A “Vida de Antão” A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética 1 uma pedagogia para a vida ascética Sumário O autor: Santo Atanásio, Patriarca de Alexandria (295-373) ..........................4 A obra 5 O personagem ..........................................6 O percurso de Antão na vida ascética ........................................6 2 A Vocação de Antão ...........................7 A iniciação .........................................8 As tentações .......................................9 Progresso nas mortificações e avanço para o deserto ..................................11 O mestre espiritual ..........................12 Desejo de martírio ....................13 Ortodoxia de Antão ..................13 Conclusão ..............................................15 Bibliografia ............................................16 Frei Sandro Roberto da Costa, professor do Instituto Teológico Franciscano (ITF), onde leciona História da Igreja, e Coordenador do Departamento de História Franciscana (DEHIF) da Família Franciscana do Brasil, é doutor em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética Frei Sandro Roberto da Costa, ofm O presente artigo parte da constatação de que uma das biografias mais importantes sobre a história da vida religiosa é desconhecida justamente por uma grande parte daqueles que optaram pela sequela Christi. Sobre a vida do monge Santo Antão, quase todos já ouviram falar. A obra literária Vida de Antão, escrita por Santo Atanásio, poucos conhecem. Constata-se o fato de que Antão é sim conhecido, mas superficialmente. Por isso, o ob- jetivo deste artigo é oferecer algumas reflexões sobre a proposta de Atanásio ao escrever a Vida de Antão. Não pretendemos esgotar o tema. Nos daremos por satisfeitos se conseguirmos despertar o interesse nos leitores(as), sobre um texto que merece e deve ser melhor conhecido, lido, refletido, principalmente por aqueles e aquelas que, um dia, tocados pelo Espírito, se entusiasmaram por seguir a mesma vida vivida por Antão. 3 A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética 1. O autor: Santo Atanásio, Patriarca de Alexandria (295-373) 4 A Vida de Antão foi escrita por Atanásio, bispo de Alexandria. Praticamente todas as informações que temos sobre Antão, seu estilo de vida, mortificações, milagres, tentações, virtudes, etc, nos foram legadas por este homem1. Por que Atanásio se interessou pela vida de Antão? Para termos uma resposta, precisamos conhecer primeiro o autor. Na verdade Atanásio é um dos personagens mais importantes no longo e trabalhoso processo que culminou com a definição da divindade de Jesus. Nascido por volta de 295, participou em 325 do Concílio de Niceia, como diácono assessor do Patriarca Alexandre, bispo de Alexandria, no Egito. Sucedeu a Alexandre em 328, tornando-se bispo com apenas 31 anos. O Concílio de Niceia, primeiro Concílio Ecumênico da Igreja, havia definido a divindade de Jesus, derrotando assim a heresia ariana, que afirmava que Jesus era uma criatura inferior ao Pai, negando, portanto, a sua divindade. Apesar da condenação quase unânime dos bispos, o arianismo continuou vivo e atuante. Os poucos arianos derrotados conseguiram o apoio dos membros da família imperial, e aos poucos iniciou-se uma dura repressão contra os defensores de Niceia. Grande bispo, teólogo, asceta, amigo dos monges e incentivador do monaquismo, Atanásio se destaca neste cenário de perseguição e luta pela defesa da fé nicena2. Quatro imperadores se empenharam em fazer Atanásio acatar as teses arianas, mas não conseguiram. Atanásio é chamado “coluna da Igreja”. Morreu em 373. 1 As dúvidas levantadas pelos estudiosos sobre a existência histórica de Antão foram superadas. Embora seja quase impossível separar as ideias de Atanásio da vida de Antão, alguns dados históricos provam a existência deste personagem, como o fato de que deixou um grupo de discípulos, além das sete cartas que lhe são atribuídas, e alguns “apoftegmas” (sentenças sábias dos Padres do deserto, transmitidas oralmente, e colocadas por escrito a partir do V século). Uma carta de Serapião, bispo de Thmuis, aos discípulos de Antão, para consolá-los de sua morte, é anterior à Vida, o que atesta a existência histórica de Antão, bem como testemunha a extrema autoridade de que o monge gozava. 2 O Credo que rezamos a cada domingo na missa, o “niceno-constantinopolitano”, porque elaborado em Niceia, vai ser reafirmado e completado em 381, no Concílio de Constantinopla. A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética 2. A obra3 Nos 45 anos em que esteve à frente de sua diocese, Atanásio sofreu todo o tipo de perseguições e acusações, incluindo ameaças físicas. Exilado por cinco vezes, nos três últimos exílios refugiou-se junto aos monges do deserto. Teria escrito a Vida de Antão durante sua estadia com estes monges, entre 356-362, ou por volta de 366, após seu último exílio. Discute-se ainda hoje se Atanásio teria de fato conhecido Antão4. De qualquer modo, ao escrever a vida de Antão, o bispo o faz sobre um estilo de vida que ele admira e conhece, pois tinha constantes contatos com os monges5. Foram estes os seus principais aliados na defesa de Niceia, e ele mesmo, embora não fosse monge, tinha uma vida ascética exemplar. A Vida de Antão é a primeira obra a relatar a vida de um monge, e vai servir de modelo para as biografias (ou hagiografias) posteriores6. Antão é conhecido como “o pai dos monges”, embora ele não tenha sido o primeiro a viver vida monástica anacorética, e Atanásio sabia disso7. Literariamente a obra é inserida na categoria de hagiografia, onde o objetivo primeiro não é narrar objetivamente a vida de um personagem ilustre, mas, valendo-se de dados históricos, passar uma mensagem edificante, buscando convencer os leitores a trilharem os mesmos passos da pessoa retratada. Isso, no entanto, não significa que a obra não contenha elementos históricos. Ao lado de fatos históricos envolvendo a vida de Antão, Atanásio também faz suas reflexões pessoais, sejam morais, religiosas, doutrinais ou espirituais, sobre o valor e grandeza da vida monástica e cristã em geral. A Vida de Antão contem a síntese de tudo o que um monge deveria viver para ser um monge “ideal”. O próprio Atanásio afirma: “Vocês me pediram um relato sobre a vida de Santo Antão: querem saber como chegou à vida ascética, que foi antes dela, como foi sua morte, e se é verdade o que dele se diz. Pensam modelar suas vidas segundo o zelo da 3 Para a elaboração deste artigo utilizamo-nos da edição da coleção Sources Chrétiennes 400, Athanase d’Alexandrie. Vie d’Antoine. Introduccion, texte critique, traduction, notes et index par G. J. M. Bartelink, Les Éditions du Cerf, Paris, 1994. 4 Atanásio escreve de forma indireta, ouvindo o testemunho daqueles que conviveram diretamente com Antão. As dúvidas sobre a autoria da obra por Atanásio foram superadas, através de uma série de testemunhos de escritores eclesiásticos autorizados, como Gregório de Nazianzo, por volta de 380, de Jerônimo, em 392, de Agostinho, entre outros. Mas também o estilo próprio de escrever de Atanásio é perceptível em toda a redação. 5 Utilizamos o termo “monge” aqui para nos referirmos aos ascetas que viviam solitários, diferentemente dos que viviam em comunidades, os “cenobitas”, organizados nos inícios do século IV por São Pacômio (292-348). Outra palavra para designar os que vivem sozinhos é “anacoreta”, derivado do grego “anakorein”: retirar-se, isolar-se, recolher-se. 6 Não nos cabe, neste artigo, analisar os modelos literários empregados por Atanásio na elaboração de sua obra. Acenamos apenas ao fato de que o autor conhece e emprega elementos da rica cultura literária pagã greco-romana, ao elaborar o perfil de seu personagem ou “herói” cristão. 7 A Vida não faz nenhuma menção a “monjas”, mulheres vivendo vida ascética. A única referência a uma possível vida religiosa feminina é quando Antão confia sua irmã a uma comunidade de “virgens”, o que não era considerada vida religiosa no sentido exato da palavra. No entanto, em várias passagens, a Vida insinua que o gênero masculino ou feminino não faz nenhuma diferença na vivência da ascese. Provavelmente as Cartas e os escritos sobre a vida ascética, incluindo a Vida, eram lidos também pelas “Virgens”, suscitando, mais tarde, algumas mulheres a viverem o mesmo estilo de vida dos monges do deserto. São João Crisóstomo (347-407), nos informa: “Não só entre os homens triunfa esta vida, senão também entre as mulheres... Comum lhes é com os varões a guerra contra o diabo... muitas vezes as mulheres têm lutado melhor que os homens e obtiveram mais brilhantes vitórias... Vergonhemo-nos, pois, nós homens, ante a constância e firmeza destas mulheres”. Cfr. Colombás, Garcia M., El Monacato Primitivo I: Hombres, Hechos, Costumbres, Instituciones, Biblioteca Autores Cristianos 351 (BAC), Madrid 1974, p. 88. Uma Amma famosa, cuja vida é comparável à Vida de Antão, é Synclética, morta por volta de 350. Cfr. http://www.peregrina. com/voxbenedictina/MacrinaSyncletica.html (acessado dia 04 de abril de 2015). 5 A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética (vida) dele. Muito me alegro em aceitar esse pedido, pois também eu tiro real proveito e ajuda da simples lembrança de Antão, e pressinto que também vocês, depois de ouvida a história, não só admirarão o homem, mas quererão emular sua resolução, quanto lhes seja possível. Realmente, para monges, a vida de Antão é modelo ideal de vida ascética” (Prólogo, 2-3)8. A obra obteve um sucesso imediato, tornando-se o que hodiernamente denominamos de “best seller”. Escrita originalmente em grego, levada a Roma foi traduzida para o latim por Evagrio de Antioquia. Dali, a Vida de Antão difundiu-se por todas as partes do Império Romano, influenciando a vida de muitos homens e mulheres de fé. Agostinho, São Jerônimo, São Martinho, entre outros, foram influenciados por ela. 3. O personagem 6 Quando Antão morreu, em 356, estaria com 105 anos de idade. Hoje coloca-se seu nascimento entre 250 e 260. Filho de uma família rica, cedo tornou-se órfão, com uma irmã mais nova. Com cerca de 18-20 anos resolveu deixar tudo para trás e dedicar-se à vida monástica. A partir daí, sua vida foi se desenvolvendo cada vez mais em direção à santidade, com não poucas dificuldades e desafios. Indo um dia à Igreja, e já pensando em se dedicar totalmente ao serviço de Deus, no templo escuta o Evangelho de Mateus: “Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá-o aos pobres, depois vem, segue-me e terás um tesouro no céu (Mt 19,21)”. Para Antão, essa é a resposta que procurava para seus questionamentos. Doou seus bens aos pobres, retendo uma pequena parte para a irmã, mas até essa parte será depois distribuída. A irmã é colocada para viver junto a algumas virgens consagradas. A partir daí, Antão inicia sua fuga mundi. 4. O percurso de Antão na vida ascética A Vida de Antão não nos apresenta um santo pronto, estático e definido. Toda a Vida nos fala de dinamicidade, de crescimento gradual, de caminho a ser percorrido. A obra é impostada justamente nestes termos: um guia elaborado de forma a indicar os passos a serem dados, as etapas a serem seguidas, por quem quisesse encetar um estilo de vida igual ao de Antão. Atanásio impostou sua obra dentro de bem delineadas coordenadas, que são como que um “fio condutor”, que o leitor interessado pode seguir e, se o quiser, imitar. O crescimento espiritual não acontece de modo linear: “Cada etapa da vida de Antão é caracterizada por uma crise, um momento de prova e de tentação, um equilíbrio que se rompe para deixar lugar a algo de novo, àquela nova criatura que o Senhor está plasmando pouco a pouco. E a luta contra o mal se torna cada vez mais interior, até atingir a profundidade do coração, as regiões de seu ser ainda não evangelizadas...”9. 8 Na literatura antiga não era nenhum problema um autor valer-se da autoridade de um personagem importante para fazer passar suas próprias convicções, colocando, na boca do personagem, ideias que eram suas. 9 Santo Atanasio, Vita di Antonio. Apoftegmi – Lettere, Edizione Paoline, Roma 1984. Introdução aos cuidados de Lisa Cremaschi, p. 56. Observamos que, em italiano, o nome de Antão é traduzido como “Antonio”. A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética 4.1 A Vocação de Antão Um dos primeiros elementos que Atanásio destaca na Vida, é o fato de que o processo de discernimento do jovem Antão é gradual, mas decidido. Após a morte dos pais, entre os 18 ou 20 anos, “já pensando em se doar totalmente ao serviço de Deus”, e tendo em mente o exemplo dos apóstolos, que deixando tudo, seguiram a Cristo, e o exemplo dos primeiros cristãos nos Atos, que distribuíam os seus bens aos pobres, ele ouve na Igreja o Evangelho que o faz decidir-se de uma vez10. Vejamos o que diz Atanásio: “Pensando estas coisas, entrou na igreja. Aconteceu que nesse momento se estava lendo o evangelho, e ouviu a passagem em que o Senhor disse ao jovem rico: ‘Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá-o aos pobres, depois vem, segue-me e terás um tesouro no céu’ (Mt 19,21)” (II,3)11. Segundo Atanásio, Antão sentiu que a palavra havia sido dirigida diretamente a ele. E não perdeu tempo: “Antão saiu imediatamente da Igreja e deu a propriedade que tinha de seus antepassados” (II,4). Deixou um pouco para a irmã, mas mesmo esta pequena parte acabou dando aos pobres, ao ouvir, de novo na Igreja, o Evangelho que diz “Não vos preocupeis com o dia de amanhã (Mt 6,34)” (III,1). A irmã foi entregue aos cuidados de uma comunidade de virgens. Atanásio sublinha alguns elementos importantes na vocação de Antão. Primeiro, a disposição interior para seguir a Deus: já antes de ouvir o Evangelho, Antão vinha “pensando essas coisas”. Isso faz com que, ao ouvir o Evangelho, o jovem sinta um chamado pessoal, direcionado especialmente a ele. E não se nega à resposta: contrariamente ao jovem rico do Evangelho, que como ele “tinha muitos bens”, Antão imediatamente deixa tudo12. Atanásio sublinha a atitude decidida e peremptória do jovem: não há tempo a perder, a decisão já está tomada, e é imediata. Como a resposta imediata dos apóstolos ao “vem e segue-me” de Jesus, Antão parte para a sequela Christi. Mas ainda há um elemento que Atanásio sublinha: a decisão de Antão é, de tal modo definitiva e radical, que ele não deixa espaço para nenhuma possibilidade de retorno. Por isso, embora tivesse deixado uma parte dos bens para o sustento da irmã, como era de direito, quando ouve o Evangelho que diz para “não nos preocuparmos com o dia de amanhã”, até o que havia reservado para a irmã é dado aos pobres. Antão não tem mais nada que o prenda a este mundo. A absoluta confiança na Providência Divina é condição para o discipulado. Livre, pode correr ao encontro do Senhor que o chamou por primeiro. Como diz São João Cassiano, “É a voz de Deus que o arrancou deste mundo”13. 10 Seguindo o estilo típico da hagiografia, Atanásio apresenta o menino Antão quase como um mini-asceta. 11 As indicações que se seguem às citações correspondem à edição da Sources Chrètiennes, já citada. Na web encontra-se uma tradução em português da Vida, feita pelas monjas Beneditinas do Mosteiro da Virgem, de Petrópolis: https://sumateologica. files.wordpress.com/2010/02/atanasio_vida_de_santo_antao.pdf. 12 Este trecho do Evangelho vai inspirar muitos futuros fundadores de Ordens e Congregações religiosas ao longo da história. Três modelos tornaram-se tradicionais a serem seguidos, quando alguém queria compor uma hagiografia: a Vida de Antão, de Atanásio, a Vida de Paulo de Tebas, de Jerônimo, e a Vida de São Martinho, de Sulpício Severo. 13 Um elemento a sublinhar no texto são as “mediações”: o chamado é Evangélico, através das Escrituras, intermediado pela Igreja, na liturgia dominical, e pelos mestres mais experimentados, que o introduzem na vida ascética. Em toda a obra Atanásio utiliza-se abundantemente dos textos das Escrituras para destacar o perfeito seguimento de Antão da doutrina cristã, ao mesmo tempo em que o identifica com personagens bíblicos. 7 A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética 4.2 A iniciação 8 Atanásio mostra o processo de iniciação de Antão à vida ascética como uma gradual afastar-se do convívio com os homens. A princípio, pratica a vida ascética, “vivendo de renúncia a si mesmo, perto de sua própria casa” (III,1). Porém, sabendo que numa aldeia próxima vivia um ancião que desde a juventude levava vida ascética, muda-se e vai viver próximo a ele. Mas não se limita a isso: “quando ouvia que em alguma parte havia uma alma esforçada, ia, como sábia abelha, buscá-la e não voltava sem havê-la visto; só depois de haver recebido, por assim dizer, provisões para sua jornada de virtude, regressava” (III,4). O jovem vivia de trabalhos manuais, para o próprio sustento e para dar esmolas aos pobres, orava incessantemente e se ocupava das Escrituras. Antão é a “sábia abelha” que busca o rico pólen para elaborar o doce mel da virtude. Nesse processo inicial, buscava com sede todas as informações que o pudessem ajudá-lo no caminho que havia encetado: “Observava a bondade de um, a seriedade de outro na oração; estudava a aprazível quietude de um e a afabilidade de outro; fixava sua atenção nas vigílias observadas por um e no estudo de outro; admirava um por sua paciência, a outro por jejuar e dormir no chão, considerava atentamente a humildade de um e a paciente abstinência de outro; e em uns e outros notava especialmente a devoção a Cristo e o amor que mutuamente se tinham. Havendo-se assim saciado, voltava a seu lugar de vida ascética” (IV,1-2). Na sua busca, Antão recorre a “experts”, que o ajudam a percorrer os vários graus de amadurecimento no espírito. O autor acentua a importância da prática na vida ascética, e não apenas as teorias: “...submetia-se com toda sinceridade aos homens piedosos que visitava, e se esforçava por aprender aquilo em que cada um o avantajava em zelo e prática ascética” (IV,1). Os exercícios visavam submeter totalmente o corpo e os sentidos, para fortalecer o vigor espiritual da alma. Atanásio nos revela um jovem Antão num frenético processo de busca, de conhecimento, sedento por aprender com aqueles que tinham mais experiência. Não à toa Atanásio utiliza a expressão “Havendo-se assim saciado”. Antão tem sede de conhecer o caminho da virtude e da salvação. E, segundo Atanásio, este se dá através dos modelos de vida ascética que Antão busca conhecer, cada um com alguma virtude particular. Atanásio apresenta, neste trecho, um compêndio das virtudes que deve ter o monge ideal, que Antão buscava incorporar em sua vida: “Então se apropriava do que havia obtido de cada um e dedicava todas as suas energias a realizar em si as virtudes de todos” (IV,2). Atanásio vai apresentar Antão na sua maturidade como uma síntese de todas essas virtudes. A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética 4.3 As tentações Os primeiros anos de vida ascética de Antão, além da sedenta busca de conhecimento da virtude, são marcados também pelas tentações e pela presença do demônio14. Tais tentações vão aumentando gradativamente, à medida em Antão avança na vida ascética. As primeiras tentações estão relacionadas à vida que até há pouco tempo levava: a preocupação com a irmã, com os parentes, os bens, e a lembrança dos prazeres vividos e deixados para trás. É a tentação de, uma vez tendo “colocado as mãos no arado”, voltar a “olhar para trás”. Relacionam-se também com os temores relacionados à austeridade da vida assumida, às dificuldades futuras. Vencida esta etapa, o demônio então concentra seus ataques nas armas que estão “nos músculos de seu ventre (Jo 40,16)” (V,3). Empregando suas mais baixas artimanhas, o demônio ataca justamente o ponto mais delicado no jovem asceta: sua sexualidade. Estas tentações são terríveis, fazendo Antão travar verdadeiras batalhas contra o mal: “cingia seu corpo com sua fé, orações e jejuns” (V,4). O demônio chega a disfarçar-se de mulher para tentá-lo à noite. O jovem resiste: “Mas ele encheu seus pensamentos de Cristo, refletiu sobre a nobreza da alma criada por Ele, e sua espiritualidade, e assim apagou o carvão ardente da tentação” (V,5). O demônio continua suas investidas, e não desiste. Interessante notar que Atanásio emprega expressões muito humanas para se referir ao ânimo do jovem Antão: “enfadado com razão, e entristecido... envergonhado” (V,6). No final do relato, por causa da resistência de Antão, é o demônio que sai derrotado e envergonhado. A vitória, momentânea diga-se de passagem, é atribuída não a Antão, mas à graça de Deus que age nele: “Verdadeiramente o Senhor trabalhava com este homem” (V,7). A luta e vitória de Antão contra o mal, através do rigor nas mortificações, particularmente a luta contra a concupiscência e os sentidos, é apresentada como modelo para todos os que querem viver uma vida ascética: “Assim, todos os que combatem seriamente podem dizer: ‘Não eu, mas a graça de Deus comigo’ (1 Cor 15,10)” (V,7)15. 14 O exagerado acento no “demônio” é uma das mais fortes críticas à obra de Atanásio. No entanto, sabe-se que os demônios e as tentações eram um tema comum na religiosidade popular da época e da cultura onde a obra foi escrita. Não nos cabe aqui tratar exaustivamente das “tentações de Santo Antão”. Sobre isso existem livros inteiros. O tema também foi extremamente explorado por importantes artistas, em pinturas, mosaicos, afrescos, iluminuras de livros, etc. De todas as Vidas escritas, a de Antão é a que contem mais aparições diabólicas. Carpenter, Dwayne E., The devil bedevil: diabolical intervention and the desert fathers, The American Benedictine Review, 31:2, june 1980, 182-200. 15 Antão aprendeu a discernir a verdadeira ascese, por isso alertava constantemente os monges contra o falso desejo de ascese e perfeição. Jejuns, vigílias, mortificações não podem ser absolutizados, e servem apenas como meios para o exercício da caridade, do amor de Deus e do próximo: “Alguns destroem o próprio corpo com a ascese, mas, privados de discernimento, distanciam-se de Deus” (Apoftegma 8). A esse propósito, São Francisco de Assis afirmava: “Muitos há que, insistindo em orações e serviços, fazem muitas abstinências e macerações em seus corpos, mas, por causa de uma única palavra que lhes parece uma injúria a seu próprio eu ou por causa de alguma coisa que se lhes tirem, sempre se escandalizam (cf. Mt 13, 21) e se perturbam. Estes não são pobres de espírito, porque quem é verdadeiramente pobre de espírito se odeia a si mesmo e ama a quem lhe bate na face (cf. Mt 5, 39)”. Escritos de São Francisco, Admoestações XIV, Vozes 20044, p. 40. 9 A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética As tentações de Santo Antão, por Michelangelo 10 A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética 4.4 Progresso nas mortificações e avanço para o deserto Os primeiros combates contra as tentações e a vitória momentânea não iludem Antão: ele sabe que o demônio está à espreita. Por isso, o único caminho é a ascese: “tendo aprendido nas Escrituras quão diversos são os enganos do maligno (Ef 6,11), praticou seriamente a vida ascética, tendo em conta que, se não pudesse seduzir seu coração pelo prazer do corpo, trataria certamente de enganá-lo por algum outro método” (VII,3). Assim, Antão multiplica as mortificações: noites sem dormir ou dormindo no chão, pouco alimento, jejuns constantes, sem carne ou bebidas, ou só pão e sal16. Nesta parte, Atanásio sublinha o esforço contínuo, cotidiano, dia após dia, no caminho da perfeição. Antão não se preocupava com o tempo passado, com o presente ou com o futuro, “mas dia por dia, como se estivesse começando a vida ascética, fazia os maiores esforços rumo à perfeição” (VII,11). O cuidado em sempre “começar de novo” é acentuado por Atanásio “... como que começando de novo, trabalhava duro cada dia para fazer de si mesmo alguém que pudesse aparecer diante de Deus: puro de coração e disposto a seguir Sua vontade” (VII,12). Antão, em vários momentos (inclusive nos apoftegmas), vai repetir o conselho de considerar cada dia como se fosse o último, e de sempre recomeçar o caminho da ascese sem olhar para trás. Após este embate com o demônio e o acentuar-se de mortificações, Atanásio afirma que Antão dominou-se a si mesmo. Mas, apesar de todo o progresso, o monge não está satisfeito. Sua alma deseja mais. Por isso retira-se para viver em uma tumba abandonada, num cemitério, no deserto próximo à aldeia onde vivia. Ali trava os mais duros combates contra o demônio. Nesta parte do relato Antão já é um homem experimentado no sofrimento e nas tentações, e enfrenta o demônio quase “cara a cara”: “Aqui estou eu, Antão, que não me acovardei com teus golpes, e ainda que mais me dês, nada me separará do amor de Cristo (Rm 8,35)” (IX,2). Para Atanásio, a luta contra o mal não tem trégua. Antão está sempre em confronto com o demônio, que lhe aparece de todas as formas possíveis, causando-lhe dores e ferimentos. E tais tentações são permitidas por Deus. Quando Antão interroga à “visão” que o vem salvar, “por que não aparecestes no começo para deter minhas dores?”, ouve a explicação de que estava sempre ali, mas “esperava ver-te enquanto agias”. E, embora Antão conte com apenas 35 anos, e tenha ainda um longo caminho a percorrer, a “voz” afirma: “porque aguentaste sem te renderes, serei sempre teu auxílio e te tornarei famoso em toda parte” (X,3). 16 Antão, como os demais ascetas, era vegetariano. Na espiritualidade monástica a pratica ascética de dormir por terra assume uma importância tal, a ponto de se criar uma palavra para designá-la: kameonia. Cfr. Bormolini, Guildalberto, l’arte spirituale di affontare la notte e il dormire, Rivista di Ascetica e Mistica, Anno XXX, n. 2, aprile-giugno 2005, Firenze, p. 207-236. Para vencer o pecado, Antão sugere aos monges a prática diária do exame de consciência, mas também indica um meio simples, mas eficaz: anotar num papel os pecados cometidos, como se tivessem que ser mostrados aos outros monges: “podem estar seguros de que de pura vergonha de que isto seja conhecido, deixaremos de pecar e de prosseguir com pensamentos pecaminosos. Quem gosta que o vejam pecando? Quem, depois de pecar, não preferiria mentir, esperando escapar assim de que o descubram?” (LV,9-11). 11 A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética No caminho de busca pela perfeição, nada detêm Antão. Tendo vencido o demônio nas tumbas, decidiu aprofundar-se ainda mais no deserto, indo viver numa pequena fortaleza abandonada. Convidou um ancião para ir com ele. Como este recusou, partiu sozinho. Já no caminho o demônio o tenta, mas o asceta segue em frente. Neste refúgio, em solidão absoluta, retirado de tudo e de todos, acompanhado apenas de Deus, do demônio e de suas artimanhas, durante vinte anos praticando a vida ascética, “não saindo nunca e sendo raramente visto por outros” (XII,7), vai empreender sua luta espiritual radical, ao final da qual sairá transformado definitivamente no grande mestre espiritual, no abade Antão, o “pai dos monges”17. 4.5 O mestre espiritual 12 Quando sai de seu longo retiro, após os apelos daqueles que queriam imitar sua vida, Atanásio faz questão de frisar a naturalidade com que Antão se encontra com os que o esperavam: “O estado de sua alma era puro, pois não estava nem retraído pela aflição, nem dissipado pela alegria, nem dominado pela distração ou pelo desalento. Não se desconcertou ao ver a multidão nem se orgulhou quando viu tantos que o recebiam. Mantinha-se completamente controlado, como homem guiado pela razão e com grande equilíbrio de caráter” (XIV,3-4). Para Atanásio, Antão é exemplo de humildade e sobriedade. O longo tempo que passou em reclusão voluntária, as vitórias contra o mal, a admiração que as pessoas lhe tributavam, nada disso modifica seu caráter e seu comportamento. Com a saída de seu refúgio, Atanásio dá por encerrado o processo de transformação de Antão. A partir daí, o monge aparece como um mestre espiritual, um abade, um santo. Realiza curas e milagres, dá conselhos sábios, tem visões, é exemplo de vida para todos os que se aproximam dele, ao seu redor se forma uma pequena comunidade de anacoretas, o deserto “se enche de monges”: “Por meio de constantes conferências, inflamava o ardor dos que já eram monges e incitava muitos outros ao amor à vida ascética; e logo, na medida em que sua mensagem arrastava homens após ele, o número de celas monásticas multiplicava-se, e era para todos como pai e guia” (XV,3)18. Boa parte da obra de Atanásio, após a transformação de Antão em mestre espiri17 O “deserto”, mais do que um lugar geográfico, designa o local onde habitam os demônios. Mas é também no deserto que o Senhor firma sua aliança com o povo, e onde Jesus se mostra transfigurado aos seus. “O deserto, antes de tudo, é um lugar inóspito, tórrido, onde ninguém poderia levar uma existência normal. Lá o homem está nu, apanhado entre a terra e o céu, entre os dias extenuantes e as noites gélidas... No deserto nenhum homem pode viver se não for ajudado por Deus ou por seus anjos, ninguém pode morar ali sem enfrentar, mais cedo ou mais tarde os assaltos do diabo: tem de viver ali com os milagres e as tentações”. Lacarrière, Jacques, Padres do Deserto, homens embriagados de Deus, Loyola 1996, p. 50. Os monges conservaram uma série de apoftegmas de Antão. Neles, mais do que um herói vitorioso que vence os demônios, aparece um pecador arrependido e tentado, para quem o deserto é um refúgio, mais do que um lugar de combater e enfrentar demônios, e que insiste sobre a discrição, a prudência e a humildade. 18 “Suas celas solitárias nas colinas eram assim como tendas cheias de coros divinos, cantando salmos, estudando, jejuando, orando, gozando com a esperança da vida futura, trabalhando para dar esmolas e preservando o amor e a harmonia entre si. E em realidade, era como ver um país diferente, uma terra de piedade e justiça. Não havia nem malfeitores nem vítimas do mal, nem acusações do cobrador de impostos, mas uma multidão de ascetas, todos com um só propósito: a virtude” (XLIV,2-4). Num diálogo de Antão com Satanás, este, em tom de lamúria, vai reconhecer sua derrota: “Agora não tenho nem lugar, nem armas, nem cidade. Em toda parte há cristãos e até o deserto está cheio de monges” (XLI,4). A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética tual, é ocupada pelos “ditos” do mestre. Mas mesmo neste momento posterior à sua “formação” definitiva, Atanásio apresenta um Antão sempre num atento processo de busca da perfeição. 4.5.1 Desejo de martírio Num império romano onde ser cristão era viver sob o constante risco de perder a própria vida, o martírio é um ideal a ser buscado, o mais alto grau de perfeição a que um cristão possa almejar. O monge é o sucessor do mártir, ao almejar o ideal cristão autêntico. Antão também deseja o martírio. Atanásio, metaforicamente, aplica o martírio à vida de Antão. A Vida de Antão substitui os Acta Martyrum, assim como a vida monástica, com o fim das perseguições, substitui o martírio19. Com a “Pax Constantiniana” (ano 313), os grandes ascetas do deserto se tornam os novos heróis cristãos. Este conceito é claramente expresso na Vida. Antão vai a Alexandria para confortar os cristãos condenados ao martírio, mas também ele tem o expresso desejo de derramar o sangue para testemunhar o amor a Cristo. Não conseguindo seu objetivo, retorna à sua cela e se torna um “mártir diário em sua consciência” intensificando seu ascetismo20. O tempo das perseguições, com a possibilidade concreta de derramar o sangue pela fé, já havia passado, quando Atanásio está escrevendo a Vida. Assim, Antão é apresentado como alguém que vive, no seu cotidiano, a espiritualidade do martírio: “aí foi mártir cotidiano em sua consciência, lutando sempre as batalhas da fé. Praticou um vida ascética cheia de zelo e mais intensa. Jejuava continuamente, sua veste interior era de pelo, e de couro a exterior, e a conservou até o dia de sua morte...” (XLVII,1-3). A ascese e a mortificação são os novos meios de se testemunhar Cristo no mundo. Atanásio acentua a espiritualidade do “morrer a cada dia” através da seriedade na vida ascética21. 4.5.2 Ortodoxia de Antão De volta ao seu retiro, a fama de Antão faz com muitos o procurem, para curas, conselhos e apoio. Ansiando por solidão e paz, e temeroso de cair em presunção por causa dos prodígios que Deus realizava por seu intermédio, decide partir de novo, dessa feita para a Alta Tebaida22. No caminho, escuta uma voz que lhe diz: “...se realmente queres estar contigo mesmo, então vai-te ao deserto interior”. Este “deserto interior”, representado pela montanha onde Antão passará o resto de 19 Acta Martyrum eram os relatos sobre os mártires, lidos pelos cristãos. 20 Francis, J. Alcuin, OSB, Pagan and Christian Philosophy in Athanasius ‘Vita Antonii’, The American Benedictine Review, 32:2 – june 1981, Aurora IL, p. 100-113. 21 “Se vivêssemos como se cada novo dia fôssemos morrer, não pecaríamos. Isto significa que, a cada dia, quando despertamos deveríamos pensar que não vamos viver até à tarde; e de novo, quando vamos dormir, deveríamos pensar que não chegaremos a despertar” (XIX,3). Veja-se também LXXXIX,4 e XCI,3. 22 Localizado, segundo a tradição, na atual região de Ouadi-al-Arab, há cerca de 30 quilômetros do Mar Vermelho. Ali se encontra atualmente o mosteiro Deir-amba-Antonios, ou o Mosteiro de Antão. 13 A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética seus dias, na verdade representa o auge de sua jornada espiritual. Aqui ele realiza o ideal da busca de perfeição. No deserto interior ele encontra-se “em casa”: “Daí em diante olhou esse lugar como se houvera encontrado seu próprio lar” (L,2). Mas os demônios e as tentações continuam presentes. Na montanha cultiva a terra para o sustento, continua a receber seus monges, e também sai para dar conselhos. Ali realiza a maior parte de seus prodígios. Mas não os atribui a si: “...no entanto suplicava que ninguém o admirasse por essa razão, mas admirasse antes ao Senhor porque Ele nos ouve a nós, que somos apenas homens, a fim de que possamos conhecê-lo melhor” (LXII,2)23. De seu refúgio, Antão sai muito raramente. Sai para combater as heresias (arianismo) e para visitar e fortalecer os monges na fé. Mas volta sempre à sua “montanha interior”, da qual não podia ficar muito tempo ausente, como recomendava aos discípulos: “Assim como um peixe morre quando fica algum tempo em terra seca, assim também os monges se perdem quando se tornam folgazões e passam muito tempo [fora]. Por isso, temos que voltar à montanha, como o peixe à água. De outro modo, se nos entretemos, podemos perder de vista a vida interior” (LXXXV, 3)24. 14 No combate à heresia ariana, Atanásio apresenta o monge defendendo as teses que ele mesmo, Atanásio, defendia: “Desceu a montanha e entrando em Alexandria denunciou os arianos. Dizia que sua heresia era a pior de todas e precursora do anticristo. Ensinava ao povo que o Filho de Deus não é uma criatura nem veio ‘da não existência’ ao ser, mas ‘é Ele a eterna Palavra e Sabedoria da substância do Pai’... Por isso, não se metam em nada com estes arianos sumamente ímpios” (LXIX, 1-4). Antão também recebe a visita de filósofos, que querem discutir com ele e o tentam enganar, mas ele vence a todos, com a “verdadeira sabedoria”: “Foram-se admirados de ver tal sabedoria num homem iletrado, que não tinha as maneiras grosseiras de quem viveu e envelheceu na montanha, mas era um homem simpático e cortês. Seu falar era sazonado com a sabedoria divina” (LXXIII, 3-4). Neste particular, Atanásio praticamente transforma Antão num filósofo, ao colocá-lo discutindo de maneira lógica com sábios pagãos, acerca da natureza dos deuses. Defendendo a “loucura da Cruz”, a encarnação e redenção, realizados por amor à humanidade, Antão utiliza-se de argumentos sofisticados para um homem que havia dedicado toda a vida à ascese: “Os assim chamados filósofos estavam assombrados e realmente atônitos pela sagacidade do homem e pelo milagre realizado. Disse-lhes, porém, Antão: ‘Por que se maravilham com isto? Não somos nós, mas Cristo quem age através dos que Nele creem. Creiam vocês também e verão que não é palavreado e sim fé que pela caridade opera para Cristo’ (cf. Gl 5,6)” (LXXX, 5-6)25. 23 Em vários momentos Atanásio frisa que quem realiza os milagres é sempre Deus, através de Antão: “Antão, pois, curava, não dando ordens, mas orando e invocando o nome de Cristo, de modo que para todos era claro que não era ele quem atuava, mas o Senhor que mostrava seu amor pelos homens, curando aos que sofriam, por intermédio de Antão. Este ocupava-se apenas da oração e da prática da ascese” (LXXXIV,1-2). 24 A mesma frase se encontra nos apoftegmas de Antão. 25 Em polêmica com os filósofos pagãos, os apologetas cristãos defendiam que a verdadeira filosofia é a vida cristã. Atanásio, através de Antão, vai dar um passo à frente, ao afirmar que a verdadeira filosofia é a vida monástica. A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética A ortodoxia de Antão também é sublinhada pelo respeito que ele tem pela hierarquia. Atanásio parece querer acentuar que a experiência de Antão, e a experiência monástica em geral, não são desvinculadas da tradição da Igreja. Antão mostrava “... o mais profundo respeito aos ministros da Igreja, e exigia que a todo clérigo se desse maior honra do que a ele. Não se envergonhava de inclinar a cabeça diante de bispos e de sacerdotes. Se algum diácono chegava a ele pedindo-lhe ajuda, conversava com ele o que lhe fosse proveitoso, mas, chegando a oração, pedia-lhe que presidisse, não se envergonhando de aprender” (LXVII,1-2)26. Antão, que um dia aprendera com os mestres, agora é o mestre espiritual, o maior deles, que consola, cura, reconforta, converte, liberta dos demônios, edifica na fé: “Numa palavra, era como se Deus houvesse dado um médico ao Egito” (LXXXVII,3). Antes de morrer, Antão recomendou aos dois monges que o acompanhavam que o enterrassem e não revelassem a ninguém o local: “... façam-me vocês mesmos os funerais e sepultem meu corpo na terra, e respeitem de tal modo o que lhes disse, que ninguém senão vocês saiba o lugar. Na ressurreição dos mortos, o Salvador me devolverá incorruptível. Distribuam minha roupa. Ao bispo Atanásio deem uma túnica e o manto onde estou deitado e que ele mesmo me deu, mas que se gastou em meu poder; ao bispo Serapião deem a outra túnica, e vocês podem ficar com a camisa de pelo. E agora, meus filhos, Deus os abençoe. Antão parte e não está mais com vocês” (XCI,7-9). Conclusão A Vida de Antão obteve um enorme sucesso. Inspirou homens e mulheres de todas as épocas, sedentos de se entregar totalmente a Deus na vida ascética. Embora já houvesse monges no tempo de Antão, Atanásio, com a Vida, apresenta um modelo concreto, palpável, numa linguagem que atende ao gosto da cultura do seu tempo. O relato das tentações, que tanta crítica causou à obra de Atanásio, são a prova das dificuldades que aguardam quem opta por este caminho. Mas a certeza da presença e do apoio incondicional de Deus nesta trajetória também são acentuados. A Vida é, sobretudo, um caminho, indicando-nos meios para se atingir o objetivo. Fala-nos de seriedade de vida, de foco, de empenho, de disciplina. Num mundo em que as atenções são tão facilmente desviadas por tantas distrações, mesmo em ambientes onde vivem pessoas que optaram por dedicar-se totalmente “às coisas do espírito”, a leitura da Vida é de excepcional atualidade, a nos recordar que o caminho do Espírito exige uma atenção constante, um recomeçar sempre, em meio às “tentações modernas”, não menos assustadoras do que foram para Antão. 26 Antão não era sacerdote, bem como a maioria dos monges do deserto. 15 A “Vida de Antão”: uma pedagogia para a vida ascética Bibliografia: 1. Livros Colombás, Garcia M., El Monacato Primitivo I: Hombres, Hechos, Costumbres, Instituciones, Biblioteca Autores Cristianos (BAC), Madrid 1974. Escritos de São Francisco, Organização e tradução de Frei Celso Márcio Teixeira, Vozes 20044. Lacarrière, Jacques, Padres do Deserto, homens embriagados de Deus, Loyola 1996. Santo Atanasio, Vita di Antonio. Apoftegmi – Lettere, Introdução de Lisa Cremaschi, Edizione Paoline, Roma 1984. Sources Chrétiennes 400, Athanase d’Alexandrie. Vie d’Antoine. Introduccion, texte critique, traduction, notes et index par G. J. M. Bartelink, Les Éditions du cerf, Paris 1994. 16 2. Artigos Bormolini, Guildalberto, l’arte spirituale di affontare la notte e il dormire, Rivista di Ascetica e Mistica, Anno XXX, n. 2, aprile-giugno 2005, Firenze, p. 207-236. Carpenter, Dwayne E., The devil bedeviled: diabolical intervention and the desert fathers, The American Benedictine Review, 31:2, june 1980, Aurora IL, p. 182-200. Francis, J. Alcuin, OSB, Pagan and Christian Philosophy in Athanasius ‘Vita Antonii’, The American Benedictine Review, 32:2 – june 1981, Aurora IL, p. 100-113. 3. Arquivos eletrônicos: https://sumateologica.files.wordpress.com/2010/02/atanasio_vida_de_santo_antao.pdf http://www.peregrina.com/voxbenedictina/MacrinaSyncletica.html