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DOMINGO, 16 DE AGOSTO DE 2009
O ESTADO DE S.PAULO
O nome da marcha
Acampada havia seis anos, Maria Cícera esperava um lote do governo. Foi atropelada pelos fatos
JOAO ZINCLAIR
Mônica Manir
AGUDOS, SP
“Se o campo não planta, a cidade não janta.” O bordão alimentava o ânimo dos sem-terra no
protesto de quarta-feira em
frente do Tribunal Regional Federal, na Av. Paulista. “Pátria
livre,venceremos”e“A burguesia não vai resistir” também estavam no cardápio. Imprevisível foi ouvir “Cumprimos mais
umaetapadanossaMarchaMaria Cícera Neves”. Não se tratava da Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária?
Tratava-se. Trata-se ainda.
Jornada de Lutas é o nome da
mobilização do MST e da Via
Campesina que espalha protestos pelo Brasil batendo em três
estacas: descontingenciamento e ampliação dos recursos para a reforma agrária; revisão
dos índices de produtividade; e
assentamento de todas as famílias acampadas. Maria Cícera
Neves rotula a marcha paulista,
que partiu de Campinas no dia 6
passado e chegou à capital quatro dias depois. Cícera apenas
saiu.Umacidente atirouinstantaneamente do caminho.
MariaCíceraera deMartinópolis, município do Oestepaulista que brotou de 10 mil alqueires
daFazendaMontalvãodesmembrados por um português. João
Gomes Martins arruou o pedaço e mandou avisar que os preços eram convidativos e as prestações, suaves. Pela estrada de
ferro chegaram levas de compradores.Quase 90 anosdepois,
Maria Cícera não viu sombra de
terra. A pensão de viúva era pífia e não havia herança territorial a deixar para os cinco filhos
e os sete netos.
Largou todos para trás, incluindo o amásio, e foi acampar
na região do Pontal do Paranapanema – não atrás de divertimento, mas de um cadastro do
Incra,afimdeserassentada.Ali
levantou sua lona em 2003 e dali
saiu em novembro de 2008, de
enxadaabanando,sobapromessa de que na regional de Iaras as
coisas estavam indo mais rápido. “Prometeram que em 60
dias teriam terra pra nós”, diz
Edson Silveira, vizinho de lona.
Acocorou-se na Fazenda
Agrocentro, de 1.680 hectares,
localizada na região de Agudos,
SEXTA, 14 DE AGOSTO
Mobilização
nacional
●●● Manifestantes do MST, Via
Campesina, CUT e organizações
sociais encerram jornada de lutas
por reforma agrária e contra a
crise econômica durante marcha
pela Esplanada dos Ministérios.
Além do Distrito Federal, houve
atos em 23 Estados.
SENTIDO CAPITAL – Na Rodovia Anhanguera, a poucos metros da tragédia, a passeata estadual avançava
também a oeste da capital. O
acampamentoRosaLuxemburgo tem 183 barracos e há quem o
chame, na cidade, de Rosa Muricy. A terra já teria sido negociada pelo Incra, porém falta o
projeto de assentamento. Uma
escola300metrosadiantenaestrada batida também leva o nome da revolucionária polonesa
que, em 1906, publicou Greve de
Massas, Partido e Sindicato, no
qual Rosa diz: “A greve de massas nem é ‘fabricada’ artificialmente nem ‘decidida’ ou ‘difundida’ no éter imaterial e abstra-
to, mas é tão somente um fenômeno histórico, resultante de
uma situação social a partir de
uma necessidade histórica”. A
escola foi erguida para dar aulas de agroecologia e agronomia. Está quieta no momento.
Nosmoldes dosoutrosacampadosasuavolta,arotinadeMaria Cícera consistia em cuidar
do seu quintal, onde se esparramam uma rama de abóbora-depescoço,umatouceira dealmeirãobranco eoutraderoxo, algumas mudas secas de caju e uma
farmácia caseira à base de bol-
do-do-chile, boldo-de-jardim,
hortelã e poejo. Na frente da casa, Baixinha (seu apelido) plantou palmas e cravos-de-defunto
amarelos. Sob a garagem jaz
uma Belina branca, cujo motor
foi desmontado pelo sobrinho
Carlos, que vive num puxadinho do barraco. Seis varas de
pescar, ajeitadas sob a lona preta, e dois chapéus de palha denunciamoúnicovíciodatia.Baixinhatomavabanhodecanequinha, com a água encanada da
represa, e seu banheiro era uma
latrina adaptada em “v”, que ia
dar na fossa. Cozinhava para o
dia no fogão a lenha, já que geladeira não há. Na despensa, quase nenhum sinal da última cesta
básica – recebem duas por ano.
Umalâmpada minúscula, movida a energia solar da placa sobre o teto, a ajudava a ler a Bíblia. Até possuía uma televisão,
que não pegava. Pouquíssimos
têmTVourádionoRosaLuxemburgo, donde não sabiam direito o que ocorria na marcha.
A notícia do acidente chegou
pelo celular de alguém. Diziam
queMariaCíceratinhasidoatropelada por um carro no primeiro trecho da marcha. Terezinha
Flausino Jorge, a quarta na hierarquia das amigas, comentou:
“Bemqueelanãoqueriair”.Doída por causa de uma bursite no
ombro, Maria Cícera saiu de tipoia, uma faixa encardida de enrolar machucado. Ao contrário
do que aconteceu nas 12 “lutas”
anteriores, em que aceitou ir no
caminhãocomoshomens,preferiu o ônibus que leva as crianças
e as mulheres. Ainda assim,
quando chegaram a Campinas
não quis ficar na ciranda, onde
cuidaria dos pequenos. Abriu a
sombrinha azul e botou o pé no
“encostamento” da Anhangueraapartir das6h30.Destino:Vinhedo, 22 km adiante.
O sol ardia a pino quando os
marchantes,cerca de1.500, vindos das regionais da Grande
São Paulo, Campinas, Ribeirão
Preto, Pontal, Itapeva, Promis-
são, Andradina, Iaras, Sorocaba e Vale do Paraíba, passaram
pelo pedágio. Os sem-terra se
agrupam por regionais também na estrada, e Iaras era a
última. Todos ouviram aplausos, mas também muitos “vão
trabalhar, bando de vagabundos”. Carregado de leve com
plástico prensado, o caminhão
da Transportadora Zapellini,
complacasdeLage(SC),paralelou com a passeata. Ao volante,
Marcos Santos Wolinge, de 22
anos, há três meses na empresa,dizter vistoasbandeiras vermelhas e reduzido a marcha, digo, a própria. Mas “dois desgraçados de uns motoqueiro”, um
na frente e outro na garupa, teriam cruzado nas suas ventas.
Marcos virou o volante para a
direita,quisvoltar,“masocaminhão não ajudou”, apesar dos
freiosemordem.Acionouabuzina e viu que abriram um espaço
na manifestação. Por ali passou, sem se dar conta de que levava sob as rodas a sombrinha
de Maria Cícera. Baixinha morreu na hora.
Francisca Angela dos Santos Silva, colega de Maria Cícera, também foi pega pelo caminhão e jogada do outro lado do
guardrail.Comluxação na coluna e hematomas nas pernas,
saiu da Santa Casa de Vinhedo
no dia seguinte. O corpo de Maria Cícera foi trasladado para
Martinópolis, seguido pelo ônibus com o grupo de Iaras. “A
família entendeu que não tivemos culpa nenhuma”, enfatizou
Lega, um dos coordenadores do
Rosa Luxemburgo. Os parentes
ficaram, inclusive, de mandar
uma foto dela, que ninguém tem
registro fotográfico algum no
acampamento, para botar num
quadro com as cores do movimento. Marcos Wolinge, que levou socos e pontapés dos marchantes quando saiu da cabine,
também diz não ter responsabilidade no caso: “Tu não vai andar numa via rápida, vai?” No
final, acabou se abrigando no
carro da polícia e não chegou a
ver Maria Cícera no asfalto.
“Não sei nada sobre a mulher,
até queria saber quem era.”
Equilibrada sobre o tanque, sob
a lona escaldante, a gata de Baixinha pede comida. É simplesmente gata. Os vizinhos não
têm ideia do nome dela. ●
Culpados de velhice
A ideologia dos assassinos de velhos é apenas uma derivação daquela mais abrangente que vê no ancião um morto precoce
VALÉRIA GONÇALVEZ/AE
José de Souza Martins*
A violência contra idosos tornou-se um tema relativamente
frequente na mídia, nos últimos
anos, especialmente os casos de
assassinato de casais dentro da
própria casa. Como o ocorrido
em Niterói, há poucos dias, em
que o engenheiro aposentado
Humberto Cardoso Chaves (74)
e sua mulher, Lenice da Assunção Cardoso Chaves (72), foram
mortos a pauladas. Diferentemente, porém, da maioria das
ocorrências de violência com
sangue, esse tipo de assassinato
chama a atenção pelo fato de
que as vítimas tinham alguma
relação de proximidade com
seus assassinos. Dos cinco suspeitosdetidos,nestecasorecente, alguns eramamigos do casal.
No caso do assassinato, a machadadas, de Abadia das Dores
Policarpo (63) e Joaquim Corrêa (53), em Franca (SP), em junho,o assassino, um jovem de 19
anos, alegou ser muito xingado
pelo casal, tendo ela chegado a
formalizar queixa contra ele na
polícia.Nocaso damortedeMaria da Glória dos Santos Colovati (70) e do marido, Jorge de
Araújo (53), em maio de 2007,
na Vila Alpina, em São Paulo, a
execução se deu por asfixia em
sacos plásticos, depois de terem
tido as mãos amarradas. O principal e mais forte suspeito das
mortes era amigo de um falecido filho de Maria da Glória. Recém-saídodaprisão,foraacolhido pelo casal, que procurou ajudá-lo. A morte, a facadas, de Sebastião Esteves Tavares (71),
SEGUNDA, 9 DE AGOSTO
De onde não
se espera
●●● Quando o casal Humberto e
Lenice Cardoso Chaves, de 74 e
72 anos, não apareceu para trabalhar, a polícia foi à sua casa, em
Camboinhas, Niterói. Os dois haviam sido mortos a pauladas. O
caseiro e a mulher, empregada da
família, estão sendo procurados.
VÍTIMAS – Estado e sociedade também abusam da fraqueza do idoso
umministrodaEucaristia,eHildaGonçalves Tavares (67),uma
cultivadora de orquídeas, no
bairro de Perdizes, em São Paulo, em novembro de 2006, foi
praticada por um jovem quase
vizinho do casal.
Estamosacostumadosapensar esse tipo de violência sendo
praticada por desconhecidos,
que invadem a casa de pessoas
que, pela idade, são indefesas,
matando-as com crueldade para, quando muito, se apossar de
uns poucos bens. No geral, os
idosos, por suafragilidade natural,supostamentepodemserdominados mais facilmente e estão mais expostos à violência
dentrooufora decasa esãomuitas as ocorrências que comprovamessasuposição.Porém,oeixo da compreensão da questão
deve ser deslocado da violência
em si para a fragilidade que a
possibilita, se quisermos situar
melhor as ocorrências e criar o
cenáriodeumaculturaautoprotetiva para os idosos.
No Brasil, os idosos não são
vítimas apenas de bandidos. O
Estado e a sociedade, de vários
modos, têm se aproveitado de
sua fragilidade, que não é apenas física, mas é também social,
cultural e política. A depreciaçãodovelho,entrenós,estácentrada na ideologia que nos rege,
relativa à inferioridade social
dos improdutivos, que alcança
de outros modos também crianças, doentes e incapazes. Essa
ideologia perversa nada tem de
moderna. Modernas são as sociedades que se pautam pelo reconhecimento da humanidade
de todos e não reduzem a humanidade do homem ao meramente econômico. Nossa transição
do trabalho escravo para o trabalholivrenãoseconsumouplenamente, mantendo-nos como
sociedade retardatária e lenta
em que avançamos muito na
economia e pouco nos direitos
efetivos que nos humanizariam
na igualdade não só jurídica,
mas também social.
Essa mesma ideologia preside os atos criminosos que estamos examinando e todo o elenco de violências que alcançam
os idosos até mesmo no refúgio
de suas casas e nos lugares em
que eles se supõem protegidos.
As explicações dos agressores
nos mostram isso. A ideologia
dos assassinos de velhos é apenas uma derivação da ideologia
abrangente que concebe o velho como um morto precoce,
sendo o ato de eliminá-lo considerado pelos autores, por isso
mesmo, um crime menor, porque contra pessoa supostamente inútil, que não vai precisar do
que lhe for roubado. A indignação de crimes contra velhos dura menos que a dos contra jovens, como se vê em diferentes
casos.Ofato dequeoPaísdisponha de um elenco de textos legais relativos aos direitos dos
idosos é, não raro, mera expressão do nosso cinismo político e
do oportunismo eleitoreiro que
nos degrada. Passamos anos fazendo leis para assegurar direitos aos desamparados e passamosoutrostantosanosdebatendo como se fará para que as leis
se tornem efetivas.
Originários de uma cultura
política que de certo modo ainda vige, em que todos são iguais
perantealei,masmuitossãomenos iguais, os idosos são vitimados pelo conformismo com as
migalhas que recebem. Esse
descompassoemrelaçãoaopropriamenterepublicanoestáarticulado com outros modos atrasados de ser e viver que nos caracterizam. É nesse sentido que
são eles vitimados também por
uma cultura de vizinhança quase ineficaz, aquilo que a sociologia, desde seus inícios, chama
de estado de anomia, os relacionamentos sociais conduzidos
por valores e normas ultrapassados numa situação social que
não gerou ainda as normas que
lhecorrespondam.Osrelacionamentos são regidos por esse
atraso do real em relação ao necessário. Os idosos, mais do que
outros membros da sociedade,
foram socializados e educados
no mundo da solidariedade comunitária, da ajuda mútua, da
cooperação vicinal. Esse mundo foi destruído pela cultura residencial individualista dos prédios de apartamento e das residênciasisoladasdosvizinhospelos muros de uma solidão imensa, que se expressa na anulação
da pessoa na figura do indivíduo.Aculturaemqueacasatende a já não ser um lugar de ficar,
mas mero lugar de passar. Só os
velhos ficam.
Os casos que mencionei acima são justamente aqueles em
que os agredidos se julgaram situados no mesmo grupo de pertencimento e referência daqueles que os agrediram. Julgaram
que entre pessoas que se conhecem os relacionamentos se baseiamnareciprocidadeenorespeito e não se deram conta de
que, na nossa modernidade híbrida, valem as performances,a
duplicidadedepareceruma coisa e ser outra, a competência no
fingimento e na duplicidade. O
que nos mostra que a velhice da
vítima é a velhice de seus valores de referência, que a fragiliza
porque dessa fragilidade e desse equívoco se valem aqueles
quelheinvademaintimidadedoméstica e a mata. ●
*Professor emérito da Faculdade
de Filosofia da USP. Autor de
Fronteira – A Degradação do
Outro nos Confins do Humano
(Contexto, 2009)
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[br - 6] estado/alias/páginas 16/08/09