RECOLOCAR A RECEPÇÃO:
uma análise a partir dos meios de comunicação 1
REPLACE RECEPTION:
an analysis from the media
Luiz Claudio Martino 2
Resumo: Objeto de importantes controvérsias, o conceito de recepção tem recebido
diferentes formulações teóricas em nossa área de estudo. O presente artigo discute
algumas das principais teorias da recepção e analisa sua convergência em um
paradigma comum, no qual se destaca a atividade do indivíduo receptor como uma
proteção em relação à influência exercida pelos meios de comunicação. Também
propõe uma análise crítica, procurando levantar as principais limitações das
teorias da recepção. Entre elas: a) a da adequação do conceito de recepção a
qualquer tipo de meio de comunicação, ignorando diferenças entre meios de massa
e meios digitais interativos; b) a definição instrumental dos meios de comunicação
e c) a da recepção como uma instituição social.
Palavras-Chave: Recepção. Teorias da Comunicação. Meios de comunicação.
Abstract: Subject of important controversies, the concept of reception has received
different theoretical formulations in field of communication studies. This article
discusses some of the main theories of reception and analyzes their convergence on
a common paradigm, which emphasizes individual receptor activity as a protection
for the influence of the media. Proposes a critical analysis seeking to raise the main
limitations of theories of reception. These include: a) the adequacy of the concept of
receiving any type of media, ignoring differences between mass media and
interactive digital media, b) the instrumental definition of the media and c) the
reception as a social institution.
Keywords: Reception. Theories of Communication. Media of communication.
Introdução
O conceito de recepção constitui um dos elementos mais antigos de nossa área de
conhecimento. Ao lado de outros como emissor e mensagem ele fornece uma descrição
básica do processo de comunicação.
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Epistemologia da Comunicação do XXIII Encontro Anual da
Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014.
2
Insira aqui seus dados: Universidade de Brasília/ CNPq, Doutor, e-mail: [email protected]
1
No plano teórico este conceito vai paulatinamente se destacar, servindo de matéria para
a elaboração de teorias de várias escolas ou tradições de pesquisa, como por exemplo, a
abordagem dos Usos e Gratificação, a análise dos Dois Estágios da Comunicação e a tradição
dos Estudos Culturais. Sem subestimar suas diferenças, todas elas enfatizam a ideia de uma
atividade do receptor. As duas primeiras centraram sua atenção em um foco restrito ou de
médio alcance, partindo diretamente de análises empíricas sobre como os indivíduos lidam
com os conteúdos dos meios de comunicação.
A abordagem empírica também marca os Estudos Culturais, que no entanto partem do
pressuposto marxista de lutas de classes, o que os leva a identificar os pólos do Emissor e do
Receptor como Classe Dominante e Classe Operária (evitaremos o termo "classe dominada"
pois é isto que está em questão para esta teoria). O processo de comunicação é assim
assimilado à relação de dominação e tratado como um conflito de classes.
Deixando de lado as considerações de ordem política sobre as teorias da recepção, e nos
atendo a seu aspecto propriamente teórico, aparecem certas convergências e semelhanças de
enquadramento do objeto estudado. Por exemplo, podemos ver a similaridade Dois Estágios
(Lazarsfeld, Berelson e Gaudet, 1948; Katz e Lazarfeld, 1955) e do modelo de Encoding and
Denconding (Stuard Hall, 1973): os indivíduo receptor de um meio de comunicação esta
protegido da influência dos meios por um fator coletivo.
Para o primeiro modelo o indivíduo não se encontraria isolado, a recepção dos meios de
comunicação não se dá no vácuo social, ela deve competir com a comunicação interpessoal.
A relação de proximidade proporcionada pelo grupo (em oposição ao anonimato equacionado
na noção de massa) confere fidedignidade e confiança aos membros do grupo, de modo que
estes se tornam poderosos agentes de influência (líderes de opinião), muito mais influentes
que as informações difundidas por meios de comunicação de massa. Se esta teoria tem o
mérito de introduzir uma descrição mais precisa da arquitetura comunicacional das
sociedades modernas, chamando a atenção para a articulação de dois sistemas de
comunicação, o tecnológico e o interpessoal, ela acaba sub-avaliando o primeiro para
destacar a prevalência deste último.
No modelo dos Estudos Culturais, a resistência do grupo social é substituído pelo fator
"cultural", que também age no sentido de uma oposição que freia a ação dos meios de
comunicação. A idéia aqui é a de que o indivíduo pode se apropriar ou dispor como quiser
2
das mensagens dos meios, pois o elo que une o indivíduo aos valores coletivos de uma certa
comunidade seria mais forte e pode prevalecer (embora não necessariamente), limitando
assim a ação dos meios sobre as pessoas. Seja a cultura de classe (Estudos Culturais), seja o
grupo social (Dois Estágios da Comunicação), ou até mesmo fatores subjetivos (Usos e
Gratificações) constituem formas de proteção do receptor. De certo modo elas retomam as
reflexões da hermenêutica na medida que afirmam o primado da interpretação (recepção) em
relação ao texto (mensagem do meio).
Se para o modelo dos Dois Estágios a conclusão é de que o efeito dos meios é fraco, os
Estudos Culturais praticamente ignoram os meios enquanto tecnologia, pois entendem que
esta recebe sua forma e sentido da cultura, sua significação seria apenas derivada. Ambos
retomam, de maneira mais ou menos consciente, a oposição entre técnica e cultura e
desenvolvem esta última ou o grupo social como uma forma defesa (ou de resistência) dos
indivíduos em relação à influência dos meios de comunicação. De maneira mais ou menos
explícita elas se alinham quanto à tese de que seus efeitos são fracos ou não são
significativos.
Os traços destacados logo acima mostram que as principais teorias da recepção dos
meios de comunicação se baseiam em um paradigma, um princípio fundamental que é
comum a diferentes teorias, independente de suas particularidades.
Insuficiências da formulação da comunicação como conflito de classe
Os Estudos Culturais reivindicam a questão da recepção como seu domínio, ao ponto de
por vezes subestimar a contribuição das outras correntes. Sua origem, como sabemos, se
encontra na análise da classe operária (Hoggart, 1957; Thompson, 1963), na investigação das
características que a singularizam como uma sub-cultura, a matriz de um sistema de valor
próprio, diferenciado da classe superior e com a qual inevitavelmente entra em choque.
De fato, a sociedade moderna implica uma acentuada dinâmica entre classes, que se
expressa de diversas formas. Por exemplo, na estrutura do sistema político, visto que a
democracia demanda práticas de legitimação, cujo correlato comunicacional é a emergência
da opinião pública e as práticas de propaganda; ou na estrutura do sistema econômico,
baseado na construção permanente do consumo como uma prática natural, o que exige o
3
desenvolvimento das técnicas de publicidade como construção e alimentação desse universo
de consumo. Concentrando-se nesta questão da intensificação da dinâmica das classes sociais
os Estudos Culturais chegaram nas questões trabalhadas nas pesquisas de comunicação. Sua
relação com o saber comunicacional reflete esta dubiedade de ser uma tradição interna ou
externa ao campo comunicacional. Sua preocupação central reside na investigação de como a
classe operária encontra sua maneira particular de reagir e sobreviver em um sistema onde
lhe é reservado um papel subalterno, sem que, por isso, seja submissa. A subversão aqui não
é a das estruturas sócio-econômicas, mas sim a da ideologia, a dos valores, a da cultura. A
hipótese fundamental é que as condições materiais da classe operária não são completamente
determinantes, permitindo um certo grau de liberdade ao indivíduo, que o torna capaz de
resignificar os conteúdos ideológicos veiculados pela classe dominante. O fundamento dessa
autonomia em relação à ideologia dominante é fornecida pela cultura de classe.
Se as condições materiais inevitavelmente colocam os indivíduos frente a certas
práticas e comportamentos, elas também geram condições específicas, que exigem a adoção
de posicionamentos relativos a sua situação de classe, a sua condição de poder. Os Estudos
Culturais entendem que isto leva ao desenvolvimento de valores e de um ethos próprio. É
desse solo que nasce a cultura como uma resistência, é isto o que esta tradição chama de
cultura. A multiplicidade dessas formações culturais evidentemente ultrapassa a questão
operária, mas guarda a idéia de coletividades submetidas ao conflito com o poder da classe
dominante e seu sistema de valores. Por isso os Estudos Culturais irão evoluir na direção de
um pensamento sobre o multiculturalismo e darão uma crescente importância à questão da
hibridização da cultura (fruto do contanto entre elas) e à análise de grupos minoritários.
De forma mais específica aos nossos propósitos, o processo comunicacional aparece
como um choque entre a indústria cultural e as matrizes de valores dos diferentes "lugares"
de recepção. Uma consequência disso é que o processo de comunicação passa a ser
considerado unicamente como dimensão de um conflito, ou seja o problema comunicacional
não é expresso em termos propriamente comunicacionais. A comunicação mediática estaria
fortemente estruturada por uma concepção sociológica de classes sociais e os meios de
comunicação seriam apenas um "lugar" para a expressão do problema político do conflito de
interesses.
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A adoção desta abordagem privilegia a dimensão de ruptura, de descontinuidade entre
os grupos, o contraste entre comunidades, em detrimento de fatores que lhes são comuns e
talvez mais fundamentais do ponto de vista comunicacional, como a própria construção do
comum através da circulação da informação, por exemplo. Por terem pouca importância para
o modelo estes fatores deixam de ser considerados. A construção do comum é reservada
apenas aos processos não mediáticos ou propriamente etnológicos, colocando em jogo uma
oposição entre a massificação da mediação tecnológica e a identidade comunitária, o que
implica em atribuir e fixar apenas um único sentido à ação dos meios (aliás, já muito
questionado, visto a simplicidade do conceito de massificação).
Isolar e contrastar os pontos de conflito faz com que partes muitos significativas dos
processos de comunicação moderna sejam esquecidas. Isso é notório em relação à
organização social, onde facilmente se destaca o papel de integração e de redução da
complexidade desempenhados pelos meios de comunicação. Na verdade há muitas outras
dimensões da vida moderna em que a intervenção da tecnologia nos processos de
comunicação teve um impacto importante, inclusive na própria dimensão cultural, que não
poderiam ser formuladas e exploradas apenas pela questão do conflito de classes. Mesmo em
pontos que os Estudos Culturais estão atentos. O surgimento da internet, as práticas de
pirataria ilustram como as estruturas de poder foram alteradas, introduzindo modificações
que complexificam a vinculação estrita de cultura à classe social, bem como a noção de
dominação, na medida que permitem a expressão da diversidade cultural. Não que isso
invalide a aplicação do modelo do conflito de classes sociais, mas não se pode inverter as
coisas, tomando a parte pelo todo, ou seja, tal paradigma não expressa a totalidade do
fenômeno cultural moderno, particularmente se visto da perspectiva das transformações
apoiadas nos novos meios de comunicação. Por isso defendemos que o conceito de recepção
necessita de ajustes para se adaptar às novas condições da cultura, onde diversidade cultural e
centralização do poder político estabelecem relações complexas, mas também em relação a
um sistema de comunicação cada vez mais diversificado em termos tecnológicos e de práticas
de comunicação.
Além de deixar de fora muita coisa, a identificação da recepção dos meios ao problema
do conflito político de classes sociais induz a considerar o processo comunicacional como um
jogo onde há vencidos e vencedores, aqueles que se submetem e aqueles que se impõem,
fazendo valer seus valores. O que nem sempre é tão fácil de entender.
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Fenômenos recentes de conflito de classe na sociedade brasileira, como os chamados
rolezinhos, expõem contradições ou paradoxos desses movimentos sociais em relação à
análise dos Estudos Culturais, já que a reivindicação em questão é da inclusão na sociedade
de consumo. A contestação se volta contra a segregação "consumista", o que é muito
desconcertante para aqueles que postulam a noção de resistência como um valor próprio e
singular de uma comunidade ou classe social que se opõe à ideologia dominante. Certamente
o modelo de Hall admite a possibilidade da classe dominante ser vitoriosa, ou parcialmente
vitoriosa (negociação), mas não traz uma contribuição para o entendimento desses casos. Tal
como acontecia com o modelo da seringa hipodérmica, a teoria funciona bem nos casos que
ela explica, mas deixa de fora extensas faixas de manifestação do fenômeno. O que exige
uma adaptação dos fatos à teoria, mais do que o inverso.
E esta não é uma questão pontual, não se restringe à análise de um caso, ela pode ser
facilmente transposta e ampliada para um plano estrutural. Por exemplo, examinemos um dos
pontos onde se apóia a interpretação dos Estudos Culturais. Porque devemos aceitar que as
crenças e valores de uma certa comunidade ajuda seus indivíduos a resistirem e a se
colocarem a salvo das práticas de dominação? Em que medida consumidores exigentes não
legitimam o consumo? Em que medida a reivindicação de "direitos" do consumidor não nos
torna "sócios do negócio"? Então, ao invés de uma resistência, pode-se inferir daí que não
apenas reconhecemos que somos consumidores, mas exigimos sermos reconhecidos como
tal.
Não quero dizer que devemos deixar de contestar ou de reivindicar nossos direitos,
apenas afirmo que não podemos lutar por eles sem legitimar uma situação maior, sem trazer a
luz e afirmar uma estrutura que dá sentido – mas também, um duplo sentido – a nossas ações.
Em outros termos, a contestação pode ser uma forma de participação, – que, aliás, pode se
revelar bastante poderosa e eficaz –, uma maneira de se relacionar e, por conseguinte, de
submeter-se a alguma coisa. Nenhuma crítica é libertária por si mesma. Para o capitalismo, é
praticamente indiferente se o indivíduo adere livremente ao sistema de produção ou que ele
se queixe disso. Contanto que continue trabalhando ou comprando, ele pode reclamar o
quanto quiser. Em suma, o conflito também une e pode ser uma forma de intensificar a
relação, uma maneira de se envolver com as coisas.
Ora, essa observação é particularmente apropriada para a questão do "consumo" dos
meios de comunicação. Os estudos de recepção focam a questão da veiculação dos conteúdos
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ideológicos, sem levar em consideração a possibilidade de que a crítica dos conteúdos das
mensagens pode ser uma forma poderosa de manter o vínculo com os meios.
Contrariamente a uma idéia bastante corrente, a crítica não libera o telespectador. Ela
pode anular certos efeitos ideológicos contidos nas mensagens, mas evidentemente não
suprime outros tipos de efeitos ligados à recepção dos conteúdos e ao contato com os meios
de comunicação. Da mesma forma em relação ao zapping, que prende ainda mais o
telespectador, pois também exige um empenho da atenção. Habituados a confundir o meio
com os conteúdos veiculados, muitos teóricos foram levados a acreditar que a atividade
crítica ou as singularidades da decodificação da mensagem poderiam desempenhar uma
função emancipadora, expressando a liberdade do indivíduo. É o caso de modelos muito
diferentes, como os Estudos Culturais ou daquele proposto por Dominique Wolton, que
acredita que os efeitos das mensagens televisivas são anuladas pela recepção particular de
cada indivíduo (Wolton, 1990; Wolton, et Missika, 1983).
Mesmo nos casos onde o receptor contesta a intenção original do emissor (classe
dominante) e consegue se apropriar das mensagens, isso não significa necessariamente uma
liberdade ou uma superação do sistema. A própria atividade do indivíduo, seu poder de
contestação (prender e intensificar a atenção), sua iniciativa (como no marketing viral, por
exemplo), a evocação do universo de seus valores (identificação com a marca), todos os
signos de uma resistência à cultura oficial e da afirmação de uma cultura própria podem ser
mobilizados como estratégias de dominação. A indústria cultural é uma formação reativa, não
tem conteúdo próprio, ela se alimenta da produção dessas culturas, como de qualquer outra
forma de conteúdo.
Portanto, o conflito entre a intenção original do emissor (classe dominante) e o sentido
que o receptor (classe dominada) dá às mensagens, mesmo quando chega a se apropriar dele,
não é suficiente para expressar questão do poder nos meios de comunicação. A corrente das
teorias cognitivas alertaram para a importância de considerar a existência de fatores não
ideológicos, pois distorções involuntárias também compõem o universo da produção das
mensagens (o controle sobre elas não é absoluto). A teoria da agenda-setting mostra que o
problema nem mesmo precisa passar pelo conteúdo das mensagens, ou da persuasão direta,
mas pode ser colocado no plano da atenção social (pauta), naquilo que se torna visível e
passa a ser objeto de discussão.
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Este contraste da noção de recepção do Estudos Culturais com algumas teorias da
comunicação nos dá uma idéia das limitações do conceito formulado a partir do conflito
social.
Visão instrumental dos meios de comunicação
Se a expressão "estudo de recepção" se refere à recepção de meios de comunicação,
devemos nos perguntar qual o conceito que os Estudos Culturais colocam em jogo. O que são
meios de comunicação para um modelo teórico em que o processo de comunicação é
expresso como conflito de classes? Colocado dessa forma direta a questão não é nada fácil.
Até porque são raras as definições sobre meios de comunicação e ainda mais para uma
tradição que não se propõe a tê-los em seu foco de análise.
Mas isso também coloca outra questão interessante, a de saber até que ponto é válido
analisar a comunicação moderna sem referência as suas tecnologias. Uma tal recusa, em
minha opinião, não poderia ser justificada como um expediente metodológico, como um
recorte necessário ou derivado de um ponto de vista. Seria perder o essencial, no sentido que
em torno destas tecnologias residem os elementos mais característicos da comunicação
moderna e talvez da modernidade tout court. Como seria possível falar de recepção dos
meios se eles não têm grande valor para a reflexão? Não me parece válido, então, afirmar que
a análise da recepção possa descartar a análise dos meios de comunicação ou que possa
prescindir de conceituá-los.
A justificativa deve ser buscada em outra parte, na visão geral que os Estudos Culturais
têm da tecnologia. O aspecto tecnológico não é destacado, pois a cultura imporia seu sentido
ao objeto técnico. Com isso o problema dos meios de comunicação tem o mesmo destino, sua
abordagem é apenas secundária e derivada de uma análise da cultura. É nesta última que se
encontraria sua significação.
Esta visão de neutralidade da técnica traz, contudo, novas dificuldades. Tal como
qualquer objeto técnico, os meios de comunicação seriam apenas instrumentos que serviriam
para se alcançar determinados fins. Trata-se de uma visão estritamente instrumental a qual,
mesmo reconhecendo sua importância, é preciso ser superada. Mais que um simples
instrumento nas mãos de representantes de classes sociais (seja a classe dominante, para o
modelo de meios de massa; seja a classe dominada, para o modelo dos meios digitais
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descentralizados), a atividade dos meios de comunicação têm por resultado um tipo de
“produto” que faz deles um tipo muito particular de objeto técnico, já que não se trata de uma
atividade de transformação do mundo, como nos demais objetos técnicos. Eles são
tecnologias do simbólico, estendem e agem sobre nossa atividade simbólica, transformando
nossa representação do mundo (Martino, 2012). A propriedade instrumental, essencial aos
objetos técnicos, encontra aí um estatuto muito mais complexo, pois enquanto extensões da
fala, seria ingênuo dizer que "usamos" a fala para comunicar, a fala não é apenas um
instrumento do qual o Eu se serve, mas uma de suas condições de possibilidade, já que é
através dela que nos introduzimos na dimensão simbólica.
Enquanto comunicação, a atividade dos meios leva a uma transformação da consciência
e articula novos níveis de elo social, na medida mesmo em que gera o compartilhamento da
experiência coletiva. Visto deste ângulo, um meio de comunicação não pode ser considerado
apenas um mero veículo de transporte de informação ou de ideologia, um palco para o
conflito de classes; ele estende nossa capacidade de gerar a experiência coletiva, ao mesmo
tempo em que transforma a idéia mesma que temos da experiência.
Por isso a atividade dos meios de comunicação acabam tocando todas as atividades
humanas. Mesmo as da cultura. Ao valorizarem o ethos de uma certa comunidade os Estudos
Culturais tendem a marcar a oposição entre o que é próprio e o que externo a esta
comunidade (local versus global, por exemplo). Sua atenção se volta para este conflito e não
explora outras mudanças estruturais trazidas pelos meios de comunicação. O próprio
fenômeno da globalização nem sempre é considerado em seus aspectos comunicacionais e
frequentemente são vinculados aos aspectos econômicos e políticos.
Não é considerado, por exemplo, o papel dos meios de comunicação nos processos de
transmissão do patrimônio simbólico de uma geração a outra. Desconsidera-se como as
transformações na capacidade de estocagem, de acesso e de circulação da informação
alteraram nossa relação com a cultura. Como a atividade da escrita, da imprensa e
posteriormente dos meios digitais alteraram até mesmo o conteúdo desse patrimônio, que ao
se agigantar também se torna menos restritivo, menos criterioso ou simplesmente mais
próximo de toda e qualquer atividade humana. O esporte se torna cultura, a alimentação
gourmet se torna cultura, a coleção de figurinhas se torna cultura... inúmeras atividades
podem compor o universo cultural, pois o próprio conceito se transformou. Não se trata de
9
valores que irão tornar o homem melhor, mas o que de melhor os homens fazem. A cultura
não é mais algo para o cultivo ou o aperfeiçoamento do homem, mas coincide com as
manifestações deste.
A visão instrumental não permite ver os meios de comunicação como uma parte
importantes das condições materiais da cultura, limita demasiadamente a investigação dos
meios de comunicação e com isso subordina a dimensão comunicacional aos aspectos
políticos. Para nós, uma abordagem da recepção não pode se recusar a encontrar a articulação
do plano tecnológico e do plano da organização social, como duas dimensões da atividade
dos meios de comunicação.
Recepção como instituição social
Outras limitações aparecem logo no primeiro contato com a questão da recepção. Dois
pontos chamam muita atenção de quem analisa a questão da recepção a partir dos próprios
meios. O primeiro deles é que o conceito de recepção se aplica melhor a meios de
comunicação massa. Meios interativos, como a internet, que permitem uma atividade maior
do receptor, não se enquadram muito bem neste conceito e parecem não estarem adaptados
aos problemas típicos da recepção (se emprega o termo "navegar" para a internet, ou
simplesmente falar/conversar no caso do telefone). A questão dos meios é mais ampla que a
idéia de recepção, o que mostra uma certa limitação deste conceito. Por isso nos
concentraremos na análise da televisão, um meio onde o conceito se aplica com mais
propriedade.
O segundo ponto é a onipresença dessas tecnologias na paisagem do século XX. Mais
de 90% dos lares brasileiros dispõem de um aparelho de TV e as estatísticas mostram que há
mais aparelhos celulares que habitantes. Correlacionado a isso, temos a questão do tempo, as
atividades das quais os indivíduos se ocupam. Considerando-se apenas o tempo empregado
com a TV, já é suficiente para fazer de sua recepção uma das mais importantes atividades
cotidianas, somente comparável com a atividade laboral.
Aliás, as atividades trabalho e lazer praticamente ocupam todo o tempo de vigília.
Diferente de outros meios, como a escrita e a internet, a televisão não é empregada na esfera
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do trabalho, ela é fundamentalmente uma forma de lazer, o que implica em afirmar que se
trata de uma atividade caracterizada pelo tempo livre das obrigações de todo tipo e se
contrapõe à esfera do trabalho, pois trata-se de um tempo administrado pelo indivíduo. Por
conseguinte, uma análise da recepção da televisão deve necessariamente ter como referência
a sua institucionalização como prática social, como ela se estabelece na negociação
necessária entre o tempo das obrigações e o tempo livre.
Examinemos, inicialmente, como se reparte, do ponto de vista da quantidade, ou como
se dá o emprego do tempo entre estas duas esferas da vida social na Sociedade Industrial. Se
admitirmos que, em média, um indivíduo dorme cerca de 8 horas por dia, as restantes 16
horas de seu tempo útil podem estar dispostas da seguinte maneira. Para a atividade do
trabalho contaremos cerca de 8 horas por dia, ou seja, 50% do tempo útil e para a
telespectação, num país como a França, pouco permeável a esta prática, contamos 3 horas por
dia em média, ou seja, 37,5% do tempo que o indivíduo tem disponível.
Os números podem variar bastante entre países e mesmo segundo as fontes. Para os
Estados Unidos é estimado um consumo de cerca de 5 horas diárias, para o Brasil, cerca de 4
horas. Segundo um documento da CERLALC – Centro Regional para o Fomento do Livro
em América Latina e o Caribe (http://www.omelhorlugardomundo.org.br/cerlalc.pdf) “uma
pesquisa sobre as atividades culturais de pessoas de mais de 13 anos situou o Brasil no 27º
lugar na média semanal de horas de leitura: 5,2 horas, contra 18, 4 horas frente ao aparelho
televisor (o Brasil é o 8º em consumo de televisão, mais de dois pontos acima da média
mundial, 17,2 horas de escuta de rádio (2º entre os 30 países participantes da pesquisa) e 10,5
horas de navegação por Internet (contra 8,9 horas de consumo global, em média)”. Isto daria
uma média de 2,2 horas de recepção de TV. Para o IBOPE, Instituto Brasileiro de Opinião
Pública e Estatística, no entanto, a recepção da televisão era da ordem de 3,5 horas diárias
(PNDA 2003). Os números, portanto, sofrem variações de diversas ordens (segundo as
fontes, a variações regionais, sezonais, de classe social, idade...). O consumo televisual
também está sofrendo alteração com a chegada de novos meios, como a Internet e novas
tecnologias, como os gravadores digitais de vídeo (DVR), que permitem aos telespectadores
assistir aos programas no horário que preferirem, com aumento de cerca de 11% do consumo
de televisão. Diante de todos estes fatores e dos objetivos aqui fixados, podemos tomar a
média de 3 horas como referência.
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Tal volume de tempo coloca a telespectação como uma das práticas sociais mais
relevantes. Este predomínio poderia ser parcialmente explicado pela facilidade de acesso: ela
não implica o desenvolvimento de uma habilidade específica ou de um período de
aprendizagem (como no caso da leitura, por exemplo; ou de um conjunto de regras, como
acontece com qualquer tipo de jogo; ou ainda de preparação física, como na prática de um
esporte); ela está imediatamente disponível (facilidade de acesso a um aparelho receptor; não
há dependência de um parceiro para sua realização); e obviamente, não há despesas (o custo é
praticamente o da compra do aparelho e tende a zero se diluído ao longo das horas de
emprego), o que certamente não é caso de algumas outras formas de lazer. Estas
características fazem com que a televisão abranja a população como um todo,
independentemente de classe social, posição geográfica, nível de escolaridade, aptidão física
ou mental, idade (inclusive bebês) ou qualquer outra barreira, se constituindo como uma
forma de lazer ampla, talvez uma das poucas a aspirar o título de ser verdadeiramente
universal (no sentido de não comunitária).
Então, a primeira e mais fundamental questão da recepção é se indagar pelas razões
dessa importância da televisão como uma das principais práticas sociais. o que a fundamenta
como uma instituição social. Não acredito que a questão da recepção, tal como vem sendo
colocada hoje em dia, possa dar uma resposta adequada a isso.
Em todo caso, a formulação da recepção como conflito, tal como postulada pelos
Estudos Culturais, não parece ser uma resposta apropriada. Outras correntes de estudo da
recepção parecem mais próximas do problema, ainda que não o tenham enfrentado
diretamente. Por exemplo, o conceito de exposição seletiva e as contribuições da corrente dos
Usos e Gratificações destacam a iniciativa do receptor em relação ao meios de comunicação.
O primeiro analisa o ato de se colocar à disposição dos meios (exposição = tornar-se
receptor), mas formula isso a partir da mensagem, como um seleção que os receptores fazem
dos conteúdos dos meios em relação à suas afinidades. Os indivíduos tendem a se expor aos
meios cujo conteúdo lhes agrada ou que trazem as opiniões com as quais concordam. Este
tipo de seleção tem dificuldade de ser aplicado à TV, na medida em que a recepção deste
meio se assemelha mais a uma "frequentação", a visita a um "locus", pois em geral a
recepção "precede" a escolha dos conteúdos, no sentido que primeiro a TV é ligada, depois se
seleciona o que assistir. Diferente, portanto, do processo de recepção de um livro, no qual o
conteúdo prevalece: buscamos ler o que nos interessa.
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A corrente dos Usos e Gratificações, por sua vez, investiga as motivações que levam os
receptores a buscarem os meios de comunicação. Mas esta motivações restam no plano dos
agentes sociais, como suas motivações conscientes, as razões que eles podem revelar a si
próprios.
Todas estas limitações, infelizmente, persistem e o problema que instaura a recepção
como uma das principais práticas sociais permanece intacto: não pode ser explicado pelas
atuais teorias que reivindicam a análise da recepção dos meios.
Referências
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