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PLURALIDADE E MOBILIDADE: O HOJE DA EXPERIÊNCIA DE DEUS
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Num momento de queda e troca de paradigmas e modelos, quando a humanidade
acaba de entrar em novo milênio, nota-se na sociedade de hoje uma compreensão do
homem que vai diferindo da concepção moderna, estritamente regida pela autonomia. O
novo sujeito que emerge em meio à assim chamada pós-modernidade revela-se um ser
relacional e aberto a uma autonomia heterônoma, ou seja, uma autonomia regida pela
alteridade. E essa alteridade à qual nos referimos mostra um rosto transcendente,
estranho à concretude racional da modernidade. Trata-se de uma alteridade que termina
por levar o ser humano a golpear às portas da Transcendência perdida, da “alteridade
divina”, do totalmente Outro cujo funeral a racionalidade moderna parecia celebrar sem
remissão.
O mundo em que vivemos não é mais como aquele onde viveram nossos
antepassados, nossos avós, as gerações que sempre nasceram e se criaram cercados dos
símbolos, dos sinais e das afirmações da fé cristã e – mais do que isso – católica. Hoje
vivemos num mundo onde a religião muitas vezes desempenha mais o papel de cultura e
força civilizatória do que propriamente de credo de adesão que configura a vida. 1
Mais ainda: vivemos num mundo plural em todos os aspectos e termos.
Desejamos dizer com isso que a pluralidade advinda da globalização afeta não apenas os
terrenos econômico e social, mas igualmente os políticos, culturais e também religiosos.
Hoje as pessoas nascem e crescem no meio de um mundo onde se cruzam, dialogam e
interagem de um lado o ateísmo , a descrença e/ou a indiferença religiosa, e de outro ,
várias religiões antigas e novas que se entrecruzam e se interpelam reciprocamente. O
Cristianismo histórico se encontra no meio desta interpelação e desta pluralidade.2
1
Cf. os inúmeros autores que trabalham esse aspecto da secularização como mudança de prisma para
compreender e assimilar o religioso. J. MOLTMANN, God for a secular society. The public relevance of
Theology, Minneapolis, Fortress Press, 1999 .; V. WESTHELLE, Modernidade, mito e religião. Crítica e
reconstrução das representações religiosas, in Numen 3, n. 1, jan-jun 2000, pp 11-38; Dictionnaire
critique de théologie, organizado por J. Y. LACOSTE, Paris, PUF,1998; The Encyclopedia of Religion,
by Macmillan Publishing Company, a division of Macmillan, Inc., . Electronic edition produced by
Infobases, Inc., Provo, Utah. 1987, 1995; 4) Diccionario de las Religiones, organizado por P. POUPARD,
Barcelona, Herder, 1987; A TORRES QUEIRUGA, Fin del cristianismo premoderno. Retos hacia un
nuevo horizonte, Santander, Sal Terrae, 2000, Creio em Deus Pai O Deus de Jesus como afirmação plena
do humano, SP, Paulinas, 1993; J. DERRIDA e G. VATTIMO (org.)m A religião, SP, Estação Liberdade,
2000; S. MARTELLI, A religião na sociedade pós-moderna, SP, Pulinas, 1995 ; L.. A. Gomez de Sousa,
Secularização en dclínio e potencialidade transformadora do sagrado, in Religião e sociedade 132 (1986),
pp. 2-16; Secularização e sagrado, in Síntese 13 (1986), pp. 33-49; P. RICOEUR, L’herméneutique de la
sécularisation. Foir, idéologie, utopie, in E. CASTELLI, ed., Actes d’un colloque organisé par le Centre
International d’Études Humanistes et par l’institut d’Études Philosophiques de Rome, Paris, Aubier, 1976,
p.60; P. VALADIER, Catolicismo e sociedade moderna, SP, Loyola, 199....
2
Cf. as inúmeras obras que se detêm na análise deste fenômeno: J. DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do
pluralismo religioso, SP, Paulinas, 1999; F. TEIXEIRA, Teologia das religiões. Uma visão panorâmica,
SP, Paulinas, 1995; F. COUTO TEIXEIRA, A experiência de Deus nas religiões, in Numen 3, n. 1, jan-jun
2000, pp 111-148 M. HEBRARD, Entre Nova Era e Cristianismo, SP, Paulinas, 1997; L. AMARAL et
alii, Nova Era. Um desafio para os cristãos, SP, Paulinas, 1994 entre outros; J. L. SCHLEGEL, Retour
2
Esta pluralidade religiosa, por sua vez, implica a existência de discursos e
tentativas de discurso sobre o Sagrado, a Sacralidade, o Divino ou Deus diferentes,
segundo os contextos em que se vive e suas características. Discursos que estarão
permeados e mesmo configurados em maior ou menor proporção pelo fenômeno da
secularização que avança e transforma a visão do campo religioso e cultural, assim como
pelo eclodir da convivência mais ou menos conflitiva das diferentes religiões, não apenas
aquelas de tradições mais antigas e institucionalizadas como também dos novos
movimentos religiosos que a cada dia inventam novas sínteses para expressar a busca do
ser humano de hoje pelo Transcendente.
O pluralismo, na verdade, está presente na história do Cristianismo desde os seus
primórdios. Já desde os primeiros séculos, o cristianismo nascido no seio do judaísmo
deverá encontrar maneiras de comunicar-se no seio do mundo pagão e politeísta da
Grécia e da Roma antigas. Para tal, deverá servir-se das categorias da filosofia grega,
antiga e pagã, assim como será compelido a dialogar com os diferentes deuses presentes
neste mundo, a fim de poder fazer visível e audível a experiência de seu Deus. Um
exemplo saboroso e potente desse pluralismo e da entrada do Cristianismo nele é o
episódio de Paulo no areópago de Atenas, com seu anúncio do Deus desconhecido,
descrito no capítulo 17 do livro dos Atos dos Apóstolos. 3
Esse pluralismo pareceu obscurecer-se na Idade Média, quando o mundo ocidental
era maciça e quase totalmente cristão. Os que professavam credos diferentes eram
considerados hereges e infiéis a serem combatidos e eliminados. 4 A Reforma Protestante
recoloca a questão do pluralismo, rompendo a univocidade da cristandade. O processo de
secularização, com a autonomia da razão, o racionalismo e a crise das instituições traz
novos elementos para um quadro onde a homogeneidade já estava rompida, senão
questionada.5
Hoje, em meio a esse pluralismo que só faz crescer, assistimos à privatização da
vida religiosa, que vai de par com a autonomia do homem moderno versus a heteronomia
que regia o mundo teocêntrico medieval..
Cada um compõe sua própria
“receita”religiosa e o campo religioso passa a se assemelhar a um grande supermercado
assim como também a um “lugar de trânsito”onde se entra e se sai.6 A modernidade não
liquidou com a religião, mas esta ressurge com nova força e nova forma, não mais
institucionalizada como antes, mas sim plural e multiforme, selvagem e mesmo
anárquica, sem condições de voltar ao pré-moderno.7
du religieux et christianisme. Quand de vieilles croyances redeviennet nouvelles, in Études 362 (1985), p.
92.
3
Cf. At 17, 1 ss: Paulo no areópago de Atenas, falando do Deus desconhecido a partir do politeísmo grego
Cf. nossos artigos ( com Rosemary Fernandes da Costa e Márcio Henrique da Silva Ribeiro) Violência e
não-violência na história da Igreja II, in REB 60 (2000) pp 111-144; ( com Rosemary Fernandes da Costa
e Márcio Henrique da Silva Ribeiro) Violência e não-violência na história da Igreja, in REB 59 (1999) fsc
236, pp 836-858.
5
Cf. J. MOLTMANN, Trindade e Reino de Deus, Petrópolis, Vozes,1998
6
Sobre as imagens do campo religioso como “supermercado” e como “lugar de trânsito”, v. M. C.
BINGEMER, O impacto da modernidade sobre a religião,SP, Loyola, 1990
7
Cf. M. C. BINGEMER, Alteridade e vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo religioso no
moderno em crise, SP, Loyola, 1992; v. tb. J. B. LIBANIO,Fascínio do sagrado, in Vida Pastoral 41, n.
212 (maio-junho de 2000) pp 2-7; F. DO COUTO TEIXEIRA, O sagrado em novos itinerários, in Vida
Pastoral 41, n. 212 (maio-junho de 2000) pp 17-22
4
3
O ser humano que viveu a crise da modernidade, ou que já nasceu em meio ao seu
clímax, e nada agora em águas pós-modernas, à diferença do adepto da religião
institucional, que adere a uma só religião e nela permanece; ou mesmo do ateu ou
agnóstico, que nega a pertença e a crença em qualquer religião é como um “peregrino”
que caminha por entre os meandros das diferentes propostas religiosas que compõem o
campo religioso, não tendo problemas em passar de uma para outra, ou mesmo de fazer
sua própria composição religiosa com elementos de uma e outra proposta. 8
.
A questão da sacralidade apresenta, pois, uma outra face que convive com aquela
por nós analisada: a da secularidade moderna, geradora da suspeita e do ateísmo, onde a
Transcendência está submetida à constante e incessante crítica da razão e da lógica
iluminista. Esta outra face é a face da pluralidade . Face esta que, por sua vez, implicará
igualmente na existência de uma interface: a das diferentes tentativas do diálogo interreligioso , da prática plurireligiosa, da dupla ou tripla pertença espiritual e da religião do
outro como condição de possibilidade de viver mais profunda e radicalmente a própria
fé.9
Uma coisa que aparece clara neste quadro é que, por um lado, o
Cristianismo histórico percebe que perdeu a hegemonia que havia secularmente
adquirido, em países tradicionalmente católicos, onde a pertença cristã, mais que
escolhida livremente na idade adulta, era herdada desde o seio materno.10 Ser cristão
hoje não é mais evidente e o cristianismo é chamado a encontrar o seu lugar em meio a
uma pluralidade de outras tradições e confissões religiosas dos mais diversos matizes,
que proliferam sobretudo nos grandes centros urbanos.11
Por outro lado, essa pluralidade religiosa levanta para o Cristianismo algumas
interpelações bastante sérias quanto a conteúdos mesmo do depósito de sua fé. Para
realmente viver sua identidade dentro de um mundo pluri-religioso, há que estar
dispostos, da parte dos cristãos, a encontrar palavras novas para dizer coisas antigas e
tradicionais e assim fazer-se entender.
Assim é com relação, por exemplo, aos sacramentos e aos ritos cristãos,
defrontados com um sem número de expressões rituais outras que atraem as pessoas e
cujos elementos muitas vezes são introduzidos no culto católico ou protestante. Assim é
com a relação com a Bíblia como Livro Sagrado, questionada sobretudo por outras
religiões monoteístas como o Judaísmo e o Islã. Assim é com a concepção de liturgia
que oferece elementos diferenciados com os quais as pessoas de hoje se identificam mais
8
Cf., confirmando isto, D. HERVIEU-LEGER, Le pélerin et le converti. La religion en mouvement,
Paris, Flammarion, 1999; Cf. a reflexão que faz sobre o pensamento desta autora F. DO COUTO
TEIXEIRA, O Sagrado em novos itinerários, in Vida Pastoral 41 fsc. 212(maio-junho 2000), pp 17-22 . V.
tb, em termos mais brasileiros, a questão concreta do sincretismo e da dupla pertença. A bibliografia é
vasta e é impossível citá-la exaustivamente aqui. Remetemos , para a questão da dupla pertença, à tese de
J.G. DA ROCHA, .... dos APNs no Brasil, etc.
9
Cf. sobre os Novos Movimentos Religiosos, L. S. CAMPOS, Teatro, templo e mercado, SP, VozesUMESP, 2000, 2ª edição; L.AMARAL LUZ, Carnaval da alma. Comunidade, essência e sincretismo na
Nova Era, tese doutoral, mimeo, Juiz de Fora, MNA, PPGAS, 1998; J. HORTAL, O que fazer diante da
expansão dos grupos religiosos não católicos? , col. Estudos da CNBB n. 62
10
Cf. a recente pesquisa do CERIS , O catolicismo na cidade, SP, Paulus, 2002
11
ibid
4
ou menos, preferindo às vezes cultos de outras religiões, apesar de sua pertença e origem
cristãs. 12
A questão de Deus e da experiência de Deus igualmente – e, portanto, a questão
da espiritualidade - é uma destas questões delicadas a ser tratada com atenção pela
teologia ao se deparar com o fato do pluralismo de experiências religiosas que
reivindicam para si o estatuto de verdadeiras experiências de Deus.
Da experiência humana à experiência de Deus
Nossa época é uma época onde a experiência – o conceito e aquilo que ele encerra encontra-se novamente na linha de frente do pensar. O conhecimento nestes tempos de
crise de modernidade e advento da pós-modernidade se dá por experiência antes que por
razão refletida e comprovada. O rigor do conceito e a bênção unicamente da razão
comprovada e verificada vai adquirir uma posterioridade crítica e discernente em relação
à experiência que, antes que qualquer outra coisa, irá tomar o proscênio do debate
hodierno.
A teologia não foge a essa regra e também vai mais e mais adotando a
experiência como uma categoria fundamental para o seu objeto maior, que é o pensar
sobre Deus. Por outro lado, diante das velozes transformações pelas quais passou e passa
o campo religioso, que hoje apresenta uma certa nebulosidade nos contornos do que se
convenciona chamar e se chama – mais ou menos acuradamente - de experiência
religiosa ou sede espiritual ou ânsia pelo Transcendente, não identificadas essas
expressões com os terrenos da confessionalidade ou mesmo da tradição pertencente a
uma instituição, é mais do que nunca urgente pensar a experiência e seu lugar dentro do
pensar teológico. Mais ainda: é mais do que nunca urgente pensar a experiência em seus
diversos níveis de distinção com relação à inteligência da fé que é a teologia.
Pois o conceito de experiência está entre aqueles que, em virtude de sua
fundamental importância, foram utilizados na história do pensamento em grande escala e
aos quais se associam um passado rico e complexo em termos filosóficos. “Se o teólogo
desconhecer este passado, corre o risco ou de restringir o conceito ou de banalizá-lo, pois
se lhe ameaça perder a plenitude da elaboração intelectual aí contida, ou , o que é ainda
mais grave, entrega-se irrefletidamente ao contexto de sistemas filosóficos, dos quais
doravante o conceito recebe um de seus significados principais, cujas implicações todas
ele não pode como teólogo aceitar. “ 13
O humano como lugar de acontecimento da experiência
A experiência é um fato primitivo, originário. É contacto com o real,
condição de todo saber, de toda ação. Este contato deve ser distinguido do saber que dele
12
Sobre a questão das liturgias inculturadas e identificadas com uma raça ou etnia, v. o exemplo concreto
da Missa da Terra Sem Males e da Missa dos Quilombos, compostas por Dom Pedro Casaldáliga, com
parceria de Pedro Tierra e Milton Nascimento. Sobre a questão da dupla ou tripla pertença e a
incorporação de elementos de outras tradições na liturgia, cf. a tese de doutorado de J.G. da ROCHA,
defendida na PUC-Rio em 1997, Teologia e negritude. Um estudo sobre os agentes de pastoral negros,
publicada depois pelas Paulinas.
13
B.QUELQUEJEU e J.P.JOSSUA, Experiência, in P. EICHER (org.) Dicionário de conceitos
fundamentais de teologia, SP, Paulus , 1993, pg 298
5
resulta, assim também como da experiência adquirida pela simples prática da vida e da
experimentação dirigida por determinadas interrogações ou hipóteses.
No sentido mais amplo, experiência significa a totalidade do que ocorre ao
homem na sua vida consciente: o conceito designa, pois, o fato de aproximar-se de algo e
sentir algo a partir daí; ou ainda receber uma impressão a partir do sentido, impressão
essa não efêmera e fugidia mas forte e que permanece. Algo, em suma, que constitua em
permanente alargamento da consciência humana. 14
Alguns autores (Jankélévitch, M. Dufrenne) propõem a distinção entre
experiência como empiria e como meta-empiria. A primeira designaria o curso
cotidiano da vida; a segunda o instante da inspiração que furtivamente instaura uma
ruptura no cotidiano e nele irrompe. 15
Como contato, a experiência é consciente de uma relação com o mundo, com o
outro, com Deus. Ou seja, é o encontro de uma alteridade. Mais do que um simples
conhecimento, a experiência portanto, implica em
pressentir, sentir, ressentir. A
experiência abrange, portanto, a totalidade do que a razão adquire no exercício de sua
atividade. Uma pessoa “experimentada” ou “experiente” é alguém que conseguiu
apropriar-se, no decorrer da vida, de uma sabedoria prática e verdadeira da qual nem ac
mera sensibilidade nem apenas a razão podem dar conta, mas que vai permitir a esta
pessoa enfrentar outras e futuras provas e provações, além de habilitá-la a aconselhar e
orientar outros no direcionamento da própria vida. 16
Parece-nos, no entanto, importante, neste primeiro momento da reflexão,
distinguir entre experiência do mundo e das coisas e experiência do outro, do ser humano
enquanto meu semelhante. Pois enquanto o mundo está inconsciente dele mesmo e de
mim, sendo experimentado apesar de si mesmo, a experiência do outro – humano como
eu - implica reciprocidade das consciências encarnadas e introduz na consciência a
categoria fundamental da alteridade .
Distinguimos, igualmente, entre experiência a nível individual e experiências
coletivas, entendendo-se por isso as diversas experiências da humanidade transmitidas
por tradição cultural como língua, educação, conhecimentos práticos, modelos de
comportamento, símbolos, etc. 17
Como saber adquirido, a experiência, nascida de percepções múltiplas reunidas, é
memória18 .
Condensa as “ vivências conscientes”, ultrapassa a duração do tempo,
antecipa o evento, o reconhece instantaneamente, volta para ele por memória e
pensamento. Não existe experiência verdadeira senão pela possibilidade do retorno
reflexivo. Portanto, a morte, enquanto mergulho na não consciência e supressão da
reflexão possível, não é experiência (enquanto o morrer sim, pode se-lo) 19.
Uma das notas características da experiência humana é, pois, sua possibilidade de
imediatez, produzindo um conhecimento que não procede em primeira linha do pensar
discursivo, mas do perceber imediato de uma impressão ou vivência. Esta imediatez, no
14
Ibid
Cf. J.Y.LACOSTE (ORG), Dictionnaire critique de théologie, Paris, PUF,1998, verb. “expérience
religieuse”
16
Cf. B.QUELQUEJEU e J.P.JOSSUA, op. Cit., art. Cit., pg 299
17
ibid
18
Assim o define Aristóteles, na Metafísica I
19
Neste sentido, adquirem imensa importância as reflexões hoje tão conhecidas da ilustre tanatóloga E.
KÜBLER ROSS, Sobre a morte e o morrer, ............. e outros.
15
6
-
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entanto, não está isenta da presença daquele que faz a experiência, do sujeito que
experimenta, o que em si já é uma mediação. O sujeito humano é um ser corpóreo,
condicionado, situado historicamente e datado no tempo. Todos esses condicionamentos
particulares, portanto, fazem parte da sua experiência e dela não podem ser excluídos.
Por nossa corporeidade estamos inscritos na duração do tempo. A experiência
corpórea própria a cada ser humano ( seu gênero, sua idade cronológica, as sensações
diversas, o prazer, a dor, etc.) subjaz e condiciona toda experiência que tal sujeito possa
fazer do outro, do mundo e mesmo de Deus. Mais profunda condição ainda de toda
experiência é a presença de si a si que constitui a consciência, ou seja, a tomada de
conhecimento da experiência e dos efeitos que ela produz na vida do indivíduo ou da
comunidade . Mas esta consciência não é dada desde o começo como perfeita e acabada.
Pelo contrário, não cessa de crescer , alterada pelos estímulos externos e também pelos
acontecimentos diversos que a vão modificando. É sem dúvida a alteridade – ou seja, a
diferença do outro ao mesmo tempo que sua manifestação e proximidade – aquilo que
acaba por promover consistentemente a consciência de si. 20
Portanto, e especificamente devido ao fato de que o experimentar, sendo um ato
constitutivamente humano, não isola o ser humano, mas pelo contrário, supõe a alteridade
e a relação, a experiência não é nem pode ser um simples padecer, um sofrer, ou um
receber em estado puro. Se, em termos opostos, optamos pela definição do idealismo,
tenderíamos a não ver nela senão uma espontaneidade, uma criação do espírito. Ora, see
apenas o real é o espírito, a experiência se reduziria à experiência do eu e suas
representações, e a alteridade constituiria então um problema insolúvel. De fato, não é
assim, já que a experiência é, ao mesmo tempo, recepção e criação, acolhimento e
espontaneidade, em proporções indefinidamente variáveis. 21
Após esse breve percurso pelos caminhos de uma tentativa de definição da
experiência humana, parece-nos poder apontar sete pontos que não podem ser deixados
de lado quando se fala em experiência humana:
a) Toda experiência é um processo mas é também a condição que dele resulta e a
condição que o torna possível de acontecer.
b) Toda experiência põe o sujeito em contato direto com o objeto
c) A imediatez não significa, porém, que as experiências careçam de pressupostos.
Fatores corpóreos, de gênero, sociais, históricos e religiosos de todo tipo condicionam e
configuram a experiência humana.
d) Em algumas experiências, o sujeito é mais ativo ( por ex., experimentos
controlados cientificamente); em outras, mais passivo ( por ex., momentos de graça
poderosa) Porém, os elementos ativos e passivos estão inseparavelmente presentes em
todas as experiências.
e)A evidência e a autoridade da experiência são claras e diretas. Não obstante,novos
elementos e novas experiências podem modificar e corrigir o que já se aprendeu e alterar
a interpretação que da experiência se possa fazer.
20
Cf. J.Y.LACOSTE (ORG), op. Cit.
Cf. o que sobre isso dizem Cf. J.Y.LACOSTE (ORG), , op. Cit., ; B.QUELQUEJEU e J.P.JOSSUA, op.
Cit., art. Cit, pp 299 ss; cf. tb. O que diz magistralmente K. RAHNER, em sua obra Curso Fundamental da
fé, SP, Paulinas, 1989, pp 37-59, capítulo intitulado “O ouvinte da palavra”, onde define o ser humano
como paciente mesmo quando agente.
21
7
-
f) As experiências humanas são sempre experiências interpretadas. A obra de
interpretação começa exatamente no mesmo momento no qual sucede a experiência.
g) A experiência pessoal e a tradição ( que pode considerar-se como o produto das
experiências da comunidade ou sociedade) se afetam mutuamente entre si. A tradição
nos ajuda a interpretar nossas experiências, que por sua vez nos ajudam a interpretar,
compreender e modificar a tradição.
O que se procurou sistematizar acima, a nosso ver, permite vislumbrar algumas
características recorrentes de toda experiência humana. É esta experiência humana que
oferecerá o substrato adequado para o que seria, então, a experiência religiosa.
Experiência Religiosa: Ambiguidades e Potencialidades
Jean Mouroux, em 1954, escreve uma obra clássica sobre a experiência cristã,
onde vai distinguir na mesma diversos graus de profundidade.22 Esses diversos níveis ou
graus nos permitem a aproximação a uma conceituação de experiência religiosa,
distinguindo-a daquilo que não é.
O nível empírico - segundo o Autor - designa a experiência vivida sem
“repetição” pela reflexão crítica. Com o experimental acede-se à experiência provocada:
ela coordena os elementos da experiência para constituir a ciência. O experiencial marca
o engajamento e compromisso mais completo da pessoa; ela se entrega com seu ser e seu
ter, sua reflexão e sua liberdade; ela se doa a si mesma, numa significação singular face
ao evento, e este “sentido” novo pode fornecer matéria de testemunho. 23
“Neste sentido, diz Mouroux, toda experiência espiritual autêntica é de tipo
experiencial.” Assim, nascida com o simplesmente vivido, a experiência se eleva, na
ciência, até o nível racional, se levanta, em tal momento privilegiado, ao existencial – ou
meta-empírico. É deste último tipo que releva a experiência religiosa. 24
Seguindo a reflexão com o material que nos fornece Mouroux, aquilo que em
teologia podemos chamar de experiência religiosa nos traz, portanto, ao mesmo tempo
que a abertura de um vasto campo de reflexão – hoje mais que nunca, uma vez que o
campo religioso sofreu profundas mudanças e apresenta uma série de áreas veladas mais
que reveladas – uma série não menor de ambigüidades que tornam a definição do
conceito uma tarefa nada fácil nem simples.
No entanto, devemos recuar mais longe, antes da obra de Mouroux, para tocar na
raiz do que vai influenciar o pensamento teológico a respeito da assim chamada
experiência religiosa. É, na verdade, no começo do século XX (mais concretamente em
1917) que o célebre livro de Rudolf Otto (Lo santo)25 vai tentar uma definição mais
rigorosa do que seria a experiência religiosa sem entrar diretamente nos domínios mais
confessionais de uma determinada instituição. Segundo ele, a experiência religiosa traz
consigo uma incomensurabilidade entre tudo que releva do entendimento ou da razão e o
22
23
24
25
J. MOUROUX, L´expérience chrétienne, Paris, Aubier, 1954
Cf. ibid, pg ........
R. OTTO,
Lo Santo, Lo Racional y Lo irracional en la idea de Dios, Madrid, Allianza Editorial,
1980, esp. pp 14-21.
8
conjunto de fenômenos referenciáveis ao experimentar propriamente dito. Uma tal
experiência escaparia, portanto, a toda aproximação racional. Ela não releva, portanto,
nem da ordem da verdade ( por exemplo, a experiência metafísica do Deus verdadeiro em
Descartes ou a argumentação de provas ontológicas em Santo Tomás) nem da ordem da
ética (notadamente tal como Kant pretendeu fundá-la a partir de postulados da razão
prática), nem mesmo da ordem do teleológico ou da organização do sentido.
Para Otto, a experiência religiosa é irredutível em termos de idéia, conceito, noção
abstrata, preceito moral. Todas estas operações do pensamento são por demais
“tranquilas” para serem adequadas àquilo que jorra quando o sagrado se manifesta numa
experiência singular. Mais ainda, a experiência religiosa escapa ao “bom senso”. Otto
mostra que é uma experiência terrível, devastadora para aquele sobre a qual ela se
derrama. A experiência referida pela expressão paulina “Deus vivo” é a de um poder
atemorizante e esmagador para o humano, escapando a toda mediação mental racional .
(cf. Heb 10, 31).
Segundo Otto, esta experiência é a da onipotência divina. O que é encontrado no
decurso da experiência é da ordem do “totalmente outro”. Um ser singular está
subitamente colocado em presença de uma realidade irredutível a tudo que releva da
ordem do cosmos ou doe humano. O que é então vivido e experimentado escapa a todo
pensamento como a toda vontade. Deste estranhamento radical, ontológico, que jorra no
campo da experiência humana, nasce no ser que a sofre uma atitude paradoxal, no limite
do suportável e que pode fazer balançar na demência um psiquismo insuficientemente
preparado. Por um lado, portanto, nasce um sentimento de medo, de pavor, de terror
sagrado – sentimento esmagador que Otto designa como “mysterium tremendum”. Mas
por outro lado impõe-se o sentimento de um atração irresistível, de um ser arrancado da
vida ordinária, de uma urgência de “ver” com risco de morrer : sentimento irreprimível
que Otto define como “mysterium fascinans”.
Esta ambivalência extrema que carrega a experiência do sagrado foi nomeada por
ele como “numinosa”. Tudo se passa como se o efeito numinoso que carrega uma tal
experiência fosse devido ao brusco acesso daquele que a experimenta a uma realidade
que nenhuma categoria pode delimitar. Esta mudança brusca de nível de consciência se
manifesta por um conflito de atitudes que marca a irredutibilidade de tal experiência em
termos de posições recíprocas do eu e do mundo. Ela não pode se exprimir senão por um
sentimento contraditório que toma todo o ser que a experimenta e que se expressa com
termos igualmente contraditórios: uma “aterrorizante atração”, um “terrível impulso”, etc.
Este sentimento se encontra mais além do antagonismo vital sobreviver-morrer, que
forma a base psíquica do consciente. Não é numa relação de tipo interior-exterior que se
joga, pois, o face- a -face do humano e do divino. É a experiência de uma relação entre
duas ordens, dois tipos , dois níveis de realidade, um superior, e outro inferior que não
fazem número nem se somam e entre os quais não há simetria possível. Esta revelação
esmagadora é, pois, a de um poder tão radicalmente “outro” que é vivido pelo ser
humano como uma “ suspensão sobre o abismo”, como um balançar-se em seu próprio
nada.
A obra de Otto marcou de forma definitiva o campo dos estudos da religião. Na
sua esteira, podemos encontrar autores do porte de um Mircea Eliade e/ou de um Carl
Gustav Jung. A teologia no momento atual, quando tem que debruçar-se sobre a questão
da experiência religiosa tal como esta se apresenta no mundo de hoje, não pode
9
igualmente deixar de levar em conta as contribuições deste Autor. Não pode, porém, do
mesmo modo, ignorar alguns elementos que trazem outras ciências quando dialogam com
a teologia e a filosofia a respeito deste tema. E ertamente a principal destas ciências seria
a psicologia.
Ambigüidades psicológicas da experiência religiosa
Poderíamos dizer que o que acontece na experiência religiosa está ligado às
experiências mais antigas, primitivas e profundas do ser humano, aquelas justamente que
foram configurando sua personalidade e sua estrutura mais específica e pessoal. E essas
foram as que o ser humano teve com os primeiros interlocutores que povoaram seu
horizonte vital: seu pai e sua mãe.
Nos primeiros momentos da existência não se dispõe ainda de um “Eu” mediante
o qual se possa perceber a própria distância e diferença com relação ao que está em
torno. O iluminado, o religioso de corte carismático seria, então, dentro desta tipologia,
justamente aquele que não terminou de aceitar a distância que existe com respeito à
totalidade primeira do mundo materno. 26 Esta é a diferença da experiência religiosa com
a experiência mística. O místico aceita essa alternância de presença e ausência em
relação à totalidade do sagrado. Por isso o alumbrado, o carismático, ao contrário do
místico, pretende dissolver-se no divino e eliminar seu próprio eu, sendo incapaz de
assumir sua condição de “ser separado”, que é a única que possibilita o autêntico
encontro, diálogo, comunicação. O carismático ama a experiência do amor, mas não o
outro. Muitas experiências religiosas hoje correm esse risco. 27
Esse risco só poderá ser superado quando na experiência religiosa de tendência
fusional se introduzir a intervenção da separação que conferirá à totalidade nebulosa e
sem nome uma forma , uma figura e um nome. Aí está – parece-nos – a diferença entre a
experiência religiosa simplesmente e o que se poderia chamar de experiência espiritual ou
experiência de Deus. O Deus aí experimentado será então, ademais de uma fonte de gozo
na união, uma exigência, um modelo e um ideal de vida. Será fonte mobilizadora de um
compromisso ético, de um projeto e de um ideal de transformação da história. 28
Porém, a divindade experimentada pode igualmente correr riscos de
grande ambigüidade, mesmo saindo do difuso da experiência religiosa sem nome e sem
rosto.
Se o primeiro risco, (o do carismático ou alumbrado) é o da busca de sensações e fusões
gozosas, o segundo risco seria o da normatividade sádica, o do sacrifício pelo sacrifício,
da culpa sem remissão, da auto-destruição e da morte.29 Se uma é a religião da fusão
26
Nas reflexões que se seguem, estaremos acompanhando de perto a reflexão de C. DOMINGUEZ
MORANO, , Creer después de Freud, Madrid, Paulinas, 1992; assim como sua outra obra traduzida no
Brasil Orar depois de Freud, SP, Loyola, 1998
27
Cf. ....Vida Pastoral
Cf. sobre isso o excelente capítulo de autoria do Pe. H. DE LIMA VAZ, Experiência de Deus, in L.
BOFF et alii Experimentar Deus hoje, Petrópolis, Vozes, 1974, pp
29
Neste sentido, v. a obra de F. VARONE, El Dios “sádico”. Ama Dios el sufrimiento? , Santander, Sal
Terrae, 1988, além de todas as outras obras do antropólogo francês R. GIRARD, sobre a questão do
sacrifício na experiência religiosa La violence et le sacré, Paris, Grasset, 1972 (trad. Br., A violência e o
sagrado, Rio de Janeiro, Paz e Terra,, 1990; Le bouc émissaire,Paris, Grasset, 1982; Des choses cachées
28
10
gozosa e sem delimitações e alteridade, a segunda é a religião da norma e da obsessão
moralizante que não tem espaço nem tempo para o gratuito e o gozo.
Assim, se bem as experiências primeiras da vida humana são uma possibilidade
real e fecunda para que a experiência religiosa e a experiência de Deus possa fincar raízes
no interior do ser humano, ao mesmo tempo, há que estar conscientes que as mesmas
podem originar desvios e desfoques muito essenciais para a compreensão mesma de
Deus que o ser humano possa ter. Essa é a base da radical ambigüidade que comporta
toda experiência religiosa. 30
Ao tomar consciência de tais desvios e deformações, pode produzir-se, por parte
do ser humano mais maduro e consciente, um sentimento de rejeição da religião ,
oriundo de vários aspectos dessa ambigüidade fundamental. A seguir, listamos alguns
que nos parecem importantes
1. A rejeição a uma religião infantil que tudo resolve magicamente.
2. A rejeição da heteronomia rígida que reduz a religião a normas , preceitos e ameaças.
3. A rejeição de uma experiência religiosa que possa ameaçar o “mito da autonomia
pessoal”. Trata-se de um mito que no Iluminismo se entendeu como uma autonomia que
permite a cada um encontrar em seu interior a própria lei, o próprio “nomos”. 31
4. A rejeição das dimensões simbólicas e gratuitas e contemplativas da existência,
contrapostas ao mito da razão técnica. 32
5. A rejeição oriunda da crise da linguagem religiosa, ou seja, a dificuldade para
experimentar para com Deus os sentimentos que outros tiveram narrados em categorias
lingüísticas que já não correspondem àquelas utilizadas nos tempos de hoje.
6. A rejeição de um Deus que pode aparecer como rival, competidor, ouadversário do
humano. 33
7. A rejeição de uma experiência religiosa que comprova historicamente poder degenerar
em fanatismo destrutivo ou em fundamentalismo religioso. 34
8. A ausência de um projeto ou utopia coletiva e uma supervalorização do individual e do
individualismo como parâmetro universal. 35
9. Uma alergia a todo compromisso e uma predominância de uma religiosidade “light”,
alérgica a qualquer institucionalização e qualquer concretude mais espessa. 36
A diferença entre experiência religiosa - com este tipo de ambigüidades - e
experiência de Deus ou experiência mística vai se tornar mais clara com as reflexões que
faremos a seguir.37
depuis la fondation du monde, Paris, Grasset, 1978 ; La route antique des hommes pervers, Paris,
Grasset, 1985
30
31
32
Cf. C. DOMÍNGUEZ MORANO, Creer después de Freud, op. Cit., pg 14 ss
Cf. sobre isso nosso livro Alteridade e vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo religioso no
moderno em crise, SP, Loyola, 1993
33
Sobre isso cf. A. TORRES QUEIRUGA, Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como realização do
humano, SP, Loyola, 19.....
34
Cf. os temores gerados pelos acontecimentos de um ano atrás, no dia 11 de setembro. Sobre os perigos
do fanatismo religioso, v. Concilium.... V. tb M.C.BINGEMER (org) Violência e religião. Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo. Três religiões em confronto e diálogo2, SP, Loyola, 2001
35
Cf. ...
36
Cf. C. PALACIO, A fé em Jesus Cristo em tempos de religiosidade “light”, in Revista de Itaici, ....
11
A experiência mística
Se algo se pode dizer da mística, certamente passa pelo caminho da
38
experiência. Não se trata de uma teoria sobre o outro, nem muito menos de um
discurso construído e rigoroso sobre o outro. Tudo que possa haver de discurso e
teoria neste particular emerge e se faz inteligível a partir de uma experiência . 39 E esta
experiência é fundamentalmente experiência de relação. Neste sentido e somente à
luz deste fato primeiro é que se pode falar então de conhecer e conhecimento. 40 A
mística é, sim, um conhecimento, porém um conhecimento que advém da experiência e
onde a inteligência e o intelecto entram apenas no sentido de compreender não a
experiência abstratamente falando, mas o que sente o sujeito concreto que está no
centro do ato mesmo de experimentar.41 E este sentir é um sentir que implica em uma
alteridade e uma relação.
No evento místico, que se desenrola entre o ser humano e o ser
divino, está, portanto, não apenas o sujeito que conhece, ou seja, o eu, mas o outro,ou
seja, o tu ou ainda o ele ou ela. Portanto, aquele ou aquela que, por sua alteridade e
diferença, movem o eu em direção a uma jornada de conhecimento sem caminhos
previamente traçados e sem seguranças outras do que a aventura da descoberta
progressiva daquilo que algo ou alguém que não sou eu pode trazer. Esse ou essa que
não sou eu, também não é isso (algo coisificado ou reificado)42 e sim, alguém que a mim
se dirige, que me fala e a quem respondo. Um "outro"sujeito, cuja diferença a mim se
impõe como uma epifania43 , uma revelação.
No caso da mística, essa relacionalidade com a diferença do outro cobra
dimensões diferenciadas na medida em que coloca no processo e movimento da relação
um parceiro de dimensões absolutas, com o qual o ser humano não pode sequer cogitar
37
Estamos supondo aqui que quando falamos de experiência mística, nos referimos à autêntica experiência
de Deus, que consiste na experiência do Sentido Radical e não de um Sagrado difuso que possa gerar
ambiguidades ou rejeições parecidas com as que elencamos acima.
38
Cf. H. L. VAZ, A mística na tradição ocidental, in M.C.BINGEMER e R.S. BARTHOLO Jr, Mística e
política, SP, Loyola, 1992, pp........
39
Entendemos por experiência , e concretamente por experiência religiosa, aquilo que se percebe de modo
imediato e se vive antes de toda análise e de toda formulação conceitual. Trata-se da vivência concreta do
homem que se encontra, graças a uma força que não controla ou manipula, frente a um mistério ou um
poder misterioso. Cf. sobre isso Diccionario de las Religiones, Barcelona, Herder, 1987, verb. experiencia
cristiana e experiencia religiosa.V. tb. J. MOLTMANN,.The Trinity and the Kingdom of God, London,
SCM Press, 1981, pg 4, ; L BOFF (ORG) Experimentar Deus hoje, Petrópolis, Vozes, 1975,
especialmente o capítulo escrito pelo Pe. H.L. VAZ; J. A.ESTRADA, A experiência cristã de Deus,
Petrópolis, Vozes, 2001, M. GELABERT, Valoración cristiana de la experiência, Salamanca, Sígueme,
1990.
40
Cf. o sentido de conhecer bíblico, que é inseparável de amar. Cf.J.MOLTMANN, op. cit. pg 9
41
Cf. sobre isso o que diz Santo Tomás de Aquino:"Non intellectus intelligit sed homo per intellectum "
Ou seja, é o homem concreto na sua polivalência intencional que é o sujeito do ato de abrir-se ao seu
objeto, movimento que caracteriza a experiência. Abrindo-se, esse homem torna-se capaz de acolher o ser
na riqueza analógica de sua absoluta universalidade. Summa Theologiae 1a., q. 72 ad 1m, cit. por
H.L.VAZ, Mística e política. A experiência mística na tradição ocidental, in M.C.BINGEMER e
R.S.BARTHOLO (org.) Mística e Política, Col. Seminários Especiais Centro João XXIII, SP, Loyola,
1994, pg 10. Cf. tb. H.L.VAZ, Antropologia Filosófica II, Col. Filosofia, SP, Loyola,1992, pg 37, n. 8.
42
Cf. M. BUBER, Eu e Tu, SP, Moraes, 1977, 2a. ed., pp XLV- LI
43
Cf. E. LEVINAS e todo o seu discurso sobre a alteridade. V. notadamente a obra Autrement qu'être ou
au-delà de l'essence, Paris, Folio, 1996
12
em fazer número, manter relações simétricas ou relacionar-se em termos de necessidade,
senão apenas de desejo.44 Trata-se de um Outro cujo perfil misterioso desenha-se
sobretudo nas situações- limite da existência e transforma radicalmente a vida daquele ou
daquela que se vê implicado/a nesta experiência.45
Definida pela teologia clássica como "cognitio Dei experimentalis" ou por
tomistas do porte de J. MARITAIN como "experiência fruitiva do absoluto"46 a mística
hoje parece voltar ao proscênio portanto não apenas do debate teológico mas também e
igualmente do estudo das religiões comparadas. Estas duas áreas do pensar passam então
, mais do que discutir e comparar conceitos de uma e/ou outra tradição religiosa, a sentirse chamadas a desentranhar os tesouros da experiência mística que permanece no acervo
das diversas religiões , buscando aí os fios condutores comuns que permitirão que
aconteça o diálogo, a reciprocidade e o mútuo aprendizado.
O caminho da relação com o outro Transcendente e Divino é constitutivo mesmo
da experiência mística. E no caso da mística cristã, esse outro, essa alteridade, tem o
componente antropológico no centro de sua identidade, uma vez que o Deus
experimentado se fez carne e mostrou um rosto humano. Tudo que releva da experiência
mística, portanto, não pode desviar ou abstrair ou mesmo dis-trair daquilo que constitui a
humanidade do ser humano. É paradoxalmente na proximidade e na similitude mais
profunda com o humano que o Deus da revelação cristã vai mostrar sua diferença e sua
alteridade absolutamente transcendentes.47 A mística cristã nos tempos atuais, portanto,
como em outros tempos, está mais do que nunca desafiada , para re-descobrir seu lugar e
seus caminhos, a olhar para o humano como via necessária para o divino.
Em meio a este mundo secular e plural o cristão, - seja qual for seu estado de
vida - é chamado a viver o que se chama experiência de Deus, a descobrir o fato tão
grande e ao mesmo tempo tão simples de que Deus é um Deus que se revela e,mais do
que isso, que se deixa experimentar. E essa experiência não é unilateral (o ser humano
experimenta Deus) ,mas tem duas vertentes e duas vias (Deus mesmo se deixa
experimentar pelo ser humano que o busca e o experimenta) . Assim, ao mesmo tempo
em que propicia a que o ser humano sinta o gosto e o sabor de Sua vida divina, Deus
entra por dentro da realidade humana,mortal e contingente,na encarnação,vida,morte e
ressurreição de Jesus Cristo. Experimentando-a visceralmente,até o fim, "aprende" de sua
criatura o jeito de ,pelo amor, "kenoticamente" despojado, viver cada vez mais seu modo
próprio de existência que é o de ser o Deus Amor. A revelação de Deus em Jesus Cristo
é, pois, o fundamento teológico da relação do ser humano com o mundo, pois concede
dimensão crística a tudo que é criado e ressalta a dimensão cósmica da encarnação.40
A esta experiência de Deus, fruto do dom pleno e radical do mesmo Deus,
só pode suceder,por parte do cristão, a oblação total e radical da vida, único e mais
precioso bem, em culto espiritual agradável a Deus . À entrega divina total só pode
44
V. o que sobre isso digo em meu livro Alteridade e vulnerabilidade. Experiência de Deus e pluralismo
religioso no moderno em crise, Sp, Loyola, 1993 especialmente no capítulo IV: Experiência de Deus.
Possibilidade de um perfil?
45
Cf. H.L.VAZ, op. cit., pp 11-12
46
V. J. MARITAIN, L'expérience mystique naturelle et le vide, in Oeuvres (1912-1939), Éd. H. BARS,
Paris, Desclée, 1975, pp 1125-1158, cit. por H.L.VAZ, op. cit., pg 12, n. 4.
47
Cf. F.C.TEIXEIRA, op. Cit., pp 130-132. Cf. tb. M. HENRY, L´incarnation, Paris, DDB. 20001.
40
Ibid pg 39
13
corresponder uma resposta e uma entrega igualmente totais por parte do ser humano.
Quanto a esta exigência, não existe distinção de categorias,segmentos ou níveis de
pertença dentro do povo de Deus. Oferecer-se inteira e totalmente, "oferecer seu corpo
como hóstia viva ,santa , imaculada e agradável a Deus" (cf. Rom 12,1) é o culto
espiritual de todo e qualquer cristão, seja ele quem for e pertença ele a que estamento da
organização eclesial pertença.48
Há que ver, no entanto, como esse desejo e essa entrega feita de totalidade
se configurará na vida de cada um. Segundo o gênero de vida ou espaço onde está
situado, o cristão deverá viver a oblação de sua vida com ênfases,destaques e tendências
diferentes. No entanto, há alguns elementos comuns que estarão presentes sempre, desde
que a espiritualidade vivida seja aquela que se revela nas estruturas neo-testamentárias
como experiência de vida movida pelo Espírito, no seguimento do Filho, buscando e
praticando a vontade do Pai.
Uma experiência desarmada e dialogal
Após tudo que foi dito em termos da identidade da espiritualidade cristã, não
poderíamos terminar esta reflexão sem enfrentar o grande e novo desafio que interpela
esta espiritualidade no coração mesmo de sua identidade: a necessidade de, em um
mundo plural , multicultural e plurireligioso, estar muito atento a duas prioridades
fundamentais:
1.
A primeira seria resgatar e voltar àquilo que constitui a riqueza mais original
da identidade e tradição cristãs. Voltar a orientar o estilo de viver a vida no Espírito
enquanto Aliança com um Deus pessoal que se propõe como Amor e manda
imperativamente ser amado. Assumir as consequências dessa Aliança, que supõe um sair
de si, um êxodo de si mesmo em direção ao outro e que constitui, juntamente com o
Deus Criador e Libertador, o outro pólo da espiritualidade, da maneira de viver que
corretamente pode ser chamada “espiritualidade”. A transcendência de quem a
modernidade ensaiara o banimento foi resgatada pela pós-modernidade. Mas foi
resgatada com uma configuração diferente: sem absolutos, sem pessoalidade, sem
alteridade dialogal. A espiritualidade cristã é chamada, portanto, hoje, a fazer visível no
difuso mundo pós-moderno aquilo que é o centro de sua identidade: a fé na existência de
um Absoluto pessoal, que interpela e cuja palavra , convocadora e eficaz, configura toda
a existência. Um Absoluto que tem rosto e nome, que fala e se dá a conhecer, remetendo
no entanto, constantemente, ao outro humano , sobretudo ao mais pobre e carente , na
face de quem Ele pode ser encontrado em epifânica manifestação que faz apelo à
compaixão.
48
Há que ver, a esse respeito, a frase do célebre jesuíta brasileiro Pe. Leonel Franca SJ, cujo centenário ora
celebramos e que resume bem o que acabamos de dizer: "Com o absoluto não se regateia. Quem não deu
tudo ainda não deu nada.Todo sacrifício tem que ser holocausto." V. tb. o que sobre isso diz B. FORTE, op.
cit., pg 31 comentando LG 10.
14
É possível, portanto, afirmar que a espiritualidade cristã pode encontrar sua
origem e seu ambiente na interpelação feita pelo outro e pela com-paixão que ele origina.
Todo este movimento não é apenas ético, mas também místico, uma vez que na
Revelação bíblica e no Cristianismo, ambas as coisas não se dissociam.
Encontramos os fundamentos no próprio Deus que, na Revelação ao Povo de
Israel, se mostra como Palavra atuante e eficaz, que faz o que diz e faz fazer, que age
sobre o homem e a realidade, que "trabalha" incessantemente sobre a criação, com o
único intento de traze-la de volta a sua comunhão de amor; continuando com o Verbo
Encarnado, Jesus de Nazaré, que no Evangelho afirma: "Meu Pai trabalha sempre e eu
também trabalho" (Jo 5,17); o Deus da fé cristã é Alguém que não cessa de trabalhar e
agir. E sua práxis tem como destinatário o ser humano, o qual, por sua vez, recebe e
coopera ativamente com essa práxis divina que "acontece" no meio do mundo.
A vida espiritual é, portanto, um êxodo permanente: em direção à alteridade de
Deus que inspira e enche de gozo e enlevo ; mas também e não menos em direção à
alteridade do próximo, a quem se serve sempre mais, sob a inspiração desse mesmo
Deus. A experiência de Deus e o estilo de vida por ela gerado está longe, portanto, de
ser no Cristianismo um fruir impune das delícias e maravilhas da contemplação dos
mistérios eternos, mas é, antes de mais nada e ao cabo de tudo, envio ao mundo, e um
assumir da própria responsabilidade em relação àqueles e àquelas que, desde o seio da
realidade desfigurada e injusta, clamam por justiça e compaixão. Se a espiritualidade
encontra sua raiz no mistério, e se a experiência espiritual significa, em suma, experiência
de intimidade com o mistério, trata-se não apenas do mistério de alteridade que brilha
desde o fundo da realidade ao mesmo tempo que a transcende, mas também de um
mistério de responsabilidade no qual uns são responsáveis por outros, experimentam em
sua carne as conseqüências e o peso de um mal que não praticaram e são gratuitamente
feitos cooperadores da economia de uma redenção que não inventaram e à qual não
presidem.49
Se a espiritualidade é vida segundo o Espírito divino, para o cristianismo
certamente esse divino não se encontra "fora" das coisas deste mundo. Pelo contrário, é
mergulhando mais profundamente nas coisas, em todas as coisas, que a espiritualidade
cristã poderá viver plenamente o mistério de sermos desejados e criados, amados e
redimidos, vivificados e movidos por um Deus que ao mesmo tempo que é Absoluto e
nos ultrapassa infinitamente se faz presente e próximo no seio da própria realidade.
2. Por outro lado, a espiritualidade cristã hoje deve estar disponível para o diálogo
com outras tradições religiosas, com espírito desarmado e aberto. O pluralismo no qual
estamos mergulhados no mundo de hoje nos ensina que para viver plenamente segundo o
Espírito de Deus, é preciso voltar-se atenta e respeitosamente às maravilhas que Ele
realiza no outro, mesmo aquele ou aquela pertencente a outra tradição religiosa. A escuta
do outro tornou-se um imperativo inarredável para se poder viver a própria identidade. .
Há muitas coisas nas outras religiões que nos parecem difíceis de aceitar. Difíceis
inclusive de entender. Mas poderíamos pelo menos dispormo-nos a escutar. A escuta é
em si mesma e ao mesmo tempo uma exigência de Deus ao seu povo ("Escuta, Israel!"),
sendo portanto, algo constitutivo da experiência judaico-cristã da fé e da vida no Espírito.
49
Neste sentido, o dogma da “comunhão dos santos” é extremamente inspirador.
15
A escuta implica igualmente - como já implicou para o povo de Deus - uma
disciplina dura, a qual evitamos simplesmente mudando de opinião, fechando nossos
saturados ouvidos ou compartilhando pontos de vista. O fato é que distanciar-se da
própria religião e da maneira pela qual a vivemos é uma disciplina e mesmo uma ascese.
O próprio processo de faze-lo é relativamente atrofiado em espiritualidades do ocidente mais ativas e de corte mais racionalista - e mais adiantado nas religiões orientais, que
nunca deixaram de valorizar o silêncio, a meditação e a concentração pessoal. Escutando
a experiência espiritual do outro , escutando sobretudo o outro que fala de sua
experiência espiritual, pode-se aprender não apenas sobre como ele ou ela entendem a
realidade, mas como ele ou ela nos entendem em nossa maneira de entender a realidade.
Por isso, dialogar com a espiritualidade do outro requer a mesma disciplina e o
mesmo rigor que foram necessários para podermos chegar a viver a nossa. Não se trata de
trocar idéias.
Nem tampouco de dialogar como um tema estando no comando do
mesmo. Trata-se, porém, de entrar em uma conversação que vem se desenrolando
durante muito tempo, vários séculos e milênios. O desejo de contribuir a qualquer preço
com algo original deve ser posto de lado, tomando-se consciência de que o mais
importante é realmente dialogar, ouvindo tanto quanto falando.
A transformação, portanto, que o diálogo inter-religioso requer é uma
transformação da forma de ver o outro e sua prática espiritual. Uma tentativa honesta e
séria de sair da ignorância sobre sua alteridade e sua identidade. Em outras palavras, a
salvação que pode advir a mim a partir da experiência espiritual do outro é uma
transformação de perspectiva, não um exercício do "self" sedento de novidades. 50
Nesse sentido, a vivência da espiritualidade cristã em tempos de pós-modernidade
implica um desarmamento e uma disposição ao diálogo com o diferente. Dialogar não
para vencer, mas para olhar, ver, escutar. E aprender. Aprender inclusive sobre a própria
espiritualidade a partir da espiritualidade dos outros.
Aquele que vive habitado e movido pelo Espírito Santo ao seguimento de Jesus
Cristo fazendo a vontade do Pai é chamado hoje a aceitar o pluralismo de perspectivas e
nomes , qualquer que ele seja e onde quer que pulse o coração da vida , anunciando estar
ali acontecendo uma experiência de salvação. Assim fazendo, poderá tomar consciência
de que mesmo os que vivem a sua própria espiritualidade estão constantemente expostos
a outras experiências espirituais e que , portanto, impõe-se para os cristãos estar abertos e
levar em conta essa maneira plural de ser, de crer e de viver. Isso significará muitas
vezes“sair “da própria tradição sem renegá-la. Poderá implicar ser inspirado por outros
textos sagrados sem deixar de proclamar que a Bíblia é a única “norma non
normata”onde fala o nosso Deus. Implicará talvez saber olhar a espiritualidade cristã
também com os olhos dos outros, e não apenas impo-la violentamente e sem reflexão.
Isso tudo, por outro lado, só poderá enriquecer a espiritualidade cristã, onde quer que ela
seja vivida, que será onde quer que o único Deus se deixe experimentar.
Conclusão: viver e pensar coisas antigas de um jeito novo
50
Neste ponto, podemos aproveitar a sabedoria dos mestres ocidentais. Por exemplo, Santo Inácio de
Loyola, que escreve no proemio do livro de seus Exercícios Espirituais que "é sempre melhor estar disposto
a salvar a proposição do outro que a condená-la" (EE.EE. 21-22)
16
A partir de tudo que vimos anteriormente, parece-nos que a espiritualidade cristã
hoje se vê a braços com a questão por sua identidade, às vezes perdida e fragmentada no
meio de um mar de experiências que se pretendem religiosas ou espirituais , mas que não
necessariamente passam pela Alteridade a qual, em sua absoluta liberdade, revela-se
como Santidade, ou seja, Alteridade absolutamente outra. Se muito facilmente chamamos
de experiência espiritual ou experiência de Deus a toda e qualquer busca de sensação
"espiritual" conseguida às vezes com recursos artificiais, outros que não a relação que se
instaura e se aprofunda unicamente na gratuidade, na escuta e no desejo, estaremos
traindo a concepção mesma de espiritualidade que até hoje tem marcado toda a tradição
ocidental e que está no coração da identidade daquilo que por isto se tem entendido e se
entende. Se muito facilmente legitimamos qualquer experiência de “sedução do Sagrado”
corremos o risco de estar batizando com este nome muitas divindades e talvez não a
Verdadeira, que não “entrega seu Santo nome em vão”.
A ascensão da sacralidade plurireligiosa não necessariamente implica num
crepúsculo da adesão a uma religião tradicional com sua correspondente espiritualidade, e
com todas as conseqüências daí advindas. Mas implica, sim, num constante e agudo
discernimento que fará com que a vivência da própria fé e a reflexão sobre ela devam ser
, mais do que nunca, submetidas a um discernimento e uma reflexão sobre o coração
mesmo de sua identidade. A fecundidade atingida com o movimento de vivência da
espiritualidade cristã em meio a uma enorme pluralidade de outras espiritualidades ou
propostas religiosas
corre o risco de diluir-se enquanto a face da sacralidade
permanecer difusa e sem nenhum contorno, falhando no sonho e na tentativa efetiva de
criar uma síntese robusta e consistente. Para isso, parece-nos que a teologia pode prestar
inestimável serviço à espiritualidade cristã e vice-versa.
Até recentemente, a teologia acadêmica não se via devedora nem tampouco
vinculada à experiência cristã de Deus como critério, ou como ponto de partida para a
elaboração do seu pensar e seu discurso. Assim fazendo, aventurou-se por aquilo que o
Pe. Henrique de Lima Vaz chamou de “linguagens de empréstimo”, correndo o risco de
realizar aventuras outras que não a aventura primordial de dar razão da fé através e a
partir da experiência desta mesma fé.51
A discriminação entre teologia e espiritualidade tem sua origem no
divórcio ocorrido a partir do século XVI, de conseqüências nefastas, tanto para a
espiritualidade, a qual se viu reduzida em consistência e vigor, como para a teologia, que
perdeu em movimento, beleza e flexibilidade, tornando-se uma teologia doutrinal
puramente explicativa e dedutiva.52 Uma teologia, enfim, que poderia pensar e falar
sistematicamente sobre Deus, mas que talvez, pelo menos em muitos casos, não deixava
que Deus mesmo falasse.
O momento atual re-descobre para dentro da reflexão teológica o direito de
cidadania da espiritualidade cristã, que não é simplesmente vulgarização teológica, mas
fonte rica e consistente de ensinamento novo e irrepetível, sopro do Espírito na história,
que permite à teologia de hoje dizer novas palavras em criativa fidelidade às fontes de
51
Cf os dois textos do Pe. Vaz nos livros: M.C.BINGEMER (org) O impacto da modernidade sobre a
religião , SP, Loyola, 1992, e M>C>BINGEMER e R>dos SANTOS BARTHOLO (org) Mística e
política, SP, Loyola, 1994
52
Cf. J. SOBRINHO, Espiritualidade e Teologia, In Liberación con Espíritu, Santander, Sal Terrae, 1985,
pg 60 (trad. port., Vozes, 1987)
17
seu nascedouro, tão antigas quanto as experiências que as originaram .53 E ao mesmo
tempo , trazendo de volta o vigor e a consistência da teologia para dentro da vivência da
espiritualidade, ajudará a esta a não se diluir e perder na tentativa de viver uma
transcendência sem absolutos e vazia de referências, mas sim aprender a conjugar espírito
e carne, barro e sopro, história e transcendência, Deus e o ser humano, em amorosa e
inseparável síntese, renovando a face da terra e prometendo tempos melhores às gerações
contemporâneas , sedentas de transcendência e de gratuidade.
.
53
Cf. H.U.VON BALTHASAR, Teologia y Espiritualidad, In Selecciones de Teologia 13 (1974) pg 142
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O HOJE DA EXPERIÊNCIA DE DEUS Maria Clara Lucchetti