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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008
É a saúde, estúpido!
Boaventura de Sousa Santos
F
icou famosa a frase “Is the
economy, stupid”, pronunciada em 1992 por Bill Clinton
para explicar aos republicanos as
razões da sua vitória eleitoral. Com
ela queria dizer que as preocupações principais dos norte-americanos tinham a ver com o estado da
economia e com o modo como este
se traduzia no seu bem-estar. E por
isso uma das suas promessas eleitorais prioritárias era a criação de
um sistema de saúde universal, que
se aproximasse dos sistemas de saúde da Europa e do Canadá e que
acabasse com o escândalo de no
país mais rico do mundo cerca de
30 milhões de cidadãos não terem
qualquer protecção na saúde. Como é sabido, as grandes empresas
da indústria da saúde (das empresas hospitalares, às seguradoras, à
indústria farmacêutica e de meios
de diagnóstico) moveram uma das
guerras mediáticas mais agressivas
de que há memória contra a “medicina socialista” de Clinton e a proposta caiu. Hoje são 49 milhões os
norte-americanos sem qualquer
protecção. Não havendo sistema
público senão para os idosos, os
trabalhadores dependem da disponibilidade dos patrões para agregarem o seguro ao contrato de trabalho e tal disponibilidade é cada vez
mais escassa. Não é, pois, por acaso, que os candidatos do partido
democrático, Barak Obama e Hilary
Clinton, voltem a pôr no centro dos
seus programas eleitorais o financiamento público da cobertura universal dos meios de saúde.
Mais do que irónico é trágico
que em Portugal se esteja a tentar
destruir aquilo que o povo norteamericano tanto aspira. Mais trágico ainda é que, neste domínio, haja
desde 2002, com o governo de Durão Barroso, uma continuidade mal
disfarçada entre as políticas do PSD
e do PS. Descartada a retórica, os
objectivos do ministro da saúde de
Durão Barroso, Luís Filipe Pereira, e
do ex-ministro Correia de Campos
são os mesmos: privatizar o bem
público da saúde, transformando-o
num lucrativo sector de investimentos de capital (como dizia recentemente, um quadro de uma
grande empresa de saúde: “mais lucrativo que o negócio da saúde, só o
negócio das armas”); transformar o
Serviço Nacional de Saúde num sistema residual, tecnológica e humanamente descapitalizado, proporcionando serviços de baixa qualidade às populações pobres da sociedade; definir a eficiência em termos de custos e não em termos de
resultados clínicos (levado ao paroxismo pela decisão do ex-ministro
socialista de limitar o aumento da
produção cirúrgica nos hospitais
para não aumentar a despesa); eliminar qualquer participação dos
cidadãos na formulação das políticas de saúde para poder impor rápida e drasticamente três palavras
de ordem: privatizar, fechar, concentrar; promover parcerias público/privado em que todos os riscos
são assumidos pelo Estado e as derrapagens financeiras não contam
como desperdício ou ineficiência
(já que uma e outra são um exclusivo do sector público).
A Correia de Campos, apenas
devemos reconhecer a coerência.
Desde que passou pelo Banco
Mundial assumiu-se como coveiro
do Estado Social, seja na saúde ou
na segurança social. Na Comissão
do Livro Branco da Reforma da Segurança Social, a que pertenci, verifiquei com espanto que os seus aliados na comissão não eram os socialistas, eram precisamente Luís Filipe Pereira (que pouco depois quis
privatizar a saúde) e Bagão Félix
(que, desde sempre quis privatizar
a segurança social). Alguém se recorda que a criação do SNS em 1979
esteve na origem do abandono por
parte do CDS da coligação que sustentava o governo do partido socialista? Portanto, de duas uma, ou o
PS abandonou os seus princípios
ou Correia de Campos está no partido errado? A sua recente demissão
parece apontar para a segunda opção mas só a política concreta da
nova ministra confirmará ou não se
afinal não estamos perante a primeira opção.
Para que esta primeira opção
não se confirme é necessário que a
actuação do governo se paute, por
obras e não por palavras, pelos seguintes princípios.
O SNS é um dos principais pilares da democracia portuguesa, e a
ela se devem os enormes ganhos
de desenvolvimento humano nos
últimos trinta anos; qualquer retrocesso neste domínio é um ataque à democracia. O SNS é um factor decisivo da gestão territorial do
país (o país não termina a 50 km da
costa). O SNS é um serviço financiado por todos, ao serviço e gerido em função dos ganhos de saúde
e de modo a eliminar desperdícios.
Nos critérios de eficiência, incluise a eficiência na vida dos doentes
cujo atendimento pontual é fundamental para que não se perca
uma manhã num acto médico que
dura 20 minutos.
É urgente modernizar o SNS no
sentido de o aproximar dos cidadãos tanto na prestação dos cuidados
como na gestão dos serviços (participação dos cidadãos e das associações de doentes na concretização
do direito à saúde deve ser incentivada). Promover a todo o custo o regime de exclusividade e terminar
com a escandalosa promiscuidade
entre a medicina pública e privada
para que, por exemplo, não se continuem a acumular fortunas fabulosas com base nas listas de espera
ou na falta de equipamentos. Promover a estabilidade e as carreiras,
apostar na inovação técnica e científica e democratizar o acesso às faculdades de Medicina. E sobretudo
tornar claro o carácter complementar do sector privado antes que os
grupos económicos da saúde (Grupo
Mello,
BES,
BPN/GPS,
CGD/HPP, etc.) tenham suficiente
poder para serem eles próprios a
definir as políticas públicas de saúde e, portanto, para bloquear quaisquer medidas que afectem as suas
taxas de juro. Quando tal acontecer
serão eles a dizer: “É a saúde, estúpido!”, a saúde dos seus negócios,
não a dos cidadãos estúpidos.
Nº 20
Março de 2008
R$ 2,00
C&D Constituição & Democracia
Argumentação jurídica
em Grande Sertão:Veredas
Os presos no Brasil:
quem paga o pato?
Direito na América
Latina: entrevista
com Carlos Cárcova
A experiência constituinte de 1988
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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008
EDITORIAL
Observatório da Constituição e da Democracia
E
sta é uma edição especial para o C&D. Para além da coincidência numérica com o
20º aniversário da Constituição da República de 1988, chegamos ao nosso 3º ano
de publicação com maturidade suficiente para evitar um deslumbramento vazio com
a data comemorativa e direcionar nosso olhar para os aspectos que merecem ser celebrados ou criticados. Aproveitamos o momento para delinear uma memória que valorize o teor democrático daquele momento histórico, sem esquecer que o real alcance das conquistas depende de sua lembrança contínua e permanente.
O exercício do poder constituinte, o percurso da Assembléia Nacional Constituinte, as
questões indígena, infantil e comunicativa e o controle de constitucionalidade compõem o
núcleo temático, que, como de praxe, vem enriquecido por artigos livres que ampliam o
nosso espectro de observação. Além da experiência constituinte, são abordados problemas sobre a concorrência, o “preço” dos presidiários, a alimentação e o poder do polícia.
E com os pés no constitucionalismo, mas com a cabeça na literatura nacional, extrai-se
uma lição jurídica a partir da genial história de um jagunço filósofo.
Razões para comemorarmos os 20 anos da Constituição
Alexandre Bernardino Costa - Professor da Faculdade de Direito da UnB; coordenador de Extensão FD/UnB; integrante do grupo “Sociedade, Tempo e Direito”.
Menelick de Carvalho Netto - Doutor em Direito Constitucional pela UFMG; professor de Filosofia
do Direito e Teoria da Constituição dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da UnB;
e integrante do grupo “Sociedade, Tempo e Direito”.
03
Descentralização da defesa da concorrência no Brasil como mecanismo de ampliação
da participação social
Mauro César Santiago Chaves - Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília.
04
O julgamento de Zé Bebelo em Grande Sertão: Veredas
Damião Azevedo - Mestre em Direito pela UnB, advogado e professor universitário.
06
OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO
Constituinte: conciliação ou ruptura?
Leonardo Augusto de Andrade Barbosa - Mestre e doutorando em Direito, Estado e Constituição
pela Universidade de Brasília. Pesquisador do grupo Sociedade, Tempo e Direito (UnB).
Analista legislativo da Câmara dos Deputados.
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Criança e Constituinte: um desafio
Fabiana Gorenstein - Mestranda em Direito na Universidade de Brasília, membro do grupo
de pesquisa Direito Achado na Rua.
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O recado das prévias
Fabio Costa Morais de Sá e Silva - Bacharel (USP) e Mestre (UnB) em Direito. Doutorando em Direito,
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Política e Sociedade (Northeastern University, Boston).
Como novidade, esta edição inaugura a “Nota de Correspondente”, um novo espaço fixo para as observações enviadas por membros do grupo que realizam suas pesquisas no
exterior. Aprofundando nossa experiencia internacional, a entrevista desse mês vem no idioma original de nosso entrevistado argentino, até como forma de efetivamente dialogar
com nossos parceiros do Mercosul. Por fim, nosso colaborador português ratifica a importância de manter um sistema público de saúde, protegido da retórica economicista.
ENTREVISTA COM CARLOS MARIA CÁRCOVA, Diretor do Instituto de Investigaciones Jurídicas y Sociales
Ambrosio L. Gioja, da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.
Crise de Representação e Constitucionalismo na América Latina
José Geraldo de Sousa Júnior - Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dos grupos de
pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e da Comissão de Defesa da
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República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB.
Assim damos continuidade ao nosso trabalho, compromissados com a significação do
Direito a partir da experiência democrática da Constituição, que não se limita ao ocorrido
há vinte anos e, para ser concreta, deve ser socialmente problematizada e reconstruída.
OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO
Células-tronco e a lei que vivifica
Silvia Regina Pontes Lopes - Procuradora Federal, mestra em Direito pela Universidade de Brasília, membro
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do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito, professora de Direito Público - CEAD/UnB
OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
A participação indígena no processo Constituinte
Rosane Lacerda - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, assessora jurídica do Instituto
Migrações e Direitos Humanos, membro dos grupos de pesquisa O Direito Achado na Rua e Sociedade,
Tempo e Direito (UnB). Professora universitária e assessora jurídica do Conselho Indigenista
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Missionário (Cimi) à época da Constituinte 87/88.
Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito
Faculdade de Direito – Universidade de Brasília
EXPEDIENTE
Caderno mensal concebido, preparado e
elaborado pelo Grupo de Pesquisa
Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade
de Direito da UnB – Plataforma Lattes
do CNPq).
Coordenação
Alexandre Bernardino Costa
Cristiano Paixão
José Geraldo de Sousa Junior
Menelick de Carvalho Netto
Comissão executiva
Janaina Lima Penalva da Silva
Paulo Rená da Silva Santarém
Ricardo Machado Lourenço Filho
Silvia Regina Pontes Lopes
Sven Peterke
Integrantes do Observatório
Adriana Andrade Miranda
Aline Lisboa Naves Guimarães
Beatriz Cruz da Silva
Damião Azevedo
Daniel Augusto Vila-Nova Gomes
Daniel Barcelos Vargas
Daniela Diniz
Douglas Antônio Rocha Pinheiro
Eduardo Rocha
Fabiana Gorenstein
Fabio Costa Sá e Silva
Fernanda-Cristinne Rocha de Paula
Giovanna Maria Frisso
Guilherme Cintra Guimarães
Guilherme Scotti
Gustavo Rabay Guerra
Henrique Smidt Simon
Jan Yuri Amorim
Jean Keiji Uema
Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros
Juliano Zaiden Benvindo
Leonardo Augusto Andrade Barbosa
Lúcia Maria Brito de Oliveira
Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira
Marthius Sávio Cavalcante Lobato
Maurício Azevedo Araújo
Paulo Henrique Blair de Oliveira
Paulo Sávio Peixoto Maia
Pedro Diamantino
Ramiro Nóbrega Sant´Ana
Renato Bigliazzi
Rosane Lacerda
Vanessa Dorneles Schinke
Vitor Pinto Chaves
Contato
[email protected]
www.fd.unb.br
Direito Humano à Alimentação Adequada: direito de todos os povos
Valéria Torres Amaral Burity - Aluna ouvinte da disciplina o Direito Achado na Rua. Meste em Ciências
Jurídicas pela UFPB. Consultora em Direitos Humano para a Ação Brasileira pela Nutrição e
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Direitos Humanos (ABRANDH).
OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Criminidade do poder, polícia e impunidade
Paulo Queiroz - Professor (UniCEUB) e Procurador Regional da República.
Sindicato dos Bancários
de Brasília
Editor assistente
Rozane Oliveira
Diagramação
Gustavo Di Angellis
Ilustrações
Flávio Macedo Fernandes
SindPD-DF
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O coronelismo eletrônico e a democratização da comunicação
Soraia da Rosa Mendes - Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, Pós Graduada em Direitos Humanos pelo CESUSC - Santa Catarina, Professora da
Faculdade de Direito do Centro Universitário do Distrito Federal - UniDF e da Faculdade de
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Direito da Universidade de Brasília - UnB.
É a saúde, estúpido
Boaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Projeto editorial
R&R Consultoria e Comunicação Ltda
Editor responsável
Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)
O futuro dos presos no Brasil: quem paga o pato?
Sven Peterke - Professor visitante da Faculdade de Direito, doutor em Direito e mestre em Humanitarian
Assistance pela Ruhr-Universidade, de Bochum (RFA), mestre em Direito pela Christian-Albrechts18
Universidade, de Kiel (RFA).
Assine C&D
[email protected]
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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008
O coronelismo eletrônico e a
democratização da comunicação
Soraia da Rosa Mendes
M
esmo nestes tempos de televisão digital, o rádio continua a ser um instrumento
de baixo custo que desempenha um
importantíssimo papel na vida social, cultural e política brasileira. Em
especial, para atender a interesses de
grupos ou de poderes governantes.
Até metade da década de 40, o
sistema de radiodifusão brasileiro
esteve legalmente submetido à intervenção estatal. Mas, embora a
partir de 1942 inaugure-se um novo
momento do rádio brasileiro, com o
chamado “pan-americanismo”, o rádio brasileiro permaneceu como um
veículo intimamente atrelado aos
interesses políticos dos detentores
do poder. Tanto pelo processo de
controle vertical promovido pósgolpe de 64, quanto pelo sistema de
outorgas constitucionalmente assegurado em 1988.
A partir de 1964, juntamente com
os demais veículos de comunicação
existentes, o rádio tornou-se também uma arma em prol do regime
autoritário. A ditadura estimulou a
verticalização dos meios de comunicação com a finalidade de entrar em
todos os lares brasileiros com uma
matriz de informação que não deixasse espaço para questionamentos.
E esse processo, que privilegiava
a formação de redes regionais e nacionais, aliado à depauperação do
sistema estatal, sufocou completamente os meios de comunicação locais, mesmo os comerciais. E, com
isso, as manifestações culturais, as
informações comunitárias e a inserção das comunidades foram banidas dos meios.
Os anos 80 representaram, de
um lado, a etapa de sedimentação
do modelo americano para o rádio
brasileiro - um modelo de músicas e
de promoções para os ouvintes assumido pela esmagadora maioria
das FMs nacionais, e que se perpetua até os dias de hoje. Mas, por outro lado, também foram marcados
por movimentos de desobediência
civil que incluíam o uso do espectro
eletromagnético sem permissão oficial. Eram as rádios populares, livres
e piratas.
As rádios populares constituíam
um sistema de estúdios montados
em praças e feiras. As rádios livres
eram montadas por indivíduos ou
grupos de indivíduos para veicular
programação de gosto particular. As
rádios piratas eram as que invadiam
o dial para a divulgação de ações políticas junto às comunidades previamente escolhidas.
Com a abertura política, as rádios
livres e piratas tiveram participação
decisiva no movimento pré-constituinte ao empunharem como uma
de suas principais bandeiras a garantia regionalização da produção jornalística, artística e cultural. E é da
efervecente discussão durante a
constituinte que se inicia a maturação do conceito de radiodifusão pública, sem fins lucrativos, pluralista e
de gestão pública, pensado a partir
das experiências alternativas que
existiam nestas mesmas rádios.
A reivindicação em prol da regionalização foi incorporada à Carta de
88 em seu artigo 221, inciso III. Entretanto, em seu texto, a Carta também consagrou um procedimento
de outorga que, sem um efetivo controle público, possibilita a continuidade de uma política antiga de coronéis, agora conhecida como coronelismo eletrônico.
A nova roupagem do coronelismo é um fenômeno do Brasil urbano
da segunda metade do século 20,
que nasce com ninguém menos que
Antônio Carlos Magalhães. Na gestão carlista como ministro das Comunicações do governo José Sarney,
ACM distribuiu canais de rádio e televisão a todos os grupos políticos
regionais dominantes, especialmente no norte e nordeste do país. Estima-se que 60, de um total de 250 das
emissoras comerciais de televisão do
Brasil, foram distribuídas a políticos.
O coronelismo eletrônico, entre-
tanto, reinventa-se pós-88 mediante
o sistema de concessões e renovação
do serviço de radiodifusão que permite barganhar a influência política
que representa possuir uma rádio
(até mesmo comunitária), e compromissos nem sempre republicanos. O
fruto desta “verdadeira política de radiodifusão” é a concentração dos
meios de comunicações em mãos de
poucos coronéis.
Ignorando os princípios da própria Constituição, tal como a proibição de formação de monopólios e
oligopólios, o Estado pratica uma
estratégia política dual. Ao mesmo
tempo emperra o processo de autorização das rádios comunitárias,
com um emaranhado burocrático
em processos que se arrastam por
anos, e beneficia aliados com concessões, na maioria, retransmissoras dos grandes grupos de comunicação de propriedade de uma meia
dúzia de famílias.
Felizmente, a sociedade civil não
tem sido um espectador passivo deste espetáculo. Da experiência de organização ocorrida durante a constituinte, a partir da década de 90 fo-
ram promovidos inúmeros eventos e
debates sobre a democratização da
comunicação e, especialmente, sobre a radiodifusão comunitária como um instrumento público de comunicação. Em 1991, é criado o Fórum Nacional Pela Democratização
da Comunicação (FNDC), que articulando mais de 80 entidades nacionais e regionais da sociedade civil,
tem como objetivo constituir políticas públicas e ações práticas para a
área das comunicações, bem como
reconstituir nacionalmente uma cultura brasileira alicerçada na diversidade de identidades e produções regionais. E, em 1996, é criada a Associação Brasileira de Radiodifusão
Comunitária - ABRAÇO.
Inegavelmente são muitas as dificuldades para a superação da chaga
que a concentração dos meios de
comunicação representa à democracia brasileira. Contudo, a luta pela democratização das comunicações em nosso país, protagonizada
pelas organizações e movimentos
sociais, representa, sempre, a possibilidade de efetivação dos direitos
conquistados em 1988.
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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO
Células-tronco e a lei que vivifica
Silvia Regina Pontes Lopes
O recado das prévias
Fabio Costa Morais de Sá e Silva
H
O
início do julgamento, no Supremo Tribunal Federal, da
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510-0/DF colocou
em pauta, no último dia 06, a discussão sobre a licitude de pesquisa
científica com células-tronco embrionárias no Brasil. A ação discute
a constitucionalidade do art. 5º da
Lei de Biossegurança, que permite,
para fins de pesquisa e terapia, a
utilização de células-tronco embrionárias produzidas a partir de
fertilização “in vitro”, desde que
provenientes de embriões inviáveis
ou congelados há mais de três
anos. A polêmica relação entre direito e vida é retomada. Na arena
jurídica, digladiam-se, em torno do
sentido da vida, concepções científicas, religiosas, morais e éticas as
mais diversas.
Segundo a ciência, as célulastronco embrionárias são formadas
desde a fecundação do óvulo pelo
espermatozóide até o período em
que o ovo cessa de desenvolver-se
por ausência de meio propício
(útero). Apesar da rigidez conceitual, nem mesmo a ciência é unânime na compreensão das célulastronco embrionárias, registrandose duas correntes científicas. A que
atribui ao embrião o papel de figura central no processo de “hominização”, e ao útero, função coadjuvante, considerando a extração de
células-tronco destruição de uma
“unidade humana” existente desde
a fecundação. Outra que ressalta a
importância crucial do útero e do
tempo para a atribuição ao embrião de incipientes características físicas e neurais de um ser humano.
A primeira corrente revela que premissas transcendentais, baseadas
em um conceito ontológico de homem, são também levantadas pela
ciência.
Importa, na ação em questão,
averiguar o sentido de vida juridicamente tutelável. Aqui, argumentos utilitaristas dialogam com concepções científicas e crenças pessoais. Ao sacrifício de um por todos, subjacente ao lema de que os
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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | MARÇO DE 2008
fins justificariam os meios, é oposta uma irreflexiva sacralidade da vida humana incondicionalmente
gerada a partir da fecundação do
óvulo. Não é de se estranhar a pluralidade dos discursos empreendidos na audiência pública de 20 de
abril de 2007, que contou com a
participação de diversos seguimentos sociais, notadamente o científico, em torno da discussão
acerca do início da vida humana.
As infindáveis divergências confirmam aquela improbabilidade, já
denunciada, em 1958, por Hannah
Arendt, de que o homem possa por
si só descobrir sua essência: seria
como pular sobre sua própria sombra, driblando a condição prévia,
só alcançável por olhos divinos, de
poder falar de “quem somos” como
se fosse um “quê somos”.
Ao lidar com a pluralidade de
acepções de vida humana, o direito afirma seu papel de reduzir,
sem eliminar, a complexidade social. A indagação de “quando surge a vida humana?” transforma-se
em “o que é vida humana juridicamente tutelável?”. Os desafios daí
decorrentes são imensos. Ao instituir a inviolabilidade do direito à
vida, o Constituinte de 88 silenciou sobre o início da vida, preservando a fluidez do conceito. Possibilitou, assim, a formulação democrática dessa concepção por
uma comunidade de princípios.
No Brasil, a idéia de vida juridicamente tutelável tem como
referencial maior a compreensão
jurídica de morte. Para o direito,
Ao instituir a inviolabilidade do dir eito à vida,
o Constituinte de 88 silenciou sobr e o início da vida,
pr eser vando a fluidez do conceito.
á várias razões pelas quais
as eleições nos Estados Unidos chamam a atenção de
um estrangeiro, quanto mais um
estrangeiro que se interessa por política como eu. Dentre todas elas,
aqui destaco uma que parece até
simples demais pra fazer sentido: a
exclusividade do posto. Raramente
paramos pra pensar, mas o fato é
que apenas uma entre milhões de
pessoas chega à posição de presidente dos EUA a cada 4 ou 8 anos,
dependendo da paciência do eleitor com relação a quem já está na
Casa Branca. Talvez por isso as prévias são tão importantes. No Brasil,
apenas o PT usa prévias - e elas só
tendem a assumir um grande significado político a partir de 2010,
quando estará em causa a construção de uma outra candidatura que
não a de Lula. Nos Estados Unidos,
esteja ou não correta a minha “tese”
sobre o porquê, elas representam
um momento no qual se define
quem vai disputar essa vaga e quem
já preliminarmente está descartado, e só vai ser referido a partir de
então como aquilo que poderia ter
sido e não foi, pra usar uma expressão do Manuel Bandeira.
O caso de Al Gore rende um bom
exemplo. Não bastou que ele fosse
o vencedor moral das penúltimas
eleições - em que a contagem de
votos da Flórida foi interrompida
por uma Suprema Corte de maioria
republicana -, ou o vencedor de um
Oscar por sua “Verdade Inconveniente” -, um filme no qual ele propõe
um outro rumo para a economia e a
política ambiental nos EUA. Porque
já tivera uma chance e porque fortuitamente a perdera, seu nome foi
de pronto repelido no circuito democrata e suas eventuais aspirações a uma nova candidatura tiveram de ser rapidamente recolhidas
para o seu próprio intimo. Isso sem
falar em Howard Dean, que é hoje o
maior estrategista do partido democrata, mas que por um grito de
“uhu!” num comício com infelizes
três ou quatro segundos (há vários
vídeos disponíveis em www.youtube.com) jamais terá de novo o seu
nome cogitado para a grande disputa eleitoral.
Tive esse insight ao assistir dias
atrás ao primeiro episódio da nova
temporada de Real Time, um talk
show apresentado por Bill Maher
(pronuncia-se “mar”). Bill é um
desses sujeitos que já se destaca
por combinar inteligência com
bom humor, mas que além disso
tem a virtude de ser extremamente
crítico. Antes do 11/09, seu programa era apresentado na ABC, um
grande canal de televisão. Depois
vieram as guerras do Afeganistão e
do Iraque e, em função das polêmicas que ele provocou no ar, foi gentilmente convidado a se retirar da
emissora. Aos leitores ou leitoras
interessados em conhecer um pouco mais sobre o trabalho de Bill, vale conferir os scripts do show no site www.billmaher.com.
Quem está ficando pra trás
Naquele episódio, Bill comentava
as prévias após a “Super Terça”. O
programa começou com um debate
sobre desistência de Mitt Romney, o
ex-governador de Massachusetts
com pinta de empresário bem sucedido, que vinha investindo rios de dinheiro na própria campanha e prometia uma boa administração para a
América. “Quer dizer que Romney finalmente resolveu tirar o seu traseiro
mórmon da corrida?”, questionou
um Bill cansado de ver a religião se
combinando perversamente com a
política em seu país. A certa altura do
debate, um de seus convidados respondeu: “Mas ele realmente achava
que a pose de executivo ia colar nessas eleições? Depois da dupla BushChenney, dos escândalos da Halliburton e da Enron, ele acreditava
mesmo que os americanos estão à
procura de um CEO?”.
Assisti a não mais que dois pronunciamentos de Romney, cada
um deles com cerca de 10 minutos.
No último, suas intenções ficaram
bem claras: “Será com conservadorismo econômico (corte radical de
impostos para manter o dinheiro
nas mãos do setor privado) e conservadorismo social (redução drástica nos programas sociais) que ganharemos as eleições e governaremos o país”, disse ele. Ou seja: o ve-
lho ideário de que se cada indivíduo buscar o seu próprio bem-estar, o resultado final é o bem-estar
coletivo.
Seguiu-se daí a minha segunda
intuição. O convidado de Bill estava
correto, mas apenas parcialmente.
O eleitorado americano, mesmo no
campo republicano, não rejeitou
apenas a embalagem, rejeitou também o conteúdo. A tensão que hoje
alimenta as eleições do centro da
hegemonia mundial é, de alguma
maneira, a tensão da democracia
contra o capitalismo. Os americanos não querem mais ficar a mercê
das companhias de seguro para
conseguir atendimento médico,
querem um sistema público que assegure cobertura. Não querem mais
continuar vítimas de um sistema financeiro predatório que deixou a
metade do país devedora de valores
absurdos em hipotecas imobiliárias. Não querem mais ver seus filhos e amigos morrendo numa
guerra que não trouxe mais paz ao
mundo e ao Oriente Médio, embora
tenha trazido lucros formidáveis a
companhias como a Halliburton.
Não querem mais ficar encurralados por um sistema eleitoral que se
reproduz com base no poder dos
lobbies (colocar em itálico) e das
contribuições milionárias, tanto assim que um dos líderes da disputa
democrata tem nas doações individuais a parte mais importante de
seu orçamento.
Barack Obama pode não ser a
solução para todos esses dilemas,
como há pouco escreveu na Folha
de São Paulo o sociólogo Chico de
Oliveira. Mas há hoje em boa parte
do povo americano uma forte aspiração igualitária, que se reflete na
busca por uma candidatura alternativa. E, nos Estados Unidos, como em qualquer outro lugar, a política felizmente não é patrimônio
dos políticos.
Bar ac k Obama pode não ser a solução . Mas há hoje
em boa parte do po vo americano uma forte aspir ação
igualitária, que se r eflete na busca por uma
candidatur a alter nativ a.
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