Input TMO - Total Material Output TMR - Total Material Requirements UC - Unidade de Conservação UFPA - Universidade Federal do Pará WBCSD WCED - World Bussines Council for Sustainable Development - World Commission on Environment and Development Resumo: Muitas Unidades de Conservação no Brasil foram criadas sem que se tomasse conhecimento das populações que habitavam os espaços que passaram a ser áreas protegidas. Ou, por outra, tomou-se conhecimento delas superficialmente, apenas o suficiente para se supor que fossem ‘prejudiciais’ ao meio, o que abriu caminho para expulsá- las dos lugares que habitavam e conheciam. A história da criação da Flona Caxiuanã não é muito diferente da história da criação de outras Flonas, como a do Tapajós, por exemplo. Depois que o governo (na época, o IBDF) expulsou a maior parte dos moradores, os que ficaram foram se adaptando às novas condições impostas pelo órgão ambiental federal (hoje Ibama). Há cerca de dez anos, o Museu Paraense Emílio Goeldi instalou no local uma base de pesquisas – a Estação Científica Ferreira Penna (ECFPn) – e vem preenchendo certos espaços que outros setores do Estado deveriam estar cumprindo: dando escola para as crianças, providenciando cursos com as parteiras, levando médicos para avaliar o estado de saúde das populações – mormente de três comunidades: Pedreira, Caxiuanã e Laranjal. Utilizando-se de uma metodologia conhecida como MFA (Material Flow Account), esta pesquisa contabilizou os fluxos materiais das três comunidades e a partir destes dados obteve uma média de consumo de matéria per capita ao ano. Na comparação com os dados de esfera nacional, estimou-se que a média de consumo de matéria de um brasileiro é o dobro da média de um morador da Flona Caxiuanã e arredores. Ao retirar as populações tradicionais de seus locais de origem, o Estado contribuiu para fragilizar as fronteiras da Flona com as adjacências, em nome de um ‘perigo’ que elas não representam. Os indicadores de sustentabilidade que esta metodologia reconhece indicam que Caxiuanã, Pedreira e Laranjal geram entropia quase zero e são, além de auto-suficientes, também sustentáveis. Palavras chave: populações locais, sustentabilidade, Unidades de Conservação. Abstract Several Preservation Units in Brazil were established without considering the population that inhabits the new protected areas. In another words, the knowledge of these population was superficial, just enough to presume that they were ´prejudicial´ to the environment, what opened the way to expulse them from the places they live in and knew well. The history about the creation of the Caxiuanã National Forest is not too different from other similar ones, such as the Tapajós. After the Government - Brazilian Institute for Forest Development – IBDF at the time – expulsed the majority of the inhabitants, the remainders have started adapting themselves to the new conditions imposed by the federal environmental organ (presently IBAMA). About 10 years ago, the Emilio Goeldi Museum from Para installed a research headquarter – Scientific Station Ferreira Penna (ECFPn) - on the premises and has been performing the roles that other State´s sectors should be accomplishing, e.g., providing school for children, courses on how to deliver a child for midwifes, bringing in physicians to evaluate the health conditions of the population, specially for three of the communities, i.e., Pedreira, Caxiuanã and Laranjal. Making use of a methodology known as the MFA - Material Flow Account - the survey accounted the material flow of the three communities, and from this data has obtained a yearly material consumption mean per capita. Compared to countrywide data, it could be estimated that the mean of material consumption of one Brazilian is double of the mean for an inhabitant of Caxiuanã and surroundings. By retreating the traditional population from its place of origin, the Government contributed to weaken the frontiers of the National Forests and surroundings, in the name of a ´danger´ which is not represented by this native population. The sustainable indicators recognized by such methodology indicate that Caxiuanã, Pedreira and Laranjal generate almost zero entropy and besides being self- sufficient, they are also sustainable. Key words: local population, sustainability, Preservation Units. Introdução Este trabalho é uma tentativa de provar que as populações agroextrativistas do interior da Amazônia são sustentáveis, pois consomem menos matéria que as populações urbanas e manejam seu estoque de recursos naturais de acordo com normas fundadas na convivência com a floresta. Também se pretende demonstrar que as idéias preservacionistas sobre as quais, por muito tempo, se nortearam as políticas públicas ambientais no Brasil, não só contribuíram para a difusão da falsa noção de que a Amazônia seria um vazio desabitado, mas têm sido prepostos da ingerência do Estado na administração das Unidades de Conservação. Este trabalho também pode ser considerado como a materialização de um empreendimento que, à primeira vista, parece bem simples: o de contar uma história – ou, parafraseando o compositor baiano, a história ‘do povo de um lugar’. Em agosto de 1998 estive na Floresta Nacional de Caxiuanã pela primeira vez. Uma matéria veiculada em um jornal local semanas antes, sobre atividades do Museu Paraense Emílio Goeldi com parteiras da região da floresta, havia me chamado a atenção sobre o local. Eu havia chegado de São Paulo para fixar residência em Belém há pouco mais de um ano. Na época, trabalhava como repórter free- lancer para diversos veículos, sendo um deles o suplemento regional do jornal A Gazeta Mercantil. Procurei a coordenação da Estação Científica Ferreira Penna (ECFPn), a base que o Museu mantém desde 1993 dentro da Flona Caxiuanã, e mostrei meu interesse em conhecer o lugar. A Gazeta Pará compraria as matérias, mas não pagaria pela viagem. Fui por minha conta e lá fiquei uma semana. Produzi uma série de reportagens sobre o desempenho do Programa de Desenvolvimento Sustentável Floresta Modelo de Caxiuanã, uma iniciativa de atuação do Museu sobre três comunidades do entorno da estação: Caxiuanã, Pedreira e Laranjal. Somadas, as localidades configuram hoje 31 casas, situadas em diferentes áreas de várzea: Caxiuanã fica às margens do rio Curuá; Pedreira, no extremo norte da baía de Caxiuanã, e Laranjal está à beira de um lago que se forma no final de um igarapé cuja entrada fica também na baía. Voltei decidida a escrever sobre as transformações que vinham sendo operadas nestas sociedades com a instalação da Estação Científica e o advento da utilização da energia solar, uma novidade 15 possibilitada pelo Museu Goeldi (pensava na época em escrever sobre a ‘chegada’ da TV a estes lugares, mas logo vi que os acontecimentos que vinham se operando singularmente apontavam, a um só tempo, para muito aquém e muito além das minhas expectativas). Pode-se dizer que o trabalho aqui apresentado é, então, o resultado de um acaso, no qual a curiosidade - talvez auxiliada pelo destino - conduziu alguém desejoso de contar histórias a um lugar repleto de histórias que pouca gente contara. Histórias do chamado ‘caboclo’ amazônico, um tipo ao mesmo tempo anônimo e mítico. Conforme ia conhecendo as pessoas e presenciando os acontecimentos de cada uma das localidades, meus objetivos foram se modificando e ampliando. Compreendi, por exemplo, que seria impossível discorrer sobre as transformações que se me operavam diante dos olhos sem atentar para a combinação de fatos que, nos últimos 40 anos, vem concorrendo para configurar as comunidades da maneira como atualmente se apresentam. Daí que minha idéia inicial, de tentar auferir as metamorfoses operadas pela ação do MPEG, sobretudo por conta da disponibilização de energia (limpa) para Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, alargou-se e acabei por me propor a realizar uma tarefa um pouco mais abrangente: identificar a trajetória sócio-econômica das três comunidades por intermédio da ação, em momentos não necessariamente coincidentes no tempo, de duas instituições: o órgão ambiental do governo federal que lá está desde 1961 (atualmente representado pelo Ibama) e o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). Concretamente, os objetivos desta pesquisa são quantificar as trocas materiais e energéticas que essas comunidades realizam com o meio exterior e esboçar seu metabolismo, na tentativa de auferir seu grau de sustentabilidade para, então, poder tecer considerações acerca da eficácia e da operacionalidade das políticas públicas que vêm sendo implementadas na unidade de conservação, desde a criação da Flona. Também as transformações operadas sobre seus hábitos, costumes e acontecimentos sociais foram registradas, ainda que de maneira assistemática na maioria das vezes. Já a tarefa de evidenciar o processo metabólico de Caxiuanã, Pedreira e Laranjal foi realizada mediante um levantamento de campo que constou de cinco viagens, no qual se utilizou um arcabouço metodológico conhecido como MFA (Material Flow Accounts). Os dados conseguidos foram complementados por quatro grandes entrevistas, registradas em fitas cassete, com personagens de cada um dos lugares e também com o 16 ex-gerente da floresta (exonerado há cerca de um mês, em novembro de 2001, ele exerceu durante 30 anos o cargo de gerente da Flona Caxiuanã). Isso sem contar as inúmeras e deliciosas conversas com os moradores ou a pouca, mas intensa, convivência com eles. Também entrevistei o ex-coordenador da ECFPn. Inserida no ecossistema das várzeas estuarinas do Amazonas, a Flona Caxiuanã fica a noroeste do estado do Pará, nos municípios de Melgaço e Portel. O universo de pesquisa deste trabalho limita-se a 28 residências, das quais apenas 12 encontram-se dentro da área da Flona. O restante está no entorno da floresta, nos limites daquilo que é considerado, pelo Ibama, como ‘zona de transição’: uma faixa estratégica para a proteção da Unidade de Conservação propriamente dita e onde, segundo a Resolução nº 13 do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente), o órgão pode agir para coibir intervenções antrópicas consideradas ‘nocivas’ ao meio. Estabelecida pelo Código Florestal aprovado em 1934 (decreto nº 23.793), a Floresta Nacional é definida hoje pelo Ibama como: “... área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável de florestas nativas” (ver Lei nº 9985 de 18 de julho de 2000, em anexo). Apesar de instituídas na década de 30, as Flonas só viriam a ser regulamentadas 29 anos depois, pelo Decreto nº 1.298 de outubro de 1994 (ver decreto em anexo). No caso de Caxiuanã, unidade criada pelo Decreto nº 239 de 28 de novembro de 1961 (ver decreto de criação da Flona em anexo), esse hiato legislativo perfaz 33 anos. Do ponto de vista administrativo, as Flonas são consideradas pelo Ibama como Unidades de Conservação de uso direto: onde a exploração e o aproveitamento econômico dos recursos são permitidos, ‘mas de forma planejada e regulamentada’, sendo hoje identificadas como Unidades de Uso sustentável ao lado das Áreas de Proteção Ambiental (APAs); das Áreas de Relevante Interesse Ecológico (ARIEs); das Reservas de Fauna; das Reservas de Desenvolvimento Sustentável; das Reservas Particulares do Patrimônio Natural e das Reservas Extrativistas (Resex). É curioso observar que as Flonas e as Resex estejam alinhadas na mesma categoria gerencial pelo Ibama. Pois, ao passo que as últimas existem por obra e graça dos recentes movimentos organizados das populações que vivem do extrativismo, as Flonas foram – e têm sido - instituídas à revelia das famílias que ocupam, muitas vezes 17 historicamente e por várias gerações, os espaços transformados em Unidades de Conservação. Enquanto as Resex são concebidas como espaços “de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas”, as Flonas são consideradas “áreas de posse e domínio público” (ver Lei nº 9.985 de 18 de julho de 2000, em anexo). No decreto que instituiu Caxiuanã, a única menção aos moradores locais aparece no artigo nº 5 que cunha a expressão ‘eventuais proprietários de áreas e benfeitorias’ para designar as mais de 350 famílias que habitavam o lo cal na época da criação da Flona - 80% das quais saíram da floresta sem receber indenização ou desapropriação, de acordo com o ex-gerente da Flona porque, além de não possuírem documentos das terras, também não tinham documentos pessoais com os quais pudessem comprovar identidade. Em outro documento do Ibama, um laudo intitulado Unidades de Conservação do Estado do Pará que data de maio de 1994 (ver relatório em anexo) - e que provavelmente foi produzido para embasar a redação do decreto nº 1.298 de outubro de 1994 - encontram-se referências à Flona Caxiuanã. Das cinco páginas dedicadas a esta Unidade de Conservação, oito linhas apenas se referem à população local, sob o intertítulo de 'Aspectos sócio-econômicos da Flona'. No segundo parágrafo se pode ler: “Não se verificam comunidades organizadas, estando a população dispersa em toda a área”. Percebe-se por esta única linha, claramente, o processo de depreciação das comunidades chamadas tradicionais em áreas nas quais são criadas Unidades de Conservação. O mesmo Estado que desarticulou a população local, expulsando-a por meio de coerção e opressão incumbe-se de atestar, mais de trinta anos depois, que não existe 'organização' entre as famílias remanescentes - como se esse modus vivendi desarticulado fosse 'natural', e não forjado pelas políticas públicas implementadas décadas antes - ou, por outra, como se isso tivesse sido apagado da memória oficial, o que, de fato, realmente aconteceu. Estas e outras questões são capítulos da história daqueles que vivem no espaço conhecido hoje como Flona Caxiuanã. É de se imaginar que, com o interesse cada vez maior que recai sobre as áreas ricas em madeira e outros recursos – e mediante a intenção do governo federal de arrendar as Florestas Nacionais, como já fez com a Flona Tapajós (ver matérias do jornal Gazeta Mercantil em anexo) – este enredo reserve ainda muitos fatos e surpresas pela frente. De todo modo, o importante seria questionar qual é o papel que estas comunidades vão desempenhar nesta trama num futuro próximo 18 - se, a despeito das restrições que a elas se vêm impondo no tocante ao uso dos recursos naturais, até o presente momento não se discutiu seriamente a possibilidade de que venham a se beneficiar, de alguma maneira, com a abertura da Flona para a exploração da madeira e outros recursos. Defendo a hipótese de que o processo de instituição e ‘gestão’ da Flona Caxiuanã tem se constituído no encolhimento da capacidade produtiva e reprodutiva dos seus moradores, transformados em ‘algozes’ da floresta - posição que parece ser social e politicamente atenuada com a chegada do Museu Goeldi ao local, ainda que este também se guie, como se procurará mostrar, pela premissa de que se deve reeducar e monitorar os habitantes da floresta a fim de que se comportem de maneira ‘sustentável’, ou seja, de que se mantenham de modo a afetar o meio o mínimo possível. Irônico é notar que esta capacidade de manutenção ‘sustentável’, se entendida como conjunto de padrões de comportamento humano em relação ao meio, está muito mais próxima do modo de vida dos ribeirinhos da floresta do que dos hábitos daqueles que, com o poder arbitrário da autoridade ou a pretensão da ciência, vêm se esforçando para enquadrar Pedreira, Caxiuanã e Laranjal no que as políticas públicas ambientais e a comunidade científica mundial vêm consagrando como modelo de ‘sustentabilidade’. Para demonstrar este afirmação utilizei- me, como já mencionei, do MFA, com o propósito de efetuar um balanço energético- material de cada uma das comunidades, e assim comprovar que seus padrões de utilização de recursos naturais e de dissipação de resíduos são muito mais compatíveis com o meio ambiente do que os dos moradores de qualquer cidade brasileira, como Belém, por exemplo. Estive em campo quatro vezes, depois a primeira viagem: julho de 1999, março de 2000, julho de 2000 e setembro de 2001. Utilizei- me de questionários genéricos e direcionados, entrevistas gravadas em fitas cassete e conversas informais. Para pesar as amostras materiais usei uma balança de cozinha, com capacidade para 5 kg – e também a balança eletrônica da ECFPn, utilizada para pesar a comida no refeitório. Para as medidas, empreguei uma trena de fibra de vidro de 30 metros e para estimar o consumo de água e outros recursos usei um recipiente plástico de 1 litro. As casas foram numeradas de acordo com a ordem em que as visitei pela primeira vez. Por fim, cabe esclarecer que este trabalho faz parte das atividades do Projeto Amazônia 21, uma iniciativa financiada pela União Européia e voltada à cooperação entre os países do terceiro mundo e organizações internacionais para 19 fomentar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. Sua função no Projeto está ligada à necessidade de testar a aplicabilidade da contabilidade dos fluxos materiais em escala local nos países pan-amazônicos. Isso faz desta a primeira pesquisa a utilizar-se dos procedimentos metodológicos preconizados pelo MFA em nível local no Brasil. 1 – Origem e preceitos das Políticas Públicas adotadas na Flona Caxiuanã entre 1961 e 2001 1.1 – A idéia de preservação de recursos ‘intocados’ Desde a criação das primeiras unidades de conservação no Brasil1 o objetivo foi sempre o de resguardar áreas ‘virgens’ para a pesquisa científica e o lazer das populações urbanas. Importado dos Estados Unidos, tal modelo de conservação baseia-se na idéia de que “existiriam áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado ‘puro’... Esse mito supõe a incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação da natureza” (Diegues, 1998: 53). No Brasil, o objetivo do estabelecimento das unidades de conservação “tem sido o de manter os recursos naturais em seu estado original, para usufruto das gerações atuais e futuras” (IBAMA - Base, Princípios e Diretrizes da Diretoria de Unidades de Conservação e Vida Silvestre, 1997, p. 1). As UCs, muitas vezes, são instituídas aleatoriamente em locais já povoados, suscitando conflitos e tensão entre órgãos do governo e as populações locais. A incorporação acrítica do modelo norte-americano de preservação por parte do ambientalismo brasileiro é explicada por Viola & Leis (1995) que identificam, na formação do movimento ambientalista nacional, dois atores: associações ambientalistas e agências estatais de meio ambiente. Para estes autores, a emergência das preocupações ambientais no Brasil está diretamente conectada à profundidade e à 1 O Parque Nacional de Itatiaia, no Rio de Janeiro, foi o primeiro a surgir, em 1937. 20 ‘violência’ com que as modificações modernizadoras se deram localmente, sobretudo na década de 70, nos âmbitos político, econômico e social. Entretanto, eles salientam que problemas como o crescimento populacional e o uso racional dos recursos naturais não chegaram a fazer parte da agenda do ambientalismo brasileiro. Importou-se não somente o modus operandi de criar espaços supostamente intocados para preservar, mas também os objetivos do movimento ambientalista norte-americano, sem dar atenção ao que os autores chamam de ‘especificidade da deterioração ambiental brasileira’ no que diz respeito ao déficit de saneamento básico que havia (e ainda há) no país – problema que não tinham as nações desenvolvidas (Viola & Leis, 1995). Embora a idéia de progresso tenha sido redefinida, e limitada, nos vinte anos decorridos entre Estocolmo 72 e Rio 92 - modificação impulsionada, segundo Carvalho (1995), pelo conceito de ecologia que também se transformava - o efeito dessa mudança de paradigma não parece guardar, no âmbito das políticas públicas brasileiras, as mesmas proporções durante o período. A atuação do Ibama - criado em 1989 em lugar do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal) e apontada por Viola & Leis (1995) como uma reforma na ‘definição da problemática ambiental’ brasileira por associar proteção ambiental ao ‘uso conservacionista dos recursos naturais’ - ainda que tenha significado um avanço sob o ponto de vista da cultura ambiental brasileira, tem se limitado, de um lado, pela linha conservadora que importantes setores da instituição mantêm (Diegues, 1998) e de outro pela utilização de parâmetros de eficiência duvidosa na busca da sustentabilidade, como o conceito de biodiversidade, por exemplo. O conceito de biodiversidade tem sido apresentado como ‘elemento integrador na conservação da natureza’. Ao contrário do que acontecia anteriormente, quando se buscava a conservação de amostras representativas de ecossistemas, hoje o enfoque principal das agências estatais de meio ambiente é o da conservação da biodiversidade (Ibama, 1997). Mas, como demonstra McGrath (1997), a despeito da gama de opiniões diversificadas que o conceito de biodiversidade conseguiu agregar ele tem utilidade limitada quando a meta é definir estratégias de desenvolvimento sustentável para o planeta. “No fundo, o conceito de biodiversidade é inadequado como base de uma estratégia de manejo porque é essencialmente orientado para a preservação e não para o manejo” (McGrath, 1997: 54). 21 Nota-se então que as estratégias que vêm norteando as políticas públicas ambientais no Brasil mudaram de conteúdo ao longo dos anos, mas seus objetivos pouco se modificaram. A ‘preservação’ de ‘espaços intocáveis’ ainda é uma das metas principais - hoje não necessariamente daqueles que encerram belezas cênicas excepcionais, mas dos que concentram o maior contingente possível de espécies por hectare em seus limites. E se hoje é evidente para as agências ambientais e fundiárias do governo que muitos destes espaços e/ou seus arredores são habitados, isto não quer dizer que se pense prioritariamente em uma política que inclua essas pessoas. Pelo contrário. Como salienta Benatti (1998), nas UCs criadas até hoje o aspecto natural vem se sobrepondo ao cultural, havendo mesmo casos - como é o de Caxiuanã - em que se destruiu um em favor do outro. A recente lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o SNUC (lei nº 9.985 de 19 de julho de 2000) refere-se a “proteger os recursos naturais necessários à subsistência das populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente” (ver lei em anexo). E embora já existam estudos dando conta de que a presença humana – representada pelas chamadas populações tradicionais 2 – contribui para a variedade de espécies, como no caso da região do Alto Juruá, no Acre (ver Revista Veja, junho de 2001 – em anexo), em alguns setores das agências governa mentais brasileiras subsiste a idéia de que o homem, mesmo em seu modo de reprodução social ‘tradicional’, é prejudicial ao meio. 2 O CNPT (Centro Nacional das Populações Tradicionais), define populações tradicionais como “todas as comunidades que tradicional e culturalmente têm sua subsistência baseada no extrativismo de bens naturais renováveis” (Murrieta e Rueda, 1995: 51, citados em Benatti, 1998: 35). Para Diegues (1998: 8788), são características das culturas e sociedades tradicionais: a) a dependência da natureza para a construção dos modos de vida; b) o conhecimento aprofundado desta, que se reflete em estratégias próprias de manejo dos recursos naturais; c) a noção do espaço ou território onde o grupo se reproduz social e economicamente; d) a sucessão de gerações na ocupação deste território; e) a importância das atividades de subsistência para estes grupos; f) a reduzida acumulação de capital; g) a importância da unidade familiar e das relações de parentesco observadas nestes grupos; h) a importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e às atividades extrativistas; i) as simbologias, mitos e rituais ligados a atividades como caça, pesca e extração; j) a simplicidade das tecnologias utilizadas para a consecução dos meios de vida; k) o fraco poder político local e finalmente l) a auto-identificação de acordo com a noção de pertencimento a uma cultura distinta das outras. 22 Na Amazônia, como bem ressalta Costa (1997), soma-se a esta realidade o fato de que os movimentos ecológicos de caráter abertamente preservacionista acabaram por condenar o campesinato agrícola – considerando-o tão daninho ao meio ambiente quanto as grandes empresas agro- industriais – e elegendo como parceiros apenas os índios e os camponeses extrativistas. Segundo o autor, essa condenação se dá porque os primeiros transformam a natureza em seu processo reprodutivo, ao passo que os outros têm no ecossistema original sua base de produção e reprodução. Para Costa, este processo de transfiguração do camponês agrícola contribui para a manutenção da concentração fundiária na região – sem garantir a preservação dos recursos da floresta além de obstaculizar o fato de que estas estruturas campesinas constituem-se alternativas viáveis de desenvolvimento agrícola para a Amazônia 3 . Diegues (1998) pontua que esta visão - compartilhada por agências governamentais, organismos internacionais e vários movimentos ecológicos - levou à desocupação de muitos espaços naturais no Brasil, onde foram criadas Unidades de Conservação que, claramente, têm como objetivo beneficiar as populações urbanas em detrimento das tradicionais. Destas, pode-se acrescentar, cobra-se hoje, mais do que nunca, a busca da sustentabilidade. Na Amazônia há inúmeros projetos – encabeçados por Ongs e entidades semelhantes, ou por setores da administração pública, ou ainda por alianças entre ambos – que enfocam as populações tradicionais e a ‘necessidade’ de que elas se comportem de maneira ‘sustentável’ (de maneira a afetar o meio o mínimo possível). Em que pese a importância da presença de ongs e entidades como o MPEG em áreas de conservação (Lima Ayres, 1997; Viola & Leis, 1995; Machado, 1998; Diegues, 1998) - que em muitos casos têm servido como mediadores entre as agências governamentais e as comunidades que habitam as UCs, provendo elementos para que estas se organizem politicamente e regularizem suas posses - assinala-se neste trabalho a necessidade de que a dinâmica de exploração e uso de recursos naturais própria de comunidades como as economias agro-extrativistas estudadas seja observada mais minuciosamente, antes que lhes sejam aplicados preceitos ou tarjas de sustentabilidade. 3 “Uma tal condenação, de um lado, contraria possibilidades não desprezíveis dessas estruturas se constituírem em via alternativa de eficiente desenvolvimento agrícola regional ...; de outro, confirma o 23 1.2 - Sustentabilidade para quem? Em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, o consumo de recursos oriundos do meio natural é bastante equilibrado, como se poderá ver adiante pelas baixas taxas de matéria não aproveitada em relação à matéria aproveitada pelos sistemas sócioeconômicos. Praticamente a metade da matéria que as três comunidades retiram do ambiente é destinada à exportação e, entretanto, isto não acarreta a ‘desordem’ 4 destes sistemas sócio-econômicos, como preconiza Altvater (1993). O consumo de importados – produtos que vêm de fora da comunidade - é mínimo, limitado economicamente pela capacidade da pequena produção familiar, que se traduz no mercado principalmente em circulação simples de mercadorias ou em formas ‘mais modernas’ de aviamento. Sobretudo, estas comunidades produzem pouca ou quase nenhuma entropia 5 e estão longe da capacidade de exportar ‘externalidades negativas’ que comprome tam globalmente o ambiente, conforme as palavras de Altvater (1993). Pelo contrário, elas estão na outra ponta, do outro lado da moeda: estão na posição de impactadas, e não de impactantes. Para entender como essas pessoas passaram de um extremo a outro no ideário que sustenta a adoção de políticas públicas ambientais no Brasil é necessário rever a história recente, adotando como balizas as idéias de desenvolvimento, de crescimento econômico e de globalização na acepção que lhes confere o arcabouço teórico do capitalismo. Porque é com base em argumentos desta natureza que se justifica a cobrança de ‘sustentabilidade’ de sociedades como as observadas em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal. Tomando como ponto de referência a Amazônia, Nugent (1993) guarda uma visão bastante crítica sobre a idéia de sustentabilidade. Para ele, o que interessa é aquilo que os argumentos acerca do conceito têm em comum, ou seja, uma preocupação ostensiva com a conservação do ambiente e com sua viabilidade econômica. O autor rumo da reoligarquização em curso e as dinâmicas de concentração da propriedade da terra, sem qualquer garantia preservacionista” (Costa, 1997: 260-261) 4 Para Altvater (1993), a elevação da sintropia em determinadas regiões tem como conseqüência a produção de entropia em outras, o que caracteriza o progresso, a industrialização e a modernização como responsáveis tanto pelo aumento da ordem em determinados locais, quanto pela produção e reprodução da desordem social, política e econômica em outros locais do planeta. Neste sentido, Altvater enfatiza que a produção seria – tanto do lado do insumo quanto do lado do produto – produção de estragos, pois necessariamente o processo de produção gera efeitos externos. 5 Entropia representa “uma estimativa de desordem de um processo de transformação”, configurando-se uma “medida da degradação energética” (Alekseev, 1986 citado em Cavalcanti, 1997). 24 chama a atenção para o fato de que as várias vertentes que utilizam o conceito de sustentabilidade também dividem o interesse em manter os sistemas sociais como são 6 . De um lado, afirma Nugent, o conceito de sustentabilidade supõe que o crescimento econômico pode ser sustentável e os danos ao ambiente, mitigados. De outro, a sustentabilidade seria um eufemismo para subsistência. No meio, interpõe-se a idéia de que haveria possibilidade de se satisfazer os dois extremos: as demandas das pequenas comunidades e as da economia global. Nestes termos, então, talvez fosse propício indagar a respeito da noção de necessidades, preconizada pelo Relatório Brundtland 7 com uma das bases do conceito de desenvolvimento sustentável. Não propriamente sobre seu significado restrito, mas sim sobre sua utilização, por assim dizer, em contexto ‘global’. Supostamente, seria óbvio afirmar que diferentes sociedades, em diferentes lugares, têm diferentes necessidades. Cândido (1978: 23), ao dissecar a incorporação dos agrupamentos rurais do interior de São Paulo à esfera da economia capitalista já assinalou que “as sociedades se caracterizam, antes de mais nada, pela natureza das necessidades de seus grupos, e os recursos de que dispõem para satisfazê- las”. Assim, ao preconizar as necessidades dos mais pobres, o referido relatório atua na esfera do que é passível de generalização: só se poderia mesmo priorizá- las, pois elas saltam aos olhos, estão nas calçadas, nos noticiários – são símbolos da crueza do modelo capitalista. No mais, não se faz questão de evidenciar que necessidades variam. E que os pobres não são iguais em todo o mundo porque o mundo não é igual. Como lembra Cândido (1978), as soluções dependem da quantidade e da qualidade das necessidades a serem satisfeitas, necessidades estas que, por sua vez, possuem um duplo caráter: natural (pois são manifestas por impulsos orgânicos) e social (pois são saciadas por meio de iniciativas humanas, que se vão complicando cada vez mais). A globalização engendra o artifício de evidenciar preferencialmente as carências universais - focando as necessidades emblemáticas vitais ‘do mundo todo’ 6 What the sustainability arguments have in common is an ostensible concern for environmental conservation and economic viability. What they also share, although infrequently addressed, is an interest in maintaining social systems as they exist, albeit in some formulations in a reformed way (e.g. through the establishment of extractive reserves) (Nugent, 1993: 237). 7 Publicado em 1987, este documento da Comissão das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento pontuava que as questões sobre o desenvolvimento econômico das nações teriam de ser debatidas junto com as questões ambientais. Nosso Futuro Comum (Our Common Future) ficou conhecido como Relatório Bruntland porque este era o sobrenome da ministra da Noruega que presidia a Comissão. 25 como prioridade e ofuscando a existência de necessidades locais. Utiliza-se para isso de um arcabouço de conceitos científicos cuja legitimação se dá, muitas ve zes, através da implementação de políticas públicas orientadas por eles. Embora seja óbvio que um habitante da Pedreira, um paulistano, um parisiense ou um japonês qualquer tenham carências essenciais comuns - que só podem ser satisfeitas, em última instância, lançando-se mão de recursos naturais - é também evidente que os governos não agem exclusivamente para suprir as demandas absolutamente vitais dos indivíduos, senão para manter o modelo econômico vigente em ‘funcionamento’, com todos os seus vícios e suas virtudes. Se é verdade que, como salienta Machado (1999: 42), “...as mazelas sociais e impasses ecológicos que se registram na Amazônia são expressões explícitas na natureza do projeto global de capitalismo industrial, como modelo econômico (sic)...” então ao sublinhar as necessidades ‘globais’ e encobrir as locais o que se faz é perpetuar as bases sobre as quais estes ‘impasses e mazelas’ se originaram. Não há nada errado com a idéia de que a busca da sustentabilidade represente, em princípio, a eleição de prioridades. Mas é preciso esclarecer que, se existe realmente o desejo de fazer com que todos sejam favorecidos por esta nova perspectiva de relação com o meio, as prioridades devem ser pensadas em um primeiro momento para o benefício local, e depois em escala global – ou, numa linguagem direta, de baixo para cima, e não ao contrário. Parece inconcebível sustentabilidade global sem sustentabilidade local. Aiking et al (1999) classificaram os vários ‘approaches’ utilizados para a obtenção de indicadores de desenvolvimento sustentável, identificando cinco principais: o da distribuição de riqueza (de natureza econômica); o ‘mosaic systems approach’ (que distingue três diferentes dimensões relevantes para o desenvolvimento sustentável: a econômica, a ambiental e a sócio-cultural); o ‘mosaic principle approach’ (que busca o balanço entre princípios econômicos, ecológicos e de eqüidade); o ‘systematic principles approach’ (que considera que os elementos importantes para o desenvolvimento são derivados das necessidades que os sistemas têm de se reproduzirem) e, finalmente, o ‘approach’ político (que sugere que a definição do que pode ser desenvolvimento sustentável depende de um processo de decisão voluntariamente concordante entre os governos democráticos). Talvez o mais próximo de gerar indicadores realistas sobre a sustentabilidade seja o ‘systematic principles approach’, pois considera os sistemas individualmente, ressaltando que os elementos importantes para seu desenvolvimento 26 dependem de suas necessidades de reprodução. Todos os outros pressupõem uma noção global de sustentabilidade, o que esconde a real situação: a de que continuam a existir sistemas sustentáveis e sistemas não sustentáveis, uns com a ‘missão’ de compensar os outros. A de que a não-sustentabilidade é uma característica intrínseca às sociedades industriais e que, portanto, as aspirações de sustentabilidade devem começar pela adequação destas sociedades aos limites da biota, e não pela ratificação da sustentabilidade dos sustentáveis. Então, perseguir o desenvolvimento deveria significar a tentativa de garantir que todos tivessem qualidade de vida, respeitadas as características e as necessidades regionais e locais. O crescimento de uma estrutura sócio-econômica seria medido então não apenas pelos valores de troca que esta economia é capaz de produzir e trocar no mercado, mas pela sua capacidade de possibilitar ao maior número possível de pessoas a satisfação de suas diversas e variadas necessidades. Evidentemente, isto implica em um esforço mundial, em um compromisso que tenha por meta a redução das desigualdades sociais. Então a busca pelo desenvolvimento deveria se configurar em uma mobilização global para a diminuição das desigualdades – em outras palavras, na globalização do esforço, possibilidade que parece infinitamente mais remota que a de globalização dos recursos naturais disponíveis no planeta, embora seja muito mais necessária. Ainda que o apelo do conceito de sustentabilidade conecte-se diretamente ao fato de o sistema capitalista estar longe de garantir a satisfação das necessidades de todas as pessoas que habitam o planeta, o que se nota é que nem sempre a justiça social está entre os objetivos daqueles que usam a terminologia ‘sustentável’. A idéia também está a serviço dos que desejam tão somente um meio termo entre a acumulação capitalista e a conservação ambiental e tem norteado ações dos mais diversos setores, cada um deles buscando legitimar junto à sociedade aquilo que entende por sustentabilidade. Para que a idéia de sustentabilidade supere a visão corrente de desenvolvimento, colocando os países do primeiro mundo não mais como modelo, mas como problema, como preconizam Fatheuer & Arroyo (1998), seria necessário que os países ‘não desenvolvidos’ elaborassem uma alternativa viável de desenvolvimento que suplantasse a lógica do capitalismo. Para que o modelo atual de desenvolvimento seja apresentado ao mundo como um modelo problemático é preciso provar que existem outras formas de desenvolvimento menos problemáticas. 27 1.3 - Desenvolvimento sustentável: um conceito em permanente questionamento O conceito de desenvolvimento sustentável tem sido apresentado como uma tentativa relativamente bem sucedida no sentido de rever as premissas sobre as quais se concebe o desenvolvimento no sentido capitalista. Como lembra Rodrigues (1998), a sociedade ocidental adotou um modelo de progresso considerado positivo, que virou referência para o mundo. As sociedades indígenas foram dizimadas porque não seguiam os mesmos moldes. A idéia de desenvolvimento, lembra a autora, está neste contexto relacionada à noção de progresso, que por sua vez está atrelada ao crescimento econômico. “A terminologia desenvolvimento significa neste ideário a diversidade do processo do modo industrial de produzir mercadorias, através de parâmetros que têm identificado os países em ‘desenvolvidos’ ou ‘subdesenvolvidos’...”(1998: 33). Mas a evidência de que o desenvolvimento capitalista teria limites, primeiramente apontada pelo Clube de Roma, levou à crítica do crescimento da maneira pela qual vinha sendo concebido, ou seja, como uma grandeza que se “...expandiria automaticamente a todas as esferas da atividade humana, uma vez alcançados os níveis dos patamares industriais dos países avançados” (Carvalho, 1995: 66). À parte as análises catastrofistas que dão o tom do relatório Os Limites do Crescimento - elaborado pelo Clube de Roma com ênfase no crescimento populacional e na retração das reservas de recursos naturais - tornou-se claro que o desenvolvimento, no sentido capitalista, não poderia se estender a todas as nações do mundo porque os estoques de matéria e energia disponíveis na biota não seriam suficientes para tanto. Sobretudo os estoques de combustíveis fósseis, responsáveis, como salienta Altvater (1993), pelo impulso necessário ao aumento de produtividade 8 do trabalho que possibilitou ao fordismo o alcance de altas taxas de produção e consumo e que, segundo o autor, inclui uma alteração radical nas relações do homem com a natureza. Entretanto, apesar de configurar-se a única alternativa considerada paralelamente à idéia de desenvolvimento cunhada pelo regime capitalista, longe de ser 8 Altvater (1993) salienta que, enquanto a produção de mais valia absoluta redunda no encurtamento do tempo de vida da força de trabalho humana, a produção de mais valia relativa tem como resultado, sobretudo, uma exploração mais intensa dos recursos naturais. Isso porque o aumento de produtividade - base do crescimento econômico no modelo de produção e consumo de massa - tem como preço, de acordo com o autor, a pilhagem do que ele chama de ‘ilhas de sintropia’ e o conseqüente aumento da entropia nos países ‘pilhados’. As ‘ilhas de sintropia’ são, nas palavras de Altvater, depósitos de materiais de fácil acesso na crosta terrestre, como minas de ferro, jazidas de bauxita e filões de ouro, formados no decurso da história do planeta. O conceito de sintropia é oposto ao de entropia. 28 consenso, o conceito de desenvolvimento sustentável tornou-se o mote de embates que incluem uma gama de argumentos. Um deles é que, sendo muito amplo, pode ser interpretado sempre dependendo de interesses específicos, estando facilmente sujeito à banalização. Outro sugere que encerra tanta ambigüidade que seu significado é ilusório (Rodrigues, 1998), já que a sustentabilidade (manutenção do equilíbrio de modo a garantir a continuidade das formas de vida) seria um paradoxo levando-se em conta a maneira pela qual se construiu o ideário do desenvolvimento, atrelado à máxima do crescimento econômico. Para Viola & Leis (1995: 78), o reconhecimento que o conceito de desenvolvimento sustentável ganhou com a divulgação do Relatório Brundtland teve como preço um caráter polissêmico, pois “o amplo espectro de suas significações tende a fortalecê- lo politicamente muitas vezes à custa de seus conteúdos científicos”. Talvez estas ‘propriedades’ sejam conseqüências da gênese e da trajetória do termo, como a descreve Mebratu (1998). Ele concebe a evolução do conceito de desenvolvimento sustentável em ‘três etapas’: antes de 1972 (Conference on Human Environment, em Estocolmo); de 1972 a 1987, cujo marco é a publicação do Relatório Brundtland (Our Common Future) pela World Commission on Environment and Development (WCED); e de 1987 a 1997, período pontuado pela ocorrência da Rio-92 (United Nations Conference on Environment and Development). Na fase préEstocolmo, o autor identifica a gestação do termo com base em fatores de três ordens: as tradições e crenças religiosas; a ciência econômica e a ‘teoria dos limites’, de Thomas Malthus; e a política econômica, com ênfase no conceito de ‘escala de organização’, de Ernest F. Schumacher. Mebratu afirma que a religião teve atuação ambivalente na construção da relação entre homem e natureza, agindo tanto no sentido de reforçar a visão de que o homem deve dominar a natureza quanto no sentido de propagar a idéia de que ele á parte integrante dela 9 . Segundo Mebratu (1998), também as tradições de povos indígenas e outros dão sua contribuição ao conceito, pois exaltam a importância de se viver em harmonia com a natureza. A noção de que o crescimento teria limites por conta da escassez de recursos - atribuída a Thomas Robert Malthus e à sua teoria de que o aumento da população se dá em escala geométrica, enquanto que os recursos crescem, quando 9 O Autor credita esta análise a R.S. Gottleib (1996). 29 muito, em escala aritmética – é apontada pelo autor como precursora do conceito de desenvolvimento sustentável. Malthus dizia que o suprimento de alimentação estaria atrelado à quantidade de terra disponível para a agricultura e que, sendo esta quantidade fixa, e desgastando-se ao longo do tempo, o aumento da população teria como conseqüência a diminuição do suprimento de comida per capita. Outra componente da gênese do conceito de desenvolvimento sustentável é, nas palavras de Mebratu (1998), a ‘tradição subterrânea’ de economias orgânicas e descentralizadas, que se pode chamar de anarquismo. Essa tradição abrange desde estilos de vida de tribos, comunidades e pequenos vilarejos até as antigas culturas neolíticas. O autor toma como ponto de referência científica a publicação do livro Small is Beautiful (1979), por Ernest F. Schumacher. Idéias contidas neste volume, como a de ‘appropriate technology’ (definida como a tecnologia que leva em conta a técnica, os níveis de população e a disponibilidade de recursos naturais), e a de pressing social needs (em última instância, as pessoas) são, para Mebratu, as precursoras imediatas do conceito de desenvolvimento sustentável. Diegues (1998) atribui ao engenheiro florestal Gifford Pinchot o clamor pelo uso racional dos recursos naturais e pela defesa de sua conservação. Pinchot argüia que os recursos deveriam ser usados para o bem da maioria dos cidadãos e que a conservação tinha como um de seus princípios a prevenção dos desperdícios. Suas idéias tiveram grande importância para a formulação de conceitos como o de ecodesenvolvimento que, de acordo com Sachs (1986: 112 - 115), oferece ao planejador “um critério de racionalidade social diferente da lógica mercantil” e postula uma visão solidária que abrangeria toda a humanidade. Ainda que não tenha o apelo do conceito de desenvolvimento sustentável, que surgiu logo depois, o uso do termo ecodesenvolvimento acabou por evidenciar que as idéias de desenvolvimento e meio ambiente tinham de ser consideradas concomitantemente. Em 1987, a Comissão Brundtland incorpora um documento denominado World Conservation Strategy, elaborado pela International Union for the Conservation of Nature (IUCN) em 1980, para cunhar as idéias chaves da noção de desenvolvimento sustentável: o conceito de necessidades (com prioridade expressa para as necessidades dos pobres) e as limitações impostas pelo atual estágio de organização social e tecnológica com relação ao meio ambiente e sua capacidade de satisfazer as necessidades presentes e futuras (Mebratu, 1998). 30 Como observaram Viola & Leis (1995), o relativo consenso que o Relatório Brundtland reuniu em torno do conceito, cujas bases referem-se ao ideal de aliar desenvolvimento econômico à proteção ambiental, situa-se mais nos fins do que nos meios, ou seja, mais nos objetivos do que nos procedimentos estratégicos para sua consecução. Talvez por esta razão alguns autores tenham adotado, dentro das perspectivas abertas após a divulgação do documento, parâmetros básicos para que se alcance o desenvolvimento sustentável - como o fizeram Fischer-Kowalski & Haberl (1993, citados em Fenzl, 1998). Para eles, em primeiro lugar o consumo de recursos renováveis não pode exceder sua capacidade de renovação; em segundo, a quantidade de rejeitos depositados no meio não deve ultrapassar a capacidade de absorção dos ecossistemas e, em terceiro, os recursos não renováveis só devem ser usados se puderem ser substituídos por equivalentes renováveis. O caráter quase utópico, em nível global, deste conjunto de normas evidencia o dilema que se coloca para o desenvolvimento sustentável atualmente, de acordo com Viola & Leis (1995): a necessidade de consolidar-se política e socialmente para realmente se transformar em uma alternativa ao modelo de desenvolvimento dominante. A múltipla dimensão do conceito encontra-se permeada por diferentes valores ético-sociais, afirmam os autores, que classificam as ‘versões’ de desenvolvimento sustentável em três: estatista, comunitária e de mercado. A primeira considera que a qualidade ambiental é um bem púb lico que deve ser resguardado pelo Estado. A segunda advoga às ongs e organizações de base da sociedade um papel prioritário na transição para uma sociedade sustentável. E, por fim, a terceira atribui à lógica do mercado a capacidade de conduzir a sociedade à sustentabilidade – com base na apropriação privada dos recursos naturais (Viola & Leis, 1995: 79-80). Esta visão guarda alguma semelhança com a leitura de Mebratu (1998), que categoriza a variedade de definições sobre o desenvolvimento sustentável em três grupos majoritários: a versão institucional (representada por organizações como a World Commission on Environment and Development – WCED; o International Institute for Environment and Development – IIED; e a World Business Council for Sustainble Development – WBCSD); a versão ideológica (cujas teorias predominantes são a eco-teologia, o eco- feminismo e o eco-socialismo) e a versão acadêmica (cujas vertentes mais proeminentes seriam a economia ambiental, a ecologia profunda e a ecologia social). 31 Para Ba rtelmus (1999), há uma paranóia presente na idéia de desenvolvimento sustentável, cuja origem é o embate entre economistas e ambientalistas. Os primeiros, diz o autor, argumentam a urgência de que se utilizem instrumentos de mercado para alcançar a sustentabilidade, como selos verdes e subsídios para empreendimentos ‘eficientes’ – o que diz respeito, em última instância, a preferências e iniciativas individuais. Já os ambientalistas advogam que estas preferências não são um bom parâmetro para se julgar o impacto das atividades econômicas nos meios ambiental e social, e que a tomada de decisão e o julgamento devem ser coletivos. Ao contrário da sustentabilidade econômica 10 , a sustentabilidade ecológica, segundo Bartelmus, demanda a preservação total de bens naturais vitais e seus serviços. 1.4 - Por um ritmo local de desenvolvimento A chave para o desenvolvimento talvez esteja na busca da ‘construção do bem estar coletivo’, nas palavras de Santos (2001). Para ele, os diferentes tipos de utilização do território pelo homem fazem com que coexistam, no espaço nacional, povos, regiões e lugares evoluindo em velocidades e tempos diversos. Trata-se, então, para garantir uma convivência harmoniosa e socialmente justa, de “... deixar que o território nacional constitua uma verdadeira casa coletiva...”. O caminho para a construção de uma nação sustentável passaria, então, pela afirmação da cidadania social, econômica e política. Quanto mais se ratificam estas vertentes da cidadania, “... maior é a garantia de que a ‘ve locidade’ pode ser limitada, ao mesmo tempo em que os benefícios da modernidade encontram a possibilidade de uma difusão democrática” (Santos em Folha de S. Paulo, 2001, caderno Mais:15). A idéia de um mosaico de estruturas sócio-econômicas evoluindo no mesmo território em tempos diferentes – cujas velocidades devem ser respeitadas – é de grande valia para referendar o tipo de conceito de desenvolvimento que se busca neste trabalho. E automaticamente, ao imaginar este sem número de estruturas e suas infinitas peculiaridades, pergunta-se: como saber sobre o bem estar coletivo? Como medí- lo? Como se mede a satisfação? 10 The long-term preservation of produced and natural capital, income or consumption is the focus of economic sustainability (Bartelmus, 1999: 3). 32 Talvez utilizando-se a noção de qualidade de vida - parâmetro que vem emergindo nos estudos de ciências sociais como uma alternativa a índices limitados ambiental e socialmente, como o PIB por exemplo. Bertels & Vellinga (1999) afirmam que a qualidade de vida é um bem que depende da obediência aos limites da ‘capacidade de carga’ (carrying capacity) da biosfera. Que um ambiente saudável influencia diretamente e indiretamente, por exemplo, muitos postos de trabalho. Ora, nos últimos anos, isso vem ficando cada vez mais claro. A chamada qualidade de vida não depende apenas daquilo que cada um pode assegurar para si via consumo – ou seja, bem-estar e conforto - mas, nas palavras de Herculano (1998: 90), seria “... a soma das condições econômicas, ambientais, científico-culturais e políticas coletivamente construídas e postas à disposição dos indivíduos para que estes possam realizar suas potencialidades...”. É, sem dúvida, um parâmetro mais abrangente que o mercado para dar conta da dependência do homem em relação ao ambiente – até porque, como salienta a autora, seu grande trunfo seria agregar ao já existente IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, medido pela ONU), a ‘questão ambiental’. Mas também é necessário cuidado com esse enfoque ambiental na concepção do que seria qualidade de vida, ao incorporar essa discussão no debate sobre modelos mais viáveis de desenvolvimento. Simplesmente porque a natureza é vista de diferentes maneiras pelos diferentes tipos de sociedades humanas, que dela dependem. A mesma Herculano 11 - afirmando que a proporção de áreas verdes para a população urbana e a proporção de áreas de biodiversidade protegidas são dois quesitos que devem ser medidos para formular um índice de qualidade de vida (que chama de IQV) - colabora para difundir uma idéia predominantemente ‘urbana’ de qualidade de vida. O problema com o ‘enfoque ambiental’ na noção de qualidade de vida não se relaciona então prioritariamente ao fato de ter sido esta particularizada, pela mídia e o senso comum, como um ‘privilégio’ de uma certa camada urbana, mas à condição de que, como a própria autora reconhece, até hoje “a noção equivocada do que é qualidade de 11 Segundo Herculano (1998: 90-91), mensurar qualidade de vida significaria mensurar: 1- níveis de conhecimento e tecnologia já desenvolvidos e os mecanismos para o seu fomento; 2- canais institucionais para participação e geração de decisões coletivas e para resolução de dissensos; 3- mecanismos de acesso à produção (financiamento); 4- mecanismos de acessibilidade ao consumo (distribuição de renda, de alimentos e acesso aos equipamentos coletivos – água, luz, saneamento etc.); 5- canais democratizados de comunicação e informação; 6- proporção de áreas verdes para a população urbana; proporção de áreas de biodiversidade protegidas; 7- organismos governamentais e não-governamentais voltados para a implementação da qualidade de vida (volume de recursos financeiros e de pessoal alocados para as políticas socioambientais). 33 vida tem sido eminentemente metropolitana...”. Quando delimitado de maneira unidimensional, o conceito de qualidade de vida perde seu apelo, que é justamente o de ser plural, podendo-se referir tanto às necessidades de um habitante da Flona Caxiuanã quanto às de um citadino qualquer, da Amazônia ou do resto do mundo. Um outro inconveniente é que a ‘metropolização’ do conceito encobre a questão da posse dos meios de vida. Nas cidades, a imensa maioria é destituída dos meios de vida e vende sua força de trabalho, conseguindo assim reproduzir suas estruturas sem depender, por exemplo, da posse da terra. No campo e na floresta, vive-se daquilo que se consegue tirar da terra. O conceito de qualidade de vida serve a uns e a outros, contanto que seja adequadamente dimensionado. Por mais diversa que seja a situação do homem do campo nas diferentes regiões do Brasil, seria difícil falar em qualidade de vida no meio rural e na floresta sem considerar a questão da posse da terra, da regularização fundiária das terras ocupadas, demandas que aparecem como pré-requisito para qualquer política pública. Por isso, para dar conta desta ‘casa coletiva’ que deve ser o país, entende-se que a qualidade de vida deve ser medida em nível local. Um IQV deveria levar em consideração as particularidades regionais - deveria partir delas, para formar um mosaico nacional de vários IQVs locais. Só assim seria possível dar conta da multiplicidade de estruturas sócio-econômicas que, a exemplo das comunidades aqui estudadas, evoluem em uma velocidade diferente daquela que o sistema capitalista cunhou como ideal. 2 – História da Flona Caxiuanã e de seus habitantes 2 .1 – A criação da Floresta Nacional de Caxiuanã A Flona Caxiuanã foi a segunda Floresta Nacional criada no Brasil, em novembro de 1961. Encravada em território pertencente aos municípios de Portel e Melgaço, a Flona Caxiuanã ainda faz fronteira, ao norte, com o município de Gurupá, na foz do Amazonas; e a leste, com a cidade de Porto de Moz (cujo núcleo urbano situase às margens do rio Xingu). Calcula-se, por depoimentos das pessoas que ainda habitam o local, que na área transformada em Unidade de Conservação pelo governo existiam cerca de 350 famílias, vivendo dos recursos da floresta. Sem títulos das terras, sob o ponto de vista legal os moradores da Flona Caxiuanã eram, e ainda são, posseiros. Durante os primeiros dezoito anos, a população residente permaneceu na área, mediante 34 o pacto de que atividades como a retirada de madeira em toras, a exploração do látex da maçaranduba 12 (Manilkara bientata ssp surinamensis) e a confecção de roças na mata fossem abandonadas. A extração da seiva da maçaranduba era, então, uma das principais atividades produtivas dos habitantes da floresta. Mas, para consegui- la, era preciso derrubar a árvore - cuja madeira, curiosamente, apesar de nobre, não era aproveitada nem comercialmente e nem pelos próprios ribeirinhos. As espécies mais procuradas na época eram a virola (Virola sp.) e a sucupira (Bowdichia nitida), que os moradores também retiravam, fazendo descer as toras pelos rios e igarapés até o rio Camuim, onde uma balsa atracava para buscá- las. Não se pode precisar o número de patrões 13 que andavam pela área da Flona a comprar mercadorias, mas relatos dão conta de pelo menos cinco. Havia também uma casa de comércio no local que todos chamam de Caiçara, dentro do rio Curuá, onde 'se criava até gado'. Os donos do negócio teriam abandonando as terras depois que o velho patrão morreu, deixando o local aos cuidados de uma das famílias que reside até hoje na Flona. É provável que alguns ribeirinhos que residiam na floresta naquela época não estivessem completamente conformados com as restrições impostas pelo governo. Conta-se que, em meados da década de 70, um deles, desafiando as normas estabelecidas pelo então IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), teria subido com os três filhos o rio Puraquecuara (que passa acima da ECFPn), atrás de árvores de maçaranduba. Este morador, que vivia às margens do rio Caxiuanã onde 12 Mais popularmente conhecida como balata, a borracha da maçaranduba tinha menos elasticidade do que a da seringa. De acordo com Dean (1989), era por isso muito apreciada para a confecção de correias de máquinas. Para se conseguir o látex, era necessário derrubar a árvore, depois fazer grandes sulcos ao redor do tronco (anéis) com espaçamento de cerca de 50 cm e deixar a seiva correr. O líquido era cozido, depois ‘espichado’ e pisoteado, como um tapete, que então era enrolado e endurecia. 13 O patrão é uma figura recorrente na história das relações de produção e comércio na Amazônia. Grosso modo é um intermediário que adianta mercadorias predominantemente industrializadas para os ‘caboclos’ do interior, em troca de produtos da floresta. No apogeu do modelo extrativista de borracha descrito por Oliveira Filho (1979), o patrão era o dono do barracão, casa de comércio à qual os seringueiros estavam ligados por uma teia de relações de aviamento, sistema sobre o qual operava a extração, comércio e exportação da goma. Aqui, no caso de Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, a expressão patrão refere-se aos donos dos regatões, barcos volantes que viajam pelo interior da Amazônia trocando produtos da floresta por mercadorias. McGrath (1997) observou que, no início da atividade gomífera, os regatões foram importantes instrumentos de penetração comercial a serviço das casas aviadoras situadas em Belém e Manaus. Posteriormente, quando o sistema de aviamento estava suficientemente estabelecido mediante o monopólio dos recursos e o controle das atividades comerciais no interior, os regatões, segundo McGrath, foram marginalizados no âmbito das redes de comércio locais, sendo obrigados a operar ‘nos interstícios do sistema’ (1997: 7). Representavam, neste caso, uma alternativa ao seringueiro, preso por dívidas a um só patrão. Por esta característica, McGrath atribui aos regatões um importante papel na resistência cabocla ao sistema de monopolização da atividade econômica típico do auge do complexo da borracha. 35 ainda hoje reside seu irmão, teria sido delatado aos funcionários do órgão federal, todos oriundos da região. Depois do serviço feito, ele se preparava para descer o rio com o produto colhido em seu casco quando uma diligência do IBDF chegou: o ex- gerente da Flona Caxiuanã, Iranildo, que ocupou o cargo até novembro de 2001, e mais dois ribeirinhos da comunidade de Caxiuanã (um irmão de Seu Mariano 14 , da casa nº 10, e um irmão de Seu Tato, da casa nº 8). Um terceiro homem, também irmão de Seu Mariano, teria ficado esperando no casco, rio abaixo. A história contada por Seu Tato é a de que o morador ‘rebelde’ teria puxado um terçado para a expedição e ameaçado o atual gerente. Um dos irmãos de Seu Mariano, então, desferiu um tiro e matou o vizinho. Segundo o relato, este rapaz foi morto logo depois por um dos filhos do homem, que nessa hora emergia do mato junto com os irmãos. Como estavam em minoria, os funcionários do IBDF teriam fugido e os três filhos ficaram esperando no mato por algum tempo. Dois deles resolveram fugir pela floresta, mas o outro insistiu em descer o rio. Lá embaixo, com um homem a mais, a diligência os esperava, e o irmão do funcionário morto atirou no rapaz e o matou. Segundo contam os que ficaram na Flona, a viúva do ribeirinho morto mora em Breves, no sul da ilha do Marajó. O filho responsável pela morte do funcionário do IBDF está em algum lugar do Amazonas desde então, e o ribeirinho que matou seu irmão hoje é funcionário do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). De acordo com uma fonte que já trabalhou na Flona e hoje está lotada no NUC (Núcleo de Unidades de Conservação), este episódio resultou em um processo no Ibama, cuja localização mostrou-se uma tarefa impossível. A procuradora que representou o órgão já é aposentada e aparentemente não há como recuperar nenhum registro desse acontecimento no Ibama. Contactada, afirmou lembrar do episódio, mas não das partes do processo, nem do ano e tampouco de sua natureza. 2.2 – As agências ambientais do governo federal Em 1979 o IBDF começou a retirar do local as famílias residentes, como insinuava o artigo 5º do decreto nº 239 de 28 de novembro de 1961, que instituiu a 14 Os nomes dos ribeirinhos citados ao longo deste trabalho são fictícios. 36 Flona Caxiuanã. O IBDF surgira em 1967, em lugar do Serviço Florestal do Ministério da Agricultura. O responsável pela retirada das famílias foi Iranildo. De acordo com ele, em 1971, quando assumiu a direção da Flona, havia na área 352 famílias. Como se viu, esta estratégia fazia parte da política do governo militar levada a cabo nos anos 70 e 80 que previa, sob a ótica do preservacionismo importado do modelo norte-americano, o esvaziamento das áreas onde seriam criadas unidades de conservação ambiental. As comunidades que nelas se encontravam e seus modos de vida não foram levados em conta nos planos governamentais de preservação que, como ressalta Diegues (1998), objetivavam contrabalançar os efeitos ecológicos das atividades dos grandes programas para a Amazônia. Pode-se dizer que nestes 40 anos decorridos desde a instituição da Flona Caxiuanã, praticamente só uma atitude foi tomada na 'gestão' desta Unidade de Conservação: a retirada das famílias que lá residiam. O destino da maior parte dos 'expulsos' foram as várzeas de outros rios nos arredores da Flona, como o Maparauá e o Mujuá, bem como os centros urbanos mais próximos, como as cidades de Portel e Melgaço. Não sendo proprietárias das terras que habitavam, as famílias que viviam na Flona não poderiam ser compensadas por desapropriações embora, por conta das benfeitorias, algumas tenham recebido indenizações. Das 352 famílias existentes, apenas 75 saíram indenizadas - aproximadamente 21% da população residente. Segundo o ex-gerente, as outras não teriam recebido indenização porque a maioria das pessoas não possuía documentos, nem de identificação pessoal, nem de posse das terras ocupadas. A vulnerabilidade a que esta forma de apossamento da terra condicionava os moradores da área - e que ainda hoje caracteriza a relação dos remanescentes com o território que ocupam - reforça a 'invisibilidade' que, de acordo com Nugent (1993), caracteriza as comunidades que habitam o interior da Amazônia. Segundo este autor, aqueles que habitam a floresta são invisíveis porque, a despeito de estarem à vista, raramente são enxergados como uma classe que se deva consultar para implementar políticas públicas na Amazônia. Nos depoimentos que revelam a dinâmica do processo de desocupação da Flona Caxiuanã alguns aspectos ilustram esta 'tendência à invisibilidade'. Um deles diz respeito aos argumentos que, segundo o ex-gerente da floresta, foram empregados para convencer as famílias a deixar o local: 37 "... a gente chegava prás pessoas e dizia olha, isso aqui é uma Unidade de Conservação, e do outro lado ainda tem muita terra sobrando, se vocês não ocuparem hoje, amanhã vocês não vão ter mais essas terras disponíveis na mão de vocês. Então, se vocês forem inteligentes, até vocês se afirmam lá dentro. Tem duas pessoas na família, então um vai prá lá e o outro fica aqui morando" (ver a íntegra da entrevista com o exgerente da Flona, em anexo). Ao menos duas idéias implícitas nesta argumentação merecem atenção: em primeiro lugar o fato de o Estado continuar a perpetuar o velho mito da Amazônia como um imenso território livre e desocupado, que estaria 'esperando' por aqueles que chegassem primeiro - um dos pilares da 'estratégia de ocupação' da Amazônia, levada a cabo através de planos elaborados principalmente pelos governos militares, mas também por alguns governos civis que os antecederam - (D'Araújo, 1992; Magalhães, 1990; Oliveira Filho, 1979; Benevides, 1976; Ianni, 1971; Mendes,1978; Holanda, 1975) . O que se afirmava em outras palavras era que, fora das terras da União, os ribeirinhos poderiam viver com mais tranqüilidade, gozando dos mesmos abundantes recursos naturais e mantendo, com a terra, a mesma relação informal de ocupação. Não se procurou intervir para modificar esta forma de apossamento, pelo contrário. Ao 'aconselhar' os moradores da Flona a deixar a floresta, o Estado - através da autoridade local - estava simplesmente deslocando o 'problema' da ocupação não regularizada para fora de seus domínios, com base na crença de que havia 'muita terra sobrando'. O raciocínio parece ter sido o seguinte: Se eles são posseiros aqui na Flona, podem continuar a ser posseiros fora dela. Mais do que escamotear o problema da relação informal dessas pessoas com a terra que habitavam, a política do esvaziamento deixa entrever o conceito de gestão de recursos naturais que norteou as políticas públicas na Amazônia, qual seja o de criar espaços de preservação a qualquer custo e deixar as demais áreas ao livre arbítrio de quem se propuser a explorá- las, aí se incluindo desde mineradoras e madeireiras de grande porte até pequenos produtores familiares. Machado (1998) faz referência a esta dicotomia entre terras públicas e privadas e alerta para o perigo de uma visão segundo a qual, nas primeiras, tudo é proibido, ao passo que, nas outras, tudo é permitido. A pressão sobre as terras privadas, afirma o autor, automaticamente coloca em situação delicada as terras públicas. 38 Este processo transparece quando se olha para o passado recente da Flona Caxiuanã. Ao relatar que usou como argumento o fato de que mais tarde os ribeirinhos não teriam mais as terras adjacentes disponíveis, a autoridade local deixa entrever até que ponto existia a consciência de se estar empurrando essas pessoas para locais onde a pressão por terras e recursos naturais só tendia a aumentar. O Estado aparece, assim, como elemento que não apenas potencializa conflitos (McGrath et al., 1988, citados em Castro, 1999; Araújo, 1994), mas que gera circunstâncias nas quais as probabilidades de conflito são iminentes, ou até mesmo causa diretamente situações de conflito. Em segundo lugar, merece atenção a proposta de 'separação da família' presente nos argumentos oficiais que preconizaram a desocupação. Além da desarticulação dos laços de parentesco, no contexto da pequena produção familiar a perda de mão-de-obra significa, em última instância, um encolhimento da capacidade produtiva dessas populações, como reconhece Freitas ao afirmar que (2000: 10): "... quando as unidades econômicas camponesas apresentam o mesmo padrão técnico, famílias que tenham maior número de membros, na faixa etária entre 15 e 55 anos, tendem a dispor de maior capacidade produtiva". Quanto à indenização, ao que tudo indica, não foi uma proposta imediata do governo, tendo surgido ao longo do processo de desocupação. A primeira 'estratégia' do então IBDF teria sido, simplesmente, a de pressionar os habitantes locais a deixar a área. Muitos teriam saído logo que as pressões começaram - de acordo com o ex-gerente e com alguns moradores remanescentes, aqueles que se haviam estabelecido na floresta para explorar a maçaranduba e outras riquezas, mas que não eram nativos de lá. O processo envolveu a participação da polícia, para 'tirar do local aqueles que tinham comportamento agressivo' (ver transcrição da entrevista com o ex- gerente da Flona Caxiuanã, em anexo). Segundo consta, a indenização foi feita com base em um levantamento do que cada família possuía em seu sítio (tanto as benfeitorias quanto as espécies plantadas), aliado ao número de anos vividos pela família dentro da Flona. As informações foram encaminhadas para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em Brasília, e as famílias indenizadas receberam valores estipulados de acordo com os parâmetros utilizados por este órgão em processos de ‘reforma agrária’. Somente por volta de 1987 é que a população da Flona se estabilizou. De acordo com o ex- gerente, teriam ficado nessa época 26 famílias - que hoje já seriam 29. 39 Entretanto, dados colhidos pelas pesquisadoras Isolda Maciel da Silveira, Dirce Clara Kern e Helena Dóris Quaresma em levantamento realizado na área em 2000 (MPEG, no prelo), dão conta de que vivem atualmente em toda a Floresta Nacional 46 famílias, totalizando 283 pessoas. Elas se encontram divididas em núcleos situados em três diferentes lugares: o rio Curuá, o rio Cariá e o rio Pracupi. Em 1994, com a edição do decreto aprovando o regulamento das Florestas Nacionais, ficou estabelecido que a preservação e o uso racional e sustentável das Flonas seriam realizados de acordo com Planos de Manejo que o Ibama trataria de encomendar a profissionais capacitados. Até hoje, para a Flona Caxiuanã, nenhum plano foi elaborado – mas, circunstância singular, o local já consta da lista de Florestas Nacionais que o atual governo manifestou a intenção de ‘arrendar’ (ver reportagem da Gazeta Mercantil, 1997, em anexo). A desarticulação social que a política do 'esvaziamento' causou na Flona Caxiuanã não é difícil de ser mensurada, pelas histórias e fatos garimpados junto aos moradores da floresta e seu entorno. Na verdade, o que salta aos olhos é a intensidade desse passado como elemento de estruturação do presente, o que reitera as palavras de Godelier (1981: 187), segundo as quais "As idéias não aparecem como 'uma instância' separada das relações sociais...". Sobre as experiências vividas nesse passado recente, os que ainda habitam aquela área vêm construindo suas relações com o poder, com o Estado e as instituições, nas instâncias em que elas se dão. Também a disposição territorial das comunidades dentro e no entorno da Flona está ligada aos acontecimentos que marcaram a instituição da Floresta Nacional. Um dado sintomático dos efeitos da expulsão das famílias é que, das 190 pessoas que foram contadas nas localidades em 1999, apenas quatro tinham mais de 60 anos. Segundo os ribeirinhos, muitos dos moradores mais velhos foram embora nas décadas de 70 e 80 e nunca mais voltaram. Outra observação é que não há, em nenhuma das três comunidades, uma só benzedeira - figura ainda tão tradicional não apenas no interior da Amazônia como também em capitais como Belém e Manaus. Dona Conceição, da casa nº 7 da comunidade de Caxiuanã, em uma conversa informal, afirmou ter precisado dos serviços de uma rezadeira, pois sua filha era 'engripada' (muito brava, muito geniosa). Para conseguir o tratamento (duas benzeduras), teve de ir à cidade de Melgaço. Esta situação também pode ter parte de sua origem ligada à chegada dos evangélicos na região, durante a década de 80. 40 Talvez a evidência mais flagrante da desagregação causada pela política preservacionista adotada na época seja a ausência de festas de santos, ainda hoje tão típicas em muitas das comunidades amazônicas nos moldes descritos por Galvão (1976). De acordo com o depoimento de Seu Policarpo, líder da comunidade do Laranjal, hoje evangélico, antes da ‘debandada’ promovida pelo governo as comunidades da Flona comemoravam os dias de vários santos: havia festa de São Benedito, de São Sebastião (duas por ano), de Santana, de Santo Antônio, de São João, do Espírito Santo, de Nossa Senhora da Conceição e de São José. Hoje, nenhuma delas existe mais. De acordo com um dos moradores de Caxiuanã, depois da remoção das famílias pelo Ibama, ainda foram feitas uma ou duas festas na Caiçara, no início da década de 80, mas o órgão governamental insistia em coibí- las, argumentando que muita gente estranha entrava na Flona por ocasião dos festejos. É crível que a proibição das festas de santo como meio de inibir a penetração de 'gente estranha' na floresta configure-se uma tática encontrada pelo Ibama para evitar casamentos de moradores da Flona com pessoas de fora, já que isso poderia gerar conflitos no sentido de se estender ou não ao cônjuge o direito de utilização dos recursos locais. Como lembra Lima (1999:23) a respeito dos assentamentos rurais do médio Solimões: "Os indivíduos não nascidos na localidade, mas que têm uma ligação de parentesco reconhecida com uma família local têm garantidos os direitos aos recursos da comunidade ". Mais do que a preocupação com a entrada de novos moradores na floresta via casamentos (no caso, a palavra correta seria 'união' já que, como foi constatado em campo, a maioria dos casais não é legalmente unida), a autoridade local que chefiou a Flona até novembro deste ano vinha tentando impingir regras com relação à formação de novos núcleos familiares na Flona. Até a última viagem a campo, em setembro último, estava 'proibida' aos recém-casados a construção de casas fora do espaço já ocupado por seus pais, para evitar o surgimento de novos núcleos de habitação. O ex-gerente explicou seu ‘raciocínio’: "Se tu casares com gente de dentro da Flona, mora com os sogros e com as sogras. Pode fazer casa separada? Pode. Desde que seja naquele núcleo familiar. Para nós, os donos da posse são seus pais ou sogros. Para evitar que os núcleos se multipliquem. Aí com isso há uma opressão. Uma opressão branca, né ? Porque seu marido não vai gostar, vai ter que ficar restrito ali. Agora, isso não é norma, no papel. É um procedimento" (ver entrevista em anexo). 41 Na comunidade de Caxiuanã, que reúne 15 das 46 famílias hoje existentes na floresta (utilizando a base de Silveira et. al), este 'procedimento' vinha causando conflitos entre os ribeirinhos e o referido funcionário do Ibama. Segundo relatos, um dos moradores ergueu os esteios de uma casa e, quando ia armá-la, foi interceptado por funcionários do órgão que teriam ameaçado 'derrubar a casa com motosserra' se ela fosse terminada. Entretanto, meses depois, ela já estava sendo reerguida, desta vez ao lado da casa do genro do rapaz (casa nº 2 de Caxiuanã), com parte das estruturas sob a água. O ex- gerente da Flona admitiu que 'tinha uns problemas' sempre que pedia para alguém desmanchar uma casa. E diz que vinha aconselhando aqueles que querem ocupar novos espaços a colocarem no papel sua história, para enviar a Belém e ver o que se decide a respeito - aparentemente sem se dar conta de estar praticando um ato ilegal e protagonizando uma situação absurda na qual uma autoridade age sem ter de seguir nenhuma norma escrita e um habitante da floresta seja chamado a escrever para tentar anular os efeitos de uma regra que, oficialmente, não existe. A lei do SNUC, embora não se remeta diretamente à proteção da diversidade cultural das populações que habitam UCs, tem um mérito: o de reconhecer a existência das populações tradicionais. No caso das Unidades de Conservação – tanto de uso sustentável quanto indireto - isso garante a essas pessoas ao menos o direito à permanência na área e só o Plano de Manejo pode especificar restrições quanto à utilização do espaço, resguardando áreas de nascente, por exemplo, como zonas de preservação. Antes da lei do SNUC, o decreto nº 1.298 de 27 de outubro de 1994, que regulamenta as Flonas, rezava, em seu artigo 8º, que o MMA regulamentaria a forma pela qual seria autorizada a permanência, dentro da Flona, de populações que comprovadamente habitassem o local. A nova lei já se refere a proteger os recursos que permitem às populações tradicionais sua sobrevivência na área. Outro ponto que merece ser considerado no tocante às relações entre o Ibama e a comunidade de Caxiuanã diz respeito à exploração de castanha dentro da Flona. Com base nas indenizações que concedeu, o órgão federal cobra uma taxa em espécie daqueles que exploram castanhais localizados em terras indenizadas. A taxa também é cobrada daqueles que retiram castanhas de terras não ocupadas (que perfazem a grande maioria da Flona). "Os valores são de 50% do que for coletado dos castanhais 'da beira' (próximos ao rio) e 30% dos castanhais 'de dentro' (no interior da floresta)" (Silveira et al., 1997: 67). Assim, nos anos em que a cotação do produto está muito 42 aquém do desejável, o estímulo para exercer a coleta sofre um abalo considerável. Ainda mais se for levado em conta o fato de que essa taxação não volta para os ribeirinhos na forma de melhorias ou benefícios. Questionado a respeito desse procedimento, o ex-gerente respondeu que o Ibama simplesmente reproduz uma regra que já existia nas próprias comunidades, alegando que, se um morador local faz uma roça e dá para uma outra pessoa desmanchar, cada um vai ficar com 50% de tudo o que for colhido. A atual superintendente do Ibama em Belém, Selma Melgaço, afirma que nada sai de uma Flona sem taxação, mas que isso tem de estar estipulado por um convênio, tem de estar escrito em algum lugar 15 . Não se pode deixar de notar o quão contraditória tem sido postura institucional do Ibama - na verdade personificada por Iranildo - que ora exigia obediência por parte dos moradores locais, ora vinha querendo posar de parceiro ou meeiro junto a eles. Na verdade, revestido de autoridade, o ex-gerente vinha tentando perpetuar uma relação de espoliação que pouco ou nada difere do aviamento 16 , exceto pela aberração visível de ser um patrão que, mediante a entrega de um produto local, nada tem retornado em troca. Aos daquela que foi durante três décadas a autoridade local, todos os que ali residem são posseiros, ocupantes de terras do governo que devem ser preservadas (mantidas intocadas). Posseiros que, a julgar pela 'política' implementada com a retirada da maioria das famílias que habitavam a área, seriam nocivos ao ambiente natural mantendo, com o meio, uma relação imprópria. Esta premissa justificou não apenas a 15 As autoridades consultadas não souberam informar qual a lei que determina tal necessidade. A LEI No 10.165, DE 27 DE DEZEMBRO DE 2000, que institui a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – TCFA sobre várias atividades, em seu anexo VII, item 20, estabelece o pagamento pelo Uso de Recursos Naturais. Seu artigo 17-F, porém, isenta do pagamento as populações tradicionais : "São isentas do pagamento da TCFA as entidades públicas federais, distritais, estaduais e municipais, as entidades filantrópicas, aqueles que praticam agricultura de subsistência e as populações tradicionais." (Pesquisa: Girolamo Treccani). 16 Sistema sobre o qual se alicerçou a exploração de borracha na Amazônia brasileira que consiste, grosso modo, no adiantamento de mercadorias, por parte do comerciante ou patrão, mediante o comprometimento do ‘caboclo’ de quitar sua dívida em um certo período de tempo, com produtos da floresta. Na verdade, o aviamento era uma estratégia que mantinha o trabalhador preso ao mesmo patrão, por meio de dívidas que pareciam não ter fim. O aviamento se dava, no auge do complexo gomífero, de uma ponta a outra da cadeia produtiva: as casas aviadoras de Belém e Manaus adiantavam dinheiro ao seringalista, que adiantava ao comerciante, que adiantava ao ‘caboclo’ (ver Wagley, 1957: 136). As casas aviadoras eram, em sua maioria, estabelecimentos que remetiam os lucros para seus países de origem. Por isso, apesar das somas astronômicas que a borracha movimentou quando o sistema ruiu as cidades amazônicas ligadas à exploração do látex rapidamente declinaram. O capital investido na atividade gomífera não se inverteu em outras atividades porque não se acumulou na região, mas no exterior. 43 intervenção estatal, mas dissimulou durante décadas atitudes tomadas aleatoriamente pela autoridade local. Por tudo o que foi exposto, optou-se por uma abordagem que ressalta a história recente das três localidades estudadas neste trabalho: Caxiuanã, Pedreira e Laranjal. Elas são parte do resultado da rearticulação que se deu com a ocupação daquele espaço pela Floresta Nacional, embora apenas a comunidade de Caxiuanã esteja dentro da área da Flona. Área que, aliás, nunca foi delimitada: não há coordenadas geográficas nem no decreto de criação, que refere-se a uma área de 200 mil hectares e nem em documentos que incluem a Flona Caxiuanã, como um laudo sobre Florestas Nacionais realizado em 1994 por um engenheiro florestal do Ibama que referenda uma área de 280 mil hectares. O ex- gerente da floresta afirma que são 333 mil hectares, número que, aliás, foi utilizado como base para a concessão da área do MPEG (10% da Flona). 2.3 - O homem e seu modo de vida dentro da Flona Caxiuanã A região de Caxiuanã abriga grande diversidade de ecossistemas. Como salientaram Lisboa et. al (1997), além das florestas de terra firme, que ocupam a maior parte da Flona, também existem florestas de inundação (várzea e igapó), vegetação savanóide, vegetação secundária (capoeiras) e áreas de sítios de pomares, dispersas pelas margens dos rios e igarapés da bacia de Caxiuanã. Estas áreas formavam o entorno das habitações que pertenciam aos moradores retirados da região. A terra firme é rica em castanha (Bertholletia excelsa), seringa (Hevea brasiliensis) e madeiras nobres, como a sucupira amarela e a itaúba (Mezilaurus itauba). Nas várzeas, além de palmeiras como o açaí (Euterpe oleracea) e o buriti (Mauritia flexuosa), ocorrem espécies como a ucuúba (Virola surinamensis) e a mamorana (Pachyra aquatica). Os rios da bacia de Caxiuanã são de águas negras, com pouca ocorrência de sedimentos. As florestas de várzea, sujeitas a uma considerável variação do nível dos rios, apresentam biomassa vegetal maior do que as de igapó, nas quais quase não há flutuação de nível das águas e os solos são ácidos e pobres em nutrientes. Estudos realizados em 4 hectares da área da ECFPn (que tem 85% de ambientes de terra firme, 10% de florestas inundáveis de igapó e várzea e 5% de vegetação savanóide), constataram que a biomassa da floresta de terra firme é bastante pesada, com volume de 44 madeira com casca acima de 200 m³/ha (Lisboa et al. 1997). Em outro levantamento, feito em 13 hectares da floresta de terra firme do entorno da Estação, chama a atenção a grande presença de espécies consideradas raras (aquelas representadas por 1 a 4 indivíduos): em torno de 375, para um total de 582 espécies inventariadas. De acordo com Lisboa et al. (1997), o acapu (Voucapoua americana), a maçaranduba e o angelim (Dinizia excelsa), bem como outras espécies importantes do ponto de vista econômico, ocorrem com freqüência na terra firme. Tendo sido a Flona Caxiuanã criada em 1961 - quando a era de grandes projetos para a Amazônia estava apenas começando - e estando na chamada região das ilhas, nas cercanias de municípios que tiveram um importante papel no complexo regional da exploração gomífera, como Gurupá, por exemplo - é certo que as pessoas que a habitam tenham seu passado ligado, em maior ou menor grau, à exploração de produtos da floresta para satisfazer demandas externas. Mas, para caracterizar as famílias que vivem em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal é fundamental esclarecer que, na época do boom da borracha, a organização da produção local não chegou a obedecer, pelo que se tem notícia, à lógica do modelo de seringal classificado por Oliveira Filho (1979) como modelo do apogeu, ou seja, aquele no qual existe a figura do seringalista, a instituição do barracão e a 'obrigatoriedade', por parte do seringueiro, de estabelecer cotas de produtividade que o impediam de executar qualquer outra tarefa, como o roçado, por exemplo, tornando crônica sua relação de dependência para com o seringalista, relação que consistia em uma teia de endividamentos e configurava uma espécie de reinvenção planejada do trabalho compulsório. Ao contrário, até onde se tem notícia o homem que vivia em Caxiuanã encontrava-se organizado sob a lógica chamada pelo autor de modelo caboclo, no qual a extração do látex era desenvolvida em conjunto com outras atividades - o roçado, a coleta da castanha, a exploração das drogas do sertão, a venda de carne de caça e de peles de lontra e de felinos como o maracajá e a onça, e ainda, conforme observou o naturalista Domingos Soares Ferreira Penna em sua expedição ao local em 1864, a comercialização do cumaru17 , da estopa, de breus 18 e óleos, grude, resina, madeira e peixe (De La Penha et al, 1990). 17 Árvore (Coumarona odorata) da família das leguminosas que fornece madeira de lei muito apreciada. Os frutos contêm grandes sementes negras, odoríferas, ricas em cumarina. 18 Substância obtida pela evaporação parcial ou destilação do carvão ou de outras matérias orgânicas. Os breus aqui referenciados ocorrem grudados nos troncos de árvores como a jutaí (Hymenaea Courbaril) e a sucuuba (designação comum a árvores do gênero Himatanthus) e são utilizados pelos ‘caboclos’ como 45 Seu Mariano, que habita a várzea do Curuá, afirma que se trabalhou muito com a sucupira nos anos 60 e 70. Depois que a área virou Flona, faziam-se 'expedições' de dez pessoas, em média, para fora da floresta para tirar a madeira. O local era um igarapé chamado Atuá, próximo à Baía dos Botos, no rio Anapu. Tiravam-se toras de 4,20 m de comprimento de sucupira, sendo que as árvores de terra firme rendiam até cinco toras deste tamanho. A circunferência das espécies abatidas chegava até 3 metros (uma única vez, o entrevistado se lembra de ter abatido, com os companheiros, uma árvore com 5 metros de roda, da qual foram tiradas oito toras). Segundo Seu Mariano, um homem podia derrubar, sozinho, quatro ou cinco árvores por dia, por ser a sucupira uma madeira 'macia' (ver a íntegra da entrevista com Seu Mariano, em anexo). Vendia-se por metro cúbico (toras com 200 cm de circunferência por 4,20 m de comprimento que, na verdade, perfazem um pouco mais do que isso: 1,3 m³). Seu Policarpo, do Laranjal, e Seu Tato, de Caxiuanã, também citam a virola como espécie explorada dentro e nos arredores da área transformada em Flona. Após a chegada do então Instituto Florestal, o trabalho com a maçaranduba também foi deslocado para o entorno da Flona Caxiuanã. Segundo Seu Tato, da casa nº 8 de Caxiuanã, os patrões vinham buscar seus fregueses no início do inverno, em janeiro, levando-os, pelo rio Pracupi, até dois igarapés conhecidos como Água Branca e Braço Esquerdo. Lá, os homens montavam um acampamento e trabalhavam em duplas durante todo o inverno. O trabalho exigia muito esforço físico: era preciso derrubar a árvore, anelá- la, juntar o leite, cozinhá-lo e fazer os blocos para vender, que podiam chegar a até 500 kg. Segundo Seu Mariano, também havia maçarandubais no alto Anapu. Seu Policarpo, do Laranjal, afirma que três homens adultos eram capazes de produzir cerca de uma tonelada do produto por quinzena, sendo que esta variava entre quinze e dezoito dias (ver transcrição da entrevista com Seu Policarpo, em anexo). De acordo com Seu Tato, a maçaranduba era uma mercadoria muito valiosa. “Quando a gente trabalhava com a maçaranduba, não tinha miséria. A gente encomendava cartucheira para o patrão como quem pede um quilo de açúcar”, compara. Ele diz que os moradores locais davam preferência ao produto porque, ao contrário da seringa, o látex da maçaranduba não tinha ‘tara’. Na linguagem dos seringueiros, a tara é o desconto dado pelo patrão no peso da borracha extraída da Hévea por conta da repelentes durante as caçadas ou outras atividades em que tenham de permanecer por muitas horas ou dias no mato. 46 absorção de água. Esse desconto era de 10%. Como a balata não absorvia água, não se descontava no preço final. Segundo Seu Tato, trabalhar com a balata era tão rendoso quanto vender peles. Os patrões apareciam mensalmente (no máximo em intervalos de 40 dias) para buscar este e outros produtos. Rodavam pela área por mais ou menos uma semana e depois seguiam, alguns diretamente para Belém, outros para cidades mais próximas como Portel, Melgaço ou Breves. Eram regatões volantes, que traziam mercadoria manufaturada e trocavam por produtos da floresta. Também se vendia a seiva da maçarand uba, a madeira e a seringa para a casa de comércio que existia na Caiçara, dentro do rio Curuá. O comércio era igualmente feito na base da troca simples de produtos da floresta por industrializados e do aviamento, sendo a circulação monetária entre os moradores locais, ao que tudo indica, restrita. Outra mercadoria bastante requisitada pelos regatões na época era a carne de caça. Segundo relatos, as presas mais abundantes eram o porco do mato (catitu), a paca e a queixada. A carne, pelo que se conta, era vendida em Portel, sendo que no verão era mais difícil comercializá- la porque havia muita oferta no mercado. Seu Mariano, da comunidade de Caxiuanã, citou de cabeça quatro caçadores profissionais (que viviam do dinheiro da caça). Segundo ele, em uma noite eram capazes de pegar de doze a vinte pacas cada um. Talvez esta tradição explique o alto consumo de caça que ainda hoje se verifica entre os ribeirinhos da região, como se demonstrará mais adiante. No verão, trabalhava-se com a seringa, mas então dentro da reserva, onde os ribeirinhos tinham suas estradas. A seringa, pelo que contam os moradores das três comunidades estudadas, foi explorada até a primeira metade dos anos 80. Os trabalhadores de Caxiuanã davam preferência à chamada borracha cametá (aquela que era comercializada sem beneficiamento, ou seja, retirada diretamente das vasilhas colhidas das árvores e embalada em fardos). Entretanto, a diminuição da demanda e a depreciação do produto fizeram com que a atividade fosse paulatinamente deixada de lado por eles. O palmito foi outra fonte de renda citada por alguns remanescentes, também proibida com a criação da Flona. Entre as 15 famílias estudadas que vivem fora dos limites da Flona, apenas um chefe de família relatou ainda hoje exercer a exploração do palmito para venda esporadicamente. Também se comercializava o peixe mas, ao que tudo indica, em quantidades menores do que a caça. Os prediletos, segundo Seu Tato, eram o pirarucu, o peixe-boi, o tucunaré, a pescada e o filhote. 47 Hoje, o homem que vive dentro da Flona Caxiuanã caça e pesca apenas para subsistência, planta e coleta castanhas para vender, além de frutos da mata para consumo. Os que estão no entorno extraem outros produtos da floresta, como pedras, madeira e às vezes palmito (embora essas duas últimas atividades sejam coibidas pelo Ibama também nas áreas tampão). Todos usam a farinha 19 que produzem e as demais mercadorias de que dispõem como moeda para troca por importados. No âmbito local, pode-se dizer que estas famílias ainda reproduzem suas estruturas sociais em um sistema onde compra e venda ocorrem concomitantemente. Como antes da retirada promovida pelo governo, as famílias vivem em casas de madeira nas beiras dos rios (várzeas) e se locomovem em cascos e canoas. Alguns poucos habitantes têm barcos a motor. Os centros urbanos que visitam com mais freqüência são as cidades de Portel e Melgaço, onde fazem suas compras, geralmente no mesmo 'patrão', figura que ainda existe encarnada no comerciante que vende a crédito bens industrializados ou troca-os pelos produtos oriundos da coleta e da lavoura, quase nos mesmos termos descritos por Wagley (1957: 141). Belém e Macapá aparecem como as maiores referências urbanas, sobretudo para os que possuem parentes nestas capitais. A referência que se fez até aqui aos atuais habitantes ou moradores da Flona Caxiuanã não deve ser julgada como uma tentativa de passar ao largo da discussão em torno do uso de conceitos como populações tradicionais, sociedades caboclas ou povos da floresta. Sabe-se da recorrência do problema que envolve a identidade (e o auto-reconhecimento) das populações que habitam o interior da Amazônia, bem como da celeuma em torno dos critérios que levam ao reconhecimento de uma população como 'tradicional'. Não é absolutamente essencial, sob a ótica dos objetivos desta pesquisa, aderir ao embate que a utilização de tal conceito, em detrimento de outro, suscita. Antes, parece mais proveitoso, já que os moradores se auto-intitulam membros de comunidades, definir aqui o que se entende por uma comunidade. Segundo Lima (1999), os habitantes de agrupamentos rurais na Amazônia brasileira utilizam o termo comunidade como referência ao uso comunal de 19 Na farinha produzida na região, utiliza-se 60% de mandioca crua e outros 40% de mandioca ‘puba’ (amolecida por imersão na água por dois ou três dias). A massa que se forma da mistura das duas é então ralada e prensada no tipiti ou em prensas de madeira, para extração do tucupi, e depois passada na peneira para a retirada dos caroços mais grossos (a coroeira). Então, é torrada em tabuleiros de cobre ou zinco. 48 recursos relacionados ao território que ocupam, como terra e água. Guidi (1962) identifica três elementos presentes no conceito de comunidade: uma definida área ecológica, um grupo de pessoas interagindo socialmente e certos interesses e valores comuns: "... uma comunidade representa a integração de três sistemas de cultura: adaptativo, associativo e ideológico. A organização da cultura pelo grupo é que individualiza uma comunidade, tornando-a uma entidade, separada das demais e capacitada a resolver os seus próprios problemas e a defender os seus próprios valores e interesses comuns" (Guidi, 1962: 48). Nas comunidades da Flona e seu entorno, a intervenção das políticas públicas vem desorganizando e reorganizando os sistemas identificados por Guidi. Da maneira como hoje se apresentam, duas das localidades estudadas - Caxiuanã e Laranjal - podem ser consideradas comunidades reconstituídas: formadas a partir de núcleos que se desmantelaram. As razões deste desmantelamento, pelo que já se relatou, apontam para circunstâncias externas que se sobrepuseram à vontade dos habitantes. Sob esta ótica, é válida a contribuição de Sachs & Weber (1997) que, trabalhando com habitantes das chamadas Reservas da Biosfera, definem comunidade como “um grupo de pessoas que reconhecem que a comunidade existe e que seus membros a ela pertencem” (1997: 12). Como a história que culminou na constituição das três localidades estudadas contribui hoje para sua identidade, característica preconizada por Diegues (1998) 20 , este trabalho também se refere aos moradores da Flona e entorno como populações tradicionais, ainda que se reconheça a força dos argumentos de Nugent (1993), que afirma que a designação de ‘populações humanas’ não faz justiça às complexas formas sociais representadas pelo que ele chama de‘sociedades caboclas’ 21 . 20 O autor afirma que o auto-reconhecimento de tais agrupamentos sociais “...é freqüentemente, nos dias de hoje, uma identidade construída e reconstruída, como resultado, em parte, de processos de contato cada vez mais conflituosos com a sociedade urbano-industrial, e com os neomitos criados por esta” (Diegues, 1998: 88). 21 Segundo este autor, ao utilizar termos como ‘populações’ e ‘habitantes’ da Amazônia o discurso desenvolvimentista contemporâneo construiu um retrato que caracteriza os caboclos como passivos. Para Nugent (1993), as ‘sociedades caboclas’ vêm sendo depreciadas social ou culturalmente, em favor de um ponto de vista que enfatiza sua dependência do meio ambiente como fator estruturante fundamental21 . A isto ele chama de ‘marginalização forçada’ das ‘sociedades caboclas’: elas apareceriam, na literatura científica em geral, como socialmente pouco relevantes, diluídas no cenário natural e por ele absorvidas. 49 2.4 - O Museu Paraense Emílio Goeldi Há cerca de dez anos, um novo e determinante fator vem concorrendo para a modificação da relação entre homem e natureza em parte da Flona e seu entorno: a instalação, dentro da floresta, de uma base científica do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). Resultado de um convênio firmado em 1989 entre Museu e Ibama - pelo qual foi cedida ao primeiro, por 30 anos, uma área de 33 mil hectares (teoricamente 10% da área da FLONA) - a Estação Científica Ferreira Penna (ECFPn) localiza-se às margens do rio Curuá (01º44'11'' S e 51º27'10'' W). A comunidade de Caxiuanã fica dentro da área cedida ao MPEG. Inaugurada em outubro de 1993, a base foi construída com ajuda de mão-de-obra local. Com capacidade para alojar 50 pessoas, a ECFPn conta com laboratórios, enfermaria, biblioteca, refeitório, sala de jogos, cozinha industrial, estação meteorológica, além de uma torre de observação de mais de 50 metros de altura. O projeto inicial previa uma área construída de 2116 metros quadrados (0,21 hectares), mas foram efetivamente construídos 1900 metros quadrados (0, 19 hectares). Também fazem parte da infra-estrutura montada pelo Museu para viabilizar a ECFPn uma casa de apoio na cidade de Breves (que nunca passou por nenhuma reforma e encontra-se hoje bastante deteriorada) e uma pequena frota fluvial: a embarcação Ferreira Penna, que faz o transporte de Breves até a Estação, algumas voadeiras – quase todas com os motores avariados - e um barco com motor de meio. Há ainda uma lancha, que também está fora de uso por falta de manutenção. Durante os primeiros anos, a infra-estrutura localizada na mata foi totalmente movida com energia proveniente de um gerador alimentado a óleo diesel, que queima 5 litros de combustível por hora. Hoje, placas de energia fotovoltaica suprem grande parte das necessidades da Estação, mas o gerador ainda funciona 4 horas por dia, queimando 600 litros de combustível por mês. As placas alimentam dois freezers, os seis apartamentos, três casas (de apoio, do administrador e do vigilante), o laboratório de botânica e a sala dos computadores. As obras foram financiadas pela Overseas Development Administration (ODA), órgão do Reino Unido, com a participação do Oxford Institute of Forestry (OIF). De acordo com o ex-coordenador da Estação não havia, a princípio, nenhuma intenção de se trabalhar com as comunidades de dentro e do entorno da 50 ECFPn. Entretanto, a expectativa gerada pela instalação da base, aliada a boatos que começaram a circular entre a população local (como o de que não seria permitido 'chegar perto' da estação científica), teriam levado os técnicos do Museu a elaborar, em 1997, o chamado Programa de Desenvolvimento Sustentável Floresta Modelo de Caxiuanã (ver programa em anexo). Trata-se de um programa de ações voltadas para as áreas de saúde, educação, ecoturismo, comercialização, infra-estrutura, manejo florestal, agricultura e agroindústria. Para cada uma das áreas, foram estipuladas metas a serem alcançadas, em um prazo de cinco anos. O programa foi idealizado em parceria com outras instituições como a Prefeitura de Melgaço, Ibama, Embrapa (Empresa Brasileira para o Desenvolvimento da Amazônia), FCAP (Faculdade de Ciências Agrárias do Pará), UFPA (Universidade Federal do Pará), Sudam (Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia), Fundação Serra das Andorinhas, Sectam (Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do Estado do Pará), e Fundação Casa de Cultura de Marabá . O principal veículo de transmissão do conteúdo do Programa Floresta Modelo são as oficinas, que vêm sendo realizadas desde a implementação do projeto. De 1997 até abril de 2001 foram oferecidas cerca de 30 oficinas nas áreas de higiene, saúde e treinamento de parteiras; artesanato; ecoturismo; alimentação; meio ambiente; manejo de recursos naturais e outras. Algumas destas oficinas incluíram não só a população das comunidades estudadas, mas também da área urbana de Melgaço. Paralelamente, cada comunidade ganhou uma escola, resultado de uma parceria entre MPEG, Prefeitura de Melgaço e Ministério da Educação, que liberou verba do FUNDEF para a construção. Foram implantados kits de energia fotovoltaica nas escolas e em 23 casas das três localidades. As residências receberam uma placa de captação e um jogo com três baterias para armazenar a energia gerada. Dois bicos de luz e uma tomada foram instalados em cada casa. Em maio de 2000, o MPEG, em convênio com o MEC e a prefeitura de Melgaço, entregou às comunidades dois barcos (um para servir Caxiuanã e outro para a Pedreira e o Laranjal). A idéia era, segundo os técnicos do Museu, comprar duas embarcações pequenas e novas. Ao invés disso, a prefeitura de Melgaço, responsável pela compra, parece ter 'empurrado' dois barcos grandes, reformados, que lhe pertenciam e não estavam sendo utilizados. O de Caxiuanã tem problemas no motor e nunca foi usado. O barco entregue às outras duas comunidades 51 gasta muito diesel para os padrões de consumo locais, e sai em viagem quando várias famílias se juntam para dividir a conta. Antes da chegada do Museu, os professores das três comunidades eram leigos. Tinham até a 2a ou 3a série do ensino fundamental e recebiam, da Secretaria Municipal de Educação de Melgaço, meio salário mínimo por mês. As aulas eram ministradas em suas casas ou, como no caso da comunidade de Caxiuanã, em uma pequena palafita. As turmas, mistas, revezavam-se em dois ou três períodos diferentes, pois as 'salas de aula' não comportavam muitos alunos. O MPEG, além da construção das escolas, possibilitou aos professores a participação no Projeto Gavião, em Melgaço, onde concluíram o ensino fundamental de 1a à 8a séries. Recentemente terminaram o ensino médio (magistério), e a colação de grau aconteceu em outubro de 2001. Os três professores têm recebido e fornecido informação por meio de oficinas oferecidas pelo MPEG, que também têm como público alvo professores da rede pública do núcleo urbano de Melgaço. Foram realizadas, até agora, duas oficinas especificamente para os professores: de sensibilização ambiental e de levantamento do universo vocabular local. Os resultados desta última estão sendo aproveitados para a produção de material didático a ser utilizado pelos professores locais (já existe uma cartilha, que se chama Viver em Caxiuanã). Os efeitos da chegada do MPEG e seu Programa Floresta Modelo apontam para diversos aspectos da vida dos habitantes de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal. No aspecto econômico, o incentivo a novas fontes de renda, sobretudo a prática do artesanato em tala, aumenta a circulação de moeda nas localidades. Também é resultado da ação direta do Museu a recente organização dos moradores locais em uma cooperativa (Coopercaxiuanã). Criada em meados de 1999, a cooperativa atuou por oito meses consecutivos, em um primeiro momento, durante os quais os ribeirinhos passaram a fazer suas compras em conjunto, barateando seus custos com importados. A idéia era que tudo o que saísse das comunidades (exportações) passasse também pela cooperativa - como no caso dos objetos artesanais. Entretanto, uma série de malentendidos paralisou temporariamente as atividades da cooperativa, que só foram retomadas com a eleição de um novo presidente e um outro tesoureiro, no primeiro semestre de 2001. Uma boa medida da intensidade da interferência do Programa Floresta Modelo nas localidades são os dados referentes à utilização da energia fotovoltaica. Desde a instalação dos kits, em novembro de 1998, diversas atividades tornaram-se 52 possíveis a partir das 19h, de acordo com enumeração feita pelos próprios ribeirinhos: tecer, costurar, estudar, ler, lavar louça, buscar água, reunir os amigos para ouvir música, lavar roupa e até mariscar. Atividades como cozinhar e 'jantar' demandam menos esforço. Pode-se jantar mais tarde porque se tornou mais fácil cozinhar e até mesmo pescar à noite, nos arredores das moradias. Ao longo destes quase três anos (novembro de 1998 a setembro de 2001), a energia acumulada nas baterias tem sido basicamente direcionada para alimentar os bicos de luz - que ficam acesos diariamente das 18h30 às 6h - os aparelhos de som e, nas residências que os possuem, os televisores (3 aparelhos antes da chegada da energia e 5 agora). Notou-se, então, que aquelas pessoas ganharam algumas horas em seus dias. Instituiu-se um novo regime de tempo, onde a rotina foi esticada. Em meados de 1999, um hábito adquirido depois da disponibilidade da luz já vinha ocupando, em muitas casas, grande parte das 'horas ganhas', principalmente de mulheres e crianças: a tecelagem noturna. O hábito de tecer talas de arumã 22 não é novo na região. As mulheres de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal já utilizavam o material para a confecção de objetos de uso doméstico como tipitis 23 , cestos, paneiros 24 e peneiras. No início de 1998, a coordenação da ECFPn começou a incentivar a prática artesanal através de oficinas que tinham como objetivo melhorar o acabamento dos artefatos confeccionados pelos habitantes locais. Após a primeira oficina, o MPEG passou a encomendar objetos de arumã para as comunidades, pagando por eles em dinheiro. A atividade pouco a pouco passou a ocupar mais tempo, sobretudo das mulheres (mas também de jovens e adolescent es de ambos os sexos). Entretanto, durante o dia, os afazeres domésticos, os filhos e a roça impediam que as mulheres pudessem dedicar muitas horas ao trabalho artesanal. Com o advento da energia, essas horas ganhas acabaram se tornando, rapidamente, horas úteis no melhor sentido moderno. A comparação de alguns dados retroativos com informações mais recentes ilustra esse processo. Na primeira encomenda feita pelo MPEG, em junho de 1998 (portanto antes do advento da energia fotovoltaica), foram pedidas 300 peças ao todo para as três comunidades (100 peças para cada uma delas). Na data marcada, apenas 75 objetos foram entregues pelas três 22 Planta da família das marantáceas (Ischnosiphon ovatus) com a parte interna da haste flexível e resistente com a qual se tece artefatos de uso doméstico e ornamental. 23 Utensílio longo e cilíndrico feito de talas com uma alça em cada ponta que serve para extrair o suco da mandioca (tucupi). 53 juntas. Em junho de 1999 novamente foram encomendados 300 artigos, com prazo de entrega estipulado para a primeira semana de agosto - mas o Museu deixou explícito que compraria toda a mercadoria existente, caso a produção ultrapassasse o número encomendado. Findo o prazo, foram entregues 774 peças 226 de Caxiuanã, 457 do Laranjal e 91 da Pedreira. Ou seja, a produção foi 158% superior ao número de artefatos pedidos. De acordo com os depoimentos colhidos na época infere-se que, sem o advento da luz, não teria sido possível gerar mercadoria além do que fora pedido. No Laranjal, onde se registrou a ocorrência mais significativa de aumento de produtividade, 60% das pessoas admitiu tecer até as 22h ou 23h. O próprio líder da comunidade resumiu, em uma conversa informal, o que vinha se passando no local com a novidade representada pela luz: “...quando chega a noite ninguém mais quer ir dormir. Ficam tecendo e conversando até tarde aí no terreiro ...” Já em 1999, constatou-se que em 15 das 22 casas então pesquisadas nas três comunidades o artesanato era uma atividade geradora de renda, ainda que intermitente. Posteriormente, também foram ministradas oficinas de artesanato com argila, cipó e fibras, que igualmente geraram objetos comprados pelo MPEG e encaminhados para venda na loja então existente no Parque Zoobotânico 25 , em Belém. Em setembro de 2001, artefatos confeccionados em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal podiam ser vistos no estande do MPEG na feira Pará Arte, em um ponto turístico de Belém. O que se nota no âmbito social é que, por conta do advento da escola e das oficinas profissionalizantes oferecidas pelo MPEG, as famílias estão deixando de exercer com exclusividade a função de 'núcleos de formação profissional', embora continuem a ser unidades de produção e consumo diretos dentro do sistema de reprodução simples que caracteriza as comunidades estudadas. Elas já não são as únicas referências do ribeirinho, tanto no tocante à sua sobrevivência no sentido físico (biológico) quanto no sentido social. A importância da família como força motriz e auto-suficiente que garante a sobrevivência de seus membros, descrita por vários 24 Cestos de trançado largo, de cipó ou talas, com uma alça que o usuário pendura na cabeça. Serve para carregar o produto da lavoura, a lenha e a caça. 25 Na sede do Museu Paraense Emílio Goeldi, no bairro de Nazaré, em Belém, há um parque com exemplares de animais típicos da região, como a onça, o pirarucu, tartarugas e jacarés. Neste local, o MPEG manteve, até setembro de 2001, uma loja onde eram comercializados, entre outros produtos, os artefatos produzidos em Caxiuanã. 54 autores que trabalharam e trabalham com as categorias camponesas conhecidas (Cândido, 1955; Galvão, 1975; Wagley, 1957; Albersheim, 1962; Furtado, 1994; Pierson, 1972), começa a se redefinir por força de outras relações, mais modernas, derivadas de fatores exógenos. Por tudo o que foi exposto, pode-se dizer que o dia-a-dia das comunidades vem sofrendo modificações após a chegada do MPEG ao local, pois as ações do Programa Floresta Modelo visam, em última instância, interferir na relação que a população local tem com o meio que habita: a natureza. De um modo geral, apesar de funcionar como mediador entre as relações das comunidades com o Ibama, o Museu parte do mesmo pressuposto para justificar sua interferência na vida das comunidades locais: o de que a relação entre estas e o meio precisariam ser revistas, redimensionadas: aperfeiçoadas. É evidente que, sob diversos ângulos, a presença do MPEG vem promovendo uma melhora nas condições de vida das três localidades do entorno. O aumento do padrão de conforto e a garantia de certos direitos básicos, como o direito à educação e à saúde, são bons exemplos. O ambulatório existente na ECFPn, além de socorrer vítimas de acidentes com ofídios e outros animais vindas de localidades de dentro e de fora da floresta, acaba funcio nando como um posto de saúde, onde se pode conseguir remédios para 'males menores' como uma febre ou uma diarréia, pois na Flona não existe nenhum tipo de estrutura para prestação de assistência médica. Nestes casos, o MPEG preenche também um vácuo do poder público municipal, o que o reveste de certa 'polivalência' aos olhos das comunidades locais. Entretanto, para elucidar o processo em curso nas localidades referidas com a chegada do MPEG à Flona há que se ressaltar ao menos três aspectos de sua intervenção: o primeiro é que se procedeu à implementação do Programa Floresta Modelo não porque primordialmente se tenha pensado nas comunidades da Flona e entorno, ou detectado que estas localidades necessitassem de ‘ajuda’, mas porque o MPEG viu-se diante da necessidade de legitimar, junto aos habitantes locais, sua presença na área. Em segundo, o Programa foi implantado sem que se soubesse, de fato, quais eram as relações que estas populações mantinham com o meio, já que não havia nenhum estudo dando conta da não- sustentabilidade delas. Finalmente, em terceiro, vale ressaltar que o MPEG não designou nenhum pesquisador para acompanhar os impactos que seu Programa poderia surtir – como de fato está fazendo - em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, o que torna mais complicado precisar se as atividades incentivadas 55 nas referidas localidades têm tornado mais ou menos ‘sustentáveis’ as relações destas com o meio natural. Se, por um lado, o MPEG conseguiu melhorar as condições de vida e o nível de conforto dos ribeirinhos das três localidades, por outro – e paradoxalmente – parece ser também um fator de instabilidade local. Esta propensão do MPEG a gerar instabilidade local se intensifica sempre que a instituição passa por modificações de ordem político-administrativa que se refletem diretamente na gestão da Estação. A manutenção da ECFPn (contratação e pagamento de pessoal, compras mensais de mantimentos , etc) é terceirizada. Quando os contratos com a empresa responsável expiram, alguns funcionários são demitidos e depois que o contrato se renova, readmitidos. Em setembro de 2001, a ECFPn foi fechada para novos projetos. De acordo com informações obtidas junto à reduzida equipe que ainda trabalhava na coordenação da estação, o local ficaria fechado para novos projetos até novembro de 2001, meses durante os quais o Programa Floresta Modelo também seria suspenso. Nesse meio tempo, o coordenador da Estação entregou o cargo e um novo pesquisador o assumiu. 2.5 – Pedreira, Caxiuanã e Laranjal Antes de iniciar a caracterização das três localidades, é necessário salientar as diferenças existentes entre elas, para evitar a generalização de aspectos que não são comuns. Em Caxiuanã, além das residências estarem dispersas ao longo do rio e não concentradas em um ou mais núcleos de terra firme, como as outras duas - nota-se uma estreita ligação com a ECFPn. Isso sem contar o fato de ser a única das três que, efetivamente, se encontra sob a jurisdição do Ibama (não sendo permitidas, portanto, atividades como a implantação de roça na mata, a retirada de madeira e palmito para venda, a construção de novos núcleos familiares, a caça e a pesca para comercialização, etc). Na verdade, as pessoas que vivem dentro da área cedida ao MPEG pouco freqüentam as duas comunidades vizinhas, exceção feita aos funcionários da Estação, que estão sempre levando pesquisadores e visitantes de voadeira para trabalhar nelas ou conhecê- las. Pedreira e Laranjal, pela proximidade física, pelas atividades econômicas em comum, que serão descritas mais adiante, e até por afinidades religiosas entre alguns de seus membros, mantêm contato mais intenso entre si. Caxiuanã, como seria de se 56 esperar, estreitou seus laços com a Estação. Pedreira e Laranjal guardam a semelhança de estarem constituídas no espaço que se chama de ‘zona tampão’ ou, como define o Ibama, ‘zona de transição’: locais estratégicos para a manutenção do núcleo propriamente protegido – no caso, a Flona Caxiuanã – e que sofrem, por isso mesmo, mais pressões por recursos. Como já se disse, a Resolução nº 13 do Conama (ver resolução nº13 em anexo) permite ao Ibama interferir nestas comunidades, pois estipula uma faixa de 10 km ao redor das UCs na qual “... qualquer atividade que possa afetar a biota deverá ser obrigatoriamente licenciada pelo órgão ambiental competente” (Ibama,1997). A Pedreira tem a peculiaridade de ser a única das três que fisicamente apresenta-se, grosso modo, da mesma maneira desde sua formação. Naturalmente, os mais velhos foram morrendo, ou se mudando, e suas casas foram derrubadas, ao mesmo tempo em que os filhos constituíam moradias separadas. Mas esta é uma dinâmica intrínseca a qualquer local que, neste caso, pouco tem a ver com a intervenção do antigo IBDF. Já o Laranjal pode ser considerado uma conseqüência direta da intervenção estatal, uma vez que todos os seus membros residiam dentro da Flona e dela saíram para formar um novo núcleo. 2.5.1) CAXIUANÃ No passado, o rio Curuá era habitado até muito além de onde, hoje, se localiza a Estação Ferreira Penna. Segundo relatos, eram cerca de 80 casas antes do esvaziamento. Atualmente, as unidades familiares existentes na comunidade de Caxiuanã estão alocadas entre a ECFPn e o rio Caxiuanã (com exceção de quatro casas que se encontram do outro lado deste rio, localizadas a nordeste e a oeste do Ibama). É a mais antiga das comunidades estudadas: a mãe de Seu Antônio, morador mais velho (casa nº 4), nasceu em Caxiuanã e lá morreu, pelo que dizem, com mais de cem anos. Formada pelas famílias que resistiram à desocupação da área, diferenciase das demais localidades no que concerne à apropriação dos recursos naturais, já que se encontra sob a jurisdição do Ibama, e no aspecto físico - pois as casas não configuram um núcleo ou mais, estando dispersas ao longo dos rios Curuá e Caxiuanã. No início destas pesquisas (1999), treze casas compunham a comunidade, mas hoje são quinze. As uniões entre os membros mais jovens de Caxiuanã vêm, aos poucos, transformando o aspecto físico da comunidade pois, no lugar de casas solitárias, nota-se 57 que se vão formando núcleos de habitação. Nestes casos, verifica-se o uso comum das terras, sendo que os núcleos familiares dividem o quintal, a casa de farinha e, eventualmente, uma horta. Em 1999 foram contadas 95 pessoas, das quais 63 tinham entre 0 e 18 anos. Em 2001 já eram 106 pessoas. Todos os funcionários da ECFPn que são da região pertencem à comunidade de Caxiuanã, sendo atualmente cinco o número de homens empregados pelo MPEG. Quando a Estação tinha pouco tempo de existência, alguns membros da comunidade trabalhavam por diária (R$ 10,00), abrindo picadas na mata para os pesquisadores. Hoje quase não existe mais esse tipo de prestação informal de serviços. As relações desta comunidade com o Ibama também são mais intensas do que as das outras duas, não só porque o referido órgão atua diretamente sobre o espaço físico em que está localizada, mas também porque alguns parentes de moradores de Caxiuanã trabalham para ele. O ex- gerente da Flona é cunhado de Seu Mariano (casa nº 10) cujo irmão, como já se disse, trabalha para o governo federal desde os tempos do extinto IBDF. Recentemente, Seu Mariano recebeu uma represália por ter feito uma roça de mandioca de 40 braças na mata, mas enfrentou o cunhado e manteve a roça (ver entrevista em anexo). Seu Mariano afirma que possui documentos das terras que ocupa justamente aquelas que teriam sido deixadas pelos proprietários do estabelecimento de comércio localizado na Caiçara, onde hoje estão, além de sua casa (nº 10), as casas de Dona Naza e Rui, respectivamente sua madrasta e seu irmão26. Hoje, todas as famílias cultivam roças - embora em anos anteriores alguns dos funcionários da ECFPn tenham deixado, temporariamente, de trabalhar na lavoura. As donas-de-casa mantêm hortas com culturas como cebolinha, couve, ‘orelha de macaco’ e pimenta verde (como também acontece nas outras duas comunidades). Planta-se mandioca e macaxeira (Manihot esculenta), milho (Zea mays), cana (Saccharum spp.), jerimum (Cucurbita moschata), feijão (Phaseolus vulgaris), banana (Musa spp.), abacaxi (Ananas comosus), maxixe (Cucumis anguria) e cará (Dioscorea sp.). Nas cinco casas em que se realizou o levantamento das frutas consumidas (silvestres ou plantadas nos quintais), as espécies citadas foram abiu (Pouteria caimito), açaí, ajuru (Chrysobalanus icao), ameixa (Eugenia cumini), bacaba (Oenocarpus bacaba), bacuri (Platonia insignis), bacuri-açu, bacuri-pari, biribá 26 Para uma descrição mais pormenorizada de cada uma das famílias residentes nas comunidades, ver anexos. 58 (Rollinia mucosa), buriti, cacau (Theobroma cacao), cacaúba, caju (Anacardium occidentale), castanha (Bertholletia excelsa), cuia, cubiu (Solanum sessiliflorum), cupuaçu (Theobroma grandiflorum), cupuí (Theobroma subnicanum), cutitiribá (Pouteria macrophylla), fruta-pão (Artocarpus incisa), goiaba (Psidium guajava), graviola (Annona muricata), inajá (Maximiliana maripa), ingá (Inga edulis), jambo (Eugenia jambos), jenipapo (Genipa americana), jutaí, laranja (Citrus spp.), limão (Citrus spp.), limão-cidra, mamão (Carica papaya), manga (Mangifera indica), mucajá (Acrocomia sclerocarpa), murici (Byrsonima crassifolia), piquiá (Caryocar villosum), pupunha (Bactris gasipaes), puruí (Borojoa sorbilis), sapotilha, taperabá (Spondias mombin), tucumã (Astrocaryum vulgare), umari (Poraqueiba sericea), urucum (Bixa orelana) e uxi (Duckesia verrucosa). Salvo os trabalhadores assalariados e aqueles que recebem aposentadoria, os demais dependem daquilo que conseguem produzir e vender, sobretudo farinha, feijão e melancia (Citrullus lanatus), e dos produtos oriundos da coleta, como a castanha (cuja safra vai geralmente de janeiro a abril) e o açaí (que só dá a partir do segundo semestre). Atualmente, a confecção de objetos artesanais (sobretudo feitos com tala de arumã), também se configura uma fonte de renda para as famílias de Caxiuanã. O MPEG, que patrocinou as oficinas de aperfeiçoamento do artesanato em tala, compra praticamente toda a produção local. 59 Figura 1: Renda Caxiuanã (ano 1999) USD 300,00 USD 50,00 USD 40,00 Renda/ cap USD 35,00 USD 200,00 USD 30,00 USD 150,00 USD 25,00 USD 20,00 USD 100,00 Per Capita Unidade Familiar USD 45,00 Renda USD 250,00 USD 15,00 USD 10,00 USD 50,00 USD 5,00 USD 0,00 USD 0,00 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Fonte: Levantamento de campo Quanto à religião dos moradores de Caxiuanã, em seis das casas visitadas, os casais (ou seja, o dono e a dona da casa) eram católicos. Em duas, os casais eram evangélicos. E em uma, a dona da casa era evangélica e o marido, católico. Os evangélicos se reúnem na casa de nº 4 mensalmente, e para estes encontros vem, às vezes, gente do Laranjal, da Pedreira e da Ilha de Terra. Quanto aos católicos, alguns freqüentam as igrejas que existem em povoados localizados nas várzeas de rios vizinhos, como o Marinaú, por exemplo. 2.5.2) PEDREIRA A Pedreira foi fundada pelo marido já falecido de Dona Luzia (casa nº 8) que, recém casado, para lá carregou toda a família da mulher: pai, mãe e sete irmãos. Isso foi há 45 anos. Eles viviam em um local próximo chamado Ilha de Terra, mas Dona Luzia, a mais velha dos oito filhos, nasceu em Marajoí do Amazonas, também no município de Melgaço. A Pedreira é anterior à chegada do Serviço Florestal na região. Hoje reúne basicamente as residências dos três irmãos de Dona Luzia que ficaram - Seu Amaro, Seu Benedito e Seu Paulo - e as dos filhos deles que foram se casando. A única 60 exceção é a casa nº 9, de Seu Orlando, que é primo de Dona Luzia e irmãos, por parte de mãe. Pode-se dizer que, fisicamente, a comunidade está dividida em três núcleos: o maior, onde existem seis casas, o médio, onde há outras três, e um último, de apenas uma casa, a de Seu Orlando (ver croqui em anexo). Um caminho de aproximadamente 200 metros liga os dois primeiros núcleos, sendo esta a distância entre a casa de farinha da casa nº 8 (a casa de Dona Luzia, no extremo esquerdo do segundo núcleo) e o barranco que conduz à entrada da casa nº 6 (a casa de seu Paulo, localizada no extremo direito do primeiro núcleo). Já a residência do terceiro núcleo é acessível por uma trilha no meio de uma capoeira antiga, ou pelo rio, de casco. O tamanho médio das casas a Pedreira é de 42,23 m², maior que os índices do Laranjal e de Caxiuanã. Figura 2: Tamanho médio das casas 43,00 42,23 42,00 41,58 41,00 40,00 39,00 38,00 37,30 37,00 36,00 35,00 34,00 Laranjal Fonte: Levantamento de campo (ano: 2000) Caxiuanã Pedreira 61 Quando a pesquisa de campo foi iniciada existiam oito casas; hoje, são dez. Em 1999, foram contadas na comunidade 45 pessoas, das quais 29 tinham entre 0 e 18 anos. Em 2001 já eram 53 habitantes. A maior renda mensal da comunidade é a de Seu Paulo e Dona Francisca, da casa nº 6 (renda fa miliar mensal R$ 400,00 em 1999). Ele é comerciante, tem um barco motorizado e absorve praticamente toda a produção dos moradores locais. A baiúca de Seu Paulo fornece cerca de 54 itens que vão de água sanitária a biscoitos, passando por linha de costura, espoleta, produtos de higiene pessoal e copos de vidro, sal, café, açúcar e cachaça. Seus preços são de 30% a 50% mais altos que os preços de cidades como Portel ou Melgaço e os irmãos reclamam. Figura 3: Médias de Renda e Gastos Mensais por Unidade Familiar Gastos Renda USD 120,00 USD 100,00 USD 80,00 USD 60,00 USD 40,00 USD 20,00 USD Caxiuanã Pedreira Total Fonte: Levantamento de campo (1999) Seu Paulo compra toda a produção de açaí, castanha, farinha, tarugos 27 e esteios28 da Pedreira, e também compra inúmeros outros produtos das comunidades por onde passa com seu barco. Ele diz que compra cada tarugo por R$ 0,70, mas um morador do Laranjal afirmou receber R$ 0,50 por peça, em dinheiro, sendo que a mesma mercadoria vale R$ 0,60 na troca por outros produtos da mercearia. 27 28 Pedaços de madeira de cerca de 2,40m de comprimento por 10cm de largura. Toras de madeira utilizadas para alicerçar as casas, que podem medir de 4m a 6m de comprimento. 62 Como já foi dito, a Pedreira produz pouca castanha. No ano 2000, Seu Paulo comprou pelas redondezas 1200 latas de 20 litros para comercializar, das quais apenas 100 foram produzidas pela Pedreira. Segundo ele, paga R$ 5,00 pela lata de 20 litros do fruto, que vende para o atravessador (o regatão do Tangará) a R$ 5,50. A mercearia na Pedreira tem dez anos, mas Seu Paulo tem fregueses no rio Juparijó, em Melgaço e em Portel, além de moradores da Caxiuanã e Laranjal. Ao todo, em 2000, foram contados em seu livrinho 96 fregueses residentes nestas localidades. A moeda mais corrente é a farinha, pois sua produção não se trata de uma atividade sazonal, mas perene. No barco volante de Seu Paulo, as pessoas geralmente trocam por farinha produtos importados, ou vindos de outras comunidades. Um saco de 30 kg de farinha vale, hoje, R$ 14,00. Em 2000, valia R$ 12,00. Seu Paulo compra, da Pedreira, cerca de 150 kg de farinha por mês. Apesar da comunidade estar dividida fisicamente, o espaço utilizado pelos moradores é comum, diferentemente de Caxiuanã, onde cada casa ou agrupamento de famílias tem seu próprio quintal. No quintal da comunidade e nas capoeiras e matas do entorno existem, de acordo com uma listagem confeccionada com a ajuda dos ribeirinhos, aproximadamente 45 tipos de árvores frutíferas, que dão as seguintes frutas: abiu, abacate (Persea americana), abacaxi, açaí, ajará, ajurú, aratiau, bacaba, bacabinha (Oenocarpus mapora), bacuri, banana, biribá, buriti, cacau, cacaúba, caju, castanha, caranã (Mauritiella armata), café (Coffea arabica), coco (Cocos nucifera), cupuaçú, cupuí, goiaba, graviola, inajá, ingá, jatobá (Hymenaea courbaril), laranja, limão, limão galego (Citrus spp.), mamão, manga, maracujá (Passiflora spp.), marajá (Bactris marajá), mucajá, murici, piquiá, pupunha, taperabá, tange rina, tucumã, umari, e uxi. Quanto ao aspecto religioso, das oito casas visitadas, duas tinham moradores evangélicos (nº 2 e nº 3) e seis, católicos. Seu Amaro e Dona Ana, da casa nº 2, converteram-se há cerca de 20 anos. Dona Ana foi, durante muito tempo, a herdeira da festa do Espírito Santo que seu pai realizava, entre os meses de maio e junho. Quando se converteu, vendeu o santo – motivo que rende críticas por parte dos católicos, ainda que não declaradas explicitamente. A comunidade comemorava também a festa de Santana, na casa do pai de Dona Luzia, no final do mês de julho. Segundo ela, a última aconteceu há cerca de 20 anos. Apesar de serem em menor número, os evangélicos são bastante unidos e organizados. Realizam culto todo sábado, na escola, pela facilidade de acesso que têm 63 a esse prédio, pois a professora da comunidade é evangélica. Já os católicos se reúnem às terças, sábados e domingos para rezar novenas na casa de Mara (nº 7). Essas reuniões acabam se tornando ‘festinhas’, chamadas pelos moradores locais de ‘mucuras’. Antes da chagada da energia, as mucuras tinham hora para acabar: quando terminavam as pilhas do toca- fitas, cada um ia para sua casa. Hoje, ligados na tomada, os aparelhos de som animam as ‘mucuras’ até mais tarde. Hoje, todas as famílias plantam roças para subsistência e eventual comércio do excedente. Em 1999, as casas nº 6 e nº 7 não tinham roçado. As culturas citadas pelos moradores da Pedreira foram mandioca e macaxeira (Manihot esculenta), milho, cana (Saccharum spp.), jerimum, feijão, melancia, banana, maxixe, cará e ananás. Ao contrário de Caxiuanã, existem poucos castanhais no entorno da Pedreira. Mas, como já foi dito, os ribeirinhos complementam a renda extraindo madeira e pedras – atividade realizada por Seu Amaro e filhos em conjunto com alguns chefes de família do Laranjal, e também por seu Orlando. Vendem, eventualmente, o azeite de copaíba e o de andiroba. O artesanato vem se configurando, nos últimos meses, uma alternativa de renda para as famílias locais, sendo praticado mais pelas mulheres e crianças. Não existem assalariados na Pedreira, com exceção da professora (casa nº 3). Seu Amaro recebe aposentadoria no valor de um salário mínimo por mês (em números de hoje, aproximadamente R$ 180,00). 2.5.3) LARANJAL A mais afastada, com relação à ECFPn, é o Laranjal. Ao todo são seis casas, cujo acesso se dá pela travessia de um estreito igarapé, que no verão seca muito. Em 1999, na primeira viagem de campo, contabilizou-se um total de 55 pessoas, das quais 37 tinham entre 0 e 18 anos. Em 2001, já eram 59 pessoas. No Laranjal não há barco a motor, nem televisores. As casas têm poucos cômodos - a maior mede 53,76 m² - e as famílias têm mais filhos que as de Caxiuanã e Pedreira. 64 Figura 4: Média de espaço disponível per capita por casa 25,00 20,00 15,00 10,00 5,00 0,00 L1 L2 L3 L4 L5 L6 P2 P3 P4 P5 P6 P7 P8 P9 C1 C2 C3 C4 C5 C6 C7 C8 C9 C10 C12 Fonte: Levantamento de campo (ano: 2000) A comunidade, como se encontra hoje, foi formada há doze anos. Seu Policarpo, o líder local, afirmou que as famílias mudaram-se para lá porque ha viam sido despejadas pelo Ibama de onde moravam - um sítio de frente para a baía de Caxiuanã, entre a casa nº 5 da comunidade de Caxiuanã e a comunidade da Pedreira, chamado por todos de Minas (ver mapa anexo). Viveram durante cerca de 16 anos nas Minas, até 1983, quando se mudaram e formaram o Laranjal. Este, a exemplo da Pedreira, também está dividido em três núcleos: no primeiro está a casa de Seu Policarpo e Dona Rosário (nº 1), a da professora (nº 3) e a de Seu Pequeno e Dona Arlene (nº 2). Lá também ficam a escola, inaugurada em maio de 2000, o poço d'água e uma casa de farinha, usada comunitariamente. No segundo núcleo há mais três casas: a de Seu Evandro e Dona Dora (nº 5) e a de seu Bento (nº 6), um senhor aposentado que divide sua moradia com o casal Arnaldo e Selma (filha de Seu Policarpo). Por fim, o terceiro núcleo tem apenas uma residência, a de Seu Ilídio e Dona Lúcia (nº 4), que possui sua própria casa de farinha. Os locais são interligados por trilhas que, no inverno, costumam alagar. No Laranjal, todos são evangélicos, sendo que o líder da comunidade é também o líder religioso local. É quem organiza os cultos, em sua própria casa, às quartas, sábados e domingos à noite. Também organiza as festinhas de aniversário, as 65 únicas que acontecem no local fora os encontros religiosos. É estranho notar, entretanto, que a igreja que um dia se planejou construir nunca passou de quatro estacas enormes fincadas no chão. A renda das famílias provém basicamente do extrativismo. Além de pedra, retirada por três famílias em conjunto com os residentes da casa nº 2 da Pedreira, igualmente crentes, também extraem madeira e açaí para venda, e ainda o óleo de copaíba, o óleo de andiroba e o mel. Outro produto extraído da floresta é um cipó muito procurado, o timbuí - mais conhecido como cipó titica - usado para a confecção de cestos, cadeiras e outros objetos artesanais. Não há castanhais no Laranjal. Fora o extrativismo, os habitantes do local praticam a agricultura e fazem artesanato. Com exceção da professora, não existem assalariados, e apenas uma pessoa recebe aposentadoria, no valor de um salário mínimo. Em 1999, a média de filhos por casal no Laranjal era maior que a registrada nas duas outras comunidades: 7,2. Em Caxiuanã, esse número era de 5,1 e na Pedreira, 3,8. Em 2001, esta média se manteve praticamente inalterada para Caxiuanã e Pedreira (respectivamente 5,0 e 3,7 filhos por casal), tendo caído no Laranjal para 6,1 – o que ainda faz, desta, a comunidade com maior número de filhos por casal, embora estes números, em comparação com referentes às outras duas, esteja declinando. Planta-se mandioca, milho, cana, jerimum, macaxeira, feijão, melancia, banana, maxixe, cará e ananás, batata (Solanum tuberosum) e abacaxi. Dentre as frutas que existem no local - tanto nos quintais quanto no mato - foi relatada a ocorrência das seguintes espécies: abacate, açaí, ajará, ajurú, ameixa, bacaba, banana, biribá, buriti, cacau, cacaúba, café, cajú, cana, caranã, castanha, coco, cupuaçú, cupuí, jenipapo, goiaba, graviola, jambo, jatobá, inajá, ingá, laranja, lima da pérsia (Citrus spp.), limão de caiana, limão-tangerina (Citrus spp.), mamão, manga, maracujá, marajá, mari- mari, mucajá, murici, piquiá, pupunha, tangerina, taperebá, umari, urucum (Bixa orelana) e uxi. Nos quintais, os moradores também plantam o jambú (Spilanthes oleracea), a pimenta vermelha (Capsicum sp.) e o dendê (Elaeis guineensis). 66 2.6 - As instituições e seus papéis Uma questão a ser levantada, na tentativa de delinear a visão que os ribeirinhos têm da ação das instituições na área da Flona, aponta para o 'acordo' implícito entre populações locais e Ibama, no tocante ao uso dos recursos naturais, e para o papel do MPEG como co-participante neste cenário. A peculiaridade da situação reside no fato de que, na Flona Caxiuanã, a 'parceria ecológica' - definição utilizada por Lima (1997) para a aliança observada em alguns lugares da Amazônia brasileira entre ongs e movimentos de populações locais nos últimos anos - é composta por outros parceiros. Estes parceiros são o governo federal (Ibama e MPEG) e as populações locais não organizadas. No jogo de forças que se estabelece, o MPEG aparece como uma instituição que compensa os sacrifícios exigidos pela outra. A longo prazo, a presença do Museu no local pelos próximos 30 anos e mais se afigura, aos olhos das comunidades, como uma garantia de certo 'sossego'. No triângulo que se formou, é aceitável viver sob as normas restritivas que preconizam o 'desenvolvimento' (Lima, 1997) não pela atuação do Ibama - que não retornou em troca benefício algum - mas pela do MPEG. Este consegue carrear recursos para investir em seus projetos nas localidades, enquanto que o outro e as instituições que o antecederam, durante 33 anos nunca foram provedores nem mesmo de infraestrutura de saúde e educação para a população local. Aliás, a ausência dessa infraestrutura é uma das questões apontadas por Machado (1998) para explicar a falta de êxito na gestão de grande parte das Unidades de Conservação no Brasil. Por outro lado, as relações do MPEG com o Ibama apontam para uma parceria - no sentido de que o órgão federal de fiscalização é chamado a participar do Programa Floresta Modelo - mas também sugerem certa subordinação, já que qualquer iniciativa que remeta a intervenções em nível territorial, mesmo na área cedida ao Museu pelo convênio, deve contar com a autorização do segundo. Assim aconteceu, por exemplo, quando se quis construir a escola na comunidade de Caxiuanã. Ela foi erguida em uma ilhota próxima à ECFPn que, segundo o ex-coordenador da base, já fora ocupada antes por uma moradora, configurando-se uma área de capoeira muito antiga. Consta, porém, que o processo de liberação do local foi longo e exigiu uma série de negociações com o Ibama. 67 A despeito das tentativas deste órgão de se impor junto aos moradores locais, nota-se que sua autoridade é, muitas vezes, ignorada, e até mesmo contestada. Na Comunidade de Caxiuanã, por exemplo, conforme depoimentos, na última boa safra de castanha (início do ano 2000) ninguém pagou a taxa em espécie exigida pelo órgão federal. Outro exemplo de que a autoridade local pode ser desafiada é a casa de nº 9 da comunidade de Caxiuanã. Segundo os ribeirinhos, o Ibama não havia autorizado o morador (filho do casal residente na casa nº 4) a erguê-la. Mas a comunidade se uniu para garantir que a casa fosse terminada e ela não foi derrubada. Isto se deveu, provavelmente em parte, ao fato do ex-gerente da Flona ter laços de parentesco com uma das famílias da comunidade, como já foi referido. Possivelmente, também se deva a certo receio do ex-gerente quanto a protagonizar mais histórias violentas como a relatada no início deste trabalho e, assim, perder o pouco de respeito que ainda consegue angariar junto aos moradores locais. O desgaste nas relações entre ribeirinhos e Ibama – e a conseqüente perda de prestígio do órgão junto aos habitantes da Flona – é um fenômeno já diagnosticado por autores como Machado (1998), para quem a autoridade e a legitimidade dos órgãos encarregados da fiscalização das reservas são deterioradas por sua própria atuação deficiente. Tanto na comunidade de Caxiuanã quanto nas do entorno, ouvem-se comentários e reclamações com relação à lassidão do Ibama em coibir, sobretudo, atividades ligadas à extração de madeira nas proximidades da floresta onde, como já se disse, uma resolução do Conama permite que se atue. Enquanto a população local - e aí se incluem os moradores de Pedreira e Laranjal - é proibida de retirar da floresta madeira em toras, madeireiros estariam agindo com motosserras nos limites da Flona 29 . Frente à expansão da influência do Museu Goeldi - que, apesar de atravessar uma crise de escassez de recursos, ainda tem mais funcionários, mais barcos e conta com uma estrutura maior e melhor do que a do Ibama - resta ao órgão federal agarrar-se à sua função de fiscalização, junto às populações residentes na Flona, para legitimar sua função. É preciso atentar ainda para o fato de que a chegada do Museu à 29 O ex-gerente da floresta afirma que problemas com relação à extração ilegal de madeira 'não são de seu conhecimento'. Entretanto, recentemente a imprensa noticiou existência de uma estrada para puxar madeira que passa por dentro da Flona Caxiuanã, e que teria sido aberta com tratores por um madeireiro que estaria invadindo terras no município vizinho de Gurupá. (ver matérias publicadas no dia 15 de março de 2001 nos jornais O Estado de São Paulo, o Diário do Pará, O Liberal e a Província do Pará em anexo). Segundo depoimentos de técnicos de uma ong que trabalha em Gurupá, o Ibama foi chamado ao local e quem comandou a diligência foi justamente o ex-gerente da Flona Caxiuanã. 68 região tornou explícita a existência de uma demanda por serviços públicos por parte das populações locais. Também há que se ressaltar que, embora a situação dos habitantes locais seja, em ternos oficiais, vulnerável, eles têm consciência de que, com relação às outras populações amazônicas que se auto- intitulam 'pobres', gozam de certo 'privilégio'. Em primeiro lugar, a despeito de serem posseiros, não enfrentam conflitos agrários diretos. Em segundo, dispõem de recursos naturais para subsistência - embora tenham de obedecer a certas normas para sua utilização. E, em terceiro, não dependem totalmente do mercado para sobreviver, ainda que estejam conectados a ele pelas vias tênues que caracterizam os resquícios do sistema de aviamento. Pelo que se observa, as comunidades estudadas aspiram ao mínimo possível que garanta a manutenção de sua capacidade de reprodução social - nem mais, nem menos. O MPEG utiliza métodos de intervenção que aparecem, à primeira vista, como incentivo à manutenção da dinâmica de reprodução social local, embora comungue da mesma conjectura segundo a qual o meio natural teria um 'limite' de suporte que faria com que a presença e a atuação de grupos humanos na Flona tivessem de ser vigiadas. Esta idéia de ‘capacidade de carga’ é originária da ecologia (‘carrying capacity’) e, segundo Bertels & Vellinga (1999: 20) refere-se ao número máximo de indivíduos de uma população em determinada área. 30 Em que pese o fato de o Museu ter restabelecido a confiança das populações locais nas instituições, cabem questionamentos acerca de sua interpretação das demandas locais. Pelo que se observa, o impacto que sofreram essas famílias com as políticas públicas adotadas na Flona tem origem em uma vulnerabilidade histórica: a forma de relação com a terra e a situação condicional de sua estada dentro da Flona (pois teoricamente, pela lei, eles estão ‘autorizados’ a habitar a Flona). A busca de uma sustentabilidade que tivesse como prioridades as estruturas sociais locais deveria estar levando em conta o futuro próximo das Flonas, qual seja, sua exploração por empresas privadas mediante concessão, sobretudo a empresas madeireiras. Na verdade, um planejamento local sustentável sob o ponto de vista comunitário estaria se batendo pela idéia de que a gestão da Flona – seja esta posteriormente aberta a madeireiros, ecoturistas ou pesquisadores – tem de passar pelas famílias locais, como preconizam Sachs & Weber (1997) e Singh (1997). As famílias não devem somente participar da 30 The term carrying capacity originates from ecology, where it refers to the maximum number of individuals of a population within a certain area (1999:20). 69 elaboração de um Plano de Manejo, mas devem ser as primeiras e principais beneficiárias do arrendamento da floresta à iniciativa privada, seja qual for a natureza do ramo a ser explorado dentro da UC. 3 – O MFA: conceitos e procedimentos relacionados à análise de fluxos materiais 3.1 – Conceituação de sistemas abertos, metabolismo e colonização Metodologicamente, as comunidades aqui referidas serão abordadas de acordo com a teoria dos sistemas abertos. Grosso modo, são sistemas que não estão em equilíbrio e que, para garantirem sua manutenção e reprodução, têm de importar matéria e energia do meio no qual se encontram inseridos. Em troca, eles devolvem ao meio os rejeitos de seu processo próprio de funcionamento, que não podem ser assimilados, sob risco de intoxicá- los. Este processo constitui o que se convencionou chamar de metabolismo de um sistema. Fisher-Kowalski (1998) salienta que foram Marx e Engels os primeiros a empregar a noção de metabolismo para caracterizar a Sociedade, emprestada da biologia por vários cientistas sociais sob a influência da Teoria da Evolução, de Darwin. Os materialistas fisiológicos conc eituaram o metabolismo como uma troca de matéria entre um organismo e seu ambiente. A melhor analogia que se pode fazer para compreender o funcionamento de um sistema aberto é justamente com o corpo humano - um sistema aberto que consome energia e matéria do meio e devolve a ele energia e matéria desvalorizadas. O metabolismo de um sistema aberto é, portanto, a forma pela qual esse sistema funciona, ou seja, sua conexão com o meio, representada pelos processos de importação, processamento e exportação de matéria e energia. Essa idéia remete ao que se convencionou chamar de metabolismo energético-material de um sistema aberto (MEM). As quantidades de trabalho e energia necessárias para reproduzir esse sistema fazem parte do conceito de metabolismo, uma vez que se sabe que, quanto mais escassos os recursos vitais à manutenção de um sistema, mais trabalho será necessário para a consecução desses recursos. Um sistema não é uma unidade compacta, mas formada internamente por elementos entre os quais deve haver uma coerência – ou um ‘padrão médio de comportamento’ (Fenzl, 1997: 10) - que garanta a manutenção do chamado estado 70 estacionário em que o mesmo se encontra. Mas tampouco um sistema se resume a seus elementos, até porque a coerência entre eles depende diretamente do ambiente que lhes fornece energia e matéria. Todo sistema aberto é formado, basicamente, por três dimensões: uma microscópica (relativa ao espaço interno do sistema), uma intermediária (relativa ao nível de suas fronteiras estruturais) e uma macroscópica (referente ao meio com o qual esse sistema troca energia e matéria). "Assim, sistemas abertos são constituídos por uma estrutura e um campo de interação, ambos intermediados por um plano de referência, a fronteira estrutural" (Fenzl, 1997: 7). A idéia de uma fronteira com o meio remete ao conceito de colonização, que é relativo ao uso da terra pelo ser humano, ao modo de apropriação da terra. A noção de colonização está intimamente ligada ao montante de trabalho atribuído ao homem que a habita: quanto maior ele é, mais intensamente se dá a colonização (Singh et al., 2000) 31 . A intensa colonização que a sociedade moderna vem exercendo sobre seu meio natural é que referenda e idéia de que se quisermos sobreviver enquanto sistema é necessário que mudemos nosso metabolismo. Estamos ocupando cada vez mais espaço e o lixo que produzimos vem testando a capacidade de assimilação da biosfera, que é um sistema fechado, pois importa apenas energia de seu meio circundante – o universo. Em outras palavras: na biosfera, a matéria é finita, está dada. Os recursos, uma vez usados, foram dissipados e ainda que possam gerar novos produtos mediante reciclagem, ou servir como fonte de energia alternativa, não se encontram mais disponíveis em sua forma original. Uma latinha de refrigerante reciclada pode gerar alumínio para ser reutilizado, mas a bauxita, sua matéria prima, foi dissipada no momento em que deu entrada no sistema produtivo. Em suma, o conceito de colonização refere-se ao aspecto do metabolismo de um sistema pelo qual este é obrigado a formatar constantemente seu ambiente relevante para garantir sua manutenção. No caso da humanidade, o metabolismo próprio do sistema capitalista vem moldando a colonização da Terra sobre padrões insustentáveis. Redclift (1987) chamou a atenção para este processo, sintetizando o espírito que, na época da publicação do Relatório Brundtland 32 , movia as discussões em 31 Colonization is intimately linked to human labour – the higher the amount of human (possibly also animal, machine) labour, the more intensive the colonization occurs. 32 Publicado em 1987, este documento da Comissão das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento pontuava que as questões sobre o desenvolvimento econômico das nações teriam de ser debatidas junto com as questões ambientais. Nosso Futuro Comum (Our Common Future) ficou conhecido como Relatório Bruntland porque este era o sobrenome da ministra da Noruega que presidia a Comissão. 71 torno do conceito de desenvolvimento sustentável: "...the problem we are facing is not simply how to compensate for the interruption of ecological succession, it is frequently how to ensure that production itself does not degrade resources beyond the point of renewal" (1987:18). Os recursos naturais (renováveis e não renováveis) vêm sendo usados com irresponsabilidade e o desperdício inerente a esse modo de utilização - assim como a emissão de resíduos que caracteriza as sociedades industriais - não são computados pelos índices que medem a saúde dos sistemas econômicos. Nossa intervenção afeta os chamados ciclos biogeoquímicos da biosfera (água, oxigênio, carbono, nitrogênio, fósforo e enxofre), de cuja circulação e estoques depende o equilíbrio dinâmico do Planeta (Bertels & Vellinga, 1999). Em escala mundial, a Sociedade vem produzindo interferências no funcionamento do ambiente natural da Terra em seu exercício contínuo de adapta- lo às suas necessidades e, ainda que quatro quintos do mundo sejam relativamente não industrializados, a atividade industrial tem sido intensa o suficiente para modificar principalmente os ciclos globais de carbono e de nitrogênio. Um exemplo emblemático desta interferência é a taxa de concentração atmosférica de dióxido de carbono, que subiu de 280 partículas por milímetro (ppm) nos tempos préindustriais para 367 ppm hoje (Keeling & Whorf, 1998, citados em World Resources Institute, 2000). 3.2 - O MFA (Material Flow Account) Cavalcanti (1997) afirma que a primeira característica intrínseca a um modelo de processo econômico ecologicamente sustentável é que o sistema econômico saiba de que maneira depende do ecossistema, seja como fonte de recursos ou depósito de dejetos. Embora pareça trivial, essa idéia embute a necessidade de quantificação de tudo aquilo que cruza as fronteiras do sistema, tanto na entrada (input) quanto na saída (output). Nesse contexto, o conceito de metabolismo sócio-econômico mostra-se bastante pertinente para tentar prover medidas da utilização e do consumo de recursos pela Sociedade, tanto em nível local quanto global, e da deposição de dejetos no ambiente. Fischer-Kowalski (1999: 6) define metabolismo sócio-econômico como a soma dos fluxos de energia e material para dentro, para fora e no interior de um 72 sistema 33 . Todo sistema sócio-econômico tem duas fronteiras: uma com outros sistemas sócio-econômicos e outra com o meio natural onde está inserido. Para 'medir' a eficiência do metabolismo sócio-econômico, tanto em nível mundial como nacional e local, cientistas e pesquisadores de várias partes do mundo têm trabalhado na confecção de metodologias e procedimentos que produza m indicadores capazes de quantificar a essência das relações entre homem e natureza nas mais variadas áreas em que se dão (Aiking et al, 1999; Marzall, 1999; Calorio, 1997). Neste trabalho, foi utilizada uma série de métodos conhecida como MFA (Material Flow Accounts). O MFA - que pode ser considerado um arcabouço de ferramentas para a construção de um índice de sustentabilidade - é medido em dois níveis: nacional e local. O caso aqui apresentado é a primeira tentativa realizada, no Brasil, em âmbito local. Neste contexto, cabe apresentar outro conceito referente também à teoria dos sistemas abertos: o de eficiência energético-material (EEM). Grosso modo, a EEM é um parâmetro que avalia a saúde do metabolismo de um sistema. O modelo capitalista, como se vem provando, apresenta um baixo grau de eficiência energéticomaterial, consumindo recursos naturais em abundância, com alta percentagem de desperdício, e devolvendo ao meio um índice de rejeitos que não leva em conta sua capacidade de absorção. Machado (1999), ao utilizar o MFA em âmbito nacional para comparar o metabolismo das economias do Brasil, Alemanha, Holanda, EUA e Japão sob o ponto de vista das respectivas demandas materiais - concluiu que, com exceção da Holanda, em todas as outras se gasta, em desperdícios ignorados, mais de 50% da matéria retirada do ambiente. Realidade muito distante do que pode ser considerado um metabolismo saudável, segundo Fenzl (1997: 25), "capaz de produzir um mínimo de rejeitos com um máximo de aproveitamento do input". Os ‘inputs’ e ‘outputs’ são as bases sobre as quais se constróem os dados dos quais a metodologia necessita para mensurar as trocas entre um sistema e seu meio. Os primeiros se referem à extração de matéria do meio ambiente com o propósito de transformação, via trabalho e tecnologia, por um sistema sócio-econômico. Já os ‘outputs’ compreendem o fluxo de materiais depositados no meio durante ou depois do processo produtivo (Eurostat, 2001). Eles correspondem, geralmente, a emissões de resíduos para o ar e a água, restos do processo de queima de lixo a céu aberto, uso 33 "Socio-economic metabolism refers to the sum of the material and energetic flows into, within and out of a socio-economic system" (1999:6). 73 dissipativo de produtos, perdas, extrações de matéria não utilizada nos processos produtivos e exportações. Os procedimentos do MFA compreendem ainda algumas idéias centrais que são, segundo Fischer-Kowalski (1999) 34 , as seguintes: a) a lei de conservação de massas - segundo a qual o total de matéria e energia injetado no sistema é igual ao total de matéria e energia ejetada do sistema, mais o aumento do estoque de energia e matéria, menos o decréscimo desse estoque (Output = Input + stock increases - stock decreases); b) o fato de que o metabolismo de um sistema sócio-econômico é composto do metabolismo de seus compartimentos físicos, aos quais, isoladamente, a lei da conservação de massas se aplica. Esses compartimentos seriam: seres humanos, animais criados pelos homens e artefatos em geral (construções, máquinas, veículos e também estradas, açudes etc.). Naturalmente, essa idéia implica no 'cálculo' do completo metabolismo dos seres humanos e dos animais pertencentes a determinado sistema, bem como na inclusão dos materiais e da energia utilizados para manter as estruturas 'não vivas' desse sistema; c) os conceitos de estoque e de circulação, que determinam se um sistema está 'crescendo' (em termos físicos), ou 'encolhendo'. Essa noção se refere geralmente ao tamanho da população, de animais criados e ao peso da infra-estrutura existente em um sistema. d) a utilização de água, ar e outros materiais como biomassa, combustíveis, minerais e semi- manufaturados. Esses três grupos de materiais injetados em um sistema não podem ser calculados através de soma ou subtração, como os outros já citados; e) os conceitos de 'direct materials input' e 'hidden flows' (ou 'rucksacks', termo que em português foi traduzido por ‘mochila ecológica’). O primeiro se refere à fração de materiais que, não sendo ar nem água, cruzam a fronteira de um sistema sócio-econômico. Fora das fronteiras de um determinado sistema sócio-econômico, ocorre também um fluxo de materiais que podem ser vistos como pré-requisitos para o input concernente ao sistema estudado, mesmo que eles nunca cruzem a fronteira do sistema. A isso se chamam 'rucksacks'. Geralmente, compreendem emissões e resíduos que ocorreram durante o processo de produção de um bem importado em seu local de 34 Tradução da autora do original em inglês. Trata-se de um manual aplicativo dos procedimentos metodológicos do MFA em nível local. 74 origem. Pode-se entender a noção de ‘hidden flows’ com mais clareza associando-a à porção de matéria retirada do meio mas não utilizada no processo produtivo. As expressões ‘domestic unused extraction’ e ‘unusued extraction associated to imports’ (Eurostat, 2001) referem-se justamente a esses fluxos 35 . Do ponto de vista do fluxo material, cabe o esclarecimento de alguns conceitos. Primeiro, é preciso definir o que são materiais ‘used’ e ‘unused’. No primeiro caso entram os materiais que adquirem status de produto dentro da lógica de determinado sistema. No segundo, aqueles que são extraídos do meio, mas não são utilizados – geralmente são extraídos juntamente com aquilo que vai ser usado, ou por outra, também podem ser retirados para possibilitar a apropriação dos materiais do grupo ‘used’. Outros conceitos importantes são os de ‘domestic flows’ (fluxos domésticos), ‘direct flows’ (fluxos diretos) e ‘indirect flows’ (fluxos indiretos). Chamase de fluxos domésticos aos fluxos de materiais extraídos e depositados dentro dos limites de um dado sistema. A expressão fluxos diretos engloba os materiais que entram fisicamente em uma economia, como input. Fluxos indiretos refere-se ao conjunto de materiais que ocorrem como conseqüência de um processo produtivo, ou no caminho para a obtenção de determinado bem. Dentro dos grupos de ‘inputs’ e ‘outputs’ formam-se indicadores que dão conta da entrada, consumo e saída de materiais no âmbito de determinada economia. No grupo dos inputs, a categoria que demonstra a intensidade de matéria necessária para manter um determinado metabolismo é chamada de DMI (‘direct materials input’, ou ‘matéria diretamente injetada’). Ela se refere à matéria que dá entrada em um sistema econômico, seja de origem doméstica ou importada, excluindo-se o ar e a água, cuja quantificação não pode ser feita por meio de soma ou subtração pois envolve, como assinalou Fischer-Kowalski (1996), a utilização local de bens realmente transnacionais da natureza. Chama-se de TMI (‘total material input’, ou ‘matéria total injetada’) à soma da DMI com os ‘hidden flows’ (fluxos ignorados ou mochilas ecológicas) de origem doméstica. Já TMR (‘total material requirement’, ou ‘matéria total requerida’) inclui na somatória acima as mochilas ecológicas dos produtos importados, medindo, assim, a base material total de determinada economia (Eurostat, 2001). 35 O documento original, em inglês, é um manual aplicativo dos procedimentos do MFA em nível nacional, que explicita os conceitos referentes a esta metodologia. Apesar da presente pesquisa utilizar o 75 Dentre os indicadores de consumo, o mais relevante para esta pesquisa é o chamado DMC (‘domestic material consumption’, ou ‘consumo doméstico de matéria’), que mede o montante de matéria realmente usado pelo sistema. O DMC pode ser representado pela seguinte equação: DMC = DMI (matéria diretamente injetada, que corresponde às extrações domésticas mais a importação) – exportações. Note-se que a diferença entre os indicadores de consumo e de input é uma medida do grau de integração de um sistema econômico com a economia global. No grupo dos ‘outputs’, deve-se destacar o indicador chamado de DPO (‘domestic processed output’ ou ‘ejeção doméstica processada’), referente ao peso total dos materiais usados em determinada economia (tanto de origem doméstica quanto importada) antes de fluírem para o ambiente. A soma do DPO com o montante de extrações não usadas pelo sistema forma o TDO (‘total domestic output to nature’ ou ‘ejeção doméstica total’), que representa a quantidade total de material depositado no meio como conseqüência das atividades econômicas. E o TMO (‘total material output’ ou ‘ejeção material total’) mede o total de matéria que é ejetado de um determinado sistema econômico (TMO = TDO + exportações). Já o indicador DMO (‘domestic material output’ ou ‘ejeção material doméstica’) refere-se à soma do DPO com as exportações. Do ponto de vista da circulação de energia, segundo Fischer-Kowalski (1996), a ‘produção primária global’ anual - energia solar incorporada à biomassa das plantas em um dado período de tempo, base nutricional de toda a vida heterotrófica do planeta - é o mais relevante como medida limite da participação da natureza no fornecimento de energia. “Humans live on this energy as well as all animals and all microorganisms that are not capable of photosynthesis” (1996: 89). A NPP (‘net primary-production’) depende do clima, da qualidade do solo e da disponibilidade de água. Ela só pode ser ampliada marginalmente por tecnologias desenvolvidas pelo homem. É mais fácil, salienta a autora, que o homem a reduza, como tem sido efetivamente observado, por exemplo, através do uso abusivo da terra e da emissão de resíduos tóxicos. Estima-se que sociedade industrial se apossa atualmente de um terço da NPP (Vitousek et al., 1986 citado em Fischer-Kowalaski, 1996), sendo que essa percentagem pode vir a dobrar nos próximos 35 anos, impulsionada pelo crescimento MFA em nível local, entende-se que vários aspectos de sua utilização, incluindo os conceitos que a fundamentam, são comuns. 76 populacional. A autora comparou o consumo per capita de energia em uma sociedade industrial (Áustria) com o registrado em sociedades de caçadores-coletores e em um agrupamento de pequenos agricultores (Törbel, uma vila na Suíça), concluindo que a primeira consome 3,5 vezes mais energia do que as sociedades agrícolas que, por sua vez, consomem 4 vezes mais energia do que as de caçadores-coletores. Ela ressalta que a idéia de que uma única espécie venha a necessitar de mais da metade da ‘base nutricional’ de todas as espécies animais é claramente um prólogo da extinção de determinadas espécies (Fischer-Kowalaski, 1996). E, em última instância, se nada for feito para que este impacto seja assimilado pela biosfera de maneira a possibilitar, ao menos, a manutenção dos ciclos biogeoquímicos que a mantém e a produtividade dos recursos naturais renováveis que sustentam a população humana (McGrath, 1997), explicita possibilidade de colapso do sistema formado pela sociedade humana. É importante salientar que as ferramentas aqui expostas permitem, em nível nacional e local, uma contabilidade distante daquela realizada pela economia tradicional, na qual não se computa o custo dos recursos naturais utilizados - e dos nãoutilizados - nos processos de transformação ou, pior, onde o consumo destes recursos acaba sendo computado como riqueza, como bem salienta Cavalcanti (1997: 75): “... as estatísticas do PIB e outros agregados da caixa de ferramentas dos economistas confundem o esgotamento de recursos com a geração de renda, permitindo que se fale em ‘criação de riqueza’ quando a riqueza está simplesmente diminuindo!”. O conceito de ‘mochila ecológica’ (de que todo material e todo produto carregam custos para o ambiente que não entram no balanço do sistema industrial, e nem na formação dos preços) também remete à visão global de que a sobrecarga acumulada e dissipada no ambiente pelo sistema de produção capitalista não respeita fronteiras, o que tem ficado cada vez mais claro com as súbitas mudanças climáticas às quais o mundo vem assistindo nos últimos anos, com o aumento da temperatura do planeta e o conseqüente aumento do degelo nos pólos. 3.2.1 - O MFA em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal Uma característica que dimensiona bem o Material Flow Account, surgido na última década, é sua adaptabilidade. Como se trata de uma série de procedimentos recentemente adotados, cada pesquisador pode experimentar e 77 incorporar novas estratégias ao conhecimento já existente, dependendo do local em que trabalha. Em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal, o trabalho de coleta de dados foi realizado em cinco viagens realizadas entre julho de 1999 e setembro de 2001, nas quais se procedeu à contagem do número de pessoas e casas, à medição de todas as casas e seus quintais, bem como de todos os espaços comuns de cada uma das localidades, à contagem dos bens de consumo duráveis que cada casa possui, e à aplicação de questionários no sentido de verificar dados relativos às famílias (religião, renda, parentesco...). Em um segundo momento, foram selecionadas três casas por comunidade (as de maior e menor renda e uma intermediária) para o levantamento de informações mais específicas, como: quantidade retirada de madeira para venda, quantidade retirada de pedras para venda, consumo de frutos silvestres, etc. Nestas casas também se realizou, sempre que possível, a pesagem de frutos, caça, peixe e produtos oriundos das roças dos ribeirinhos, além de produtos alimentares, tanto confeccionados localmente (como o beiju e o vinho do açaí) quanto importados. A lenha utilizada nos fogões destas casas foi igualmente contabilizada e a água foi medida em um recipiente com capacidade para 1 litro. O fabrico da farinha foi acompanhado passo a passo e a lenha utilizada foi pesada. Os cálculos sobre retirada de pedra e madeira foram feitos por amostra e mediante o cruzamento de diversas informações fornecidas pelos ribeirinhos. Os dados foram contabilizados em quilo per capita ao ano, portanto o que se obtém é uma média do consumo de recursos por habitante, para cada uma das localidades. Foram divididos em três grupos: extração de recursos domésticos, uso de recursos domésticos e importações. A partir destes dados é que são tirados os indicadores de sustentabilidade preconizados pela metodologia do MFA. 3.2.1.1 - Extração de recursos domésticos A) Matéria bruta abiótica a.1) Pedras Toda a produção de pedras do Laranjal e da Pedreira é destinada à exportação. Ao todo, entre a Pedreira e o Laranjal, cinco famílias extraem pedras para construção civil. Na Pedreira são as casas nº 2 e nº 9. No Laranjal, a casa nº 4, a nº 1 e a nº 2. A atividade é realizada durante o inverno, quando as águas sobem e então é 78 possível acessar de casco o local da pedreira para extrair o material e puxá- lo para a baía, onde um patrão de Breves vem buscá- lo ( Figura 5 e Figura 6). Na Pedreira, exporta-se 6.086,04 kg/cap/ano. Segundo os depoimentos dos ribeirinhos que trabalham com pedras, um homem é capaz de quebrar cerca de 1 m³ por dia, sozinho. A exp loração da pedra é uma atividade que requer imenso esforço físico: os blocos são extraídos das rochas a marretadas e depois quebrados em pedaços menores. Isso explica o fato de apenas uma família da Pedreira se dedicar à extração de pedras, embora a mina esteja localizada nesta comunidade. Figura 5: Extração Doméstica - Matéria Bruta Abiótica – Pedra [kg per cap per ano] 6.086,0 8.005,4 Laranjal Fonte: Levantamento de campo (ano 2001) Pedreira 79 Figura 6: Renda anual oriunda da extração mineral - [R$/cap/ano] R$ 40,08 R$ 45,86 Laranjal Pedreira Fonte: Levantamento de campo (ano 2001) B) Matéria bruta biótica (biomassa) A média total de biomassa extraída das comunidades é 3.630,51 kg/cap/ano. Deste total, 34% corresponde à coleta de frutos (1.230,94 kg/cap/ano), 29% a produtos agrícolas (1.046,56 kg/cap/ano) e 32% é relativo à madeira para todos os usos (1.154,63 kg/cap/ano). A caça e a pesca respondem, respectivamente por 4% (132,04 kg/cap/ano) e 2% (66,34 kg/cap/ano). 80 Figura 7: Extração doméstica de biomassa [média anual per cap] Caça 3,6% Agricultura 28,8% Extrativismo 33,9% Pesca 1,8% Madeira 31,8% Fonte: Levantamento de campo b.1) Peixe e caça O consumo da carne de caça supera o do peixe nas três comunidades. A Pedreira tem o maior consumo tanto de uma quanto de outro: 86,60 kg/cap/ano de caça (limpa) e 68,87 kg/cap/ano de peixe (Figura 8 e Figura 9). As caças mais comuns são o tatu, a paca, o macaco, o quati, o veado (branco e vermelho), o porco do mato, o catitu e a capivara. A média bruta de consumo anual per capita das três comunidades ficou em 132,04 kg/cap/ano de caça – o que dá 83,51 kg de carne, já limpa. A média de matéria não usada ficou em 48,54 kg/cap/ano 36 (ver Figura 9). Quanto aos peixes, destacam-se a caratinga e o tucunaré entre outros. 36 Os valores de taxa de aproveitamento foram construídos com base em informações dos habitantes das comunidades. Isso explica as diferenças entre eles. 81 Figura 8: Extração doméstica de biomassa - Peixe [kg/cap/ano] 65,44 68,87 64,73 Caxiuana Laranjal Pedreira Fonte: Levantamento de campo Figura 9: Extração doméstica de biomassa - Caça [kg/cap/ano] 161,56 180,00 160,00 140,00 132,04 123,71 110,85 120,00 83,14 100,00 80,78 86,60 83,51 80,00 80,78 60,00 40,00 27,71 37,11 48,54 TOTAL kg/cap year 20,00 Parte consumida kg/cap year Caxiuana Parte não aproveitada kg/cap year Laranjal Pedreira MÉDIA Fonte: Levantamento de campo b.2) Frutos A coleta de frutos corresponde a 34% da extração doméstica de biomassa das três localidades (ver tabela em anexo para relação de frutos e Figura 7 para extração doméstica). Como se sabe, grande parte das frutas amazônicas têm uma porção 82 comestível muito pequena com relação ao resto. Por esta razão, a percentagem das porções não utilizadas e não consumidas dos frutos coletados é muito grande para todas as comunidades. Na Pedreira, 45% do total coletado vira lixo, 6% são computados como fluxos ignorados ligados ao consumo doméstico e 5% perfazem os fluxos ignorados das exportações. No Laranjal, o lixo é estimado em 55% do montante coletado, enquanto os fluxos ignorados relativos ao consumo doméstico somam 9%. Em Caxiuanã, os fluxos ignorados ligados às exportações somam 25%, pois o principal produto de exportação da comunidade é a castanha. Calcula-se que para 1 kg de castanha estejam relacionados 4 kg de matéria não usada, referente aos ouriços, que ficam no ambiente (Villachica et. al, 1996). Do total de 1.482,90 kg/cap/ano de frutos coletados na comunidade, 30% são estimados como lixo e 20% como fluxos ignorados ligados ao consumo doméstico (ver gráficos em anexo). A média de lixo oriundo da coleta de frutos é de 38% para o conjunto das três comunidades. Os fluxos ignorados respondem por 29% (15% ligados à exportação e 14% ao consumo doméstico). A média de biomassa consumida é de 27% e de biomassa exportada é de 6% (ver Figura 10). Figura 10 : Extração Doméstica de Biomassa - Extrativismo Fluxos ignorados referentes ao consumo doméstico 13,8% Parte consumida 26,6% Fluxos ignorados referentes à exportação 14,8% Exportação 6,5% Lixo 38,3% Fonte: Levantamento de campo 83 É interessante atentar para os fluxos ignorados da extração de frutos – cuja maior parte está diretamente relacionada aos frutos silvestres. Em Caxiuanã, onde a coleta de castanha é uma atividade que representa 94% do peso das exportações (Figura 11), os fluxos ignorados relativos à extração doméstica somam 1.331,72 (dos quais 1.200,01 kg/cap/ano referentes à castanha). Na Pedreira, este número é de 786,14 kg/cap/ano. Figura 11: Composição das Exportações Caxiuanã - Peso Pedra 0% Madeira 0% Farinha 6% Castanha 94% Fonte: Levantamento de campo (2001) No Laranjal, estes fluxos correspondem a 782 kg/cap/ano – apesar da comunidade apresentar uma alta taxa de biomassa não consumida em relação à consumida: respectivamente 64% para 33%. Isto se explica por uma nuance da metodologia: contabilizou-se como fluxo escondido tudo aquilo que ‘fica no mato’ no momento da coleta. O restante – o que vai para dentro das casas e de lá é dispensado - é contabilizado como lixo (cascas e caroços de frutas, basicamente). Como o Laranjal não tem castanhais, sua taxa de fluxos ignorados foi bem pequena - representada basicamente pelos cachos de açaí e bacaba, cujos caroços entraram no balanço como lixo, juntamente com as cascas e caroços de todos os outros frutos. Vale le mbrar que o Laranjal tem mais variedade de frutos do que as outras duas localidades, daí sua produção de lixo relacionada à extração de frutos ter sido maior. 84 b.3) Madeira O consumo de madeira inclui a lenha (tanto usada nas cozinhas quanto nas casas de farinha), a madeira retirada para venda e a utilizada em reparos na casas. A retirada para venda ainda é significativa na Pedreira e no Laranjal, aparecendo como a segunda modalidade de consumo de madeira (ver gráficos em anexo) - apesar da extração em toras ter sido proibida na área do entorno da Flona em 1997. Atualmente, os moradores da Pedreira e do Laranjal fornecem apenas tarugos e esteios. Os tarugos medem cerca de 2,20 m de altura por 0,1 m de diâmetro. Os esteios variam entre 4, 5 e 6 metros, com 0,1 m de roda, e geralmente são de acapu, por ser esta uma madeira extremamente resistente e de durabilidade praticamente ilimitada. De acordo com um morador do Laranjal, uma tora média pode ser dividida em até 20 tarugos, e conforme a altura da árvore podem ser feitos até 100 tarugos por árvore. Seu Paulo, o comerciante da Pedreira, diz que uma árvore de 2 metros de diâmetro pode render até 150 tarugos. Segundo ele, a Pedreira produz, por mês, de 150 a 200 tarugos e cerca de 10 esteios – isso durante o inve rno, quando é mais fácil escoar a madeira pelos rios. No Laranjal, as casas que mais exportam madeira são as de número 1, 2, 3 e 4. Na contabilidade da média da extração local doméstica de biomassa, a madeira (em todas as suas formas) representa 30,5% do total, aparecendo logo atrás dos frutos e dos produtos agrícolas (Figura 7). A média de consumo de madeira registrada nas três comunidades ficou em 1.154,63 kg/cap/ano, para os quais se calculou uma média de matéria não usada de 108,62 kg/cap/ano (Figura 12). 85 Figura 12: Extração Doméstica de Biomassa - Madeira 1.400,00 1.281,52 1.229,83 1.200,00 1.154,63 952,54 1.000,00 800,00 600,00 400,00 200,00 170,19 155,66 - 108,62 Caxiuana Laranjal r p yea kg/ca itada e v ro ap Parte year /cap os kg norad ig s o Flux Pedreira MÉDIA Fonte: Levantamento de campo A lenha responde pelo grosso do consumo de madeira nas três comunidades, utilizada tanto nos fogões das casas quanto para torrar a farinha. Em Caxiuanã, onde é proibida a extração da madeira para venda, dos 952,54 kg/per capita consumidos anualmente, 908 kg/per capita são referentes à lenha, o que corresponde a 95% (ver gráficos em anexo). Entretanto, é preciso salientar que a madeira usada para este fim é proveniente da queima dos terrenos utilizados para o roçado. São madeiras leves, como o pracaxi (Pentaclethra filamentosa) e o curipajó, que vão sendo amontoadas a um canto do terreno quando é feita a capina (limpeza), depois da queima. A maior parte da lenha utilizada pelos moradores da Flona e entorno é consumida nos fogões a lenha. Em Caxiuanã, 75% da madeira consumida tem este fim. Já a lenha usada na produção de farinha para venda e para consumo chega, no Laranjal – onde se registrou a maior percentagem - a apenas 24% do total (ver gráficos em anexo). b.4) Produtos agrícolas 86 A principal cultura é a mandioca, que é plantada em consórcio com outras culturas, como o jerimum, o milho, o cará, a cana ou a melancia, e às vezes o abacaxi, na beira das roças – todas de ciclo menor do que a primeira. Entre julho e agosto planta-se a melancia, e o restante depois, junto com a maniva (mandioca). O milho e a melancia são colhidos depois de aproximadamente três meses, o cará após seis meses e a cana depois de oito meses. Também se planta feijão, maxixe e batata. É difícil mensurar o quanto de terra cada família utiliza para roçar, no total. A maioria faz um sistema de rodízio de terrenos, e os tamanhos das roças variam muito, conforme mostra a tabela 2. A média total de extração de produtos agrícolas é de 1.046,56 kg/cap/ano. O maior número é o do Laranjal, de onde são colhidos 1.311,32 kg/cap/ano (ver o balanço total, em anexo). Os produtos agrícolas, no cômputo geral das exportações das três comunidades, por peso, superam os frutos oriundos da coleta: a média de exportação é de 310,66 kg/cap/ano, enquanto a de frutos silvestres é de 111,57 kg/cap/ano. Foram calculados os fluxos ignorados relativos apenas à extração da mandioca, cuja média perfaz 169,62 kg/cap/ano. 3.2.1.2 - Uso de recursos domésticos Água Quantificou-se o consumo de água para dois fins: água utilizada para lavar louças e cozinhar, e água utilizada para beber. Os banhos são tomados evidentemente nos rios, onde também se lava a roupa. Em julho de 1999, as comunidades ainda bebiam água proveniente dos rios. Logo depois, o MPEG começou a incentivar a construção de poços nas casas, pois uma pesquisa indicara que a grande maioria dos habitantes das localidades tinha algum tipo de verme. Hoje, na maioria das casas, a ‘água de beber’ vem dos poços, enquanto a água de lavar louça e cozinhar é proveniente dos rios. No total, as três comunidades consomem 10.272,24 kg/cap/ano para lavar louça e cozinhar, e bebem 1.007,29 kg/cap/ano. 3.2.1.3 - Importações 87 Os dados apresentados até agora dão conta da extração total de matéria doméstica de Caxiuanã, Pedreira e Laranjal. Parte desse material fica nas localidades – sendo consumida e/ou descartada pelos moradores - e outra parte é exportada. Há ainda a matéria que vem de fora, as importações, cuja média geral é de 302,69 kg/cap/ano (entre matéria bruta abiótica e produtos manufaturados, como mostra o balanço total). O de matéria bruta abiótica (diesel e gás butano) corresponde a 182,69 kg/cap/ano e responde pela maior parte das importações das três localidades. Nas listas de compras mensais das casas foram levantados 70 itens dos mais variados – de água oxigenada a agulha para máquina de costura, passando por pólvora e pregos. Os gráficos de consumo, entretanto, apresentam apenas os principais produtos importados, que são: açúcar, café, carne seca, macarrão, arroz, biscoito e leite em pó. As maiores médias de consumo são de açúcar (53,3 g/cap/dia), arroz (19 g /cap/dia) e biscoito (17,8 g/cap/dia), como mostra o gráfico abaixo. Figura 13: Consumo individual de alimentos importados [kg/cap/ano] 20,00 19,19 18,00 16,00 14,00 kg 12,00 10,00 8,74 8,00 6,86 6,40 5,42 6,00 3,55 4,00 3,26 2,00 Arroz Biscoito Leite em pó Macarrão Carne seca Açucar Café Fonte: Levantamento de camp o (ano 1999) De posse destes dados, pode-se calcular alguns dos indicadores mencionados acima. Para esta pesquisa, os mais relevantes são DMI (matéria 88 diretamente injetada), DMC (consumo doméstico de matéria), TDO (ejeção doméstica total) e TMO (ejeção ma terial total). 3.2.1.4 - Indicadores de input e de consumo A matéria diretamente injetada (DMI) média das três localidades foi calculada em 7.773,20 kg/cap/ano e o DMC em 3.623,33 kg/cap/ano. O montante injetado de matéria de origem doméstica é de 7.470,51 kg/cap/ano e os fluxos ignorados de origem doméstica perfazem 930,99 kg/cap/ano. A TMI (matéria total injetada) média de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal é de 8.704,20 kg/cap/ano (TMI = DMI + fluxos ignorados de origem doméstica) e a TMC (matéria total consumida) média é de 4.152,82 kg/cap/ano. Figura 14: Composição da Matéria Total Injetada Extração Doméstica NãoAproveitada 22% Importações 3% Extração Doméstica 75% Fonte: Levantamento de campo INDICADORES DE INPUT E DE CONSUMO POR COMUNIDADE Laranjal 89 O cálculo das extrações domésticas no Laranjal resultou em um número maior do que nas outras duas localidades: 11.415,09 kg/cap/ano, sendo os fluxos ignorados calculados em 782,26 kg/cap/ano. A DMI do Laranjal foi estimada em 11.703,48 kg/cap/ano e o DMC em 3.091,01 kg/cap/ano. No total, o montante de matéria consumida pela comunidade (TMC) ficou em 3.760,08 kg/cap/ano. Pedreira As extrações domésticas da Pedreira foram calculadas em 10.306,51 kg/cap/ano, sendo os fluxos ignorados estimados em 786,14 kg/cap/ano. A matéria total injetada (TMI) foi estimada, para a Pedreira, em 11.428,09 kg/cap/ano e a matéria diretamente injetada (DMI) em 10.641,95 kg/cap/ano (ver o comparativo dos indicadores em anexo). Quanto ao consumo de matéria, os índices são os seguintes: a o consumo domé stico de matéria (DMC) é de 3.913,00 kg/cap/ano e o total de matéria consumida é de 4.552,90 kg/cap/ano. Caxiuanã Na contabilidade final de Caxiuanã, 75% da matéria oriunda da extração de frutos aparece como matéria não utilizada (isto representa, tanto no caso das exportações quanto no consumo de frutos pela comunidade, os ouriços das castanhas, os cachos de açaí e mais o lixo – que são as cascas e caroços de todos os outros frutos, mais as cascas das castanhas). Entretanto, diferentemente do que acontece nas sociedades industriais, esta relação não compromete nem ameaça o funcionamento do sistema sócioeconômico. Antes, pelo contrário, é um dos preceitos de seu desenvolvimento, pois a matéria orgânica que volta para a natureza realimenta o sistema. As extrações domésticas da comunidade foram estimadas em 3.403,90 kg/cap/ano. A TMI é então em Caxiuanã, neste caso, 5.020,07 kg/cap/ano (ver balanço total em anexo). A DMI perfaz 3.688,35 e o DMC 3.451,47 kg/cap/ano. O total de matéria consumido pela comunidade é de 4.093,57 kg/cap/ano. 3.2.1.5 - Composição das exportações por comunidade e indicadores de output 90 A composição das exportações das três comunidades a seguinte: 91,6% de pedras, 6,5% de matéria bruta biótica (2,7% de frutos e 3,8% de produtos agrícolas), 1% de madeira e 0,9% de farinha (Figura 15). Figura 15: Composição das Exportações - Peso Produtos manufaturados 0,9% Produtos extrativos Madeira 2,7%Produtos agrícolas 1,0% 3,8% Pedra 91,6% Fonte: Levantamento de campo EXPORTAÇÕES POR COMUNIDADE Laranjal O Laranjal, curiosamente, foi a comunidade que registrou maior índice de produção voltada para exportação: 8.612,47 kg/cap/ano o que, traduzido em reais, perfaz uma renda de R$ 174,13 cap/ano. Diz-se curiosamente porque a análise dos dados referentes aos estoques poderia não conduzir a esta conclusão: é a comunidade que tem as menores casas (tamanho médio 37 m²) e o menor número de bens-deconsumo duráveis por habitante – embora registre um número intermediário de itens importados de outra natureza, como alimentos e madeira para construção (menor do que a Pedreira e maior do que Caxiuanã). Entretanto, os valores referentes à exportação passam a fazer sentido quando se observa que a pedra responde por 93% do peso total das exportações do 91 Laranjal. Logo em seguida aparecem os produtos agrícolas com 3,6% (310,66 kg/cap/ano), a madeira com 2,5% (216,61 kg/cap/ano), a farinha com 0,8% (67,12 kg/cap/ano) e os frutos oriundos da coleta, com 0,1%. Vale lembrar que, no Laranjal, três núcleos familiares se dedicam à extração de pedras, enquanto na Pedreira somente um. Do total de matéria exportada pela comunidade, que é de 8.612,47 kg/cap/ano, 8.005,4 kg/cap/ano referem-se à pedra, como mostra o gráfico 16. Em dinheiro, isso corresponde a R$ 45,86 kg/cap/ano, ou 54% do total de moeda injetado na comunidade anualmente (Figura 17). Figura 16: Composição das Exportações - Peso - Laranjal pedra 93,0% farinha 0,8% madeira 2,5% coleta 0,1% agricultura 3,6% Fonte: Levantamento de campo 92 Figura 17: Composição das Exportações - Valor - Laranjal R$ 45,86 R$ 62,50 Pedra Madeira Farinha Melancia R$ 11,91 R$ 26,85 Fonte: Levantamento de campo (ano 2001) Pedreira Do peso total exportado na Pedreira, que é de 6.728,95 kg/cap/ano, a pedra responde por 91% (6.086,04 kg/cap/ano), perfazendo uma renda de R$ 40,08 cap/ano, ou 29% do montante de moeda que entra na comunidade via exportações, que é de R$ 137,50 cap/ano (Figura 19). Os produtos agrícolas representam 5% das exportações, enquanto a madeira corresponde a 3% (198,1 kg/cap/ano), o que rende R$ 11,89 cap/ano. A farinha responde por apenas 1% do peso das exportações da Pedreira e os frutos coletados por praticamente nada (Figura 18). 93 Figura 18: Composição Exportações - Peso - Pedreira Madeira 3% Farinha 1% Castanha 0% Melancia 5% Pedra 91% Fonte: Levantamento de campo Figura 19: Composição Exportações - Valor - Pedreira Pedra 29% Melancia 45% Madeira 9% Castanha 7% Fonte: Levantamento de campo (ano 2001) Farinha 10% 94 Note-se que, nas duas comunidades que exportam madeira em forma de tarugos e esteios, o valor recebido anualmente por esta mercadoria (R$ 11,91 cap/ano para tanto para Pedreira quanto para o Laranjal) é mais baixo que o valor recebido por ano pela farinha (Figura 20), muito embora a produção de madeira para venda seja maior que a de farinha em ambos os lugares – o que reforça a certeza de que a venda de madeira não beneficiada realmente não se configura um ‘bom negócio’, sobretudo se for levada em conta a quant idade de trabalho necessária para a produção dos tarugos e esteios nos moldes locais (sem motoserra e sem animais de tração para puxar as toras de dentro da mata). Figura 20: Composição Exportação - Valor R$ 80,00 R$ 70,00 R$ 60,00 R$ 50,00 R$ 45,86 R$ 6,00 R$ 73,88 R$ 40,00 R$ 62,50 R$ 30,00 R$40,08 R$62,50 R$ 20,00 R$ 11,91 R$ 26,85 R$ 10,00 0 R$11,91 Caxiuanã R$13,58 Laranjal R$ R$9,42 Pedra Madeira Pedreira Farinha Castanha Melancia Fonte: Levantamento de campo (ano 2001) Caxiuanã Em Caxiuanã, a coleta responde por 94% do peso total de matéria exportada (ou 221,88 kg/cap/ano), como se vê pelo gráfico 9, sendo a castanha o principal produto exportado. A farinha perfaz os 6% restantes (15 kg/cap/ano) 37 . Dos R$ 79,88 cap/ano oriundos das exportações, R$ 73,88 cap/ano correspondem à venda de 37 No caso de Caxiuanã, foi excluída da contabilidade a exportação da melancia, por se tratar de um valor não estimado durante os levantamentos de campo. 95 castanha. Em quilos, as exportações de Caxiuanã totalizam 236,88 cap/ano – dado que puxa a média das três localidades para baixo (4.149,87 kg/cap/ano), pois, como se viu, no Laranjal este número está na casa das 8t/cap/ano e, na Pedreira, perfaz mais de 6t/cap/ano. Atente-se para os fluxos ignorados relativos à exportação de frutos silvestres em Caxiaunã, que totalizam 25% de toda a biomassa correspondente à extração - o maior índice dentre as três localidades (ver gráficos anexos). A relação dos fluxos ignorados das exportações para as exportações propriamente ditas é de 3 para 1. INDICADORES DE OUTPUT Quanto aos indicadores de output, calculou-se em 5.797,10 kg/cap/ano a média de matéria total ejetada (TMO) pelos três sistemas sócio-econômicos, em 1.647,23 kg/cap/ano a média de ejeção doméstica total (TDO) e em 716,23 kg/cap/ano a média de ejeção doméstica processada (DPO). Evidentemente, o Laranjal, que apresentou o maior valor tanto de matéria total injetada (TMI) quanto de matéria diretamente injetada (DMI), apresenta o maior número referente ao total de matéria ejetada (TMO): 9.560,54 kg/cap/ano. Entretanto, nota-se que seus índices de TDO (ejeção doméstica total) de DPO (ejeção doméstica processada) são os menores entre as três localidades: respectivamente 948,07 kg/cap/ano e 449,19 kg/cap/ano. Isso se explica pelo fato de que do montante total de matéria injetada na comunidade (TMI = 12.485,74 kg/cap/ano), 8.005,42 kg/cap/ano refere-se à pedra, cuja extração, como já se viu, é toda voltada para a exportação. Como a TMO é igual à soma da TDO com as exportações, ainda que a ejeção doméstica total seja pequena, o valor referente às exportações puxa para cima o valor da TMO. Já em Caxiuanã, a situação se inverte. Naturalmente, apresenta a menor TMO (1.714,66 kg/cap/ano), pois sua TMI é a menor das três. Mas seu índice de TDO é o maior: 1.477,78 kg/cap/ano. Isso se explica pelo peso da extração de castanha no metabolismo sócio-econômico da comunidade – e os respectivos fluxos ignorados referentes a esta atividade, que perfazem grande parte da ejeção doméstica total (TDO = DPO + hidden flows). Quanto à Pedreira, vale ressaltar que a DPO apresenta-se maior do que a de Caxiuanã e a do Laranjal: 863,83 kg/cap/ano. Pode-se atribuir este número ao fato de que, dentre as três, esta é a comunidade cujo input apresenta maior variedade de 96 produtos. Como a DPO se refere ao peso total dos materiais usados em determinada economia antes de fluírem para o ambiente, seria natural que a Pedreira apresentasse a maior taxa, que no balanço coincide com a produção de lixo (emissions and waste). Por fim, cabe destacar os valores relativos aos fluxos indiretos ligados às exportações. Em Caxiuanã, apesar do montante de exportações somar apenas 236,88 kg/cap/ano, os ‘hidden exports’ perfazem 689,63 kg/cap/ano – a maior taxa das três. No Laranjal, que exporta mais do que as outras duas, estes fluxos são de apenas 113,19 kg/cap/ano – o menor valor dentre as três. Para a Pedreira, o valor dos ‘hidden exports’ é de 146,24 kg/cap/ano. 3.2.1.7 - Produtos manufaturados: farinha e artesanato As três localidades fabricam farinha o ano todo, sendo que cada família possui, pelo menos, duas roças de mandioca, número que pode chegar a três (uma em preparo, outra esperando para ser colhida e uma terceira em colheita). As roças são medidas em braças, sendo que a braça varia entre 2,5m e 3m (no padrão local, o tamanho do lavrador, com o braço erguido, mais o terçado). Assim, uma roça de 25 braças (ou uma tarefa, como se diz) corresponde a mais ou menos 125 metros quadrados; uma de 40 braças são mais ou menos 200 metros quadrados e 50 braças correspondem aproximadamente a 250 metros quadrados. Nas três localidades, o peso da farinha no rol de produtos exportáveis varia bastante de acordo com as casas. Mas pode-se dizer que, geralmente, as famílias que mais produzem – aquelas que realmente visam produzir excedente para comércio – torram farinha ao menos duas vezes por semana 38 . Na Pedreira, Seu Benedito e Dona Tonica (casa nº 5), ajudados pelo filho e a nora, produzem 40 kg de farinha em um dia de trabalho (das 7h às 16h mais ou menos, com pequenas pausas para a ‘merenda’). Para cada quilo de farinha produzido, são consumidos em média 4 quilos de mandioca. O tubérculo é plantado geralmente no verão (a partir de agosto, até dezembro) e depois de seis meses já pode ser colhido, embora o ideal seja colhê- lo após10 a 12 meses. Seu Benedito e Dona To nica colhem por mês, de sua roça, cerca de 684 kg de mandioca e consomem, juntamente com a casa da filha (nº 4), uma saca de 60 kg de farinha por 38 Em setembro de 2001, 30 kg de farinha estavam sendo vendidos a R$ 14,00. 97 mês. Em 2000, a família mantinha três roças, sendo duas de 25 braças (125 m²) e uma de 40 por 30 braças (175 m²). A maioria das roças, na Pedreira, é feita nos arredores da comunidade, pois a mata já está distante e existem capoeiras antigas no entorno. Em Caxiuanã, a maior produção de farinha é a da casa nº 2. A cada semana, Seu Jorge e Dona Raquel, auxiliados por dois dos três filhos pequenos, produzem uma saca de 60 kg de farinha (cerca de 4 latas de 20 litros). Para isso, geralmente, mantêm duas roças de 25 braças cada uma, só de mandioca (no total de 250 m²). Além de vender em Portel e na ECFPn, o casal também supre a demanda local daqueles que não produzem, ou que estão em época de entre safra. A casa nº 6 é um exemplo de produção apenas para consumo. Dona Naza afirma que produz farinha duas vezes por mês, aproximadamente 60 kg a cada vez. O produto é consumido pela casa nº 6 e pela casa nº 7 (ver tabelas em anexo com o número de moradores por casa). No Laranjal, a venda da farinha é uma atividade relevante nas casas nº 4, nº 5 e nº 6. Na primeira, são vendidas de 7 a 12 sacas por ano (entre 30 e 50 latas), a um preço que varia entre R$ 5,00 e R$ 7,00 a lata. A farinha ‘de qualidade’ – mais fina, passada em peneiras de aço, atinge de R$ 8,00 a R$ 10,00 a lata 39 . Os moradores de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal aprenderam essa nova técnica em uma oficina do MPEG, mas não a utilizam, aparentemente porque o material utilizado seria caro demais e o retorno talvez não compensasse. A cada 1 kg de farinha produzido, são fabricados 0,2 kg de coroeira (o refugo do processo, que geralmente se dá para as galinhas e patos, mas que também é consumido pelos ribeirinhos em forma de mingau) e queimados 2 kg de lenha. A farinha é cara sob este ponto de vista. Entretanto, a lenha gasta com a farinha é pouca, em comparação à consumida nas casas (ver gráficos em anexo). Mandioca 4,0 kg Farinha 1,0 kg Lenha 2,3 kg 39 Dados de setembro de 2001. Coroeira 0,2 kg 98 O artesanato, como já se disse, foi impulsionado com a chegada dos kits de energia fotovoltaica. Não se contabilizaram os fluxos relativos à confecção de objetos de arumã, pois se entende que o peso desta matéria-prima seria quase insignificante, o que dificultaria o cálculo das partes utilizadas e não utilizadas. Para se ter uma idéia do quão complicado seria estimar estes fluxos basta dizer que uma peneira pequenina, de 17cm x 17cm, leva 96 talas de arumã de aproximadamente 2 palmos e meio, sendo que de um pedaço de arumã de dois palmos e meio tira-se de 8 a 12 talas e, de uma haste de arumaí, que é a espécie mais comprida, obtém-se 3 pedaços de dois palmos e meio de comprimento. O artesanato é uma atividade mais desenvolvida por mulheres, crianças e adolescentes, mas sua participação na composição da renda local varia pois, como o MPEG é o principal comprador, as encomendas dependem, em última instância, das políticas que o MPEG adota. Recentemente, por exemplo, a loja do parque zoobotânico foi fechada. 4 - Considerações finais e conclusão 4.1 – Considerações finais Nos últimos dois meses vêm ocorrendo mudanças de ordem política que deverão resultar em conseqüências decisivas para as comunidades de dentro e do entorno da Flona Caxiuanã. De acordo com a atual superintendente do Ibama em Belém, Selma Bara Melgaço, existe dinheiro do PNUD para que finalmente seja elaborado o Plano de Manejo da Flona. Em novembro último, o homem que ocupou durante 30 anos o cargo de gerente da Floresta Nacional de Caxiuanã foi exonerado pois, segundo Melgaço, responsável por sua exoneração, seria impossível levar adiante qualquer tentativa de planificação de uso de recursos com esta pessoa à frente da Unidade de Conservação. O responsável pelo escritório do Ibama em Breves também foi exonerado, pelos mesmos motivos. Para o lugar de ambos, foram designadas duas 99 jovens engenheiras florestais, formadas pela FCAP (Faculdade de Ciências Agrárias do Pará). Na ECFPn também houve mudanças. A coordenação foi assumida por um engenheiro florestal, professor da FCAP e pesquisador do Museu. Ele esteve em Brasília, na primeira semana de novembro, juntamente com a nova gerente da Flona, tratando dos preparativos para a elaboração do Plano de Manejo. As previsões são de que os primeiros levantamentos comecem já no início do ano que vem. O MPEG deverá capitanear esta iniciativa, aglutinando instituições e entidades que possam colaborar com pessoal capacitado, metodologias de campo, etc. A exemplo do que ocorreu com a Flona Tapajós, deverão ser estabelecidas zonas para a exploração de recursos, tanto por parte das populações tradicionais (as chamadas zonas populacionais) quanto por parte das empresas que, porventura, venham a explorar os recursos da Flona Caxiuanã. Segundo Selma Melgaço, a intenção é fazer com que a população local participe da elaboração do Plano de Manejo. Pela lei do SNUC, as Flonas dispõem de Conselhos Consultivos presididos pelo Ibama, dos quais fazem parte representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e, quando é o caso, das populações tradicionais residentes. 4.2 - Conclusão Em primeiro lugar, pode-se afirmar que as comunidades são independentes do meio ambiente de outros locais – ou seja, são auto-suficientes. Importam apenas 302,69 kg/cap/ano e exportam 4.149,87 kg/cap/ano, mais da metade daquilo que retiram do ambiente (54,44% das extrações domésticas). As exportações representam 71,58% do total de matéria ejetada dos sistemas formados pelas comunidades. Dos 3.623,33 kg/cap/ano efetivamente consumidos pelas comunidades, 92% corresponde a matéria de origem doméstica (3.320,64 kg/cap/ano). Este percentual praticamente coincide com o do Brasil onde, segundo Machado (1999), a participação de materiais de origem doméstica na totalidade da demanda industrial é de 92,3%. Em segundo lugar, atentando-se para o metabolismo destas localidades, pode-se dizer que as comunidades apresentam grande eficiência energético-material. De um input total de 8.704,20 kg/cap/ano, exportam 4.149,87 kg/cap/ano, utilizam 3.320,64 kg/cap/ano de matéria doméstica e inutilizam apenas 930,99 kg/cap/ano. Conclui-se que o ‘desperdício’ (neste caso, seria mais correto falar em fluxos ignorados, pois a matéria 100 orgânica que fica no solo não é desperdiçada, voltando para a terra e realimentando o sistema natural) de matéria nestes sistemas sócio-econômicos é bem menor do que a média nacional, computada por Machado (1999) em 56,9% da TMI. Ou seja: do total de matéria injetada na economia brasileira, mais da metade é gasta em desperdícios ignorados, perdas que não são computadas pelas ferramentas utilizadas para ‘medir riqueza’ e produtividade. Em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal os fluxos ignorados representam apenas 11% da TMI40 . Em terceiro lugar, levando-se em conta que os padrões de consumo de importados são praticamente os mesmos nas três localidades, pode-se inferir, pelos valores absolutos de matéria consumida pelas três separadamente, que o consumo de matéria está conectado à variedade de produtos à disposição. A Pedreira foi a que registrou maior consumo absoluto (674 toneladas/ano), seguida do Laranjal (661 toneladas/ano) e de Caxiuanã (551 toneladas/ano). Uma análise comparativa entre Caxiuanã e as comunidades de fora da Flona logo mostra que, apesar de inputs diferentes, as três dividem o mesmo padrão de matéria diretamente consumida (DMC): 3.451,47 kg/cap/ano em Caxiuanã, 3.091,01 kg/cap/ano no Laranjal e 3.913 kg/cap/ano na Pedreira. O retorno relativo à exportação de pedras e madeira não altera o padrão de consumo de outros recursos (domésticos ou não) – ou, se isso acontece, a diferença talvez seja mínima. Seria particularmente interessante atentar para os dados referentes ao Laranjal, que apresentou os maiores índices per capita de extração doméstica e de matéria total injetada: respectivamente 11.703,48 kg/cap/ano e 12.485,74 kg/cap/ano. Pelo balanço final, nota-se que a comunidade responde pela menor taxa de matéria diretamente consumida. Isso desmonta alguns argumentos que insistem em confundir sustentabilidade com subsistência. Pelos dados apresentados, é possível afirmar que as comunidades são sustentáveis, mas, como se vê pela seu metabolismo, não extraem matéria doméstica única e exclusivamente para subsistir. Note-se também que a produção de fluxos ignorados, no Laranjal, é a menor das três: 782,86 kg/cap/ano, enquanto a de Caxiuanã – comunidade com a menor taxa de extração doméstica – é de 1.331,72 kg/cap/ano. O que quer dizer que, nos casos 40 Vale lembrar que os fluxos ignorados de origem não-doméstica não foram calculados, o que, entendese, não alteraria significativamente os resultados aqui apresentados, uma vez que o montante das importações é bastante pequeno se comparado ao montante das extrações domésticas. 101 estudados, a importância referente aos fluxos ignorados não é diretamente proporcional ao montante de matéria doméstica que dá entrada nos sistemas. Comparando-se os dados locais obtidos em Caxiuanã, Pedreira e Laranjal com os dados de Machado (1999) para o Brasil, pode-se dizer que um morador de dentro ou do entorno da Flona pesa, para o ambiente, menos da metade do que pesa, em média, um brasileiro. É de 2,4 vezes a diferença entre o total de matéria injetada no Brasil (21,6 ton/cap/ano) e nas comunidades (8,8 ton/cap/ano). A extração doméstica de matéria foi calculada pelo autor para o país em 14,6 ton/cap ao ano, enquanto a das comunidades é de 7,4 ton/cap/ano. A matéria diretamente injetada (DMI) no sistema sócio-econômico brasileiro é de 15,2 ton/cap/ano, enquanto a da área da Flona é 7,7 ton/cap/ano. Assim, o consumo doméstico de matéria no Brasil, de 13,9 ton/cap/ano, é quatro vezes maior que o calculado para as comunidades da floresta (3,6 ton/cap/ano). Cabe esclarecer, por fim, que auto-suficiência não implica automaticamente em sustentabilidade. O maior exemplo é o próprio Brasil onde, como já se disse, 92,3% da matéria consumida é oriunda da extração doméstica, mas onde ainda se desperdiça mais da metade do que entra no sistema. Por isso, considera-se que nos locais estudados a sustentabilidade se afigure como um estado que não depende somente da ação no tempo e no espaço daquelas pessoas que ali residem, mas sim de um conjunto de variáveis. Para ilustrar esta assertiva, tome-se o exemplo da extração de pedras. Pelos dados aqui expostos, percebe-se que a atividade responsável pela maior extração material doméstica é também, grosso modo, a única diligência realmente capaz de gerar entropia 41 nos locais estudados (pois não se pode chamar de degradação energética o depósito de ouriços de castanha no solo, já que isto se configura, pelo contrário, uma medida de renovação energética). Ao afirmar que Pedreira, Caxiuanã e Laranjal são sustentáveis, não se deve concluir que esta condição advenha primordialmente do fato de que sejam autosuficientes, mas sim também do tipo de conexão que elas mantêm com o mercado, estabelecida sobre velocidades próprias, locais, de processos produtivos – e nem por 41 A contabilidade dos fluxos ignorados das pedras não levou em consideração a cobertura vegetal da área explorada, dada a impossibilidade de cálculo das diferentes densidades das madeiras ali encontradas. Para um índice confiável, seria necessário primeiro um inventário das espécies encontradas sobre a mina, seguido de cálculos individuais por espécie. Considerou-se, assim, como ‘hidden flows’ da extração de pedras, apenas a capa de biomassa existente sobre a mina, de cerca de 20 cm. 102 isso tênues ou incertas, como demonstram os dados locais 42 . Não se persegue nem se exige aumento de produtividade, o que implicaria, ato contínuo, em aumento de entropia. Esta velocidade local - autêntica - é a chave da eficiência que permite às populações tradicionais o equilíbrio entre as demandas do mercado e da conservação dos recursos. A relação entre o que as famílias exportam e o que importam – da ordem de 14 para 1 – não deixa entrever apenas o quanto os sistemas são auto-suficientes, mas também o quanto outros sistemas dependem de seus recursos. Por isso é que se deduz que a sustentabilidade, nos casos de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal, é um estado que depende da capacidade que as comunidades têm de impor sua velocidade natural no que concerne à produção e troca de mercadorias, e ao consumo propriamente dito – o que depende hoje, cada vez mais, de sua articulação com os outros atores presentes na Flona e ao redor dela. Como a demanda é uma realidade ‘líquida e certa’, independentemente da produtividade, se por algum motivo (avanço tecnológico, instalação de outras comunidades no local que também explorem pedras, etc.) esta velocidade é modificada, então o arranjo que garante a sustentabilidade destas famílias automaticamente se reconfigura. É bem possível que continuem a ser auto-suficientes, mas, talvez, a sustentabilidade seja ameaçada. A nova realidade geopolítica que se apresenta com a mudança da gerência da Flona - a perspectiva de um Plano de Manejo e da conseqüente presença de outros atores cujos interesses estarão voltados para a exploração dos recursos locais apontam os caminhos prioritários para a manutenção da sustentabilidade e da autosuficiência das comunidades locais. Em primeiro lugar, é mister garantir a estas pessoas a regularização de suas posses. Isso porque, para os moradores de Pedreira, Caxiuanã e Laranjal, sustentabilidade é usar os recursos da floresta para o sustento de suas famílias e para a satisfação de suas necessidades. A eles se deve garantir acesso a uma área tal que lhes permita a prática do extrativismo de matéria biótica e abiótica e o uso do solo para a confecção de roças, tendo em vista a taxa de reprodução dos núcleos familiares. Até porque, qualquer plano de manejo comunitário de recursos naturais só pode ser apresentado ao Ibama para aprovação se o local a ser manejado estiver devidamente regularizado. Há hoje na Amazônia muitos exemplos de comunidades tradicionais que 42 A diferença entre o DMI e o DMC representa a medida da ligação de um sistema com o mercado. Em Laranjal e Pedreira, esta diferença é da ordem de 8ton/cap/ano e 6 ton/cap/ano respectivamente (maior do que o próprio consumo doméstico de matéria de ambas). O que desmistifica a idéia de que uma das causas da ‘estagnação’ das comunidades agro-extrativistas da Amazônia seria sua conexão tênue com o mercado. 103 vêm requerendo a regularização de suas terras perante o governo de maneira coletiva43 . A concessão de direito real de uso da terra parece ser, juridicamente, uma solução bastante plausível no caso das comunidades da Flona Caxiuanã, a exemplo do que aconteceu na Flona Tapajós. Esta necessidade de um vínculo formal com o território ocupado se mostra ainda mais premente quando se tem na memória que a falta de documentação da terra tem sido o motivo da desestruturação social, cultural, econômica e política das localidades. Entende-se que cabe ao Estado cuidar para garantir que a velocidade dos processos produtivos locais não seja atropelada pela integração à modernidade a qualquer preço. A sobrevivência de tais comunidades na Amazônia é a maior prova de que um mundo em que coexistam sistemas desenvolvendo-se em diferentes velocidades é possível e saudável para a humanidade. O Estado deve zelar por estas diferenças pois, em uma perspectiva de desenvolvimento que tenha por condição o ‘bem estar coletivo’, elas serão indicadores da saúde dos sistemas sócio-econômicos. 43 Em uma área do mu nicípio de Gurupá que faz fronteira, ao norte, com a Flona, dez comunidades remanescentes de quilombos conseguiram a titulação coletiva de cerca de 84 mil hectares no ano passado. No mesmo município, a vila de Camutá do Pucuruí, de 107 habitantes, conquistou o direito real de uso de cerca de 17 mil hectares, por trinta anos renováveis (ver também FASE Gurupá, 2001: Documentar a Terra – Uma luta Constante). Conceitos como o de ‘posse agroecológica’ vêm aparecendo no cenário jurídico como possíveis soluções para o problema da regularização fundiária na Amazônia. Segundo Benatti (1998), na ‘posse agroecológica’ existem três dimensões: a casa, a roça e a mata. Fisicamente, ela seria “a somatória dos espaços familiares e das áreas de uso comum da terra” (1998:45). O Autor pressupõe que para ‘ter’ uma posse é preciso interagir com o meio – o que faz dessa forma de posse um empreendimento sustentável. 104 Referências Bibliográficas AIKING, H.; DE BRUYN, S. & VAN DRUNEN, M. (1999) Indicators for sustainability. Em: The Environment (A multidisciplinary concern). Institute for Environmental Studies, Amsterdam. ALTVATER, E. (1993) Ilhas de Sintropia e Exportação de Entropia. Cadernos do NAEA, nº 11, pp. 3-54. NAEA, UFPA, Belém. ARAÚJO, R. (1994) Manejo ecológico, manejos políticos: observações preliminares sobre conflitos sociais numa área do Baixo Amazonas. Em: D’INCAO, M.A. & SILVEIRA, I.M. A Amazônia e a crise da modernização. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém. BARTELMUS, P. (1999) Sustainable Development – Paradigm or Paranoia ? Wuppertal Papers, Wuppertal Institute for Climate, Environment and Energy, Holanda. BENATTI, J.H. 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