1 P.º n.º C.P. 24/2010 SJC-CT Contrato pelo qual uma das partes transmita à outra bem diferente de dinheiro, com determinado valor, e dela receba, como contrapartida de valor global equivalente, bem diferente de dinheiro e dinheiro. Identificação de tal facto enquanto causa de registo aquisitivo. PARECER Não é incomum no comércio jurídico a operação negocial de carácter oneroso pela qual as partes se contra-prestam, adquirindo-os, bens diferentes de dinheiro (maxime, prédio por prédio – rectius, direito sobre prédio por direito sobre prédio) e em que uma delas, atento o menor valor atribuído ao bem por si transmitido relativamente ao do bem que recebe, entrega adicionalmente à contraparte quantia pecuniária equivalente à diferença – e quantia essa cujo próprio valor parcelar, dentro da prestação global em que se integra, tanto pode ser maior, como menor, como igual ao da parcela constituída pelo bem (ou bens) em espécie. O esquema suscita porém problemas de qualificação/nomenclatura, que de modo particular se fazem sentir no contexto da feitura do registo aquisitivo que com base nele se promova. Pergunta-se, na verdade, quando olhada pela perspectiva de facto-causa (cfr. art. 95.º/1-a, CRP), pelo nomen que a semelhante convenção é ajustado que se dê. Sobre o ponto, discordam as opiniões e as práticas (designadamente notarial e registal). Para uns, o contrato será invariavelmente de permuta; para outros, tratar-se-á de compra e venda ou de permuta consoante o valor maior da contra-prestação “complexa” seja ou não o do montante em numerário; para um terceiro grupo, por fim, nenhuma daquelas denominações se mostra satisfatória, visto que não reflectem, em face da tipificação legal ou social das realidades jurídicas que designam, o verdadeiro modo de ser da relação contratual efectivamente havida, devendo por consequência para ela buscar-se uma via de identificação distinta, irredutível a um qualquer daqueles modelos. Foi a propósito do tema do nomen (rectius: da qualificação jurídica) do quid negocial por cuja sumária descrição começámos, no contexto da qualificação (no sentido do art. 68.º CRP ) e execução do registo aquisitivo nele fundado, que superiormente se determinou a audição deste Conselho. Sobre isso passamos pois a emitir Pronúncia 2 1. O problema é-nos colocado em moldes que parecem privilegiar uma sua vertente muito basicamente nominalista. O escrúpulo parece na verdade esgotar-se numa dimensão de conceitual rigorismo classificatório. Digamo-lo porém já: à luz da teleologia própria do instituto do registo predial, semelhante abordagem afigura-se-nos de muitíssimo discutível interesse ou utilidade, quer jurídica, quer prática. A grande questão, para nós, é outra: é a de saber de que modo e em que termos uma concreta regulação negocial, chame-se-lhe como se lhe vier a chamar, define a situação jurídica dos bens que as partes reciprocamente se transmitem. Procuremos explicar-nos. 1.1. OLIVEIRA ASCENSÃO1 ensina que devemos distinguir, quando se inquire pelo objecto do registo, entre o objecto da publicidade registal, por um lado, e o objecto da inscrição, por outro: a publicidade tem por objecto situações jurídicas; já a inscrição tem por objecto factos jurídicos – “Inscrevem-se factos para se comprovarem direitos”. Não diverge CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA,2 que nos diz que “As situações jurídicas são (…) o objecto próprio da relação publicitária registral”, logo advertindo porém que, “num sistema como o nosso, as situações não surgem (…) desgarradas das suas causas.” Na verdade, “Com um processo registral baseado em factos jurídicos, as situações correspondentes aparecem como causais”, devendo ainda notar-se que “o meio que em regra serve para dar imediatamente o conhecimento são os factos, dos quais, por presunção legal, se deduz o conhecimento das situações”. O mesmo fio de pensamento se surpreende ainda nas seguintes palavras de LEBRE DE FREITAS:3 “Os direitos e as outras situações jurídicas a que se reporta o art. 2 CRP não são inscritos no registo como realidades abstractas, mas sim através dos factos que lhes respeitam (a inscrição é de facto e não de direito) e é isso que explica a presunção do art. 7 CRP: a inscrição do facto faz presumir a existência deste e, portanto, do direito que dele deriva, bem como da sua pertença ao titular inscrito; os “precisos termos em que o registo o define” englobam essas causas ou circunstâncias de facto, constantes da própria inscrição e do documento que lhe serve de base.” 1.2. Assentemos pois em que a determinação da situação jurídica dos prédios, que é o objecto da publicidade registal, se obtém por referência aos factos jurídicos, os 1 Cfr. Direito Civil – Reais, 5.ª ed., reimp., 2000, p. 341. 2 Cfr. Publicidade e Teoria dos Registos, 1966, p. 181. 3 Cfr. Justificação Notarial: Nulidade e Registo, in Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, II, 2.ª ed., 2009, p. 671. 3 quais, por seu turno, constituem objecto de cada individualizado registo. O facto determinante da reconfiguração da situação jurídica do prédio faz parte integrante do conteúdo da inscrição (e averbamentos conexos) que o tenha por base, mesmo quando do extracto do correspondente registo tal facto porventura não conste expressamente mencionado.4 1.3. À importância que às vicissitudes causais se dá na elaboração do conteúdo do assento registal não é decerto estranha a substantiva primazia de que, no âmbito da constituição, modificação e extinção das relações jurídico-reais – campo, por excelência, de actuação do instituto do registo imobiliário –, desfruta o chamado princípio da causalidade. O sistema de direitos reais português, com efeito, é um sistema de título (não é um sistema de modo, nem de título e de modo) – donde, “a constituição ou modificação de qualquer direito sobre as coisas depende da validade da causa jurídica que precede essas mesmas consequências: ou seja, (…) da existência e procedência do negócio de que derivou tal vicissitude no mundo jurídico-real.”5-6 Isto, claro, adoptando uma formulação que, para fins de exposição, se basta, dentre os modos possíveis de produção de efeitos reais (cfr., para a aquisição do direito de propriedade, o art. 1316.º CCivil), com a figura do negócio jurídico, maxime do contrato. 2. Que, justamente, é o modo de aquisição que para o caso, na presente pronúncia, importa considerar. Pois que não é da índole contratual do negócio que se duvida, mas simplesmente do nome que a tal contrato se há-de dar no registo aquisitivo correspondente. 2.1. Certo porém é que, vigorando no direito privado português o princípio da liberdade contratual (CCivil, art. 405.º), por uma parte, e não estando os factos constitutivos das situações jurídico-reais subordinados a qualquer princípio de tipicidade, 4 Mau grado a epígrafe que ostenta (“factos sujeitos a registo”), no catálogo de realidades que se sujeitam a registo constante do art. 2.º CRP incluem-se, ao lado de factos, umas vezes efeitos jurídicos, outras vezes direitos. Para OLIVEIRA ASCENSÃO, porém, op. cit., p. 341, “Tem de se entender que a lei quer designar os factos que produzem esses efeitos jurídicos, ou actuam sobre esses direitos ou relações.” 5 6 Cfr. ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, 1977, págs. 268 e ss; a citação é extraída da pág. 281. Depende disso, e, por via de regra, disso só: aí está o art. 408.º/1 CCivil a proclamá-lo (“A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei.”), e os arts. 879.º (para a compra e venda) e 954.º (para a doação) a reiterá-lo. Na instantaneidade do surto do efeito real por mero efeito do acordo de vontades se expressa o chamado princípio (constitucional dos direitos das coisas, ligado, como o da causalidade, ao lado externo) da consensualidade. 4 por outra parte (ao contrário do que vale para as situações jurídico-reais que de tais factos resultam constituídas, onde impera um princípio de tipicidade taxativa – cfr. CCivil, art. 1306.º), nem sempre será possível fazer reconduzir um concreto contrato celebrado, conquanto indiscutivelmente gerador de efeitos reais, aos quadros duma qualquer designação pré-estabelecida – quer na lei, quer nos usos.7 E não será por se não lograr localizar, no universo dos esquemas convencionais típicos reconhecidos ou reconhecíveis, um modelo normativo predisposto ao negócio que se nos apresente, que para ele o registador está dispensado de “decidir” uma adequada identificação – e identificar não é o mesmo – é bem mais – que simplesmente denominar. 2.1.1. Insistimos: o ponto está em, através da menção da causa aquisitiva, providenciar pela definição da situação jurídica do bem. Ora, para esse fim, a singela menção dum nomen iuris tanto pode bastar como não. Tudo depende da estrutura e conteúdo do negócio, da sua maior ou menor complexidade objectiva e subjectiva. Situações haverá em que, sendo o negócio de “pura” e inconfundível compra e venda, não bastará, para identificá-lo convenientemente, e dele publicitar os efeitos a que efectivamente deu origem, nomeá-lo, tout-court; e assim também, nos mesmos exactos termos, no caso da permuta “pura”: talvez não chegue, para identificar a causa, o uso da locução “por permuta”. E se assim é diante de indubitáveis e ortodoxas compras e vendas e permutas, não menos figurável é que o problema nos desafie na presença de contratos “impuros”, “híbridos” ou “miscigenados”, que em si contenham elementos característicos de “tipos” contratuais diversos, e, em particular, e à uma, do tipo (legal) “compra e venda” e do tipo (social) “permuta”. Quer dizer: quando, no artigo 95.º/1-a, se determina que no registo de aquisição se mencione a causa, não é tanto um nome o que se nos pede como sobretudo a revelação do que essa causa substantivamente é, na exacta medida do indispensável ao rigoroso estabelecimento do estado jurídico do bem – e mormente, no caso do registo aquisitivo, à publicitação verdadeira da conformação da titularidade que sobre ele, em consequência do facto contratual inscrito, fica a versar. É tendo bem presente este pano de fundo, segundo cremos, que a pergunta pelo nomen do quid negocial nos pode conduzir a um resultado que vá além da mera tomada de partido por um qualquer controvertível critério de distinção que, sejam quais forem os seus méritos, de fundo e operativos, levará em qualquer caso, cumpre reconhecê-lo, quando se adopte uma abordagem de tipo binário, a que se tome uma parte (maior ou 7 Temos no horizonte, claro está, a bipartição que se estabelece entre tipos contratuais legais e tipos contratuais sociais. V., sobre o ponto, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., 2007, p. 529. 5 menor) do conteúdo prestacional do negócio pelo todo, o que metonimicamente se traduzirá, com inevitável prejuízo da verdade substantiva, em qualificar um contrato que não é puramente compra e venda nem puramente permuta como uma ou outra coisa. 3. Aqui chegados, algo se impõe dizer sobre o que é uma compra e venda e sobre o que é uma permuta, e bem assim sobre o que as diferencia. 3.1. No parecer emitido no processo RP 60/99 DSJ-CT (in BRNP, Janeiro 2000, p. 19) procedeu-se ao cotejo esquemático das duas figuras, fazendo-se ressaltar o muito que as aproxima e o pouco que as separa. Dele transcrevemos, com as notas anexas, a seguinte passagem: “Tanto num caso como no outro estamos, consabidamente, no domínio dos contratos bilaterais, em que, por força deles mesmos, emergem obrigações para ambas as partes. Além de que, sendo sinalagmáticos, “essas obrigações se encontram unidas uma à outra por um vínculo de reciprocidade ou interdependência”.8 Não sofre dúvida alguma de que, na compra, - mesmo face à definição legal do art. 874º do C.C. - o sinalagma9 da aquisição da coisa pelo contraente comprador é o preço que tem de ser pago ao vendedor. E que, na permuta, ele consiste na entrega de uma outra coisa que, em troca, é entregue pela contra-parte. Como referia o art. 1592º do Código de Seabra é o contrato em que “se dá uma coisa por outra”10. Tanto num caso como no outro as obrigações, assumidas por ambos os 8 Cf. ANTUNES VARELA “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pág. 406. Em nota (nota (2)) este Autor acrescenta: “No contrato sinalagmático dizem os autores franceses que há um entrelaçamento (un enchevêtrement) de obrigações”. 9 ANTUNES VARELA distingue no sinalagma (ultro citroque obligatio) o genético daqueloutro que designa como sinalagma funcional. No primeiro trata-se do “vínculo que, segundo a intenção dos contraentes, acompanha as obrigações típicas do contrato desde o nascimento deste.” O funcional “continua a reflectir-se no regime da relação contratual, durante todo o período de execução do negócio e em todas as vicissitudes registadas ao longo da existência das obrigações”. Embora, no regime dos contratos ora em causa, existam ambas as espécies de sinalagma, afigura-senos que na titulação e constituição do contrato haverá que ter particular atenção à verificação (ou não verificação) do sinalagma genético. Outros Autores acentuam igualmente que o sinalagma contempla a equivalência das prestações. GALVÃO TELES diz-nos que “é a reciprocidade existente entre as obrigações das partes” (cf. “Direito das Obrigações, 5ª ed., pág. 77) e J.J. ABRANTES diz simplesmente que é “a prestação e a respectiva contraprestação que existe no contrato bilateral” in “A excepção do não cumprimento do contrato”, pág. 45). 10 CUNHA GONÇALVES critica esta definição por a entender demasiado sucinta. Considera que haveria de lhe acrescentar um outro elemento: “que uma das cousas a trocar deve pertencer a um dos permutantes e a outra ao seu co-permutante”. Isto é, “cada um dos permutantes deve ser proprietário de cada uma das cousas. A troca é uma alienação recíproca”. (cf. “Tratado de Direito Civil”, Vol. VIII, págs. 627/8 – in comentário ao art. 1594º). 6 contraentes estão inter-relacionadas e reciprocamente dependentes. Elas emergem exactamente desse aspecto do vínculo bilateral que liga as obrigações uma à outra quando o contrato é ajustado e titulado11.” Suplementar nota comum aos dois tipos de contrato, ausente do trecho que vimos de citar, mas que, pelo seu significado e alcance, não é permitido omitir, é a da onerosidade. Ou seja, em ambos se “pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, existindo, segundo a perspectiva destas, um nexo ou relação de correspectividade entre as referidas atribuições patrimoniais” (MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., reimp., 1989, p. 402). Crucial, ainda, no confronto dos dois contratos, e justamente relevando do apontado carácter oneroso, é o dado da aplicação à troca, “na medida em que sejam conformes com a sua natureza”, das normas do regime legal da compra e venda, segundo o que se dispõe no art. 939.º CCivil. 3.1.1. O cerne da distinção entre as duas figuras reside, portanto, na natureza da contra-prestação de uma das partes: na compra e venda, como na permuta, um dos contraentes cede a propriedade duma coisa, ou outro direito; mas, na compra e venda, a contra-prestação é constituída por um preço, uma quantia em dinheiro; ao passo que, na permuta, a contra-prestação vem a ser a propriedade de outra coisa, ou outro direito. 4. Na espécie em exame, a contra-prestação de uma das partes é formada por (propriedade de) coisa mais dinheiro. Retornamos ao nosso problema: que contrato é este? 4.1. “Para alguma doutrina – segundo informa MENEZES LEITÃO12 – este contrato deve ser qualificado como troca, se o dinheiro se destina apenas a colmatar modestas diferenças de valor entre os bens trocados, e como venda, quando a soma de dinheiro seja de montante superior ao valor do bem que acompanha. Para outra, deve-se antes atender, para a qualificação como venda ou troca, se as partes em termos subjectivos consideraram mais relevante o bem trocado ou o dinheiro, independentemente dos valores em causa”. O autor conclui, porém, que “A posição que parece preferível é (…) aquela que qualifica esta situação como um contrato misto de venda e permuta, determinando de acordo com a teoria da combinação a aplicação a cada atribuição 11 A reciprocidade das obrigações é, consabida e pacificamente, designada na Doutrina como prestação e contra-prestação. Esta é na compra e venda o preço pago pelo comprador e na permuta a entrega da outra coisa dada em troca. 12 Cfr. Direito das Obrigações, III, 5.ª ed., 2008, p. 168. 7 económica do regime que a regula.” CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA,13 de seu lado, diz-nos que “o elemento característico do contrato de permuta consiste na ausência de qualquer objecto monetário que no contrato desempenhe a função de meio de pagamento, isto é, na ausência de qualquer objecto que se possa qualificar como preço”, e que “se a contrapartida for mista (dinheiro e bens diferentes de dinheiro), misto é o contrato”, acrescentando que “Se a componente monetária for menor em valor, o contrato toma o nome de permuta com tornas.” A matéria da caracterização da permuta, e, a partir dela, da qualificação do contrato em que uma das partes, por sobre a entrega de coisa, se obriga cumulativamente ao pagamento de soma em dinheiro, mereceu detido tratamento no parecer n.º 42/2002 da PGR14, tendo-se aí defendido o entendimento de que, com preferência a um “critério ‘eminentemente empírico’, como o critério do valor, será porventura mais apropriado adoptar um critério que assuma uma feição marcadamente jurídica. Consequentemente, “Nas situações em que, para acerto de diferenças do valor dos bens objecto do contrato, haja necessidade de efectuar compensação monetária, estaremos ainda perante um contrato de permuta, salvo se a soma em dinheiro constitui a prestação principal ou o elemento proeminente do contrato”, sendo que “O montante devido constituirá (…) um índice de definição de qual seja a prestação principal ou o elemento proeminente do contrato, mas não determinará, por si só, a sua qualificação.” 4.2. Que dizer das qualificações propostas? 4.2.1. Para estritos fins de registo, cremos bem, o critério perfilhado no parecer da Procuradoria, ao pressupor a descoberta, no negócio, da prestação principal ou proeminente (segundo uma difusa valoração “jurídica”, e não com base em mera comparação quantitativa), e, com base nesse intermédio apuramento, dar por verificada uma permuta ou uma compra e venda, consoante tal prestação se cifre em “não dinheiro” ou em dinheiro, afigura-se-nos totalmente inoperativo. Posto de parte o critério fundado na pura graduação dos valores das “sub-prestações” (i. é, da parte monetária e da parte em espécie), é com a maior dificuldade que concebemos, no comum dos contratos, algum outro elemento – a não ser, quando muito, a denominação adoptada no documento que o formaliza – a que, no quadro da qualificação, segundo os parâmetros que a orientam (art. 68.º), se pudesse consistentemente recorrer em ordem a identificar qual fosse a tal “prestação proeminente”. 13 Cfr. Contratos, II, 2007, p. 133. 14 Cfr. Diário da República, II Série, 26-12-2002. Estava aí em causa saber como qualificar semelhante contrato para o efeito de apurar se, sendo o Estado uma das partes, a transmissão de bens do seu património estaria ou não sujeita à realização de hasta pública. 8 De resto, mesmo quando a opção por uma das binárias qualificações contratuais se subordinasse a um crasso raciocínio quantitativo de “maior valor”, isso só por si não eliminaria zonas de dúvida. Por um lado, à míngua de norma a dizer o que no art. 1545.º15 do Código de Seabra se dizia, ficar-se-ia sem saber como decidir a qualificação/nomeação em caso de igualdade de valores das “sub-prestações”, e a preferência, em tal hipótese, sem mais, pela compra e venda, afora porventura o referido – mas extrínseco ao concreto contrato – valor de regime paradigmático conferido às normas que a regem (cfr., o citado art. 939.º), nada tem que solidamente a sustente. Por outro lado, no que respeita aos elementos objectivos a partir dos quais o critério se formaria – os valores, pois claro –, importa lembrar que uma tal objectividade não raro se esgota na formal aposição de um número – mas que constitui, esse número, expressão duma avaliação mais ou subjectiva das partes, quantas vezes mais tarde “corrigida” para efeitos de liquidação de encargos fiscais, fenómeno que com particular incidência se observa, pela própria natureza das coisas, nos contratos de transmissão de bens presentes por bens futuros (que de uso assumem a feição de permuta pura, mas em que muito bem pode ocorrer a dualidade prestacional em exame). Isto, para pôr em evidência o quanto de oscilante pode ter uma qualificação que assente, exclusiva ou predominantemente, na avaliação do vulto económico das “sub-prestações”.16 E, seja como for, a qualificação “purista” (que afirme a existência ou duma compra e venda, tout-court, ou duma troca, tout-court) que, perante uma tal regulação contratual, no registo acabe por ser adoptada, tem contra si – o que não é de somenos – o facto de inculcar uma realidade jurídica (presumindo-a legalmente) que é dissonante, em maior ou menor grau, dos termos efectivamente contratados. O terceiro que consultar o registo, vendo nele publicitada uma ou outra coisa, e não a “nem-uma-nem-outra-coisa”, ou a coisa compósita, que o contrato deveras foi, formará em conformidade uma convicção inexacta acerca do facto-título (titulus adquirendi) que efectivamente teve lugar, o que bem pode levá-lo a captar mal, ou a apreender distorcidamente, a situação jurídica da coisa.17 15 16 Onde o referido critério quantitativo expressamente se acolhia. Sobre as dificuldades/insuficiências, em sede de qualificação do contrato, do elemento “valor da contrapartida”, cfr. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Contratos Atípicos, 2002, p. 141. 17 Um exemplo que julgamos ilustrativo. Suponhamos a existência de direito de preferência, legal (cfr. CCivil, arts. 1091.º, 1112.º/4, 1380.º, 1401.º, 1535.º, 1555.º) ou convencional (CCivil, arts. 414.º e ss.). A celebração, pelo obrigado à prelação, de contrato de troca, em vez de de venda, faz em princípio precludir o direito de preferência, ou torna pelo menos o seu exercício muito problemático (Cfr. ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., 1987, p. 400, em anotação ao art. 423.º, diz que é “difícil admitir a preferência na troca, dada a impossibilidade normal de o preferente entregar objecto igual ao que entregaria o adquirente.”; no sentido do afastamento da preferência, 9 Pelo que, tudo visto e ponderado, somos de opinião que é de rejeitar, em sede de registo, qualquer solução que conduza a resultados metonímicos que, nos termos expostos, passem por tomar a parte pelo todo. 4.2.2. A tese do contrato misto, por seu lado, parece-nos mais certeira. Não há dúvida de que se está em presença de contrato unitário que em si reúne elementos característicos da legalmente típica compra e venda e da socialmente típica permuta (contrato misto de tipo múltiplo18). 4.2.3. Decidir que a espécie em causa não é nem compra e venda nem permuta, mas um contrato atípico misto que combina atributos de cada um desses bem definidos modelos, não deixa porém de significar tomar posição no sentido dum certo tratamento jurídico, em que as partes, designadamente, podem não se rever – e o sentido jurídico do contrato é a elas, que livremente o criaram, que antes de mais cumpre determinar. Não que se negue ao conservador o “direito” de qualificar o contrato como juridicamente lhe parecer mais conforme – claro que um tal “direito” lhe assiste, e é ademais indeclinável. Simplesmente, parece-nos que o conservador não deixará de prestar um bom serviço à clareza da informação jurídica – é dizer: à correcta definição da situação jurídica dos bens –, do mesmo passo que se resguarda da eventual censura de “infidelidade” em face da vontade negocial exteriorizada, se, em situações como a que examinamos, ao uso de fórmulas verbais mais ou menos comprometidas (“compra e venda”, “permuta”, contrato “misto de permuta e compra e venda”), preferir a utilização duma linguagem, digamos, predicativo-descritiva. Queremos dizer que, pela nossa parte, a causa aquisitiva ficará adequadamente identificada (revelando-se com nitidez a regulação convencional e os efeitos que dela promanam: a conformação da situação em caso de permuta, cfr. Acs. STJ de 18/09/2003, proc. N.- 03B2099, e R. Lisboa de 18/5/2006, proc. N.º 2015/2006-6, ambos in www.dgsi.pt). Ora, se “A” cede a “B” o prédio “x”, em relação a cuja venda está obrigado a dar preferência a “C”, e, como contrapartida, de “B” recebe o prédio “y” e dinheiro, a qualificação daquele negócio, no registo a que dê causa, como permuta, por recurso a critério de base mais ou menos “jurídica”, mais ou menos “empírica”, “oculta” de “C” a completa natureza das prestações envolvidas, o qual, contentando-se com a informação jurídica assim obtida (e por que não haveria de contentar-se, se do registo deriva a presunção do art. 7.º CRP?), levá-lo-á, eventualmente, a abster-se de intentar demonstrar, pelos meios próprios, que “A” não permutou mas sim vendeu, e que portanto tem ou tinha direito a preferir. 18 PAIS DE VASCONCELOS, idem, p. 226 e ss., e GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos em Geral, págs. 470 e ss. Quanto à definição da regulamentação dos contratos mistos, vários caminhos metodológicos têm sido apontados pela doutrina: as teorias da “absorção”, da “combinação”, da “analogia”, e da “criação”. PAIS DE VASCONCELOS (idem, págs. 240 e ss.), depois de enunciá-las, conclui que “não são (…) ‘teorias’ que se excluam reciprocamente, em relação às quais haja que proceder a uma escolha que exclua as teorias ‘falsas’ e eleja uma ‘certa’ e verdadeira”, tratando-se “antes de vários processos de resolução de questões problemáticas, todos eles, em princípio, igualmente hábeis e cada um com um campo de eleição próprio.” 10 jurídica do bem) se o contrato que entrelace, nos termos expostos, elementos de compra e venda e de troca, se identificar, na hipótese mais comum, como “contrato oneroso de transmissão” (ou expressão equivalente, como, v.g., “transmissão contratual a título oneroso”), especificando-se, em “texto livre”, se necessário for, o conteúdo das recíprocas prestações, tanto quanto isso se mostre vantajoso, se é que não mesmo imprescindível, à definição da situação jurídica do bem (v.g., “a aquisição foi efectuada mediante a entrega de prédio e de dinheiro”). 4.2.3.1. Campo onde especialmente avulta a necessidade de atender à composição e proveniência das prestações, mesmo quando se trate de vendas ou permutas “puras” (ou outra qualquer espécie contratual de tipo oneroso), é no das relações patrimoniais dos cônjuges casados em comunhão de adquiridos. Neste regime, como se sabe, coexistem em regra lado a lado três distintas massas patrimoniais: a dos bens de cada cônjuge, próprios, e a dos colectivamente pertencentes a ambos, os bens comuns. Ora, na constância do casamento, os consortes vão adquirindo bens cuja contrapartida umas vezes é constituída exclusivamente por bens próprios, de um ou de ambos, outras vezes por bens exclusivamente comuns, e outras vezes ainda simultaneamente por bens próprios, de um ou de ambos, e por bens comuns. E os bens assim adquiridos, na proporção em que o sejam à custa de contrapartida saída de um daqueles individualizados círculos patrimoniais, ingressarão por sua vez no património próprio de um, no património próprio de ambos, ou no património comum (cfr. CCivil arts. 1723.º e 1726.º). Figure-se situação em que A e B, casados no dito regime, celebram com C permuta (pura) nos termos da qual este lhes transmite o prédio “x”, no valor de 100, e eles, como contrapartida, lhe transmitem o prédio “y”, próprio de A, no valor de 80, e o prédio “z”, próprio de B, no valor de 20. Nesta hipótese, A e B ficarão sendo comproprietários de “x” (art. 1723.º/-a)19, se bem que detendo quotas desiguais (4/5 para A, 1/5 para B).20 O extracto do registo aquisitivo correspondente especificará a contitularidade em regime de compropriedade, designando as diferenciadas quotas dos condóminos como bens próprios respectivos, e identificará a permuta como causa. E talvez tanto baste à definição da situação jurídica do bem; ainda assim, todos conviremos em que essa situação melhor ainda ficará definida se, a mais disso, do extracto outrossim ficar a constar a sumária caracterização da contrapartida realizada 19 Neste sentido, cfr. PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, I, 2.ª ed., p. 516. Opera o instituto da sub-rogação real; sobre a figura, v. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, p. 223, nota 1. 20 Cfr. ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., reimp., 1987, págs. 348-349. 11 por cada um dos adquirentes (assim, v.g., “cada um dos adquirentes deu em troca seu bem próprio). O mesmo se diga quando para a aquisição do bem tenham concorrido bens próprios e bens comuns, que convoquem a aplicação do art. 1726.º do CCivil. Trate-se de troca ou de venda pura, trate-se de negócio oneroso de natureza mista, e qualquer que venha a ser a titularidade emergente (comunhão, compropriedade de ambos, propriedade exclusiva de um dos membros do casal), não temos por supérflua a menção – a acrescer, sendo o caso, à da objectiva “variada” composição da prestação, nos termos propostos supra (4.2.3., in fine) – relativa às massas patrimoniais de origem dos valores prestados. 5. Uma palavra final para aludir aos aspectos fiscais do negócio, maxime para efeitos de IMT. No âmbito da incidência objectiva deste imposto, com efeito, a espécie contratual que analisámos invariavelmente cai no âmbito da definição de permuta constante da al. c) do art. 4.º do CIMT, que diz ser de “troca ou permuta o contrato em que as prestações de ambos os permutantes compreendem bens imóveis, ainda que futuros.” Do ponto de vista fiscal, portanto, tudo o que tem de haver, para haver permuta, é que ambos os contraente reciprocamente se transmitam imóveis, ainda que nisso se não esgote a prestação de cada um – continuará a haver permuta para efeitos de IMT ainda que nos bens envolvidos também se incluam bens móveis, dinheiro ou valores de outra natureza. A liquidação do imposto incide sobre a diferença declarada de valores, quando superior à diferença entre os valores patrimoniais tributários (CIMT, art. 12.º/4, regra 4.ª), e, na determinação dessa diferença, deverá atender-se à composição integral de cada lote de bens.21 A circunstância de, fiscalmente, a operação configurar uma permuta não força porém nem as partes, nem o titulador, nem o registador, a resignarem-se a como tal denominar o contrato. Na óptica do conservador, em particular, o fundamental é isto: é analisar a regulação contratada, e, em face da lei e do enquadramento tabular preexistente, dela publicitar adequadamente os efeitos, em termos de, em conformidade, adequadamente se definir a situação jurídica do bem. 6. Sobre a matéria julgamos ter dito o suficiente, e que no essencial podemos condensar na seguinte 21 Cfr., sobre a matéria, J. SILVÉRIO MATEUS e L. CORVELO DE FREITAS, Os Impostos sobre o Património Imobiliário / O Imposto de Selo, págs, 330, 341-342, 346-348. 12 Conclusão O contrato oneroso pelo qual uma das partes transmita à outra bem diferente de dinheiro e, como contrapartida, dela receba prestação complexa constituída por bem diferente de dinheiro e dinheiro, não correspondendo nem ao legalmente típico modelo da compra e venda “pura” nem ao socialmente típico modelo da permuta “pura”, também não deve como tal qualificar-se como causa do registo aquisitivo que com base nele se promova (CRP, art. 95.º/1-a)); em vez disso, deverá preferir-se uma referenciação “complexiva”, com suficiente nível de concretização, que, reflectindo o verdadeiro modo de ser do contrato, permita definir correctamente a conformação da situação jurídica do bem por ele causada. Deliberação aprovada em sessão do Conselho Técnico de 25 de Maio de 2011. António Manuel Fernandes Lopes, relator. Esta deliberação foi homologada pelo Exmo. Senhor Presidente em 26.05.2011. 13 Processo CP 24/2010 SJC-CT Súmula das questões tratadas o Contrato de permuta, contrato de compra e venda e contrato que combine prestações características de um e outro modelos – qualificação jurídica deste contrato e termos a que deve obedecer a sua identificação enquanto causa do registo aquisitivo nele fundado. o Conceito fiscal de permuta.