Quando criança eu sonhava crescer ajudando as pessoas à minha volta a crescerem
também, independente da idade que tivessem.
O senso de responsabilidade, solidariedade e justiça latejavam em mim desde muito
pequena. Às vezes penso que isso é herança deixada por meu avô e pelas pessoas que
contribuíram em minha educação, parentes ou não.
O crescimento e o aprendizado contínuos sempre foram minhas metas.
Quando soube do Projeto Conexões de Saberes, consegui enxergar nele várias
possibilidades com as quais eu chegaria diretamente a meus objetivos. Já havia tido aquela
sensação antes. Tive muitas outras oportunidades para isso e sempre soube aproveitá-las. Por
isso, quase não pude conter-me de alegria quando soube que havia sido selecionada para esta
bolsa que além de tudo, daria uma ajuda de custo para me manter na faculdade.
Deixemos de lado minha empolgação quanto ao projeto e falemos agora um pouco
sobre minha trajetória de vida até o ingresso e permanência na faculdade que é o objetivo
deste breve texto.
Iniciarei contando um pouco sobre meus pais, pois é a partir deles que vocês poderão
me conhecer melhor.
Minha mãe, Roseli, tinha 18 anos quando nasci. Ela morava em Curitiba há pouco
tempo, veio de Apucarana após o falecimento de sua mãe. Tinha pouca escolaridade e ajudava
a cuidar dos seus irmãos e do seu pai até resolver se casar.
Meu pai, Francisco, era de família pobre, mas que sempre conseguiu se auto-sustentar
sem passar necessidades (pelo menos na época em que nasci). Sempre foi um homem honesto
e trabalhador, inteligente e culto, porém tinha o péssimo hábito de beber. Hoje, felizmente, ele
está livre deste vício e posso dizer, de coração, que tenho muito orgulho dele por isso.
Tenho dois irmãos que eu não poderia deixar de citar: Francielle e Diego. Sou a irmã
mais velha.
Minha mãe era de família muito pobre, já meu pai poderia ser considerado de classe
média. Sendo assim, convivi com realidades diferentes. Aprendi muito com ambas as partes.
Meu avô materno, Cornélio, era um tanto rude mas tinha um bom coração. Nunca faltou afeto
por parte dele (apesar de infelizmente termos convivido tão pouco tempo).
Meus pais, avós, tios e primos sempre me incentivaram a estudar, mas a pessoa em
quem eu mais me espelhava era meu avô paterno, Arnaldo. Ele me criou como a uma filha e
depositou em mim toda a sua vontade de me ver crescer na vida e de um dia cursar uma
faculdade.
Quando não estava com minha mamãe querida (que eu muito amo), estava com minha
avó que sempre me incentivou e deu forças através de sua grande sabedoria e de seu amor.
Na verdade poderia falar infinitamente sobre minha família, pois são a parte mais
bonita que existe em mim.
Aos 12 anos perdi meus avós, Arnaldo e Cornélio. Foi a maior perda que já tive na
vida.
Como já disse antes, sempre gostei de aprender. Aos onze anos já auxiliava na
secretaria da Igreja Sagrada Família. Aos treze comecei a dar catequese ao mesmo tempo em
que participava do grupo de jovens “JUPS” - Juventude Unida para Servir - da Capela Santa
Mônica. Ambas no bairro Novo Mundo. Encontrei ótimos amigos que nunca deixarei de
lembrar, porém também encontrei pseudo-amigos. Não reclamo de tê-los conhecido, afinal de
contas nada na vida acontece por acaso. Conheci pessoas de todas as estirpes. Se quisesse
poderia até ter me envolvido com drogas, pois tinha fácil acesso a elas, mas nunca tive sequer
vontade ou curiosidade de usá-las.
Não tive muitos amigos na escola. Estudava o tempo todo e era muito resguardada
para tê-los, ao menos até entrar no Ensino Médio, quando mudei de colégio. Concluí o Ensino
Fundamental no Colégio Estadual Dr. Francisco A Macedo e mudei para o Colégio Estadual
João Bettega. Lá eu já tinha os amigos do grupo de jovens e comecei a me soltar um pouco.
Participei de grupos de teatro, fiz cursos de artesanato e confeitaria. Todos oferecidos por
órgãos públicos ou entidades filantrópicas, pois não tinha condições de pagar.
Tudo isso durou relativamente pouco tempo, pois casei aos dezesseis anos e logo
comecei a trabalhar (no mesmo período em que meus pais se separaram). Meu casamento foi
uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida. Aliás, meu companheiro foi como
um anjo que apareceu na minha vida para me dar a força e a coragem que hoje tenho.
Quando estava no segundo ano do segundo grau desisti de estudar, ou melhor, resolvi
adiar meu sonho. Tentei continuar no ano seguinte mas, apesar do esforço também não
consegui concluir.
Aos 18 anos engravidei e mesmo assim, com o apoio do Ricardo, meu marido, insisti
em estudar. Mesmo com todas as dificuldades de uma gestação normal, o nascimento, a
amamentação nos intervalos das aulas e mais o cansaço contínuo que só quem já passou por
isso sabe, eu consegui, com a ajuda da família e dos professores, concluir o Ensino Médio.
Tive uma menina linda, seu nome é Evelyn Cristine, a razão de meu viver.
Após um tempo voltei a trabalhar. Deixava minha filha em casa com minha irmã
durante o dia e à noite com meu marido. Foi muito difícil conseguir creche. Quando ela já
estava com dois anos tivemos que começar a pagar uma creche que se chama Plantação de
Alegria (excelente por sinal), que cobrava razoavelmente pouco em comparação às outras.
Comecei a fazer um cursinho só aos sábados, pois era o que eu podia pagar. Ralei
bastante trabalhando o dia inteiro e estudando nos finais de semana. Mal tinha tempo para
minha família.
E mesmo com todos os esforços e sacrifícios não consegui passar no vestibular. Havia
tentado somente na Federal, pois sabia que não poderia pagar uma faculdade particular.
Nem por um instante pensei em desistir, sempre recebi apoio em casa.
Mesmo com falta de tempo consegui uma brechinha para ser voluntária no “Projeto
Alfabetizando com Saúde” da Prefeitura de Curitiba. Participei como instrutora durante um
ano e meio. Apesar de cansativo, me propiciava bons momentos de alegria e felicidade, pois
eu não só ensinava como também aprendia com meus alunos, que já tinham certa idade e
muita experiência para repassar.
Trabalhava como Agente Comunitária de Saúde, na Unidade de Saúde Aurora, no
bairro Novo Mundo, uma profissão muito humana que requer muita dose de atenção,
paciência e respeito. O serviço consistia no atendimento domiciliar ao usuário do SUS.
Fazíamos acompanhamentos mensais e semanais a hipertensos, diabéticos, gestantes, crianças
e usuários com problemas de saúde mental, tais como depressivos, alcoolistas e drogaditas.
Aprendi muito com essa profissão, mas principalmente aprendi a ouvir. Descobri que as
pessoas precisam disso tanto quanto de emprego e saúde. Elas também precisam de atenção,
necessitam ser ouvidas para que sua auto-estima seja elevada, pois a maioria não consegue se
fazer ouvir em suas próprias casas. Descobri também que ao ouvir o que as pessoas tinham
para me falar eu também crescia, pois todos os seus relatos e experiências de vida também me
serviam como exemplo e acabavam fazendo parte da minha própria história. Por isso posso
dizer que minha vida é repleta de experiências, muitas vezes tristes, porém ricas, pois fizeram
parte do meu desenvolvimento como ser humano.
Gostaria que todas as pessoas pudessem aprender o que aprendi, pois assim veriam
que não somos os únicos com problemas e que na maioria das vezes eles podem ser
resolvidos.
Mas voltando à minha trajetória de vida, eu estava estudando a semana inteira,
inclusive nos finais de semana. Em meio a isso tinha que trabalhar e tudo estava se tornando
cansativo e estressante. Neste momento tive que tomar uma difícil decisão. Como não
desistiria do meu sonho, fiz meus cálculos e, com a “cara” e a coragem e o incentivo de meu
companheiro, resolvi dedicar-me somente aos estudos, pois faltava muito pouco para o
vestibular.
Desta vez me esforcei mais do que no ano anterior. Sabia que faltava muito pouco para
que meu sonho se tornasse realidade. Havia ficado por pouco no outro vestibular, mas mesmo
assim ainda tinha minhas dúvidas. Sempre ouvi dizer que faculdade era só para quem tinha
dinheiro, para quem estudava em escolas particulares e cursinhos caros. Particularmente,
sempre tive dúvidas quanto a isso, mas não deixava de acreditar.
Participei de um curso preparatório para afros-descendentes do Projeto Ka-Naombo, o
qual me ofereceu uma boa preparação por um baixo investimento. O cursinho era oferecido
pela ACNAP- Associação Cultural de Negritude e Ação Popular - e ministrado em espaços
cedidos pela UFPR.
Chegou o grande dia! Estava confiante que passaria pelo menos para a segunda fase e
realmente consegui.
Fui com tudo para a segunda prova, mas sinceramente não achava que teria êxito.
Achava que ainda não estava pronta. Sabia que a concorrência era grande, apesar de ser um
curso relativamente pouco procurado, o que não fazia com que a situação fosse menos
desanimadora. Enfim, após tanta espera, saiu o resultado. Estava ansiosa, mas não empolgada.
Mal pude acreditar quando vi meu nome dentre os aprovados para o curso de
Matemática da UFPR. A sensação de felicidade ultrapassava meu ser. Passei inscrita nas
políticas afirmativas da Universidade, mas acredito que nem precisaria. Apesar de dividir
opiniões, eu e muitos outros amigos conseguimos entrar através das cotas e principalmente
através de nossos esforços. Não me arrependo disso. Tenho colegas com diferentes opiniões,
mas nunca sofri nenhuma discriminação ou fui julgada por conta disso.
Hoje, aos 23 anos, estou cursando o 1o ano do curso de Licenciatura em Matemática e
me orgulho muito de estar aqui. Ainda estou indecisa se este é realmente o curso em que
quero me formar, mas sei que posso contar com algumas possibilidades que a Universidade
oferece, como por exemplo a re-opção de cursos. O mais importante é que segui meu sonho e
não me deixei desanimar pelo que algumas pessoas diziam.
Ainda tenho um longo caminho a seguir, assim como você, leitor. Espero que as
poucas experiências de minha vida relatadas aqui sirvam de exemplo para você que ainda tem
dúvidas quanto a ser capaz ou não de correr atrás de seus objetivos.
Só tenho a agradecer à minha família e a meus amigos, porque sempre pude contar
com o apoio deles e dos professores que fizeram ou fazem parte de minha vida. A todos eles o
meu respeito e admiração.
Somente como observação, quero dizer que fatos ou pessoas não citadas aqui não são
menos importantes para mim.
Acredito que os sonhos podem demorar para se concretizar, ou mesmo levar a outros
sonhos, mas só saberemos que eles se realizarão um dia se tentarmos e persistirmos.
Giselle Cristine dos Santos Pereira.
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Minha vida - Giselle - Conexões de Saberes UFPR