24 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008 É a saúde, estúpido! Boaventura de Sousa Santos F icou famosa a frase “Is the economy, stupid”, pronunciada em 1992 por Bill Clinton para explicar aos republicanos as razões da sua vitória eleitoral. Com ela queria dizer que as preocupações principais dos norte-americanos tinham a ver com o estado da economia e com o modo como este se traduzia no seu bem-estar. E por isso uma das suas promessas eleitorais prioritárias era a criação de um sistema de saúde universal, que se aproximasse dos sistemas de saúde da Europa e do Canadá e que acabasse com o escândalo de no país mais rico do mundo cerca de 30 milhões de cidadãos não terem qualquer protecção na saúde. Como é sabido, as grandes empresas da indústria da saúde (das empresas hospitalares, às seguradoras, à indústria farmacêutica e de meios de diagnóstico) moveram uma das guerras mediáticas mais agressivas de que há memória contra a “medicina socialista” de Clinton e a proposta caiu. Hoje são 49 milhões os norte-americanos sem qualquer protecção. Não havendo sistema público senão para os idosos, os trabalhadores dependem da disponibilidade dos patrões para agregarem o seguro ao contrato de trabalho e tal disponibilidade é cada vez mais escassa. Não é, pois, por acaso, que os candidatos do partido democrático, Barak Obama e Hilary Clinton, voltem a pôr no centro dos seus programas eleitorais o financiamento público da cobertura universal dos meios de saúde. Mais do que irónico é trágico que em Portugal se esteja a tentar destruir aquilo que o povo norteamericano tanto aspira. Mais trágico ainda é que, neste domínio, haja desde 2002, com o governo de Durão Barroso, uma continuidade mal disfarçada entre as políticas do PSD e do PS. Descartada a retórica, os objectivos do ministro da saúde de Durão Barroso, Luís Filipe Pereira, e do ex-ministro Correia de Campos são os mesmos: privatizar o bem público da saúde, transformando-o num lucrativo sector de investimentos de capital (como dizia recentemente, um quadro de uma grande empresa de saúde: “mais lucrativo que o negócio da saúde, só o negócio das armas”); transformar o Serviço Nacional de Saúde num sistema residual, tecnológica e humanamente descapitalizado, proporcionando serviços de baixa qualidade às populações pobres da sociedade; definir a eficiência em termos de custos e não em termos de resultados clínicos (levado ao paroxismo pela decisão do ex-ministro socialista de limitar o aumento da produção cirúrgica nos hospitais para não aumentar a despesa); eliminar qualquer participação dos cidadãos na formulação das políticas de saúde para poder impor rápida e drasticamente três palavras de ordem: privatizar, fechar, concentrar; promover parcerias público/privado em que todos os riscos são assumidos pelo Estado e as derrapagens financeiras não contam como desperdício ou ineficiência (já que uma e outra são um exclusivo do sector público). A Correia de Campos, apenas devemos reconhecer a coerência. Desde que passou pelo Banco Mundial assumiu-se como coveiro do Estado Social, seja na saúde ou na segurança social. Na Comissão do Livro Branco da Reforma da Segurança Social, a que pertenci, verifiquei com espanto que os seus aliados na comissão não eram os socialistas, eram precisamente Luís Filipe Pereira (que pouco depois quis privatizar a saúde) e Bagão Félix (que, desde sempre quis privatizar a segurança social). Alguém se recorda que a criação do SNS em 1979 esteve na origem do abandono por parte do CDS da coligação que sustentava o governo do partido socialista? Portanto, de duas uma, ou o PS abandonou os seus princípios ou Correia de Campos está no partido errado? A sua recente demissão parece apontar para a segunda opção mas só a política concreta da nova ministra confirmará ou não se afinal não estamos perante a primeira opção. Para que esta primeira opção não se confirme é necessário que a actuação do governo se paute, por obras e não por palavras, pelos seguintes princípios. O SNS é um dos principais pilares da democracia portuguesa, e a ela se devem os enormes ganhos de desenvolvimento humano nos últimos trinta anos; qualquer retrocesso neste domínio é um ataque à democracia. O SNS é um factor decisivo da gestão territorial do país (o país não termina a 50 km da costa). O SNS é um serviço financiado por todos, ao serviço e gerido em função dos ganhos de saúde e de modo a eliminar desperdícios. Nos critérios de eficiência, incluise a eficiência na vida dos doentes cujo atendimento pontual é fundamental para que não se perca uma manhã num acto médico que dura 20 minutos. É urgente modernizar o SNS no sentido de o aproximar dos cidadãos tanto na prestação dos cuidados como na gestão dos serviços (participação dos cidadãos e das associações de doentes na concretização do direito à saúde deve ser incentivada). Promover a todo o custo o regime de exclusividade e terminar com a escandalosa promiscuidade entre a medicina pública e privada para que, por exemplo, não se continuem a acumular fortunas fabulosas com base nas listas de espera ou na falta de equipamentos. Promover a estabilidade e as carreiras, apostar na inovação técnica e científica e democratizar o acesso às faculdades de Medicina. E sobretudo tornar claro o carácter complementar do sector privado antes que os grupos económicos da saúde (Grupo Mello, BES, BPN/GPS, CGD/HPP, etc.) tenham suficiente poder para serem eles próprios a definir as políticas públicas de saúde e, portanto, para bloquear quaisquer medidas que afectem as suas taxas de juro. Quando tal acontecer serão eles a dizer: “É a saúde, estúpido!”, a saúde dos seus negócios, não a dos cidadãos estúpidos. Nº 20 Março de 2008 R$ 2,00 C&D Constituição & Democracia Argumentação jurídica em Grande Sertão:Veredas Os presos no Brasil: quem paga o pato? Direito na América Latina: entrevista com Carlos Cárcova A experiência constituinte de 1988 02 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008 EDITORIAL Observatório da Constituição e da Democracia E sta é uma edição especial para o C&D. Para além da coincidência numérica com o 20º aniversário da Constituição da República de 1988, chegamos ao nosso 3º ano de publicação com maturidade suficiente para evitar um deslumbramento vazio com a data comemorativa e direcionar nosso olhar para os aspectos que merecem ser celebrados ou criticados. Aproveitamos o momento para delinear uma memória que valorize o teor democrático daquele momento histórico, sem esquecer que o real alcance das conquistas depende de sua lembrança contínua e permanente. O exercício do poder constituinte, o percurso da Assembléia Nacional Constituinte, as questões indígena, infantil e comunicativa e o controle de constitucionalidade compõem o núcleo temático, que, como de praxe, vem enriquecido por artigos livres que ampliam o nosso espectro de observação. Além da experiência constituinte, são abordados problemas sobre a concorrência, o “preço” dos presidiários, a alimentação e o poder do polícia. E com os pés no constitucionalismo, mas com a cabeça na literatura nacional, extrai-se uma lição jurídica a partir da genial história de um jagunço filósofo. Razões para comemorarmos os 20 anos da Constituição Alexandre Bernardino Costa - Professor da Faculdade de Direito da UnB; coordenador de Extensão FD/UnB; integrante do grupo “Sociedade, Tempo e Direito”. Menelick de Carvalho Netto - Doutor em Direito Constitucional pela UFMG; professor de Filosofia do Direito e Teoria da Constituição dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UnB; e integrante do grupo “Sociedade, Tempo e Direito”. 03 Descentralização da defesa da concorrência no Brasil como mecanismo de ampliação da participação social Mauro César Santiago Chaves - Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília. 04 O julgamento de Zé Bebelo em Grande Sertão: Veredas Damião Azevedo - Mestre em Direito pela UnB, advogado e professor universitário. 06 OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO Constituinte: conciliação ou ruptura? Leonardo Augusto de Andrade Barbosa - Mestre e doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Pesquisador do grupo Sociedade, Tempo e Direito (UnB). Analista legislativo da Câmara dos Deputados. 08 Criança e Constituinte: um desafio Fabiana Gorenstein - Mestranda em Direito na Universidade de Brasília, membro do grupo de pesquisa Direito Achado na Rua. 10 O recado das prévias Fabio Costa Morais de Sá e Silva - Bacharel (USP) e Mestre (UnB) em Direito. Doutorando em Direito, 11 Política e Sociedade (Northeastern University, Boston). Como novidade, esta edição inaugura a “Nota de Correspondente”, um novo espaço fixo para as observações enviadas por membros do grupo que realizam suas pesquisas no exterior. Aprofundando nossa experiencia internacional, a entrevista desse mês vem no idioma original de nosso entrevistado argentino, até como forma de efetivamente dialogar com nossos parceiros do Mercosul. Por fim, nosso colaborador português ratifica a importância de manter um sistema público de saúde, protegido da retórica economicista. ENTREVISTA COM CARLOS MARIA CÁRCOVA, Diretor do Instituto de Investigaciones Jurídicas y Sociales Ambrosio L. Gioja, da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires. Crise de Representação e Constitucionalismo na América Latina José Geraldo de Sousa Júnior - Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dos grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e da Comissão de Defesa da 12 República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB. Assim damos continuidade ao nosso trabalho, compromissados com a significação do Direito a partir da experiência democrática da Constituição, que não se limita ao ocorrido há vinte anos e, para ser concreta, deve ser socialmente problematizada e reconstruída. OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO Células-tronco e a lei que vivifica Silvia Regina Pontes Lopes - Procuradora Federal, mestra em Direito pela Universidade de Brasília, membro 14 do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito, professora de Direito Público - CEAD/UnB OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS A participação indígena no processo Constituinte Rosane Lacerda - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, assessora jurídica do Instituto Migrações e Direitos Humanos, membro dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Sociedade, Tempo e Direito (UnB). Professora universitária e assessora jurídica do Conselho Indigenista 16 Missionário (Cimi) à época da Constituinte 87/88. Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Faculdade de Direito – Universidade de Brasília EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Comissão executiva Janaina Lima Penalva da Silva Paulo Rená da Silva Santarém Ricardo Machado Lourenço Filho Silvia Regina Pontes Lopes Sven Peterke Integrantes do Observatório Adriana Andrade Miranda Aline Lisboa Naves Guimarães Beatriz Cruz da Silva Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniel Barcelos Vargas Daniela Diniz Douglas Antônio Rocha Pinheiro Eduardo Rocha Fabiana Gorenstein Fabio Costa Sá e Silva Fernanda-Cristinne Rocha de Paula Giovanna Maria Frisso Guilherme Cintra Guimarães Guilherme Scotti Gustavo Rabay Guerra Henrique Smidt Simon Jan Yuri Amorim Jean Keiji Uema Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliano Zaiden Benvindo Leonardo Augusto Andrade Barbosa Lúcia Maria Brito de Oliveira Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marthius Sávio Cavalcante Lobato Maurício Azevedo Araújo Paulo Henrique Blair de Oliveira Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´Ana Renato Bigliazzi Rosane Lacerda Vanessa Dorneles Schinke Vitor Pinto Chaves Contato [email protected] www.fd.unb.br Direito Humano à Alimentação Adequada: direito de todos os povos Valéria Torres Amaral Burity - Aluna ouvinte da disciplina o Direito Achado na Rua. Meste em Ciências Jurídicas pela UFPB. Consultora em Direitos Humano para a Ação Brasileira pela Nutrição e 20 Direitos Humanos (ABRANDH). OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO Criminidade do poder, polícia e impunidade Paulo Queiroz - Professor (UniCEUB) e Procurador Regional da República. Sindicato dos Bancários de Brasília Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes SindPD-DF 22 O coronelismo eletrônico e a democratização da comunicação Soraia da Rosa Mendes - Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, Pós Graduada em Direitos Humanos pelo CESUSC - Santa Catarina, Professora da Faculdade de Direito do Centro Universitário do Distrito Federal - UniDF e da Faculdade de 23 Direito da Universidade de Brasília - UnB. É a saúde, estúpido Boaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS) O futuro dos presos no Brasil: quem paga o pato? Sven Peterke - Professor visitante da Faculdade de Direito, doutor em Direito e mestre em Humanitarian Assistance pela Ruhr-Universidade, de Bochum (RFA), mestre em Direito pela Christian-Albrechts18 Universidade, de Kiel (RFA). Assine C&D [email protected] 24 UnB – SindjusDF | 23 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008 O coronelismo eletrônico e a democratização da comunicação Soraia da Rosa Mendes M esmo nestes tempos de televisão digital, o rádio continua a ser um instrumento de baixo custo que desempenha um importantíssimo papel na vida social, cultural e política brasileira. Em especial, para atender a interesses de grupos ou de poderes governantes. Até metade da década de 40, o sistema de radiodifusão brasileiro esteve legalmente submetido à intervenção estatal. Mas, embora a partir de 1942 inaugure-se um novo momento do rádio brasileiro, com o chamado “pan-americanismo”, o rádio brasileiro permaneceu como um veículo intimamente atrelado aos interesses políticos dos detentores do poder. Tanto pelo processo de controle vertical promovido pósgolpe de 64, quanto pelo sistema de outorgas constitucionalmente assegurado em 1988. A partir de 1964, juntamente com os demais veículos de comunicação existentes, o rádio tornou-se também uma arma em prol do regime autoritário. A ditadura estimulou a verticalização dos meios de comunicação com a finalidade de entrar em todos os lares brasileiros com uma matriz de informação que não deixasse espaço para questionamentos. E esse processo, que privilegiava a formação de redes regionais e nacionais, aliado à depauperação do sistema estatal, sufocou completamente os meios de comunicação locais, mesmo os comerciais. E, com isso, as manifestações culturais, as informações comunitárias e a inserção das comunidades foram banidas dos meios. Os anos 80 representaram, de um lado, a etapa de sedimentação do modelo americano para o rádio brasileiro - um modelo de músicas e de promoções para os ouvintes assumido pela esmagadora maioria das FMs nacionais, e que se perpetua até os dias de hoje. Mas, por outro lado, também foram marcados por movimentos de desobediência civil que incluíam o uso do espectro eletromagnético sem permissão oficial. Eram as rádios populares, livres e piratas. As rádios populares constituíam um sistema de estúdios montados em praças e feiras. As rádios livres eram montadas por indivíduos ou grupos de indivíduos para veicular programação de gosto particular. As rádios piratas eram as que invadiam o dial para a divulgação de ações políticas junto às comunidades previamente escolhidas. Com a abertura política, as rádios livres e piratas tiveram participação decisiva no movimento pré-constituinte ao empunharem como uma de suas principais bandeiras a garantia regionalização da produção jornalística, artística e cultural. E é da efervecente discussão durante a constituinte que se inicia a maturação do conceito de radiodifusão pública, sem fins lucrativos, pluralista e de gestão pública, pensado a partir das experiências alternativas que existiam nestas mesmas rádios. A reivindicação em prol da regionalização foi incorporada à Carta de 88 em seu artigo 221, inciso III. Entretanto, em seu texto, a Carta também consagrou um procedimento de outorga que, sem um efetivo controle público, possibilita a continuidade de uma política antiga de coronéis, agora conhecida como coronelismo eletrônico. A nova roupagem do coronelismo é um fenômeno do Brasil urbano da segunda metade do século 20, que nasce com ninguém menos que Antônio Carlos Magalhães. Na gestão carlista como ministro das Comunicações do governo José Sarney, ACM distribuiu canais de rádio e televisão a todos os grupos políticos regionais dominantes, especialmente no norte e nordeste do país. Estima-se que 60, de um total de 250 das emissoras comerciais de televisão do Brasil, foram distribuídas a políticos. O coronelismo eletrônico, entre- tanto, reinventa-se pós-88 mediante o sistema de concessões e renovação do serviço de radiodifusão que permite barganhar a influência política que representa possuir uma rádio (até mesmo comunitária), e compromissos nem sempre republicanos. O fruto desta “verdadeira política de radiodifusão” é a concentração dos meios de comunicações em mãos de poucos coronéis. Ignorando os princípios da própria Constituição, tal como a proibição de formação de monopólios e oligopólios, o Estado pratica uma estratégia política dual. Ao mesmo tempo emperra o processo de autorização das rádios comunitárias, com um emaranhado burocrático em processos que se arrastam por anos, e beneficia aliados com concessões, na maioria, retransmissoras dos grandes grupos de comunicação de propriedade de uma meia dúzia de famílias. Felizmente, a sociedade civil não tem sido um espectador passivo deste espetáculo. Da experiência de organização ocorrida durante a constituinte, a partir da década de 90 fo- ram promovidos inúmeros eventos e debates sobre a democratização da comunicação e, especialmente, sobre a radiodifusão comunitária como um instrumento público de comunicação. Em 1991, é criado o Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação (FNDC), que articulando mais de 80 entidades nacionais e regionais da sociedade civil, tem como objetivo constituir políticas públicas e ações práticas para a área das comunicações, bem como reconstituir nacionalmente uma cultura brasileira alicerçada na diversidade de identidades e produções regionais. E, em 1996, é criada a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária - ABRAÇO. Inegavelmente são muitas as dificuldades para a superação da chaga que a concentração dos meios de comunicação representa à democracia brasileira. Contudo, a luta pela democratização das comunicações em nosso país, protagonizada pelas organizações e movimentos sociais, representa, sempre, a possibilidade de efetivação dos direitos conquistados em 1988. 14 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008 OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO Células-tronco e a lei que vivifica Silvia Regina Pontes Lopes O recado das prévias Fabio Costa Morais de Sá e Silva H O início do julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510-0/DF colocou em pauta, no último dia 06, a discussão sobre a licitude de pesquisa científica com células-tronco embrionárias no Brasil. A ação discute a constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, que permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias produzidas a partir de fertilização “in vitro”, desde que provenientes de embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos. A polêmica relação entre direito e vida é retomada. Na arena jurídica, digladiam-se, em torno do sentido da vida, concepções científicas, religiosas, morais e éticas as mais diversas. Segundo a ciência, as célulastronco embrionárias são formadas desde a fecundação do óvulo pelo espermatozóide até o período em que o ovo cessa de desenvolver-se por ausência de meio propício (útero). Apesar da rigidez conceitual, nem mesmo a ciência é unânime na compreensão das célulastronco embrionárias, registrandose duas correntes científicas. A que atribui ao embrião o papel de figura central no processo de “hominização”, e ao útero, função coadjuvante, considerando a extração de células-tronco destruição de uma “unidade humana” existente desde a fecundação. Outra que ressalta a importância crucial do útero e do tempo para a atribuição ao embrião de incipientes características físicas e neurais de um ser humano. A primeira corrente revela que premissas transcendentais, baseadas em um conceito ontológico de homem, são também levantadas pela ciência. Importa, na ação em questão, averiguar o sentido de vida juridicamente tutelável. Aqui, argumentos utilitaristas dialogam com concepções científicas e crenças pessoais. Ao sacrifício de um por todos, subjacente ao lema de que os UnB – SindjusDF | 11 CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008 fins justificariam os meios, é oposta uma irreflexiva sacralidade da vida humana incondicionalmente gerada a partir da fecundação do óvulo. Não é de se estranhar a pluralidade dos discursos empreendidos na audiência pública de 20 de abril de 2007, que contou com a participação de diversos seguimentos sociais, notadamente o científico, em torno da discussão acerca do início da vida humana. As infindáveis divergências confirmam aquela improbabilidade, já denunciada, em 1958, por Hannah Arendt, de que o homem possa por si só descobrir sua essência: seria como pular sobre sua própria sombra, driblando a condição prévia, só alcançável por olhos divinos, de poder falar de “quem somos” como se fosse um “quê somos”. Ao lidar com a pluralidade de acepções de vida humana, o direito afirma seu papel de reduzir, sem eliminar, a complexidade social. A indagação de “quando surge a vida humana?” transforma-se em “o que é vida humana juridicamente tutelável?”. Os desafios daí decorrentes são imensos. Ao instituir a inviolabilidade do direito à vida, o Constituinte de 88 silenciou sobre o início da vida, preservando a fluidez do conceito. Possibilitou, assim, a formulação democrática dessa concepção por uma comunidade de princípios. No Brasil, a idéia de vida juridicamente tutelável tem como referencial maior a compreensão jurídica de morte. Para o direito, Ao instituir a inviolabilidade do dir eito à vida, o Constituinte de 88 silenciou sobr e o início da vida, pr eser vando a fluidez do conceito. á várias razões pelas quais as eleições nos Estados Unidos chamam a atenção de um estrangeiro, quanto mais um estrangeiro que se interessa por política como eu. Dentre todas elas, aqui destaco uma que parece até simples demais pra fazer sentido: a exclusividade do posto. Raramente paramos pra pensar, mas o fato é que apenas uma entre milhões de pessoas chega à posição de presidente dos EUA a cada 4 ou 8 anos, dependendo da paciência do eleitor com relação a quem já está na Casa Branca. Talvez por isso as prévias são tão importantes. No Brasil, apenas o PT usa prévias - e elas só tendem a assumir um grande significado político a partir de 2010, quando estará em causa a construção de uma outra candidatura que não a de Lula. Nos Estados Unidos, esteja ou não correta a minha “tese” sobre o porquê, elas representam um momento no qual se define quem vai disputar essa vaga e quem já preliminarmente está descartado, e só vai ser referido a partir de então como aquilo que poderia ter sido e não foi, pra usar uma expressão do Manuel Bandeira. O caso de Al Gore rende um bom exemplo. Não bastou que ele fosse o vencedor moral das penúltimas eleições - em que a contagem de votos da Flórida foi interrompida por uma Suprema Corte de maioria republicana -, ou o vencedor de um Oscar por sua “Verdade Inconveniente” -, um filme no qual ele propõe um outro rumo para a economia e a política ambiental nos EUA. Porque já tivera uma chance e porque fortuitamente a perdera, seu nome foi de pronto repelido no circuito democrata e suas eventuais aspirações a uma nova candidatura tiveram de ser rapidamente recolhidas para o seu próprio intimo. Isso sem falar em Howard Dean, que é hoje o maior estrategista do partido democrata, mas que por um grito de “uhu!” num comício com infelizes três ou quatro segundos (há vários vídeos disponíveis em www.youtube.com) jamais terá de novo o seu nome cogitado para a grande disputa eleitoral. Tive esse insight ao assistir dias atrás ao primeiro episódio da nova temporada de Real Time, um talk show apresentado por Bill Maher (pronuncia-se “mar”). Bill é um desses sujeitos que já se destaca por combinar inteligência com bom humor, mas que além disso tem a virtude de ser extremamente crítico. Antes do 11/09, seu programa era apresentado na ABC, um grande canal de televisão. Depois vieram as guerras do Afeganistão e do Iraque e, em função das polêmicas que ele provocou no ar, foi gentilmente convidado a se retirar da emissora. Aos leitores ou leitoras interessados em conhecer um pouco mais sobre o trabalho de Bill, vale conferir os scripts do show no site www.billmaher.com. Quem está ficando pra trás Naquele episódio, Bill comentava as prévias após a “Super Terça”. O programa começou com um debate sobre desistência de Mitt Romney, o ex-governador de Massachusetts com pinta de empresário bem sucedido, que vinha investindo rios de dinheiro na própria campanha e prometia uma boa administração para a América. “Quer dizer que Romney finalmente resolveu tirar o seu traseiro mórmon da corrida?”, questionou um Bill cansado de ver a religião se combinando perversamente com a política em seu país. A certa altura do debate, um de seus convidados respondeu: “Mas ele realmente achava que a pose de executivo ia colar nessas eleições? Depois da dupla BushChenney, dos escândalos da Halliburton e da Enron, ele acreditava mesmo que os americanos estão à procura de um CEO?”. Assisti a não mais que dois pronunciamentos de Romney, cada um deles com cerca de 10 minutos. No último, suas intenções ficaram bem claras: “Será com conservadorismo econômico (corte radical de impostos para manter o dinheiro nas mãos do setor privado) e conservadorismo social (redução drástica nos programas sociais) que ganharemos as eleições e governaremos o país”, disse ele. Ou seja: o ve- lho ideário de que se cada indivíduo buscar o seu próprio bem-estar, o resultado final é o bem-estar coletivo. Seguiu-se daí a minha segunda intuição. O convidado de Bill estava correto, mas apenas parcialmente. O eleitorado americano, mesmo no campo republicano, não rejeitou apenas a embalagem, rejeitou também o conteúdo. A tensão que hoje alimenta as eleições do centro da hegemonia mundial é, de alguma maneira, a tensão da democracia contra o capitalismo. Os americanos não querem mais ficar a mercê das companhias de seguro para conseguir atendimento médico, querem um sistema público que assegure cobertura. Não querem mais continuar vítimas de um sistema financeiro predatório que deixou a metade do país devedora de valores absurdos em hipotecas imobiliárias. Não querem mais ver seus filhos e amigos morrendo numa guerra que não trouxe mais paz ao mundo e ao Oriente Médio, embora tenha trazido lucros formidáveis a companhias como a Halliburton. Não querem mais ficar encurralados por um sistema eleitoral que se reproduz com base no poder dos lobbies (colocar em itálico) e das contribuições milionárias, tanto assim que um dos líderes da disputa democrata tem nas doações individuais a parte mais importante de seu orçamento. Barack Obama pode não ser a solução para todos esses dilemas, como há pouco escreveu na Folha de São Paulo o sociólogo Chico de Oliveira. Mas há hoje em boa parte do povo americano uma forte aspiração igualitária, que se reflete na busca por uma candidatura alternativa. E, nos Estados Unidos, como em qualquer outro lugar, a política felizmente não é patrimônio dos políticos. Bar ac k Obama pode não ser a solução . Mas há hoje em boa parte do po vo americano uma forte aspir ação igualitária, que se r eflete na busca por uma candidatur a alter nativ a.