Analisando a obra se Rene Guenon, "O Erro espírita", no específico ponto sobre a reencarnação, atesta-se a trivialidade errônea deste autor pelas deficiências de argumentação, incompreensão completa de categorias e contradições triviais. Vejamos o que diz Guenon na citada obra: "Não podemos pensar expor aqui, com todos os desenvolvimentos que suporta, a teoria metafísica dos estados múltiplos do ser; temos a intenção de lhe consagrar, quando o pudermos, um ou vários estudos especiais. Mas podemos indicar ao menos o fundamento desta teoria, que é ao mesmo tempo o princípio da demonstração de que se trata, e que é o seguinte: a Possibilidade universal e total é necessariamente infinita e não pode ser concebida de outro modo, já que, ao compreender tudo e ao não deixar nada fora dela, não pode estar limitada por nada absolutamente; uma limitação da Possibilidade universal, posto que deve lhe ser exterior, é própria e literalmente uma impossibilidade, quer dizer, uma puro nada. Agora, supor uma repetição no seio da Possibilidade universal, como se faz ao admitir que haja duas possibilidades particulares idênticas, é lhe supor uma limitação, já que a infinidade exclui toda repetição: não é mais que no interior de um conjunto finito onde se pode voltar duas vezes para um mesmo elemento, e ainda esse elemento não seria rigorosamente o mesmo mais que a condição de que esse conjunto forme um sistema fechado, condição que não se realiza nunca efetivamente. Desde que o Universo é verdadeiramente um todo, ou melhor, o Todo absoluto, não pode haver em nenhuma parte nenhum ciclo fechado: duas possibilidades idênticas não seriam mais que uma só e mesma possibilidade; para que sejam verdadeiramente duais, é mister que difiram por uma condição ao menos, e então não são idênticas. Nada pode voltar nunca para mesmo ponto, e isto inclusive em um conjunto que é sozinho indefinido (e não já infinito), como o mundo corporal: enquanto se traça um círculo, se efetua um deslocamento, e assim o círculo não se fecha mais que de uma maneira inteiramente ilusória." Já é suficiente para que tenhamos uma idéia da fragilidade dos argumentos de Guenon. Antes de comentarmos aspectos lógicos da premissa da possibilidade universal ser infinita e assim contrariada pela repetição, somos obrigados a assinalar a verdadeira confusão de categoria que Guenon faz entre arquétipo e ser, e, principalmente, entre arquétipo e estado. Essa confusão entre universais (arquétipos) e seres, bem como entre arquétipos e estados, é fruto de uma mente nada clara. Este ponto remete-nos ao princípio da individuação, completamente ignorado por Guenon no texto acima transcrito, que deste modo joga fora todo um lastro filosófico sobre a questão, pouco importando se noutra parte fale disto. E só esta omissão permite o seu simplismo. Primeiramente perguntemos o que Guenon não se pergunta: o que nos faz indivíduos? Poder-se-ia responder que o fato de sermos seres e não idéias ou princípios caracterizanos como indivíduos. Ou, num argumento deísta, o fato de Deus pensar em nós como seres e não como idéias. "Mas isto ainda não é uma razão, e sim uma propriedade" poder-se-ia retorquir. Fôssemos o ser total, decerto não seríamos indivíduos. O que estabelece a diferença, que é a sede da individualidade, que serviria até para estabelecer a disjunção dos hipotéticos indiscerníveis (seres que teriam as mesmas propriedades segundo Leibniz)? Resposta: o quid, a quididade, a essência. Se há a ecceidade, o princípio que nos dota disto, é questão secundária. Se o ser é um composto, como Aquino indica, tampouco nos importa, porque o que nos faz individualizados é aquilo sem o que deixamos de ser conosco mesmos à diferença do Todo. E isto não está nem na forma, nem na matéria, mas naquilo que nos faz deixar de ser o Todo portando fundamento. Repita-se: portando fundamento. É isto, ou seja, o fundamento. Logo, a transposição de um estado a outro, sem ter nenhuma importância se as possibilidades estão realizadas numa supratemporalidade (outro dos desvios de Guenon que numa segunda oportunidade comentaremos) é realizada pelo fundamento, o ser. Mas Guenon confunde a repetição do arquétipo com a repetição do sujeito dentro deste arquétipo e isto porque confunde antes arquétipos com estados. Eis aí o ventre do seu erro crasso. Explicamo-lo a seguir. Que repetição há num ser que não será o mesmo espécime, ainda que dentro da mesma espécie? Analogamente, pensemos no ato de fazer e desfazer bolas de areia com as mãos; a areia com que fazemos a bola não a tornará a mesma bola de antes, do mesmo modo que uma série de bolas de areia não são a mesma bola, ainda que feitas do mesmo material. A transposição de Guenon da irrepetição do ser para os arquétipos é totalmente arbitrária. Repetição do ser somente haveria se o ser reencarnado fosse o mesmo sujeito, o mesmo espécime, e ainda assim no mesmo tempo e espaço e isto é impossível. O que, sim, há, é o mesmo indivíduo, entendido isso como o fundamento, que jamais repete o mesmo estado, porque um arquétipo não é um estado, senão um modelo da forma. Do mesmo modo que, recordando Platão na teoria da linha dividida, pensamos num triângulo para todos os triângulos, podemos entender a idéia de homem para todos os que portem a forma hominídea, mas, a igual que há diversos triângulos dentro do arquétipo do triângulo, há os diferentes homens dentro do arquétipo homem, que nunca se repetem, ou seja, as diferentes encarnações do ser no arquétipo homem jamais serão uma repetição, porque os estados são o ser individualizado em determinada condição, e não o arquétipo que ele reflete. Esta confusão de Guenon entre os estados e os arquétipos é total e ele capitula a repetição da forma arquetípica como repetição de um estado, num extravio intelectual deprimente. Não obstante, Guenon poderia espertamente ajustar seu raciocínio e dizer que a possibilidade universal, por ser infinita, não pode fazer com que o ser figure no mesmo arquétipo mais de uma vez. Em resposta, perguntar-se-ia: por que não, se os estados dentro do mesmo arquétipo são diferentes e o que Guenon visa é a irrepetição de estados? A resposta seria uma só: porque ele quer assim, é totalmente arbitrário, o que há é somente seu desejo de negar a reencarnação num expediente de falsa sofisticação intelectual. Se os arquétipos comportam vários estados dentro deles, assim como os vários triângulos cabem na idéia de triângulo, que repetição há? Só haveria repetição se Guenon estupidamente fosse dizer que todos os homens são o mesmo homem por serem correspondentes ao arquétipo homem. Uma irrisão. E se jogarmos fora a idéia de arquétipos e universais, num puro nominalismo, mina-se ainda mais a idéia porque estado algum estaria repetindo-se e o fato de ser homem seria apenas um nome que damos a uma forma, uma espécie de cladística na biologia, uma taxionomia convencional. Guenon é tão terco nisto que chega a citar Leibniz na questão da identidade dos indiscerníveis, nem percebendo que dá um tiro no próprio pé...Diz ele: "....duas coisas idênticas são inconcebíveis, porque, se forem verdadeiramente idênticas, não são duas coisas, mas sim uma só e mesma coisa; Leibnitz tem inteiramente razão sobre este ponto. Cada ser se distingue de outros, desde o começo, em que traz em si mesmo algumas possibilidades que são essencialmente inerentes a sua natureza, e que não são as possibilidades de nenhum outro ser" Se duas coisas jamais podem ser idênticas, como é que ele fala de repetição de estados? Por que entre os seres não haveria repetição mas do mesmo ser para si mesmo, sob o aspecto formal-arquetípico, sim? Para que houvesse repetição teria de ser exatamente o mesmo homem no mesmo tempo e espaço, habitado pela mesma alma. Logo, uma vez mais, o que vemos é que Guenon não passa de um platonista malformado, confundindo mesmo repetição de classes e arquétipos com repetição de estados. Com razão está quem fala que os perenialistas são uma versão falsificada e inferior de Platão e Aristóteles, mas eu prefiro dizer que simplesmente não se ombreiam com verdadeiros filósofos. Há ainda um argumento neste sentido: Guenon fala que a possibilidade universal seria contrariada pela repetição. Muito bem, se os arquétipos forem tomados como possibilidades e como tal irrepetíveis, cabe perguntar: por qual razão o ser individual não pode repetir-se sob pena de contrariar este princípio, mas o ser universal sim, colocando milhares de seres dentro de determinados arquétipos formando as espécies? Sim, pelo mesmo raciocínio de Guenon, o gênero e a espécie seriam impossíveis, também, salvo que ele abra uma curiosa exceção para o ser universal ou então admita que repetição no mesmo arquétipo é diferente de repetição de estados. Entenda-se ainda que por repetição de estado Guenon entende a volta ao mesmo ponto, como se lê acima: "Nada pode voltar nunca para mesmo ponto". Só haveria volta ao mesmo ponto se o estado se repetisse, e, como já demonstramos, tal repetição seria a dos acidentes, não do arquétipo. E como os acidentes jamais repetem-se, jamais há seres com as mesmas propriedades, encarnações com as mesmas propriedades da forma que as outras, novamente recordando Leibniz com o problema da identidade dos indiscerníveis, o que Guenon está a falar é um erro em cima doutro erro sobre "voltar ao mesmo ponto". Que não se pense ainda, que isto ainda não é a complexidade de Guenon porque já se vê, por tudo isto, que sua "complexidade" não passa de um emaranhado de confusões grotescas de um pseudometafísico no sentido argumentativo, pois é o próprio Guenon que adverte com toda pompa: "Como se vê, esta demonstração é extremamente simples em si mesma, e, se a alguns custa algum trabalho compreendê-la, não pode dever-se mais que ao fato de que lhes faltam os conhecimentos metafísicos mais elementares; para esses, talvez fosse necessária uma exposição mais desenvolvida, mas lhes rogaremos que esperem, para encontrá-la, a que tenhamos a ocasião de dar integralmente a teoria dos estados múltiplos; em todo caso, podem estar seguros de que esta demonstração, tal como acabamos de formulá-la no que tem de essencial, não deixa nada a desejar sob o aspecto do rigor" Há, também, alguns aspectos lógicos curiosos. A primeira premissa, de que a infinitude contraria a repetição é feita sem nenhuma explicação. Uma simples dízima periódica já acabaria com o que Guenon fala, porque traduz um número infinito, e como tal, com a propriedade da possibilidade infinita, que no entanto constrói-se pela repetição de seqüências. Mas poderiam retorquir que não é a mesma quantidade a que se repete na expressão numérica, sendo apenas sua representação, o que nos jogaria numa discussão infinda sobre a natureza dos números que certamente, mesmo sem ter lido Guenon sobre isso, pelo seu perfil platonista, trairia a ele mesmo. Há no entanto outra pérola no texto que a seguir transcrevo, enlaçada com isso tudo que aqui se comenta, reveladora da falta de rigor lógico do sujeito quando ele mesmo tenta enfrentar a possível objeção de que negar a possibilidade de repetição seria limitar a própria possibilidade universal: "Quanto àqueles que se imaginarão que, ao rechaçar a reencarnação, arriscamo-nos a limitar de outra maneira a Possibilidade universal, responderemos simplesmente que não rechaçamos mais que uma impossibilidade, que é nada, e que não aumentaria a soma das possibilidades mais que de uma maneira absolutamente ilusória, ao não ser mais que um puro zero; não se limita a Possibilidade negando um absurdo qualquer, por exemplo dizendo que não pode existir um quadrado redondo, ou que, entre todos os mundos possíveis, não pode haver nenhum onde dois e dois somem cinco; o caso é exatamente o mesmo" Pura falácia da petição de princípio. Para negar esta possibilidade, ele já afirma que é ela não é uma possibilidade (sendo impossibilidade), ou seja, usa aquilo que quer provar como prova já constituída do que quer provar, caracterizando a citada falácia. E ainda emprega a falácia da falsa analogia situando sua negação na mesma categoria da idéia que dois mais dois não pode ser igual a cinco insinuando que o que afirma é, como esta condição apodítica, igualmente uma necessidade. Não é. Nada obriga a que o universo inteiro não possa passar pelo mesmo ponto, muito embora a infinitude do Absoluto aponte no sentido de incessante acréscimo. Como é que Guenon sabe dos desígnios do Absoluto? A arrogância de Guenon faz escola entre muitas pessoas, porque definitivamente é a Guenon que faltam os conhecimentos metafísicos que deveria ter, produzindo estas fragilidades, mas seus admiradores se armam com uma idéia de superioridade intelectual de um gênio injustamente desprezado, o que não passa de um embuste amiúde utilizado contra ocultistas, esoteristas, como uma forçada linha divisória entre a a metafísica religiosa da qual ele seria um digníssimo representante e aqueles um extrato inferior, que seriam os citados, vestindo-se os mais arrogantes e pretensiosos tipos de pessoa com uma máscara enfadonha de intelectualidade vazia de qualquer real transcendência. Félix Soibelman