Os sistemas engenhosos do patrimônio agrícola mundial Juliana Santilli, sócia-fundadora do ISA e promotora de Justiça do Ministério Público do DF. Agosto de 2010 Em 2002 a FAO deu início a um amplo programa global para promover a conservação e o manejo dinâmico e adaptativo de sistemas agrícolas tradicionais, de rica biodiversidade e diversidade cultural associada, chamados de “sistemas engenhosos do patrimônio agrícola mundial” (GIAHS)1. O programa visa fortalecer os vínculos entre agricultura e patrimônio cultural e estabelecer as bases para a criação da categoria “patrimônio agrícola mundial”, através da colaboração com a Unesco e a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial. Cerca de duzentos sistemas agrícolas foram identificados, dos quais cinco foram selecionados para dar início a projetos-pilotos2: 1) O sistema agrícola localizado no sul dos Andes peruanos, nos vales de Cuzco e Puno, nas proximidades da cidade inca de Machu Picchu. Os cultivos agrícolas são divididos em terraços que chegam a 4.000 metros de altitude, e a região é centro de origem da batata (domesticada pelos povos indígenas Aymara e Quechua), da quinoa, da chinchona, da coca, do amaranto, do chili (pimentão) e de raízes de grande importância alimentar regional, como a arracacha e o yacón, entre outros3. 2) O sistema agrícola do arquipélago de Chiloé, no sul do Chile, é um dos centros de origem das plantas cultivadas identificados pelo cientista russo Nikolai Vavilov. É centro de origem da batata, e cerca de duzentas variedades nativas de batata ainda são cultivadas pelo povo indígena Huilliche, assim como uma variedade de alho (Ajo chilote) que só existe no arquipélago de Chiloé e em seus solos vulcânicos. 3) Os terraços de arroz da província de Ifugao, nas cordilheiras das Filipinas, que já foram também reconhecidos como patrimônio mundial pela Unesco na categoria “paisagens culturais” da Convenção sobre o Patrimônio Mundial. É um agroecossistema de montanhas altas, em que os terraços interagem com um conjunto de microbacias, que funcionam como sistemas de irrigação e filtragem. Os terraços de arroz seguem os contornos das montanhas. Estima-se que sejam conservadas 565 variedades de arroz4. 4) Os cultivos agrícolas existentes nos oásis da região do Magreb (Argélia, Marrocos e Tunísia), que formam ilhas verdes circundadas por um ambiente inóspito. O oásis de Tamegroute, no Marrocos, também participa do programa da Unesco “O Homem e a Biosfera” e integra a “reserva da biosfera dos oásis do sul marroquino”. Trata-se de um sistema agrícola altamente diversificado, intensivo e produtivo, desenvolvido ao longo de milênios. São produzidas tâmaras, frutas (romãs, figos, pêssegos, maçãs, uvas etc.), legumes e verduras, cereais, plantas medicinais etc.; 5) O sistema de piscicultura integrado com plantações de arroz da China. Os peixes são criados nos campos úmidos de arroz, ocorrendo uma simbiose: os peixes provêem fertilizantes para o arroz, regulam as condições microclimáticas, amaciam o solo e comem as larvas e ervas daninhas, e o arroz fornece sombra e comida para os peixes. É um sistema agrícola bastante tradicional, que existe desde a dinastia Han, há 2.000 anos. Entre os sistemas agrícolas identificados e apresentados à FAO, para inclusão no programa global de conservação e manejo dinâmico dos “sistemas engenhosos do patrimônio agrícola mundial” (GIAHS), estão as terras pretas, encontradas em toda a região amazônica. São solos muito especiais, bastante férteis, formados pelo acúmulo de detritos orgânicos em sítios de moradia e cultivo agrícola de povos indígenas préhistóricos. Outros sistemas agrícolas apresentados à FAO incluem os sistemas pastoris tradicionais do povo Massai (Quênia e Tanzânia), o sistema agrícola tradicional do México, baseado nos chinampas (canteiros flutuantes construídos de madeira trançada sobre áreas lacustres, nos quais se realiza o cultivo agrícola; os chinampas são conhecidos também como “ilhas ou jardins flutuantes”), e o sistema agrícola tradicional centro-americano, baseado na policultura de feijão, milho e abóbora (que são chamados de “três irmãs”) e de outras plantas, conhecido como “milpa”, em que após dois anos de cultivo, a terra “descansa” por cerca de oito anos, para que o solo recomponha a sua fertilidade, e não são utilizados fertilizantes artificiais. O programa GIAHS visa identificar, definir e apoiar as formas de conservação e manejo dinâmico de tais sistemas agrícolas, para que os agricultores possam manter a diversidade biológica e, ao mesmo tempo, ter assegurados os recursos necessários à sua sobrevivência. Busca desenvolver políticas públicas e incentivos para a conservação in situ/on farm da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados. Uma das características de tais sistemas agrícolas é justamente a sua rica agrobiodiversidade: pelo menos 177 variedades únicas de batata foram identificadas na região dos Andes peruanos; cerca de vinte variedades tradicionais de arroz foram encontradas nos sistemas de piscicultura-rizicultura da China, e mais de cem variedades distintas de tâmara foram encontradas nos oásis do Magreb5. Além de valorizar e proteger os sistemas agrícolas tradicionais/locais, o programa GIAHS pode fornecer subsídios para as discussões em torno da criação de áreas protegidas especialmente voltadas para a conservação da agrobiodiversidade (também chamadas de “reservas da agrobiodiversidade”)6. 1 GIAHS é a sigla em inglês desse programa: Globally Important Agricultural Heritage Systems. O programa tem o apoio do Global Environment Facility (GEF), através da Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP). Participam também o International Fund for Agricultural Development (Ifad) e o Biodiversity International, entre outras instituições internacionais. 2 Fonte: www.fao.org/sd/giahs. Acessado em 10/1/2009. 3 Para saber mais, consultar: TAPIA, Mario. Agrobiodiversidad en los Andes. Lima: Fundacion Friedrich Ebert, 1999. 4 NOZAWA, Cristi et al. “Evolving culture, evolving landscapes: the Philippine rice terraces”. In: AMEND, Thora et al (Ed.). Protected landscapes and agrobiodiversity values. Gland: IUCN; Eschborn: GTZ; Heidelberg: Kasparek Verlag, 2008. p. 71-93. (Protected Landscapes and Seascapes, 1). 5 Fonte: www.fao.org/sd/giahs. Acessado em 10/1/2009. Consultar também: ALTIERI, Miguel A. & KOOHAFKAN, Parviz. Globally Important Ingenious Agricultural Heritage Systems (GIAHS): extent, significance and implications for development. Roma: FAO/GIAHS; HARROP, Stuart. Globally Important Ingenious Agricultural Heritage Systems: an examination of their context in existing multilateral instruments. Roma: FAO/GIAHS; RAMAKRISHNAN, P. S. Globally Important Ingenious Agricultural Heritage Systems (GIAHS): an eco-cultural landscape perspective. Roma: FAO/GIAHS. Disponíveis em: www.fao.org/sd/giahs. Acessado em 10/1/2009. 6 HARROP, Stuart. “Traditional agricultural landscapes as protected areas in international law and policy.” Agriculture, Ecosystems & Environment, Amsterdam: Elsevier, nº 121, nº 3, p. 296-307, jul. 2007.