Pioneiros cotistas na universidade brasileira Vânia Penha-Lopes ©2013 Vânia Penha-Lopes Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. P3769 Penha-Lopes, Vânia. Pioneiros: Cotistas na Universidade Brasileiral/Vânia Penha-Lopes. Jundiaí, Paco Editorial: 2013. 168 p. Inclui bibliografia. Inclui tabelas. ISBN: 978-85-8148-289-7 1. Desigualdade Racial 2. Ação Afirmativa 3. Universidade 4. Cotas I. Penha-Lopes, Vânia. CDD: 378 Índices para catálogo sistemático: Educação Superior: Colégios e Universidades – Ensino Universitário Classes Sociais-sociologia – Desigualdade Social – Estratificação Social IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangaba, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 [email protected] 378 305.5 A meu avô materno e ídolo, Antonio Penha (1894-1987); À minha avó paterna, Josephina Ferreira Lopes (1885-1986); À minha mãe, Diva Penha Lopes; A meu pai, Helio Ferreira Lopes; À minha tia Odete (Maria das Dores Rodrigues); À minha irmã, Dilma Penha Lopes Pavlidis; E aos antepassados que se foram antes de eu chegar. AGRADECIMENTOS A trajetória de um livro − da concepção da sua primeira ideia à conclusão com a sua publicação − raramente é linear, marcada que é por atalhos, eventuais obstáculos e recomeços. O ponto final chega quando superamos todos os obstáculos, mas isso só é possível com a participação de muitos ao longo do caminho. Assim foi com este livro. Portanto, muitos são os que desejo reconhecer e agradecer aqui. Minha formação acadêmica de nível superior − na Universidade Federal do Rio de Janeiro, para os estudos de graduação, e na Universidade de Nova Iorque para os meus mestrados e doutorado − informou minha maneira de pensar como cientista social e me treinou para ser tanto brasilianista como americanista. Espero que este livro faça jus àquela formação. Tenho uma imensa dívida de gratidão com meu amigo e colega J. Michael Turner, professor emérito de História do Hunter College da Universidade da Cidade de Nova Iorque. Foi ele quem, em 2003, alertou-me sobre a discussão sobre ação afirmativa no Brasil e sugeriu que eu estudasse a adoção das políticas de cotas nas universidades brasileiras. Foi Michael também que, no ano seguinte, apresentou-me ao saudoso Jonas Zoninsein, professor de Economia da Universidade do Estado de Michigan e organizador da Rede de Estudos sobre Ação Afirmativa (Reaa), quando ele preparava uma conferência internacional sobre o assunto, a ser realizada em 2005 no Rio de Janeiro. Graças ao Jonas e a João Féres Jr., coorganizador da Reaa, não só participei das duas conferências (em 2005 e 2006), como contribuí capítulos para os dois livros que organizaram baseados nas conferências. Além disso, foi através de Jonas que entrei em contato com a direção da Faculdade de Odontologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e obtive aprovação para estudar uma amostra de seus alunos cotistas. Agradecimentos são também devidos ao Bloomfield College, onde leciono. Entre 2002 e 2011, recebi várias bolsas para custear minha pesquisa no Rio de Janeiro e apresentar os resultados dela em congressos internacionais e nos EUA. Além disso, a faculdade aprovou meus pedidos de redução de cursos (2008; 2009) e, principalmente, um ano de licença sabática (2006-07), o que me possibilitou completar um pós-doutorado em Ciências Sociais na Uerj. Em 2011, tive a felicidade de poder dedicar um inteiro semestre à escrita deste livro. Meus colegas também apoiaram meu trabalho ao prestigiar com sua presença os colóquios que dei no Bloomfield ao longo dos anos. Por fim, quero agradecer a Regina Meyers, secretária da Divisão de Ciências Sociais e do Comportamento (200713), que imprimiu várias versões deste livro, cuidou das minhas plantas durante as minhas ausências e, por manter-se disponível eletronicamente, possibilitou a impressão a distância dos meus programas de curso. O seminário sobre o Brasil da Universidade Columbia, em Nova Iorque, serviu de fórum para a apresentação das minhas ideias em mais de uma ocasião. Agradeço aos meus colegas pela presença, os comentários estimulantes e a companhia em nossos deliciosos jantares mensais. Marcia Contins, professora e pesquisadora associada de Antropologia e coordenadora do Núcleo de Estudos da Religião (Nuer) do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da Uerj, abriu caminhos para eu receber da universidade autorização para conduzir minha pesquisa lá. Como supervisora da minha pesquisa, a contribuição de Marcia foi valiosa: ela deu sugestões desde a minha proposta até a palestra de conclusão do meu pós-doutorado e apresentou-me a alunas e alunos que concordaram em ser entrevistados e a professoras que me indicaram como palestrante em simpósios no Rio de Janeiro. Nossa fortuita colaboração se mantém através das várias mesas e grupos de trabalho que já organizamos no Rio de Janeiro, nos EUA, em Portugal, na Argentina e na Áustria. Agradeço também ao PPCIS por ter me concedido um espaço de trabalho no qual pude conduzir as entrevistas e contar com apoio administrativo durante o ano que passei na Uerj. Reconheço e agradeço a aprovação institucional da minha pesquisa. Tânia Maria Tavares Bessone, professora associada de História, diretora do Centro de Ciências Sociais e sub-reitora da graduação da Uerj, permitiu-me conduzir entrevistas com alunos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Hilda Maria Montes Ribeiro de Souza, professora associada de Odontologia e então coordenadora de graduação e diretora da Faculdade de Odontologia, autorizou minha pesquisa naquela faculdade, fornecendo ainda uma sala onde pude me reunir com os entrevistados. O apoio que recebi da Uerj também se manifestou através do acesso aos dados cumulativos sobre as primeiras turmas de ingressantes cotistas, que me foram gentilmente cedidos por Claudio Silveira, professor adjunto de Ciências Políticas e coordenador-adjunto do Proiniciar (Programa de Iniciação Acadêmica). Agradeço também aos membros do corpo docente da Uerj que partilharam comigo suas reflexões sobre a experiência de implantação das políticas de cotas pela qual a universidade passou. Meus sinceros agrade- cimentos a Luís Carlos Serafim e Sormani Silva, do Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas Estaduais do Rio de Janeiro (Sintuperj), bem como a Antônio Carlos Moreira da Rocha, professor e diretor do Centro de Tecnologia e Ciência (2007), pela disponibilização dos dados comparativos entre alunos cotistas e universais. Também sou muito grata a Rachel Barros, pelo cuidado, a seriedade, mas igualmente pelo bom humor com que exerceu a função de minha assistente de pesquisa. Os protagonistas deste livro são os alunos cotistas, cujas vozes precisavam ser ouvidas em meio ao acirrado debate sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil. Por isso, muito devo à generosidade dos futuros dentistas e cientistas sociais que concordaram em participar deste estudo e comigo conversaram durante horas. Embora eu precise proteger seu anonimato, quero aqui deixar registrado meu profundo apreço pela sua colaboração e minha admiração pelos seus êxitos. Os seguintes colegas e amigos contribuíram com o término deste projeto através de suas sugestões e apoio moral: João Costa Batista, Uelinton Alves, o saudoso Ney Oliveira, Neia Daniel, Liz Leeds, Anthony Haynor, Deidre Crumbley, James Green, Nilcéa Freire, Emanuelle Oliveira-Monte, Ibrahim Sundiata, Sid Greenfield, Diana Brown, Stavros Pavlidis, José Reginaldo Gonçalves e Maxine Margolis. A todos e todas, o meu “muito obrigada”. Aos profissionais da Paco Editorial, em especial Rodrigo Brito, Arthur Henrique Ferreira e Kátia Ayache, agradeço a atenção e o cuidado que dedicaram à produção deste livro. Finalmente, tenho o imenso prazer de agradecer à minha família, que está comigo desde o princípio e me apoia fervorosa e amorosamente. Tenho o privilégio de ter sido criada por pessoas que encorajaram minha curiosidade intelectual e criaram condições para que eu pudesse satisfazê-las. Meu avô materno, Antonio Penha, filho de escrava, que amava os livros e encorajou as filhas a estudar, e minha avó paterna, Josephina Ferreira Lopes, que se alfabetizou sozinha e lia os jornais diariamente, foram meus primeiros “entrevistados”, tantas foram as perguntas que me responderam sobre suas vidas desde que eu era pequena. Minha mãe, Diva Penha Lopes, a primeira universitária da nossa família numa época em que a maioria dos negros brasileiros era analfabeta, montou para nós uma biblioteca antes mesmo de nascermos, inculcou em mim a ideia de estudar no exterior quando eu só tinha 10 anos e me encorajou a ir atrás dos meus sonhos. Meu pai, Helio Ferreira Lopes, autodidata, foi meu primeiro professor de inglês, desenvolveu em mim o prazer em contar e ouvir histórias e a prestar atenção aos detalhes. Minha tia Odete (Maria das Dores Rodrigues) facilitou tudo por ter sido praticamente onipresente, já que o trabalho mantinha meus pais fora de casa durante o dia; era ela quem nos levava à escola e mantinha padrões altíssimos para o nosso desempenho acadêmico. E minha irmã, Dilma Penha Lopes Pavlidis, minha companheira, quer estejamos distantes ou no mesmo país, que teve a paciência de aguentar a irmãzinha mais nova que insistiu em segui-la ao jardim de infância, embora não tivesse idade para tal e que lê tudo o que escrevo. Todos os meus êxitos eu devo à minha família; por isso, é a ela que dedico este livro. Sumário CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO: AÇÃO AFIRMATIVA PARA BRASILEIRO VER.....11 1. A Mudança Social no Brasil Contemporâneo e a Política de Cotas Universitárias...................................................................14 2. Desigualdades Sociais no Brasil: Classe ou Raça?......................21 3. A Polêmica sobre os Critérios das Cotas Raciais no Brasil...........23 4. Ação Afirmativa no Brasil e nos EUA: São os EUA um Modelo de Exportação?...................................................................................25 CAPÍTULO 2 Os Cotistas....................................................................................31 1. Metodologia................................................................................31 2. Tipos de Cotistas: Afrodescendentes e Egressos da Rede Pública.....33 3. De onde Eles Vêm: Características Demográficas e Classe Social....35 4. Trajetórias Educacionais: O Caminho à Universidade.................39 5. Trajetórias Educacionais: A Vida Universitária dos Alunos Cotistas.....44 6. “Tem Gente Muito Melhor que Podia Estar Aqui” e “Os Últimos dos Moicanos”: Experiências de Discriminação...............................48 CAPÍTULO 3 COTAS UNIVERSITÁRIAS E IDENTIDADE RACIAL.....................53 1. A Opção pelas Cotas: Negros e Estudantes da Rede Pública.......54 2. “Eu Sou Negra; Vou Dizer que não Sou?”: A Identidade Racial Negra.............................................................................................58 3. “Como a Maioria dos Brasileiros”: A Identidade Racial Parda....63 4. “Estou Meio Confuso”: A Identidade Racial Incerta...................65 5. “Não Sou nem Negro nem Pardo”: A Identidade Racial Branca......70 6. Raça, Gênero e Opções de Cotas em Perspectiva.........................71 CAPÍTULO 4 ATITUDES SOBRE A POLÍTICA DE COTAS...................................75 1. Atitudes sobre Cotas em Geral....................................................76 2. Atitudes sobre Cotas para Negros...............................................84 3. Atitudes sobre Cotas para Índios................................................90 4. Atitudes sobre as Cotas para Deficientes Físicos.........................92 5. Atitudes sobre as Cotas para Alunos Egressos de Escolas Públicas...94 6. Desigualdade Racial, Desigualdade Social e Atitudes sobre Cotas......97 CAPÍTULO 5 BALANÇO GERAL DA POLÍTICA DE COTAS UNIVERSITÁRIAS...99 1. Balanço da Primeira Turma de Graduados Cotistas da Uerj........99 2. Balanço do Desempenho dos Entrevistados.............................110 3. Balanço do Desempenho dos Cotistas em Outras Universidades..118 CAPÍTULO 6 CONCLUSÃO: O FUTURO É AGORA...........................................123 1. A Pressão Contra as Políticas.....................................................124 2. A Pressão a Favor das Políticas..................................................133 3. Uma Nota Final.........................................................................140 REFERÊNCIAS................................................................................143 Lista de Tabelas Tabela 1: Calouros Cotistas, Uerj, 2003-04.........................................34 Tabela 2: Características Socioeconômicas e Demográficas dos Entrevistados (N=22).................................................................................38 Tabela 3: Correlação entre Identidade Racial e Opção de Cotas, por Faculdade (N=22)..................................................................................57 Tabela 4: Correlação entre Identidade Racial e Opção de Cotas, por Faculdade (N=22)..................................................................................76 Tabela 5: Comparação do Desempenho dos Alunos Ingressantes por Vestibular com o Desempenho Médio Total, com o Número de Alunos por Curso, 2003-2006/2..................................................................101 Tabela 6: Comparação da Média Final dos Alunos Ingressantes por Vestibular com a Média Final Total, 2003-2006/2..................................105 CAPÍTULO 11 INTRODUÇÃO: AÇÃO AFIRMATIVA PARA BRASILEIRO VER O governo brasileiro nunca quis reconhecer que no Brasil existe um problema do branco a respeito do negro. (Nascimento, A., 2004) Em 1995, a ideia de ação afirmativa tomou corpo no Brasil. Após haver promovido o mito da democracia racial durante quase um século, naquele ano o Brasil passou a reconhecer o racismo que havia vitimado os afro-brasileiros historicamente e começou a formular políticas de ação afirmativa com o intuito de erradicar as desigualdades raciais (Ramalho et al, 1998). Depois de décadas de mobilização de diversos setores do Movimento Negro e de formulações de projetos de “combate ao racismo” pelo deputado federal Abdias Nascimento nos anos 1980 (Contins, 2004), em 1995 o então presidente Fernando Henrique Cardoso criou o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra; no ano seguinte, o governo federal promoveu o seminário internacional “Multiculturalismo e Racismo: O Papel da ‘Ação Afirmativa’ nos Estados Democráticos Contemporâneos” (Maio e Santos, 2004), tendo contado com a presença de intelectuais brasileiros e internacionais, para discutir a questão dos direitos humanos das minorias (Pinto e Clemente Júnior, 2004). Em 1998, o ano do cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 110 anos após a Abolição da Escravatura, o Programa Nacional dos Direitos Humanos lançou Brasil, Gênero e Raça: Todos pela Igualdade de Oportunidades: Teoria e Prática, um documento destinado a conscientizar os brasileiros sobre a existência da discriminação a fim de eliminá-la. Desde então, várias iniciativas surgiram nas áreas da educação superior e do mercado de trabalho, como a liberação de bolsas de estudo para afrodescendentes se prepararem para a carreira diplomática, o que finalmente possibilitou a quebra da barreira racial característica do Itamaraty (Fundação Cultural Palmares, 2002); o estabelecimento da cota de 20% das vagas nos empregos federais para afrodescendentes (Heringer, 1. Versões deste capítulo foram publicadas em Penha-Lopes (2007c; 2008b). 11 Vânia Penha-Lopes 2004); a inauguração, em 2003, da Faculdade de Administração Zumbi dos Palmares, em São Paulo, pela ONG Afrobras (Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural). É a primeira faculdade negra do Brasil. Ruth Lopes, diretora executiva da Afrobras, comparou a mudança social brasileira, favorecedora de políticas de inclusão, ao momento “logo após o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, mas sem a violência” (Lloyd, 2004, p. A50; minha tradução); em 2005, o investimento de R$ 2,5 milhões em projetos de grupos de estudos de universidades públicas relacionados com a inserção e a manutenção de afrodescendentes na universidade (Olped, 2005). Sem dúvida, as políticas de ação afirmativa mais visíveis e polêmicas são as cotas universitárias. Em 2002, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade do Estado do Norte Fluminense (Uenf) foram as primeiras universidades brasileiras a instituírem cotas raciais como critério de admissão dentro de um programa de ação afirmativa que visa a aumentar a representatividade dos afrodescendentes nas instituições de nível superior; mais de cem universidades já adotaram tais medidas (Educafro, 2010). Esse quadro de mudança social também se reflete no renovado interesse nas questões raciais. Desde 1995, tem havido uma produção estonteante de trabalhos acadêmicos sobre vários aspectos da ação afirmativa (por exemplo, Bernardino e Galdino, 2004; Heringer, 1999; Heringer et al, 2009; Maggie e Fry, 2002; Medeiros, 2004; Paiva, 2004; Santos e Lobato, 2003; Silva e Silvério, 2003), bem como centenas de editoriais e artigos de jornais. Além disso, inúmeros simpósios e conferências sobre o tema são promovidos quase que mensalmente pelo Brasil afora. Em suma, ação afirmativa é manchete no Brasil. O caminho até a sanção da lei de cotas em 2012 pela presidente Dilma Roussef foi marcado por discussões extremamente polarizadas. De um lado, seus oponentes sustentam a ideia de que elas são fruto de um “debate que não houve” (Maggie e Fry, 2002) e, portanto, ilegítimas, e também que elas são antimeritocráticas (Carvalho, 2004) e alienígenas, já que o Brasil não é um país racista; desse modo, o Brasil estaria importando um problema dos EUA (Kamel, 2006) e criando um “terremoto” na maneira como se pensa ao negar a gradação de cor reconhecida desde os primórdios do século XX (Maggie, 2005). De outro, os defensores das cotas as veem como uma forma de reparar a desigualdade racial brasileira (Heringer, 2004), tão acirrada que se sobrepõe à desigualdade 12 Pioneiros: Cotistas na Universidade Brasileira econômica (Telles, 2003), como uma medida temporária e a forma mais expediente de “garantir acesso e permanência nos espaços sociais e setores até agora principalmente reservados à ‘casta’ branca da sociedade” (Munanga, 2003, p. 119-120), dando condições, portanto, de se criar uma elite negra brasileira (Pinto e Clemente Júnior, 2004). Em junho de 2006, os opositores das cotas entregaram ao presidente do Congresso Nacional um manifesto contra o projeto de Lei de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial. Tal manifesto, que partia do princípio de que “todos têm direitos iguais na República Democrática”, argumentava que as cotas são inconstitucionais porque pregam a discriminação por raça. Inspirado no manifesto, um artigo na revista Veja foi além: segundo ele, a política de cotas é um “convite ao ódio racial” (Oltramari, 2006). Os defensores da política rapidamente contra-atacaram com um manifesto próprio, que argumentava que ela se faz necessária porque a república brasileira reproduziu o racismo ao longo do século XX, a começar por deixar os ex-escravos em pé de desigualdade para competir com os brancos, incluindo os imigrantes europeus (Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, 2006). Em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial foi finalmente aprovado. Porém, ele foi imediatamente criticado por ser considerado uma pálida versão do documento original, visto que a versão final não menciona cotas raciais (Comissão Diretora, Parecer n. 923, 2010). Para vários ativistas e estudiosos, isso é sinal de que a ênfase nos critérios raciais como base para políticas de cotas está fadada a desaparecer. Alia-se a isso as constantes críticas, por parte da mídia, do sucesso acadêmico dos formados cotistas, não obstante dados que demonstram o contrário. A implantação das políticas de ação afirmativa no Brasil, embora relativamente recente, é polêmica. Argumento que as fontes da polêmica são quatro: 1) no Brasil, as políticas se concentram nas cotas raciais, embora a ideia de raça no país tenha sido historicamente definida de forma relativamente relaxada e subjetiva (ao contrário dos EUA); 2) como a sociedade brasileira se sente mais confortável discutindo as desigualdades de classe do que as desigualdades de raça, muitos brasileiros ainda acreditam que o status subordinado dos afrodescendentes é legado da desigualdade de classe gerada pela escravidão e o período subsequente a ela, e não do racismo; 3) a investida na maior representatividade racial na universidade se intensifica enquanto relatórios mostram que o ensino médio está se desintegrando (Ex.: Weber, 2004a; 2004b); e 4) as cotas raciais tendem a ser 13 Vânia Penha-Lopes erroneamente associadas com o modelo americano de ação afirmativa e, por conseguinte, são vistas como alienígenas (Ex.: Kamel, 2004). Enquanto a legitimidade e a necessidade das cotas na universidade continuavam a gerar controvérsias, milhares de estudantes que delas se beneficiaram estavam prestes a se formar. Tendo instituído cotas em 2002 e as posto em vigor no ano seguinte, em 2006 a Uerj viu seus primeiros “alunos cotistas” se formarem. Como esses alunos pioneiros veem seus anos na universidade? Como eles lidaram com os cursos em meio às ideias amplamente divulgadas de que eles não mereciam estar ali? Como eles se posicionam no debate sobre as cotas − são os alunos dos cursos de maior prestígio menos a favor delas, como já foi constatado (Pinto e Clemente Junior, 2004)? O que eles esperam de sua inserção no mercado de trabalho? Este livro se propõe a responder essas questões. Partindo da convicção de que os beneficiados das políticas de cotas universitárias são os menos ouvidos no intenso debate sobre elas, apresento aqui os resultados de minha pesquisa sobre uma amostra de alunos que ingressaram na Uerj em 2003 e 2004, ou seja, nos dois primeiros anos da adoção das cotas naquela universidade. 1. A Mudança Social no Brasil Contemporâneo e a Política de Cotas Universitárias Quando a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou, em 2001, o projeto de lei que abria vagas para afrodescendentes nas universidades daquele estado, ela expandiu oportunidades que haviam surgido no ano anterior, com a passagem da lei que reservava uma porcentagem de vagas para alunos egressos de escolas públicas. Combinadas, as duas leis reservavam 50% das vagas e permitiam a candidatos ao vestibular de 2002 concorrerem sob dois tipos de cotas (Santos, Renato, 2006). Cercada de reações, a negociação da reserva de vagas continuou no ano seguinte e resultou, em setembro de 2003, no estabelecimento dos seguintes critérios: “20% para estudantes oriundos da rede pública de ensino, 20% para negros e 5% para pessoas portadoras de deficiência e integrantes de minorias étnicas” (Santos, Renato, 2006, p. 119). Em 2004, os critérios de reservas foram novamente revisitados com a introdução do corte de renda, o qual estipulava que os candidatos concorrentes às cotas fossem provenientes de famílias com renda per capita mensal de até R$ 300 por 14 Pioneiros: Cotistas na Universidade Brasileira mês (Santos, Renato, 2006). Assim, em 2003, a Uerj, juntamente com a Uenf, foram as pioneiras na admissão de alunos cotistas no Brasil.2 De um modo geral, tais oportunidades se inseriam num programa de ações afirmativas. O programa era resultado de um processo de redemocratização, fomentado por vários segmentos do Movimento Negro e apoiado por intelectuais e até mesmo o governo (Telles, 2003), que visava a aumentar a representatividade das camadas historicamente excluídas da sociedade. A ênfase em critérios raciais fortemente questionava − quiçá punha por terra − o tão decantado mito da democracia racial, segundo o qual o Brasil estava longe de ser um país racista (Penha-Lopes, 1996). Embora o Brasil tenha se autopromovido como democracia racial durante quase todo o século XX, a luta pelo reconhecimento dos direitos dos negros brasileiros não é de hoje. Esforços dignos de nota são o ativismo da Frente Negra Brasileira nos anos 1930 e, nas próximas duas décadas, do Teatro Experimental do Negro, ambos liderados por Abdias Nascimento, que denunciaram o racismo inerente na ideologia do embranquecimento (Silvério, 2004). Quando a ditadura militar iniciou o processo de abertura no fim dos anos 1970, a supressão dos ataques ao mito da democracia racial foi esmorecendo. Em 1978, o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU) promoveu um protesto com a presença de 2 mil negros em São Paulo (Mitchell, 1985); no ano seguinte, organizou o seu primeiro congresso nacional (Gonzales, 1985). Essas e outras atividades da época marcaram “o (re)surgimento de um movimento social negro, que passou a denunciar sistematicamente o racismo e a discriminação racial em todas as dimensões da vida social” (Silvério, 2004). Hoje em dia, o Movimento Negro, se entendido como “entidades e ou organizações que de alguma forma defendem interesses da população afrodescendente espalhadas por todo o país”, comporta mais de 700 grupos (Silvério, 2004). Na década de 1980, a luta pelo reconhecimento da existência de desigualdades raciais no Brasil alcançou o âmbito da política formal. Em 1983, Abdias Nascimento, então deputado federal do Partido Democrático Trabalhista (PDT), encabeçou vários projetos de lei, reunidos no volume Combate ao Racismo. Entre eles, Nascimento assinou o projeto de lei que “defin[ia] o racismo como ‘Crime de Lesa Humanidade’” (Nascimento, Elisa, 1985, 2. Em âmbito nacional, a outra instituição que também admitiu os primeiros alunos cotistas em 2003 foi a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) (Mattos, 2004). 15