RECOLOCAR A RECEPÇÃO: uma análise a partir dos meios de comunicação 1 REPLACE RECEPTION: an analysis from the media Luiz Claudio Martino 2 Resumo: Objeto de importantes controvérsias, o conceito de recepção tem recebido diferentes formulações teóricas em nossa área de estudo. O presente artigo discute algumas das principais teorias da recepção e analisa sua convergência em um paradigma comum, no qual se destaca a atividade do indivíduo receptor como uma proteção em relação à influência exercida pelos meios de comunicação. Também propõe uma análise crítica, procurando levantar as principais limitações das teorias da recepção. Entre elas: a) a da adequação do conceito de recepção a qualquer tipo de meio de comunicação, ignorando diferenças entre meios de massa e meios digitais interativos; b) a definição instrumental dos meios de comunicação e c) a da recepção como uma instituição social. Palavras-Chave: Recepção. Teorias da Comunicação. Meios de comunicação. Abstract: Subject of important controversies, the concept of reception has received different theoretical formulations in field of communication studies. This article discusses some of the main theories of reception and analyzes their convergence on a common paradigm, which emphasizes individual receptor activity as a protection for the influence of the media. Proposes a critical analysis seeking to raise the main limitations of theories of reception. These include: a) the adequacy of the concept of receiving any type of media, ignoring differences between mass media and interactive digital media, b) the instrumental definition of the media and c) the reception as a social institution. Keywords: Reception. Theories of Communication. Media of communication. Introdução O conceito de recepção constitui um dos elementos mais antigos de nossa área de conhecimento. Ao lado de outros como emissor e mensagem ele fornece uma descrição básica do processo de comunicação. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Epistemologia da Comunicação do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Insira aqui seus dados: Universidade de Brasília/ CNPq, Doutor, e-mail: [email protected] 1 No plano teórico este conceito vai paulatinamente se destacar, servindo de matéria para a elaboração de teorias de várias escolas ou tradições de pesquisa, como por exemplo, a abordagem dos Usos e Gratificação, a análise dos Dois Estágios da Comunicação e a tradição dos Estudos Culturais. Sem subestimar suas diferenças, todas elas enfatizam a ideia de uma atividade do receptor. As duas primeiras centraram sua atenção em um foco restrito ou de médio alcance, partindo diretamente de análises empíricas sobre como os indivíduos lidam com os conteúdos dos meios de comunicação. A abordagem empírica também marca os Estudos Culturais, que no entanto partem do pressuposto marxista de lutas de classes, o que os leva a identificar os pólos do Emissor e do Receptor como Classe Dominante e Classe Operária (evitaremos o termo "classe dominada" pois é isto que está em questão para esta teoria). O processo de comunicação é assim assimilado à relação de dominação e tratado como um conflito de classes. Deixando de lado as considerações de ordem política sobre as teorias da recepção, e nos atendo a seu aspecto propriamente teórico, aparecem certas convergências e semelhanças de enquadramento do objeto estudado. Por exemplo, podemos ver a similaridade Dois Estágios (Lazarsfeld, Berelson e Gaudet, 1948; Katz e Lazarfeld, 1955) e do modelo de Encoding and Denconding (Stuard Hall, 1973): os indivíduo receptor de um meio de comunicação esta protegido da influência dos meios por um fator coletivo. Para o primeiro modelo o indivíduo não se encontraria isolado, a recepção dos meios de comunicação não se dá no vácuo social, ela deve competir com a comunicação interpessoal. A relação de proximidade proporcionada pelo grupo (em oposição ao anonimato equacionado na noção de massa) confere fidedignidade e confiança aos membros do grupo, de modo que estes se tornam poderosos agentes de influência (líderes de opinião), muito mais influentes que as informações difundidas por meios de comunicação de massa. Se esta teoria tem o mérito de introduzir uma descrição mais precisa da arquitetura comunicacional das sociedades modernas, chamando a atenção para a articulação de dois sistemas de comunicação, o tecnológico e o interpessoal, ela acaba sub-avaliando o primeiro para destacar a prevalência deste último. No modelo dos Estudos Culturais, a resistência do grupo social é substituído pelo fator "cultural", que também age no sentido de uma oposição que freia a ação dos meios de comunicação. A idéia aqui é a de que o indivíduo pode se apropriar ou dispor como quiser 2 das mensagens dos meios, pois o elo que une o indivíduo aos valores coletivos de uma certa comunidade seria mais forte e pode prevalecer (embora não necessariamente), limitando assim a ação dos meios sobre as pessoas. Seja a cultura de classe (Estudos Culturais), seja o grupo social (Dois Estágios da Comunicação), ou até mesmo fatores subjetivos (Usos e Gratificações) constituem formas de proteção do receptor. De certo modo elas retomam as reflexões da hermenêutica na medida que afirmam o primado da interpretação (recepção) em relação ao texto (mensagem do meio). Se para o modelo dos Dois Estágios a conclusão é de que o efeito dos meios é fraco, os Estudos Culturais praticamente ignoram os meios enquanto tecnologia, pois entendem que esta recebe sua forma e sentido da cultura, sua significação seria apenas derivada. Ambos retomam, de maneira mais ou menos consciente, a oposição entre técnica e cultura e desenvolvem esta última ou o grupo social como uma forma defesa (ou de resistência) dos indivíduos em relação à influência dos meios de comunicação. De maneira mais ou menos explícita elas se alinham quanto à tese de que seus efeitos são fracos ou não são significativos. Os traços destacados logo acima mostram que as principais teorias da recepção dos meios de comunicação se baseiam em um paradigma, um princípio fundamental que é comum a diferentes teorias, independente de suas particularidades. Insuficiências da formulação da comunicação como conflito de classe Os Estudos Culturais reivindicam a questão da recepção como seu domínio, ao ponto de por vezes subestimar a contribuição das outras correntes. Sua origem, como sabemos, se encontra na análise da classe operária (Hoggart, 1957; Thompson, 1963), na investigação das características que a singularizam como uma sub-cultura, a matriz de um sistema de valor próprio, diferenciado da classe superior e com a qual inevitavelmente entra em choque. De fato, a sociedade moderna implica uma acentuada dinâmica entre classes, que se expressa de diversas formas. Por exemplo, na estrutura do sistema político, visto que a democracia demanda práticas de legitimação, cujo correlato comunicacional é a emergência da opinião pública e as práticas de propaganda; ou na estrutura do sistema econômico, baseado na construção permanente do consumo como uma prática natural, o que exige o 3 desenvolvimento das técnicas de publicidade como construção e alimentação desse universo de consumo. Concentrando-se nesta questão da intensificação da dinâmica das classes sociais os Estudos Culturais chegaram nas questões trabalhadas nas pesquisas de comunicação. Sua relação com o saber comunicacional reflete esta dubiedade de ser uma tradição interna ou externa ao campo comunicacional. Sua preocupação central reside na investigação de como a classe operária encontra sua maneira particular de reagir e sobreviver em um sistema onde lhe é reservado um papel subalterno, sem que, por isso, seja submissa. A subversão aqui não é a das estruturas sócio-econômicas, mas sim a da ideologia, a dos valores, a da cultura. A hipótese fundamental é que as condições materiais da classe operária não são completamente determinantes, permitindo um certo grau de liberdade ao indivíduo, que o torna capaz de resignificar os conteúdos ideológicos veiculados pela classe dominante. O fundamento dessa autonomia em relação à ideologia dominante é fornecida pela cultura de classe. Se as condições materiais inevitavelmente colocam os indivíduos frente a certas práticas e comportamentos, elas também geram condições específicas, que exigem a adoção de posicionamentos relativos a sua situação de classe, a sua condição de poder. Os Estudos Culturais entendem que isto leva ao desenvolvimento de valores e de um ethos próprio. É desse solo que nasce a cultura como uma resistência, é isto o que esta tradição chama de cultura. A multiplicidade dessas formações culturais evidentemente ultrapassa a questão operária, mas guarda a idéia de coletividades submetidas ao conflito com o poder da classe dominante e seu sistema de valores. Por isso os Estudos Culturais irão evoluir na direção de um pensamento sobre o multiculturalismo e darão uma crescente importância à questão da hibridização da cultura (fruto do contanto entre elas) e à análise de grupos minoritários. De forma mais específica aos nossos propósitos, o processo comunicacional aparece como um choque entre a indústria cultural e as matrizes de valores dos diferentes "lugares" de recepção. Uma consequência disso é que o processo de comunicação passa a ser considerado unicamente como dimensão de um conflito, ou seja o problema comunicacional não é expresso em termos propriamente comunicacionais. A comunicação mediática estaria fortemente estruturada por uma concepção sociológica de classes sociais e os meios de comunicação seriam apenas um "lugar" para a expressão do problema político do conflito de interesses. 4 A adoção desta abordagem privilegia a dimensão de ruptura, de descontinuidade entre os grupos, o contraste entre comunidades, em detrimento de fatores que lhes são comuns e talvez mais fundamentais do ponto de vista comunicacional, como a própria construção do comum através da circulação da informação, por exemplo. Por terem pouca importância para o modelo estes fatores deixam de ser considerados. A construção do comum é reservada apenas aos processos não mediáticos ou propriamente etnológicos, colocando em jogo uma oposição entre a massificação da mediação tecnológica e a identidade comunitária, o que implica em atribuir e fixar apenas um único sentido à ação dos meios (aliás, já muito questionado, visto a simplicidade do conceito de massificação). Isolar e contrastar os pontos de conflito faz com que partes muitos significativas dos processos de comunicação moderna sejam esquecidas. Isso é notório em relação à organização social, onde facilmente se destaca o papel de integração e de redução da complexidade desempenhados pelos meios de comunicação. Na verdade há muitas outras dimensões da vida moderna em que a intervenção da tecnologia nos processos de comunicação teve um impacto importante, inclusive na própria dimensão cultural, que não poderiam ser formuladas e exploradas apenas pela questão do conflito de classes. Mesmo em pontos que os Estudos Culturais estão atentos. O surgimento da internet, as práticas de pirataria ilustram como as estruturas de poder foram alteradas, introduzindo modificações que complexificam a vinculação estrita de cultura à classe social, bem como a noção de dominação, na medida que permitem a expressão da diversidade cultural. Não que isso invalide a aplicação do modelo do conflito de classes sociais, mas não se pode inverter as coisas, tomando a parte pelo todo, ou seja, tal paradigma não expressa a totalidade do fenômeno cultural moderno, particularmente se visto da perspectiva das transformações apoiadas nos novos meios de comunicação. Por isso defendemos que o conceito de recepção necessita de ajustes para se adaptar às novas condições da cultura, onde diversidade cultural e centralização do poder político estabelecem relações complexas, mas também em relação a um sistema de comunicação cada vez mais diversificado em termos tecnológicos e de práticas de comunicação. Além de deixar de fora muita coisa, a identificação da recepção dos meios ao problema do conflito político de classes sociais induz a considerar o processo comunicacional como um jogo onde há vencidos e vencedores, aqueles que se submetem e aqueles que se impõem, fazendo valer seus valores. O que nem sempre é tão fácil de entender. 5 Fenômenos recentes de conflito de classe na sociedade brasileira, como os chamados rolezinhos, expõem contradições ou paradoxos desses movimentos sociais em relação à análise dos Estudos Culturais, já que a reivindicação em questão é da inclusão na sociedade de consumo. A contestação se volta contra a segregação "consumista", o que é muito desconcertante para aqueles que postulam a noção de resistência como um valor próprio e singular de uma comunidade ou classe social que se opõe à ideologia dominante. Certamente o modelo de Hall admite a possibilidade da classe dominante ser vitoriosa, ou parcialmente vitoriosa (negociação), mas não traz uma contribuição para o entendimento desses casos. Tal como acontecia com o modelo da seringa hipodérmica, a teoria funciona bem nos casos que ela explica, mas deixa de fora extensas faixas de manifestação do fenômeno. O que exige uma adaptação dos fatos à teoria, mais do que o inverso. E esta não é uma questão pontual, não se restringe à análise de um caso, ela pode ser facilmente transposta e ampliada para um plano estrutural. Por exemplo, examinemos um dos pontos onde se apóia a interpretação dos Estudos Culturais. Porque devemos aceitar que as crenças e valores de uma certa comunidade ajuda seus indivíduos a resistirem e a se colocarem a salvo das práticas de dominação? Em que medida consumidores exigentes não legitimam o consumo? Em que medida a reivindicação de "direitos" do consumidor não nos torna "sócios do negócio"? Então, ao invés de uma resistência, pode-se inferir daí que não apenas reconhecemos que somos consumidores, mas exigimos sermos reconhecidos como tal. Não quero dizer que devemos deixar de contestar ou de reivindicar nossos direitos, apenas afirmo que não podemos lutar por eles sem legitimar uma situação maior, sem trazer a luz e afirmar uma estrutura que dá sentido – mas também, um duplo sentido – a nossas ações. Em outros termos, a contestação pode ser uma forma de participação, – que, aliás, pode se revelar bastante poderosa e eficaz –, uma maneira de se relacionar e, por conseguinte, de submeter-se a alguma coisa. Nenhuma crítica é libertária por si mesma. Para o capitalismo, é praticamente indiferente se o indivíduo adere livremente ao sistema de produção ou que ele se queixe disso. Contanto que continue trabalhando ou comprando, ele pode reclamar o quanto quiser. Em suma, o conflito também une e pode ser uma forma de intensificar a relação, uma maneira de se envolver com as coisas. Ora, essa observação é particularmente apropriada para a questão do "consumo" dos meios de comunicação. Os estudos de recepção focam a questão da veiculação dos conteúdos 6 ideológicos, sem levar em consideração a possibilidade de que a crítica dos conteúdos das mensagens pode ser uma forma poderosa de manter o vínculo com os meios. Contrariamente a uma idéia bastante corrente, a crítica não libera o telespectador. Ela pode anular certos efeitos ideológicos contidos nas mensagens, mas evidentemente não suprime outros tipos de efeitos ligados à recepção dos conteúdos e ao contato com os meios de comunicação. Da mesma forma em relação ao zapping, que prende ainda mais o telespectador, pois também exige um empenho da atenção. Habituados a confundir o meio com os conteúdos veiculados, muitos teóricos foram levados a acreditar que a atividade crítica ou as singularidades da decodificação da mensagem poderiam desempenhar uma função emancipadora, expressando a liberdade do indivíduo. É o caso de modelos muito diferentes, como os Estudos Culturais ou daquele proposto por Dominique Wolton, que acredita que os efeitos das mensagens televisivas são anuladas pela recepção particular de cada indivíduo (Wolton, 1990; Wolton, et Missika, 1983). Mesmo nos casos onde o receptor contesta a intenção original do emissor (classe dominante) e consegue se apropriar das mensagens, isso não significa necessariamente uma liberdade ou uma superação do sistema. A própria atividade do indivíduo, seu poder de contestação (prender e intensificar a atenção), sua iniciativa (como no marketing viral, por exemplo), a evocação do universo de seus valores (identificação com a marca), todos os signos de uma resistência à cultura oficial e da afirmação de uma cultura própria podem ser mobilizados como estratégias de dominação. A indústria cultural é uma formação reativa, não tem conteúdo próprio, ela se alimenta da produção dessas culturas, como de qualquer outra forma de conteúdo. Portanto, o conflito entre a intenção original do emissor (classe dominante) e o sentido que o receptor (classe dominada) dá às mensagens, mesmo quando chega a se apropriar dele, não é suficiente para expressar questão do poder nos meios de comunicação. A corrente das teorias cognitivas alertaram para a importância de considerar a existência de fatores não ideológicos, pois distorções involuntárias também compõem o universo da produção das mensagens (o controle sobre elas não é absoluto). A teoria da agenda-setting mostra que o problema nem mesmo precisa passar pelo conteúdo das mensagens, ou da persuasão direta, mas pode ser colocado no plano da atenção social (pauta), naquilo que se torna visível e passa a ser objeto de discussão. 7 Este contraste da noção de recepção do Estudos Culturais com algumas teorias da comunicação nos dá uma idéia das limitações do conceito formulado a partir do conflito social. Visão instrumental dos meios de comunicação Se a expressão "estudo de recepção" se refere à recepção de meios de comunicação, devemos nos perguntar qual o conceito que os Estudos Culturais colocam em jogo. O que são meios de comunicação para um modelo teórico em que o processo de comunicação é expresso como conflito de classes? Colocado dessa forma direta a questão não é nada fácil. Até porque são raras as definições sobre meios de comunicação e ainda mais para uma tradição que não se propõe a tê-los em seu foco de análise. Mas isso também coloca outra questão interessante, a de saber até que ponto é válido analisar a comunicação moderna sem referência as suas tecnologias. Uma tal recusa, em minha opinião, não poderia ser justificada como um expediente metodológico, como um recorte necessário ou derivado de um ponto de vista. Seria perder o essencial, no sentido que em torno destas tecnologias residem os elementos mais característicos da comunicação moderna e talvez da modernidade tout court. Como seria possível falar de recepção dos meios se eles não têm grande valor para a reflexão? Não me parece válido, então, afirmar que a análise da recepção possa descartar a análise dos meios de comunicação ou que possa prescindir de conceituá-los. A justificativa deve ser buscada em outra parte, na visão geral que os Estudos Culturais têm da tecnologia. O aspecto tecnológico não é destacado, pois a cultura imporia seu sentido ao objeto técnico. Com isso o problema dos meios de comunicação tem o mesmo destino, sua abordagem é apenas secundária e derivada de uma análise da cultura. É nesta última que se encontraria sua significação. Esta visão de neutralidade da técnica traz, contudo, novas dificuldades. Tal como qualquer objeto técnico, os meios de comunicação seriam apenas instrumentos que serviriam para se alcançar determinados fins. Trata-se de uma visão estritamente instrumental a qual, mesmo reconhecendo sua importância, é preciso ser superada. Mais que um simples instrumento nas mãos de representantes de classes sociais (seja a classe dominante, para o modelo de meios de massa; seja a classe dominada, para o modelo dos meios digitais 8 descentralizados), a atividade dos meios de comunicação têm por resultado um tipo de “produto” que faz deles um tipo muito particular de objeto técnico, já que não se trata de uma atividade de transformação do mundo, como nos demais objetos técnicos. Eles são tecnologias do simbólico, estendem e agem sobre nossa atividade simbólica, transformando nossa representação do mundo (Martino, 2012). A propriedade instrumental, essencial aos objetos técnicos, encontra aí um estatuto muito mais complexo, pois enquanto extensões da fala, seria ingênuo dizer que "usamos" a fala para comunicar, a fala não é apenas um instrumento do qual o Eu se serve, mas uma de suas condições de possibilidade, já que é através dela que nos introduzimos na dimensão simbólica. Enquanto comunicação, a atividade dos meios leva a uma transformação da consciência e articula novos níveis de elo social, na medida mesmo em que gera o compartilhamento da experiência coletiva. Visto deste ângulo, um meio de comunicação não pode ser considerado apenas um mero veículo de transporte de informação ou de ideologia, um palco para o conflito de classes; ele estende nossa capacidade de gerar a experiência coletiva, ao mesmo tempo em que transforma a idéia mesma que temos da experiência. Por isso a atividade dos meios de comunicação acabam tocando todas as atividades humanas. Mesmo as da cultura. Ao valorizarem o ethos de uma certa comunidade os Estudos Culturais tendem a marcar a oposição entre o que é próprio e o que externo a esta comunidade (local versus global, por exemplo). Sua atenção se volta para este conflito e não explora outras mudanças estruturais trazidas pelos meios de comunicação. O próprio fenômeno da globalização nem sempre é considerado em seus aspectos comunicacionais e frequentemente são vinculados aos aspectos econômicos e políticos. Não é considerado, por exemplo, o papel dos meios de comunicação nos processos de transmissão do patrimônio simbólico de uma geração a outra. Desconsidera-se como as transformações na capacidade de estocagem, de acesso e de circulação da informação alteraram nossa relação com a cultura. Como a atividade da escrita, da imprensa e posteriormente dos meios digitais alteraram até mesmo o conteúdo desse patrimônio, que ao se agigantar também se torna menos restritivo, menos criterioso ou simplesmente mais próximo de toda e qualquer atividade humana. O esporte se torna cultura, a alimentação gourmet se torna cultura, a coleção de figurinhas se torna cultura... inúmeras atividades podem compor o universo cultural, pois o próprio conceito se transformou. Não se trata de 9 valores que irão tornar o homem melhor, mas o que de melhor os homens fazem. A cultura não é mais algo para o cultivo ou o aperfeiçoamento do homem, mas coincide com as manifestações deste. A visão instrumental não permite ver os meios de comunicação como uma parte importantes das condições materiais da cultura, limita demasiadamente a investigação dos meios de comunicação e com isso subordina a dimensão comunicacional aos aspectos políticos. Para nós, uma abordagem da recepção não pode se recusar a encontrar a articulação do plano tecnológico e do plano da organização social, como duas dimensões da atividade dos meios de comunicação. Recepção como instituição social Outras limitações aparecem logo no primeiro contato com a questão da recepção. Dois pontos chamam muita atenção de quem analisa a questão da recepção a partir dos próprios meios. O primeiro deles é que o conceito de recepção se aplica melhor a meios de comunicação massa. Meios interativos, como a internet, que permitem uma atividade maior do receptor, não se enquadram muito bem neste conceito e parecem não estarem adaptados aos problemas típicos da recepção (se emprega o termo "navegar" para a internet, ou simplesmente falar/conversar no caso do telefone). A questão dos meios é mais ampla que a idéia de recepção, o que mostra uma certa limitação deste conceito. Por isso nos concentraremos na análise da televisão, um meio onde o conceito se aplica com mais propriedade. O segundo ponto é a onipresença dessas tecnologias na paisagem do século XX. Mais de 90% dos lares brasileiros dispõem de um aparelho de TV e as estatísticas mostram que há mais aparelhos celulares que habitantes. Correlacionado a isso, temos a questão do tempo, as atividades das quais os indivíduos se ocupam. Considerando-se apenas o tempo empregado com a TV, já é suficiente para fazer de sua recepção uma das mais importantes atividades cotidianas, somente comparável com a atividade laboral. Aliás, as atividades trabalho e lazer praticamente ocupam todo o tempo de vigília. Diferente de outros meios, como a escrita e a internet, a televisão não é empregada na esfera 10 do trabalho, ela é fundamentalmente uma forma de lazer, o que implica em afirmar que se trata de uma atividade caracterizada pelo tempo livre das obrigações de todo tipo e se contrapõe à esfera do trabalho, pois trata-se de um tempo administrado pelo indivíduo. Por conseguinte, uma análise da recepção da televisão deve necessariamente ter como referência a sua institucionalização como prática social, como ela se estabelece na negociação necessária entre o tempo das obrigações e o tempo livre. Examinemos, inicialmente, como se reparte, do ponto de vista da quantidade, ou como se dá o emprego do tempo entre estas duas esferas da vida social na Sociedade Industrial. Se admitirmos que, em média, um indivíduo dorme cerca de 8 horas por dia, as restantes 16 horas de seu tempo útil podem estar dispostas da seguinte maneira. Para a atividade do trabalho contaremos cerca de 8 horas por dia, ou seja, 50% do tempo útil e para a telespectação, num país como a França, pouco permeável a esta prática, contamos 3 horas por dia em média, ou seja, 37,5% do tempo que o indivíduo tem disponível. Os números podem variar bastante entre países e mesmo segundo as fontes. Para os Estados Unidos é estimado um consumo de cerca de 5 horas diárias, para o Brasil, cerca de 4 horas. Segundo um documento da CERLALC – Centro Regional para o Fomento do Livro em América Latina e o Caribe (http://www.omelhorlugardomundo.org.br/cerlalc.pdf) “uma pesquisa sobre as atividades culturais de pessoas de mais de 13 anos situou o Brasil no 27º lugar na média semanal de horas de leitura: 5,2 horas, contra 18, 4 horas frente ao aparelho televisor (o Brasil é o 8º em consumo de televisão, mais de dois pontos acima da média mundial, 17,2 horas de escuta de rádio (2º entre os 30 países participantes da pesquisa) e 10,5 horas de navegação por Internet (contra 8,9 horas de consumo global, em média)”. Isto daria uma média de 2,2 horas de recepção de TV. Para o IBOPE, Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, no entanto, a recepção da televisão era da ordem de 3,5 horas diárias (PNDA 2003). Os números, portanto, sofrem variações de diversas ordens (segundo as fontes, a variações regionais, sezonais, de classe social, idade...). O consumo televisual também está sofrendo alteração com a chegada de novos meios, como a Internet e novas tecnologias, como os gravadores digitais de vídeo (DVR), que permitem aos telespectadores assistir aos programas no horário que preferirem, com aumento de cerca de 11% do consumo de televisão. Diante de todos estes fatores e dos objetivos aqui fixados, podemos tomar a média de 3 horas como referência. 11 Tal volume de tempo coloca a telespectação como uma das práticas sociais mais relevantes. Este predomínio poderia ser parcialmente explicado pela facilidade de acesso: ela não implica o desenvolvimento de uma habilidade específica ou de um período de aprendizagem (como no caso da leitura, por exemplo; ou de um conjunto de regras, como acontece com qualquer tipo de jogo; ou ainda de preparação física, como na prática de um esporte); ela está imediatamente disponível (facilidade de acesso a um aparelho receptor; não há dependência de um parceiro para sua realização); e obviamente, não há despesas (o custo é praticamente o da compra do aparelho e tende a zero se diluído ao longo das horas de emprego), o que certamente não é caso de algumas outras formas de lazer. Estas características fazem com que a televisão abranja a população como um todo, independentemente de classe social, posição geográfica, nível de escolaridade, aptidão física ou mental, idade (inclusive bebês) ou qualquer outra barreira, se constituindo como uma forma de lazer ampla, talvez uma das poucas a aspirar o título de ser verdadeiramente universal (no sentido de não comunitária). Então, a primeira e mais fundamental questão da recepção é se indagar pelas razões dessa importância da televisão como uma das principais práticas sociais. o que a fundamenta como uma instituição social. Não acredito que a questão da recepção, tal como vem sendo colocada hoje em dia, possa dar uma resposta adequada a isso. Em todo caso, a formulação da recepção como conflito, tal como postulada pelos Estudos Culturais, não parece ser uma resposta apropriada. Outras correntes de estudo da recepção parecem mais próximas do problema, ainda que não o tenham enfrentado diretamente. Por exemplo, o conceito de exposição seletiva e as contribuições da corrente dos Usos e Gratificações destacam a iniciativa do receptor em relação ao meios de comunicação. O primeiro analisa o ato de se colocar à disposição dos meios (exposição = tornar-se receptor), mas formula isso a partir da mensagem, como um seleção que os receptores fazem dos conteúdos dos meios em relação à suas afinidades. Os indivíduos tendem a se expor aos meios cujo conteúdo lhes agrada ou que trazem as opiniões com as quais concordam. Este tipo de seleção tem dificuldade de ser aplicado à TV, na medida em que a recepção deste meio se assemelha mais a uma "frequentação", a visita a um "locus", pois em geral a recepção "precede" a escolha dos conteúdos, no sentido que primeiro a TV é ligada, depois se seleciona o que assistir. Diferente, portanto, do processo de recepção de um livro, no qual o conteúdo prevalece: buscamos ler o que nos interessa. 12 A corrente dos Usos e Gratificações, por sua vez, investiga as motivações que levam os receptores a buscarem os meios de comunicação. Mas esta motivações restam no plano dos agentes sociais, como suas motivações conscientes, as razões que eles podem revelar a si próprios. Todas estas limitações, infelizmente, persistem e o problema que instaura a recepção como uma das principais práticas sociais permanece intacto: não pode ser explicado pelas atuais teorias que reivindicam a análise da recepção dos meios. Referências Hall, Stuart. Encoding and Decoding in the Television Discourse. Birmingham: Centre for Contemporary Cultural Studies, 1973. HOGGART, Herbert Richard. The Uses of Literacy: Aspects of Working Class Life. Chatto and Windus, 1957. Katz, E.; Lazarsfeld, P. Personal Influence, Glencoe, Illinois, Free Press, 1955. Lazarsfeld, P.; Berelson, B.; Gaudet, H. 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