PRONUNCIAMENTO NA OCASIÃO DO PRÊMIO CONCEDIDO PELO CONSELHO DAS ORDENS DOS ADVOGADOS DA EUROPA (COUNCIL OF BARS AND LAW SOCIETIES OF EUROPE) BRUXELAS, 28 DE NOVEMBRO 2014 É uma grande honra para mim poder dirigir a palavra a esta distinta assembleia. Através de minha voz, peço aos senhores e senhoras que ouçam a voz de Manoel Matos, advogado, defensor de direitos humanos, assassinado em 2009 por lutar contra a corrupção e a injustiça na região nordeste, a mais pobre do Brasil; a voz da juíza Patrícia Acioli, executada a mando de um coronel da polícia militar por ter tido a coragem de processar altos oficiais da polícia por crimes cometidos; a voz de Benedito Roberto Barbosa (Dito), advogado criminalizado por defender o direito à moradia das famílias de baixa renda; a voz de Marinalva Santana, perseguida por lutar pelo direito de existir como homossexual; a voz de Luíz Couto, deputado federal, jurado de morte por denunciar oficiais da Policia Militar envolvidos em grupos de extermínio na Região Nordeste; a voz dos mais de 700 defensores de direitos humanos ameaçados de morte no Brasil, segundo matéria da Revista Congresso em Foco; junto a essas vozes, as de todos os defensores e defensoras que trabalham pela promoção dos direitos humanos, frequentemente colocando em risco sua próprias vidas. É com essa voz coletiva que me dirijo ao Presidente , Dr. Aldo Bugarelli, e a todos os membros do Council of Bars and Law Societies of Europe (CCBE), para agradecer pela confiança expressada através do reconhecimento que estou recebendo. Agradeço também nesta oportunidade, a Dra. Christiane Féral-Schuhl, da Ordem dos Advogados de Paris, e o Dr. Michel Benichou, da Presidência do CCBE, por acreditar em mim e me indicar para este prêmio, fortalecendo assim meu trabalho como defensora de direitos humanos. Agradeço ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. Marcus Vinicius Coelho, pelo apoio a minha atuação. Agradeço a todos e todas aqui presentes, em particular familiares, colegas e representantes de entidades. Na qualidade de ativista social, advogada e defensora de direitos humanos, esse prêmio me proporciona um sentimento de pertença e de identidade profissional, tornando-me muito mais forte no combate às injustiças e na luta pelos direitos dos marginalizados. Outro dia uma colega do programa para defensores em risco, na Universidade de York, me perguntou quando comecei a trabalhar como defensora dos direitos humanos. Respondi que foi quando, ainda adolescente, vindo de uma das milhares de famílias que viviam em situação de exclusão social, morando em uma das periferias mais pobres e violentas da cidade de São Paulo, Brasil, comecei a me fazer umas perguntas: Por que passamos necessidade em casa quando a patroa de minha mãe joga comida fora? Por que a polícia nos trata com arrogância, invade as casas, tortura e mata, quando deveria nos defender? Por que meus pais ganham tão pouco quando trabalham tanto? Por que tanta desigualdade? Essas e muitas outras perguntas fizeram com que eu assumisse o compromisso de lutar por um mundo onde a vida – incluindo a dos pobres, – possa ser mais importante que o lucro, o poder e as coisas materiais. Senhoras e senhores, eu venho de um país que aos olhos do mundo e aos nossos olhos brasileiros, tem realizado importantes conquistas nas últimas décadas. Após séculos de regime escravocrata e longos períodos de ditadura, o Brasil conquistou o sistema democrático. As mulheres conquistaram, para além do direito ao voto, o direito de ser protagonistas na política, a exemplo de nossa recém-reeleita presidente da República, Dilma Rousseff. A ONU reconheceu que o Brasil superou a fome endêmica. A pobreza extrema, também, foi significativamente reduzida. Muita mais gente tem hoje acesso a serviços sociais básicos. Contudo, ainda não conseguimos superar importantes problemas estruturais. O Brasil está entre as dez potências econômicas do mundo e também entre os países mais desiguais. Hoje, é um país que reúne as melhores leis no seu ordenamento jurídico, mas é incapaz de assegurar o acesso à justiça aos mais pobres. Com um território com extensão continental, não conseguiu realizar a reforma agrária. O Brasil é o país latino-americano onde mais se mata por conflitos de terra. Só este ano, registramos 29 assassinatos. Conhecido por ter um povo cordial e alegre, o Brasil tem mais de 50.000 homicídios por ano, sendo as vítimas, em sua maioria, jovens pobres, negros e moradores das periferias das grandes cidades. A desigualdade social tem rosto, endereço e cheiro. Tem o rosto dos pobres, favelados e camponeses, das mulheres, dos indígenas, dos afrodescendentes, que vivem em lugares onde o Estado não chega. Tem o cheiro do suor dos trabalhadores desempregados, subempregados e explorados. O cheiro do sangue dos jovens executados cotidianamente no nosso cordial Brasil. Não quero ser negativa. Muito menos denegrir meu país. Mas há uma pergunta que não se cala. O que faz com que um país com um bom desenvolvimento econômico, com boas leis e no gozo do regime democrático apresente tão alto índice de desigualdade social, um saldo anual de 54.000 homicídios e 700 defensores de direitos humanos e lideranças sociais ameaçados de morte? Se por um lado a perpetuação da elite econômica e política nos setores do poder público muito contribui para o quadro acima apresentado, por outro, o modelo de política econômica adotado por meu país, e outros países em desenvolvimento, reproduz o modelo dominante e inverte a ordem dos valores, colocando a vida a serviço do lucro e do consumo, favorecendo a desigualdade social na contramão de uma economia justa e sustentável. Nesta lógica, o Estado como gestor do bem comum e promotor dos direitos fundamentais, torna-se fraco e cada vez mais refém dos megagrupos econômicos. Por questão ética e pela responsabilidade que temos com esta geração e as futuras, penso que é chegada a hora, como operadores do direito, de falar para os nossos clientes que alguns de seus interesses são indefensáveis: por exemplo, o agrobusiness, a indústria bélica, os “mega-projetos”, quando estes impõem aos estados, mesmo democráticos, regras que contrariam os direitos e ameaçam a vida dos pobres, dos trabalhadores e das comunidades tradicionais. Ao longo dos anos de dedicação à defesa e promoção dos direitos humanos, tenho experimentado na minha própria pele a fúria dos violadores e a fraqueza do Estado. Fui vítima de violência sexual por defender meninas exploradas pelo mercado da prostituição; sofri calúnias, difamação, atentados contra mim e meus familiares; fui criminalizada por defender os direitos mais básicos de famílias que vivem nas favelas, por denunciar crimes de tortura e extermínio de adolescentes, por parte de agentes do Estado. Em fim, após sofrer ameaças de morte e sistemáticas invasões no meu local de trabalho, quando eu ocupava o cargo de ombudsman no controle das atividades policiais no Estado da Paraíba, – sendo a primeira mulher e defensora de direitos humanos neste cargo, – fui obrigada a sair daquela região porque o Estado não podia garantir minha segurança, além de prevaricar ao deixar de investigar os crimes dos quais fui vítima e os crimes que denunciamos. Entre os defensores de direitos humanos ameaçados de morte no Brasil, muitos são advogadas e advogados. A interrupção, ainda que temporária, de nossas atividades como ativistas de direitos humanos, impacta negativamente na promoção das causas em que estamos envolvidos como o direito à terra, à segurança, à moradia, entre outros. Temos, como operadores do direito, alguns importantes desafios pela frente. Quero destacar três que considero mais relevantes. O primeiro é o de enfrentar a impunidade que tem um papel crucial na manutenção da desigualdade social. O segundo é o de incluir na defesa da democracia a luta pelos direitos econômicos, sociais e culturais. O terceiro é democratizar o conhecimento do direito com vistas a empoderar o povo na luta pela promoção e defesa dos direitos humanos. Concluindo, agradeço pela concessão deste prêmio e dedico-o a todas e todos os colegas, no mundo inteiro, que sofrem perseguição por defender os direitos humanos. Caras e caros colegas, vamos lutar juntos pelo direito de defender direitos! Vamos trabalhar o direito a partir dos direitos humanos! Vamos sempre colocar o ser humano no centro e a vida em primeiro lugar! Valdênia Aparecida Paulino Lanfranchi Advogada e Ativista de Direitos Humanos / Brasil Bruxelas, 28 de novembro de 2014