Fonte de Influência em Conflitos,
mas Também de Cooperação
Na quarta reportagem da série
especial da Rádio ONU Água: O Mundo e um Recurso Precioso, nossa equipe investiga a ligação entre a água
e os conflitos. Como disse o
Secretário-Geral Ban Ki-moon,
“com frequência, onde precisamos de água, encontramos
armas.”
Daniela Gross e Eleutério
Guevane, da Rádio ONU em
Nova York *
“A
água é uma fonte de vida
e um recurso natural que
sustenta o nosso ambiente
e meios de sobrevivência”,
avalia um relatório do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, Pnud.
Mas ao mesmo tempo, de
acordo com o Pnud, a água
também “é fonte de risco e
vulnerabilidades.”
Severidade e Duração
de Conflitos
A ligação entre conflitos e
recursos naturais ganha cada
vez mais destaque, com opiniões críticas e também a favor.
Como diz o relatório conjunto
do Gabinete da ONU de Apoio
à Consolidação da Paz e o
Pnud, fatores ideológicos,
étnicos, econômicos e políticos são todos relacionados
a conflitos violentos, e estes
raramente são causados,
unicamente, por fatores ambientais. Ao mesmo tempo, o
relatório reconhece que “estresses ambientais e a exploração de recursos naturais
De acordo com o Pnud, “estresses ambientais e a exploração de recursos
naturais podem aumentar a severidade e a duração de conflitos”
podem aumentar a severidade
e a duração de conflitos”. Pelo documento, o acesso
desigual a recursos como
água, por exemplo, pode
levar à marginizalização de
grupos, tornando estes mais
vulneráveis a processos de
manipulação por parte de governos. Já um estudo feito em
conjunto pelas universidades
americanas Stanford, Berkeley
e Havard, concluíram que em
anos com temperaturas acima
da média, também existe um
acréscimo nos números de
conflitos civis.
De acordo com os pesquisadores, até 2030, pode ocorrer
um aumento de até 50% nas
guerras civis no continente
africano, em comparação com
1990. Somente estas disputas
podem gerar mais de 390 mil
mortes.
Darfur
Em Darfur, em 2003, ano em
que o conflito civil que já dura
oito anos começou, imagens
de um vídeo do Escritório
de Assistência Humanitária
da ONU registram um dos
ataques ocorridos durante o
conflito na região do Sudão.
Um homem local filma e descreve o que vê:
- “O avião antinov está atacando a cidade.”
- “A cidade de Karnoy está
queimando com o ataque.”
- “Estes são os efeitos das
bombas.”
- “Olhem para aquela casa, vejam o que está acontecendo.”
Causas Ambientais
De acordo com a ONU, a violência na região já desabrigou
mais de 2,7 milhões de pessoas e matou pelo menos 300
mil pessoas. Darfur é um dos
conflitos que também tem sido
ligado a causas ambientais.
Em 2007, o Secretário-Geral
da ONU, Ban Ki-moon, afirmou
pulação do governo”, falta
de investimentos em infraestrutura e a desestruturação de
instituições locais que costumavam lidar com disputas
regionais por terra e fontes de
água.
Sistema de Administração
Central
Darfur é um dos conflitos que tem sido ligado à água. De acordo com BanKi-moon, existem fortes indicadores
que “as dificuldades causadas nas sociedades pastorais pela desertificação seja uma das causas do conflito”
que o conflito de Darfur tem raízes complexas,
que entre diversas causas, também inclui uma
crise ecológica.
“A agricultura é a principal atividade no Sudão.
De acordo com o Banco Mundial, 80% da população do país estão ligados a atividades agrícolas, e têm que sobreviver em um ambiente
onde terras férteis e a água estão se tornando
escassas. Um alto crescimento populacional
também contribui na pressão colocada sobre os
recursos naturais. Dados do Pnuma mostram
que desde 1972, 16 dos 21 anos mais secos
foram registrados em Darfur. Para a agência da
ONU, ao mesmo tempo que “questões políticas, religiosas, de etnia, fatores econômicos,
o direito à terra e questões históricas” também
têm influência direta no conflito de Darfur,
existem fortes indicadores que “as dificuldades
causadas nas sociedades pastorais pela desertificação seja uma das causas do conflito”,
disse.
“Alimentos e Água para Todos”
Ban lembra que “não é um acidente que a
violência em Darfur tenha começado durante
as secas. Até aquele momento, pastores nô-
mades árabes viviam amigavelmente com os
agricultores.” O Secretário-Geral fala ainda de
estudos que mostram que com a secas, agricultores passaram a cercar suas áreas, impedindo
a entrada de pastores que passam pelas rotas
migratórias.
“Pela primeira vez na memória, já não existiam
mais alimentos e água para todos”, descreveu
Ban.
Agricultores e Pastores
O professor sudanês Mahmoud Hamid, do
Departamento Ambiental, Paz e Segurança da
Universidade Pela Paz das Nações Unidas, explicou à Radio ONU, da Costa Rica, que sempre existiu uma integração histórica entre os
diferentes grupos em Darfur, entre agricultores
e pastores. Ele acredita que as secas criaram
uma nova dinâmica e que mudanças climáticas multiplicaram os problemas existentes na
região.
Mas, ao mesmo tempo, Mahmoud Hamid
acredita que cientificamente, o conflito de Darfur não pode ser atribuído à questão da água,
por exemplo, e que a causa principal da violência na região está no que ele chamou de mani-
“O governo central dissolveu
o sistema de administração
central, sem providenciar um
sistema alternativo, e em nível
de desenvolvimento, o governo abandonou as estratégias
existentes de água nas áreas
rurais. Existem fatores políticos
e desigualdades em termos de
políticas econômicas e o uso
de recursos para o desenvolvimento”, explicou o acadêmico.
Outro professor, Maurício
Waldman, da Unicamp, disse
à Rádio ONU, de São Paulo,
que também concorda que
uma série de fatores formaram
De acordo com A ONU, pessoas em países ricos chegam a usar 400 litros de
água por dia. Em Darfur, esta mesma quantidade é dividida entre 20 pessoas
o cenário de violência em
Darfur.
Violência do Conflito
“Seria uma avaliação muito
reducionista entender que a
questão de Darfur se prende
exclusivamente à questão do
acesso à água, mas
por outro lado, a
escassez do recurso
ajuda a explicar a
violência do conflito.
Tem um lado social,
político, étnico, e também tem um aspecto
de quem tem acesso
à água e quem não
tem”, analisou Waldman.
Durante um conferência recente para
discutir a questão
da água em Darfur, o representante
especial da Missão
da ONU e da União
Africana em Darfur,
Unamid, Ibrahim
Gambari, falou sobre
Ban lembra que “não é um acidente que a violên- a importância do recia em Darfur tenha começado durante as secas
curso nas discussões
do processo de paz na região.
Negociações de Paz
“Os impactos da escassez da
água são sentidos mais pelos fracos e vulneráveis. Para
eles, se adaptar a estas duras
realidades é uma questão de
sobrevivência, e esta situação
não afeta somente as condições humanas em Darfur,
mas também impedem os
nossos esforços em alcançar
estabilidade e paz na região”,
alertou.
Para o professor sudanês
Mahmoud Hamid, todos os
fatores envolvidos no conflitos
devem ser levados em consideração nas mesas de negociação de paz.
“Eu acredito que sem levar
estes aspectos em consideração não existe espaço para
o sucesso da paz, e isso inclui
como nós vemos os recursos
de água e outras questões
ambientais como as mudanças nos recursos naturais em
geral. Qual o significado que
damos a eles, o que eles sig-
nificam para as partes envolvidas. E acredito
também que nós temos um problema no Sudão
por causas das diferenças geográficas entre
as regiões ocidentais e orientais, e esta é um
divisão que precisa ser gerenciada”, disse o
professor sudanês.
Conflitos e Água
Em um discurso em Davos em 2008, o Secretário-Geral da ONU voltou a fazer a ligação
entre o conflito de Darfur e água.
“Hoje, todos nós conhecemos Darfur. É lógico
que existem muitos fatores envolvidos em conflitos, mas um fator importante é quase sempre
esquecido, as secas. Nós podemos mudar os
nomes desta história triste. Somália, Chade, Israel, os territórios ocupados palestinos, Nigéria,
Sri Lanka, Haiti, Colômbia, Cazaquistão. Todos
estes lugares têm falta de água, que contribui
com a pobreza. Eles provocam dificuldades
sociais e impedem o desenvolvimento. Criam
tensões em regiões com tendências a conflitos.
Com frequência, onde precisamos de água,
encontramos armas”, lembrou Ban.
Disputadas por Áreas de Pastagem
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, FAO, na
região do Chifre da África, que passa pela pior
seca dos últimos 60 anos, no Quênia já foi registrado um crescimento nas disputadas áreas
de pastagem, levando a perda de vidas e de
animais. Para o professor da Unicamp, Maurício Waldman, aspectos de estresse hídrico
ajudam a entender questões ligadas a conflitos
e disputas por recursos de água.
“O estresse hídrico está aumentando cada vez
mais. A água está se tornando uma substância
escassa em termos de acessibilidade e também por fenômenos naturais como as mudanças climáticas. Este recurso está minguando.
O nosso futuro, de certa forma, está secando”,
alertou.
Brasil
No Brasil, por exemplo, Waldman diz que apesar do país ter um recurso abundante de água,
possibilidades de conflitos pelo recursos não
são impossíveis.
“Existe um cálculo rescente do Instituto Politécnico da USP que estima que seis cidades abastecidas pelo aquífero Guarani ficarão sem água
nos próximos 50 anos, porque o manancial
está sendo explorado de forma inadequada.
Ribeirão Preto, por exemplo, que é uma das
cidades atendidas pelo Guarani, retira água
numa proporção 13 vezes maior do que de recarga natural. Se não pensarmos a sério nesta
questão, vai ser uma situação de conflito numa
terra que não deveria existir nenhum tipo de
conflito pela água”, alertou.
Moeda de Troca
Já o professor do Departamento de Engenharia Civil da Unesp, Tsunao Matsumoto, que
falou à Rádio ONU de São Paulo, acredita que
a água se tornará uma moeda de troca, aumentando ainda mais a desigualdade entre países
e também, no Brasil, por exemplo, entre as
diferentes regiões do país.
“Eu acho que realmente a água se transformará numa moeda de troca no futuro e isso
pode gerar um desequilíbrio ainda maior do
que é hoje em relação ao petróleo. No Brasil,
assim como temos a guerra fiscal, nós teremos a guerra da água. Nos centros como o
de São Paulo, Belo Horizonte, essa escassez
será grande. Os municípios que detêm os
reservatórios podem começar a cobrar taxas, o
que pode gerar conflitos fiscais”, analisou.
Instrumento de Cooperação
Ao mesmo tempo que a água pode exercer
Estudo do Pnud aponta que o acesso desigual à água pode levar à marginizalização de grupos,
tornando estes mais vulneráveis a processos de manipulação por parte de governos
Professor da Unesp acredita que a água se
transformará numa moeda de troca no futuro
um papel em conflitos civis, para a ONU Água,
a história mostra que o recurso também pode
servir como um instrumento de cooperação,
principalmente em relação a países que dividem fontes de água. Existem no mundo 263
rios internacionais. Segundo diretor da ONU
Água, Zafar Adeel, que falou à Rádio ONU, em
Toronto, há mais histórias de cooperação do
que de disputas violentas.
“Nos últimos 500 anos não existiu nenhum
caso de países que tivessem entrado em guerra por
causa da água. O recurso
pode ter sido um dos elementos de preocupação
geopolítica. Ao mesmo
tempo, existiram quase
3,6 mil tratados assinados
entre países durante a
história da humanidade.
Existe um potencial grande
para a cooperação, a água
é tipicamente uma área
que pode unir nações”
explicou.
Conselho de
Segurança
Ao mesmo tempo,
Zafar Addel reitera
que a água pode
sim ter um papel
em conflitos, já que
tem efeitos relacionados à segurança alimentar e
a capacidade de
sobrevivência das
pessoas.
“Para dar um
exemplo, nós
acreditamos que
estas noções de
água como uma
questão de segurança também
deveriam se tornar
um assunto de
preocupação do
Conselho de Segurança, para que
eles estejam conscientes do potencial dos conflitos
e para que possam intervir
nestes problemas antes que
eles se tornem conflitos.”
Refugiados
Uma das áreas que a ONU
Água está se concentrando no
momento é relacionada aos
refugiados que são obrigados
a se deslocar por causa de
questões de água, por exemplo. Para o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados, Acnur, mudanças
climáticas podem provocar
um deslocamento humano em
grande escala.
Estimativas indicam que até
a metade do século, mais de
250 milhões de pessoas possam ficar desalojadas por
efeitos de condições climáticas
extremas. O alto comissário da
ONU para Refugiados, António
Guterres, que falou à Rádio
ONU, de Genebra, também
reconhece o potencial de conflitos na área.
Potencial de Conflitos
“Eu acredito que hoje já existem muitos estudos que revelam que as alterações climáticas e a maior competição por
recursos escassos, como a
água, aumentam o potencial
para a instabilidade política e
conflitos. As alterações climáticas também são fatores que
levam as pessoas a terem que
fugir, como os desastres naturais, que estão cada vez mais
frequentes”, disse.
Na região do Chifre da Africa,
onde a seca castiga a população, para muitos, partir é
a única opção. Mais de 166
mil pessoas já deixaram a
Somália para procurar ajuda
e refúgio em países vizinhos.
Uma jornada dura, a qual
muitos não resistem. “A jornada durou 25 dias. Foi uma
experiência difícil e dolorosa.
Não tínhamos água, estávamos sempre com sede”, contou uma refugiada Somali.
Edição: Mônica Villela
Grayley
Assistência de Produção:
Leda Letra e Luisa Leme
No capítulo final: A água e a
Rio + 20 – o que pode ser
feito para evitar a escassez da
água no futuro.
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