ESPECIAL
Um mergulho
no
centro
da
Terra
Descemos a 45 metros de profundidade
para conhecer as complexas obras
de expansão do Metrô, nas quais
8 500 operários abrem túneis para
construir 17 quilômetros de trilhos
e catorze novas estações
DANIEL NUNES GONÇALVES
Fotos de IZAN PETTERLE
VESTIDOS PARA CAVAR
Com luz e ventilação
artificiais, operários jateiam
concreto em túnel da
Linha 2 — Verde que leva
à Estação Vila Prudente.
Capacetes, máscaras, botas,
protetores auriculares, luvas
e óculos especiais são
acessórios obrigatórios
VEJA SP, XX DE XXXXX, 2007
25
A
gaiola dá um tranco e começa
a descer vagarosamente. Dentro do elevador, dez operários
se distanciam da luz natural,
do vento e dos sons da rua. Próximo à futura Estação Vila Prudente, o Poço Cavour, um buraco de 30 metros de profundidade, é um dos 42 canteiros de obras do
metrô paulistano. “Os túneis de escavação
são as áreas de maior risco”, explica a auxiliar de segurança Adriana do Couto,
responsável por conferir se todos usam os
equipamentos necessários: capacetes, botas, máscaras, óculos, protetores de ouvido e, em alguns casos, roupas plásticas,
capas de chuva e luvas. Mais um baque e
chega-se ao fundo. “Andem com atenção”,
recomenda Adriana, que imediatamente
retorna à superfície. Segundo os operários
que trabalham em túneis, conhecidos como tuneleiros, mulher ali dá azar. O caminho pelo barro rumo ao escuro da caverna,
enquanto se sentem o gotejamento das
paredes úmidas e o cheiro de diesel das
máquinas barulhentas, anuncia a visão de
um admirável mundo subterrâneo, por onde circula parte do batalhão que desde
2004 constrói 17 quilômetros de vias e
catorze estações. Com investimento de
10,1 bilhões de reais, a maior obra de engenharia urbana de túneis da história do
Brasil busca tirar o atraso na expansão dos
trilhos. “O objetivo é concluir até 2012 o
equivalente a um terço do que foi produzido nos quarenta anos anteriores”, afirma
o secretário de Transportes Metropolitanos, José Luiz Portella. Atualmente,
a cidade conta com 61,3 quilômetros de
vias em quatro linhas, que ligam 55 estações — muito pouco para seus 3,3 milhões
de usuários por dia.
Debaixo da terra, a rotina sob a pacata
Rua Cavour, que dá nome ao poço, é a
mesma do subterrâneo de vias movimentadas como a Avenida Rebouças e a Rua
Oscar Freire. Para amenizar a escuridão
do ambiente há refletores de luz de 15
em 15 metros. Turbinas de ventilação
colocadas em respiros abertos a cada
500 metros trazem ar da superfície, ao
26
COM VOCÊS, O MEGATATUZÃO
Operado por 200 trabalhadores,
como o ajudante de produção
Paulo César Nóbrega, o
megatatuzão é a grande estrela
das obras da Linha 4 — Amarela.
Custou 90 milhões de reais
mesmo tempo em que expelem gases
tóxicos de caminhões e tratores levados
às profundezas por guindastes. Quem
tem tendência à claustrofobia é imediatamente reprovado no teste de admissão
das nove empreiteiras responsáveis pelas
obras. Divididos em três turnos, 8.500
homens trabalham 24 horas por dia na
expansão do metrô. Constroem a Linha
4 – Amarela (que terá 12,8 quilômetros e
vai ligar a Luz à Vila Sônia) e expandem
a Linha 2 – Verde (que por enquanto vai
da Vila Madalena ao Alto do Ipiranga,
mas que, com mais 4,3 quilômetros,
chegará à Vila Prudente).
“O serviço era bem mais difícil 22
anos atrás”, conta Laércio do Nascimento, “frentista de túnel” na Estação Sacomã, que aos 8 anos de idade se esfalfava
em uma mina de carvão e virou tuneleiro
em 1987. “Eu suava feito doido para
preparar o concreto manualmente, sem
as máquinas que existem hoje.” Orgulhoso por ter furado “no braço” quatro estações da Linha 1 – Azul, Nascimento comanda um robô programado para fazer o
trabalho duro. A evolução da tecnologia
é evidente quando se comparam os métodos de escavação. Hoje em dia, o impacto na superfície é mínimo. “Para os primeiros 6,5 quilômetros de galerias metroviárias do Brasil, entre o Jabaquara e a
Vila Mariana, em 1968, abríamos valas
com 15 metros de profundidade ao longo
de todo o percurso”, lembra o presidente
do Metrô, José Jorge Fagali, que entrou
na empresa naquele ano e hoje é o segundo funcionário com mais tempo de casa.
“Por causa desse método, vias movimentadas como as ruas Vergueiro e Domin-
TRABALHO MANUAL
DEPOIS DO SUSTO
O peão Adriano Pereira esguicha
água no concreto armado
do túnel da Estação Sacomã,
com previsão de inauguração
para dezembro.
A Linha 2 — Verde usa o método
semimecânico de escavação
Buraco da Estação Pinheiros,
que passou de 40 para 80 metros
de diâmetro depois da tragédia
que matou sete pessoas em
janeiro de 2007: o terreno instável
exigiu que o túnel fosse aberto
com escavadeiras e explosivos
VEJA SP, XX DE XXXXX, 2007
VEJA SP, XX DE XXXXX, 2007
27
SALVE, SANTA
BÁRBARA
Ela está nos 42
canteiros de obras
do metrô, como o
da Vila Prudente.
Protetora dos
tuneleiros, Santa
Bárbara tem
como devotos
os operários
Geraldo Ramos
e Samuel Ferreira
da Silva
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gos de Moraes e a Avenida Jabaquara ficaram parcialmente interditadas por até
três anos.” O número de desapropriações
também foi reduzido drasticamente desde então: de 74 imóveis por quilômetro
da Linha 1 — Azul para dezesseis imóveis por quilômetro na Linha 4 — Amarela. Nas intersecções com as linhas já
existentes, o topo dos novos túneis chega
a ficar a apenas 7 metros de distância da
base dos túneis em operação.
Vedete dos canteiros por onde passa,
o chamado megatatuzão é um dos principais responsáveis pelo nível de excelência das construções. Com o peso de
1.800 toneladas (o equivalente a 1 400
peruas Kombi), a escavadeira rastejante
foi construída na Alemanha especialmente para furar os 7,5 quilômetros
entre as estações da Luz e Faria Lima.
28
PONTO DE ENCONTRO
Escavadeira recolhe
a lama no fosso
de 45 metros de
profundidade da nova
Estação da Luz da
Linha 4 — Amarela,
que consumiu
10 000 metros cúbicos
de concreto
Suas peças vieram do Porto de Santos
ao Largo da Batata, em Pinheiros, em
120 carretas. Com 75 metros de comprimento, foi montada a 30 metros de
profundidade. A cavidade que abre na
terra tem 9,5 metros de diâmetro e serve
de passagem para duas pistas do metrô,
uma de ida e outra de volta. Movida por
energia eletro-hidráulica, utiliza uma
potência de 5 400 kVA, igual à usada
em uma cidade de 40 000 habitantes.
Tudo isso para se mover apenas 5 centímetros por minuto. A supermáquina de
90 milhões de reais mobiliza 200 pessoas para funcionar. “O megatatuzão
faz tudo: escava em média 20 metros
por dia ao mesmo tempo que cobre as
paredes do túnel com anéis de concreto”, afirma o ajudante de produção
Paulo César Nóbrega, ex-vigilante da
cidade paulista de Fartura, que tem sua
primeira experiência profissional debaixo da terra. Embora o capacete vermelho mostre que Nóbrega se encontra
no degrau mais baixo da hierarquia das
obras (os engenheiros, de cinza, estão
no topo da paleta de cores), ele conhece
bem a máquina que maneja. Fala com
VEJA SP, 18 DE MARÇO, 2009
propriedade dos anéis que impedem o
túnel de desmoronar. Cada um deles é
formado por nove partes de 4 toneladas
e 35 centímetros de espessura. Hoje, o
megatatuzão está parado na área da nova Estação República. Em maio, volta
ao batente para concluir o último 1,8
quilômetro da Linha Amarela. Sairá das
profundezas em julho, por uma vala
próxima ao Terminal da Luz. “Estudamos a possibilidade de aproveitar 40%
de sua estrutura nas obras de ampliação
da Linha 5 — Lilás”, diz o gerente de
produção Carlos Henrique Maia. “O
resto vai para o lixo.”
Ao contrário dos tatuzões menores,
que tinham sido usados no trecho do
centro, na Linha 1 — Azul, e da Avenida
Paulista, na Linha 2 — Verde, o megatatuzão possui uma câmara frontal que
VEJA SP, 18 DE MARÇO, 2009
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equilibra as pressões da terra e de possíveis lençóis freáticos que encontre pelo
caminho — daí seu nome verdadeiro,
Shield Earth Pressure Balanced, algo
como “escavadeira de pressão balanceada de terra”. A novidade acaba com a
antiga prática de preenchimento de uma
parte do túnel com ar comprimido para
evitar desmoronamentos. “Os funcionários precisavam trabalhar em turnos menores, pois era insalubre fazer esforço
físico por muito tempo com pressão elevada”, conta o engenheiro civil Tarcísio
Celestino, presidente do Comitê Brasileiro de Túneis. “Tratava-se de um método
pouco produtivo.” No sistema atual, apenas a frente do megatatuzão, que pesa
sozinha 700 toneladas, tem uma pressão
equivalente à do entorno. Depois de passarem três horas ali para realizar limpeza
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e eventuais consertos, técnicos esperam
duas horas em uma câmara hiperbárica.
“É como aquelas usadas por mergulhadores de profundidade para regularizar a
pressão do corpo antes de voltar à superfície”, explica o mecânico colombiano
Luiz Gimenez, que ajudou a implementar metrôs em Portugal e na Venezuela.
Ele é um dos vinte estrangeiros de cinco
países que vivem em São Paulo especialmente para manejar o Shield.
Uma realidade menos confortável é
encarada pelos trabalhadores envolvidos
na construção das estações propriamente
ditas e dos túneis de terrenos rochosos ou
mistos — caso do percurso entre a Faria
Lima e a Vila Sônia, na Linha 4 — Amarela. O sistema de escavação ideal para
esses trechos é o semimecânico, chamado NATM (New Austrian Tunneling Me29
VÁLVULA DE ESCAPE
Trabalho de remoção de pedaços do solo na futura
Estação Faria Lima. Por ali foi escoado 1,2 milhão de metros
cúbicos de detritos retirados pelo megatatuzão
30
thod, método austríaco que, apesar do
nome, não tem nada de novo, pois foi
patenteado na década de 60). A uma
velocidade de 4 metros por dia, os
caminhos são abertos por homens
pilotando escavadeiras, instalando
aros metálicos de sustentação e jateando concreto manualmente. Quando
o terreno é muito rígido, entram em
ação os “cabos de fogo”, operários
responsáveis pelo manuseio de explosivos. “Com a escavadeira, levamos de duas a três horas para avançar
80 centímetros”, afirma o mestre-deobras da Estação Tamanduateí, Sivaldo Gomes da Silva, com experiência
de dezesseis anos em tunelaria. “Já
fiquei só de cueca para aguentar o
calor de 48 graus.” Entre os macetes
que o ofício lhe ensinou está o uso de
jornais entre as meias e as botas para
reduzir a umidade nos pés. “Tenho
amigos que falam alto e gesticulam
muito, de tanto que trabalharam com
barulho acima de 90 decibéis no tempo em que não se usavam protetores
de ouvido”, conta.
A engenharia tuneleira é complexa. São necessários cerca de três
anos para fazer a investigação geológica, o mapeamento das eventuais
redes de tubulação subterrâneas e o
desvio de dutos de água, gás, esgoto
e telefone, além de cabos elétricos.
Uma equipe de arqueologia escarafuncha o terreno: louças e cerâmicas
do século XIX foram encontrados
em Pinheiros e uma estrutura residencial do início do século XX, em
Higienópolis. Alguns terrenos exigem que sejam rebaixados provisoriamente os lençóis freáticos. No
entorno do novo Terminal da Luz,
foi preciso abrir 89 poços de cerca
de 30 centímetros de diâmetro, até
baixar o nível da água para mais de
45 metros. Maior que a Sé e com
previsão de receber 600 000 pessoas
por dia em suas duas linhas de metrô e três da CPTM, a nova Luz
consumiu, sozinha, mais de 10 000
metros cúbicos de concreto, o que
daria para encher mais de cinco piscinas olímpicas. Também impressiona a quantidade retirada de areia, argila e rochas. Só a câmara dianteira
do megatatuzão engoliu 1,2 milhão
de metros cúbicos até agora, com
todo esse material sendo transportado por uma esteira que chegou a
medir 5 quilômetros entre a Praça da
VEJA SP, 18 DE MARÇO, 2009
República e a futura Estação Faria Lima.
Dali, a terra foi removida em caçambas
içadas por gruas e transportada em caminhões para aterros em São Caetano do
Sul e Carapicuíba. Se ela enchesse uma
caixa do tamanho de um campo de futebol, teria a altura de um prédio de cinquenta andares.
Por trás desse esforço está uma massa
de homens-tatu anônimos com histórias
de vida bastante parecidas. São migrantes do Norte e do Nordeste, como o exfaxineiro pernambucano Samuel Ferreira da Silva e o ex-garimpeiro baiano
Geraldo Dourado Ramos, que trabalham
como assistentes gerais ganhando perto
de 1 000 reais por mês. Muitos vivem
longe da família, dividindo moradia na
periferia com outros peões. Os mais
experientes se orgulham de ter no currículo túneis de rodovias e de usinas hidrelétricas. Disputam ainda quem abriu
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TÚNEL DO TEMPO
Juliano Nichimura
e Almir Gomes,
responsáveis pelo
preparo da massa que
une placas de concreto
às paredes de terra,
sob a Rua Oscar Freire:
sem noção da hora e
do clima na superfície
mais quilômetros de metrô. Contados
como feitos heroicos, os perigos de sua
profissão são lembrados nas rodas de
sinuca e cerveja no fim do expediente. O
acidente na Estação Pinheiros, em janeiro de 2007, no qual morreram sete pessoas, tornou-se o episódio mais marcante, relembrado no último dia 25 com o
tombamento de um caminhão à beira do
abismo da mesma estação.
É por correr riscos assim que os tuneleiros botam fé na proteção de Santa
Bárbara, considerada a padroeira dos
trabalhadores subterrâneos. Sua imagem
pode ser encontrada nos canteiros de
obras. Os momentos de maior comemoração são os encontros de túneis, quando as várias frentes de escavação semimecânica se cruzam debaixo da terra.
“No dia do encontro, a gente desce de
roupa limpa sabendo que vai ter pelo
menos uma caixa de espumante de cada
lado da parede a ser rompida”, afirma o
tuneleiro Laércio do Nascimento. Satisfação ainda maior é ver a obra pronta.
“Eu não resisto. Quando passo de metrô
em alguma estação onde trabalhei, cutuco o passageiro ao lado e digo: ‘Fui eu
que fiz’ ”, conta Nascimento. “Ainda
que a pessoa olhe para toda aquela estrutura e responda, como fizeram uma
vez: ‘Você? Duvido!’”.
Q
VEJA SP, 18 DE MARÇO, 2009
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