PESQUISA “Violência de gênero: o que pensam os nossos jovens” Redação e Análise Laura Santonieri Colaboração Lena Franco Silvani Arruda Equipe Responsável José Roberto Simonetti Osmar de Paula Leite Sylvia Cavasin Vera Simonetti São Paulo, outubro de 2004 Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br PESQUISA VIOLÊNCIA “Violência de gênero: o que pensam os nossos jovens” Introdução Esta pesquisa foi realizada a partir de amostra de redações coletadas pela ECOS – Estudos e Comunicação em Sexualidade, no de 2002. Ela foi um desdobramento do projeto “Trabalhando com adolescentes: drogas e aids”1, dirigido a adolescentes de escolas públicas da região metropolitana de São Paulo.. Uma das etapas do projeto foi discutir o tema violência. Como na ocasião estava sendo lançada no Brasil a Campanha do Laço Branco,2 aproveitamos a oportunidade para divulgar a campanha entre os alunos participantes do projeto e levá-los a refletir sobre o tema. Para isso, foi solicitado que os alunos, do sexo masculino, de 33 escolas públicas da Vila Brasilândia3, periferia de São Paulo, escrevessem redações sobre a violência contra a mulher. Os professores foram orientados a lançar duas questões de reflexão – “O que os garotos gostariam de dizer aos homens que praticam violência contra a mulher” e “Por que acontecem atos de violência contra a mulher”. Eles também podiam contar uma situação de violência que testemunharam ou alguma história de que ouviram falar. O material que nos serve de substrato é muito rico. São opiniões e idéias expressadas diretamente por jovens e adolescentes da periferia de São Paulo, sem intermediários. A relativa espontaneidade das falas permite identificar e analisar a concepção que têm sobre a violência e a violência de gênero – o que é violência para eles, como a identificam e a caracterizam? Interessante é que o trabalho possibilitou também iluminar as noções que eles possuem sobre direitos de uma forma geral. 1 Projeto apoiado pela CN-DST/AIDS e UNESCO (2002). Campanha que tem por objetivo incitar a reflexão dos homens sobre a questão da violência de gênero. 3 Vila Brasilândia – é considerada uma zona de alta exclusão social. Cepid – Fapesp/CEM – Cebrap – Jornal Folha de São Paulo, Caderno Especial 3 – 09/03/2004. 2 Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br Importante frisar que a análise do contexto social em que esses homens jovens estão inseridos é parte crucial deste trabalho. Não basta identificar o que tomam por violência, mas é preciso ir além e compreender como ela se estabelece, se reproduz e se perpetua. As opiniões dos homens jovens, aliadas à análise do contexto, revelam com mais clareza os aspectos do mundo em que vivem, e fornecem as pistas para a busca de soluções. A análise das redações revelou uma dura realidade. Ilustra a situação de exclusão quase que completa em que vivem os jovens das classes sociais mais baixas. Dois aspectos principais poderiam ser destacados. O primeiro diz respeito ao nível educacional. Apesar de cursarem o nível médio, quase todos têm muita dificuldade para escrever, fato que atrapalha a compreensão de suas redações em casos mais extremos - palavras são escritas de maneira errada, os significados de muitas são confundidos, e em diversos casos há uma ausência quase que completa de pontuação. Sabemos que a educação formal e informal ainda é a principal via de construção da cidadania e autonomia dos indivíduos, proporcionando desenvolvimento social, político e econômico da sociedade. É exatamente por esse motivo que apontamos essa questão: para enfatizar que a educação pública no Brasil ainda é um grande problema, e deixa muito a desejar. O segundo aspecto a ser destacado é a situação de marginalização e exclusão desses jovens, que explicitam em seus relatos um cotidiano de pobreza marcado pelo esfacelamento das relações familiares, falta de emprego e ausência do Estado. Uma realidade em que a naturalização e a banalização generalizada da violência influencia o comportamento e a mentalidade dos indivíduos. A violência de gênero é apenas mais uma expressão desses fenômenos – talvez o mais cruel, porque aceito e legitimado pelo o que poderíamos chamar de uma ‘ideologia machista’. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br Metodologia Nossa análise é focada nas redações de jovens do sexo masculino, entre 15 e 21 anos, cursando o ensino médio. Foram coletadas 763 redações nas escolas, e dessas selecionamos 500 para análise. Num segundo momento, foi realizada a leitura das redações para a construção das categorias de análise. Nessa etapa, todas as respostas apresentadas pelos alunos eram sinteticamente anotadas, objetivando identificar em cada uma qual o principal motivo apontado para a ocorrência da violência de gênero. Em seguida, fomos classificando e unindo as respostas parecidas, até construir as categorias de análise, divididas em cinco grandes blocos4: 1) Atitudes das mulheres que causam violência: a) Roupas insinuantes/a mulher não se valoriza/a mulher é sem vergonha; b) A mulher provoca; c) A mulher gosta de apanhar/sofrer; d) Má escolha do parceiro; e) Falta de denúncia/precisa denunciar; f) Traição; 2) Atitudes dos homens que causam violência: a) Machismo; b) Não aceita quando chega em casa e comida não está pronta/mulher na vizinha; c) Covardia; d) Ignorância; e) Ciúme; f) Álcool; g) Drogas. 4 Nota-se que nosso objetivo foi uma análise qualitativa e não quantitativa, por isso mesmo as categorias são muitas. Desejamos dar expressão às múltiplas respostas e não apenas categorizá-las, agrupá-las e contabilizá-las. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br 3) Causas sociais que causam violência: a) Preconceito contra a mulher/discriminação; b) Mulher é sexo frágil/fragilidade feminina; c) Independência feminina/mudanças no papel da mulher; d) Falta de policiamento/impunidade/falta de segurança; e) Desemprego/falta de dinheiro; f) Perda dos costumes/valores; g) Questão de educação/cultura. 4) Atitudes que poderiam ser tomadas para solucionar o problema da violência: a) Diálogo como solução/falta de diálogo como problema; b) Direitos. 5) Concepções que os jovens possuem sobre a violência: a) Violência física; b) Violência psicológica/verbal/ameaça; c) Violência sexual/estupro; d) Assédio sexual. Vemos que os quatro primeiros blocos dizem respeito somente às possibilidades de respostas que os jovens poderiam dar acerca das razões sobre a causa da violência - com isso pudemos também estudar a postura deles com relação ao fenômeno. O quinto bloco já faz parte da análise sobre as concepções de violência manifestadas por eles. Assim, enquanto os quatro primeiros blocos englobam as respostas por eles dadas, o último foi elaborado a partir das diferentes concepções que surgiram sobre o que é violência. Depois demos início à análise do conteúdo, tendo por base o texto/redação dos alunos como nossa unidade de trabalho. Vale destacar, que as respostas dadas foram classificadas não somente quando foram usadas as palavras categorizadas, mas também quando havia uma alusão a elas. Por exemplo: muitas vezes a resposta do aluno para a razão da violência foi a descrição das atitudes/situações que o conceito de machismo implica, mostrando uma situação Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br sem usar a palavra explicitamente. Assim, quando se considerava a causa da violência o fato de que “o homem se pensa superior”, “manda e desmanda na mulher”, “não a deixa sair de casa”, “nem se relacionar com outras pessoas/familiares” e etc., incluímos como uma resposta na categoria “Machismo”.5 Um outro exemplo é o da categoria “traição”. A violência é apontada como resultante de conflitos motivados pela situação da mulher trabalhar fora. O que fica subentendido, porém, é que a violência acontece por medo ou suspeita de infidelidade. Nesse sentido, a traição como uma causa da violência não é explicitada. Ao criarmos a categoria “direitos”, computamos as redações de rapazes que demonstraram possuir alguma noção sobre o assunto, no sentido de considerar que homens e mulheres são iguais perante a lei, que a delegacia de mulher é uma conquista/direito da mulher, e que a denúncia pode ser um caminho para combater a violência porque garante o direito dela à integridade física, ao livre arbítrio e à autonomia como cidadã. Contudo, como veremos adiante, muitas vezes a denúncia aparece como uma forma de resolver a situação de violência, mas nem sempre essa idéia vem acompanhada de uma noção sobre direitos no sentido que atribuímos acima. 5 Um dado importante que não poderia ficar de fora é que, embora muitos acusassem a postura machista dos homens como causa da violência, isso não implicou que eles próprios não o fossem. Assim, existiram muitos casos de redações em que indicavam, por exemplo, o ciúme como causa da violência, terminando com uma frase do tipo ‘mas se eu pegar a minha namorada com outro eu mato’. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br RESULTADOS DAS ANÁLISES Violência Quando pensamos no fenômeno da violência6, devemos compreender como ela se estrutura no tecido social. Devemos lembrar da questão do poder7 e da dominação como uma conseqüência da tensão e do conflito gerados pelos fatores de diferença8. Partindo dessa lógica de tensão e conflito presentes na base da vida social, a violência pode ser vista como expressão da negociação daqueles que são/estão desprovidos de cidadania9: “A ausência de um sistema de reciprocidade, minimamente eficaz, se expressa em uma desigualdade associada e produtora de violência. A impossibilidade de acesso da grande maioria das camadas populares a bens e valores largamente publicizados através da mídia e da cultura de massas em geral, acirra a tensão e o ódio sociais”.10 Interessante notar que alguns jovens possuem noção de que a situação de exclusão a que estão submetidos é uma violência, ou seja, que sofrem uma violência por não ter os seus direitos básicos garantidos pelo Estado: “Outra coisa que não deixa de ser uma violência é um pai de família trabalhar a vida toda e quando se aposenta ganha um pouco mais que um salário mínimo, ou uma pessoa chegar num hospital público e ficar horas numa fila e receber um atendimento que nem sempre é de qualidade.” (Nº 626)11 A desigualdade social produz conflito, tenciona as relações e gera violência - no caso, esta emerge como um recurso para negociar e resolver conflitos. Dessa forma, a violência como negociação foi, aos poucos, admitida pela estrutura social, ajudando na constituição de uma nova ordem estabelecida (já que a cultura é 6 Neste trabalho estamos operando com a noção ampla de violência: a física, a psicológica e a sexual. “Poder” é utilizado aqui no sentido de um indivíduo impor a outro a sua vontade ou desejo, não só por meio da força física mas também por meio da possibilidade de usá-la (VELHO 1996). Importante perceber, portanto, a estreita relação do poder com a violência. 8 “(...)A diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito.” (VELHO 1996:10) 9 “Uma das diferenças associadas diretamente à produção de tensão e conflito é a desigualdade social (...)” (VELHO 1996:13). 10 VELHO, Gilberto Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva antropológica in VELHO Gilberto e ALVITO Marcos (Orgs) Cidadania e Violência Rio de janeiro: Ed. UFRJ: Ed. FGV, 1996. Pp19. 11 Essa numeração corresponde ao número atribuído à redação coletada (total de 763 redações). 7 Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br dinâmica, incorporando novos significados, modificando os existentes) e influenciando as ações e a maneira de pensar dos indivíduos. “Neste sentido, tanto quanto a norma, a violência, como forma ou resultado da sua transgressão, constitui também ela uma linguagem, através do qual uma sociedade nos fala de seu modo de organização, dos valores que reputa fundamentais, da sua concepção sobre o mundo, a natureza e o sobrenatural, e do lugar que nela ocupa a vida humana, como princípios ordenadores da vida associada”12. Ou seja: por mais que a violência nos pareça simplesmente uma transgressão das regras ou uma forma de resistência a uma ordem social estabelecida, ela na verdade fundamenta essa ordem, contribuindo para a organização da sociedade na medida em que regula a relação entre os indivíduos. “Seguindo esse raciocínio, se considerarmos uma população de baixa renda como a nossa, submetida a uma série de violências individuais e coletivas, que vão desde a privação de bens materiais, culturais e sociais até o enfrentamento e a banalização das condutas violentas, teremos um campo absolutamente propício para o exercício de todo o tipo de violência em que homens agridem e matam outros homens, homens agridem suas mulheres, mulheres agridem seus filhos, que por sua vez serão futuros agressores”.13 A percepção da violência como um fenômeno intergeracional14 não escapa a uma parcela de jovens que identificam problemas com a educação como a principal causa da violência: “A violência (...) vem do berço porque quando uma criança presencia uma violência verbal ou mesmo agressão física ela inconscientemente ela fica com isso na cabeça e quando cresce utiliza essa violência mesmo sem ter noção que está praticando uma violência...” (Nº 240); “(...) porque os filhos crescem revoltados com o pai que agride a mulher na frente dos filhos. E isso faz com que cresça um forte ódio pelo pai que agride e isso é um dos pontos que geram a violência no mundo”. (Nº 490) Esse aluno possui a visão de que os filhos 12 MONTES, Maria Lúcia Aparecida Violência, cultura popular e organizações comunitárias in VELHO Gilberto e ALVITO Marcos (Orgs) Cidadania e Violência Rio de janeiro: Ed. UFRJ: Ed. FGV, 1996. Pp225. 13 MUSZKAT, Malvina. Violência e intervenção in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002. Pp. 51. 14 “A exposição de crianças à violência intrafamiliar é responsável pelo chamado ‘ciclo da violência intergeracional’, que corresponde à reprodução da violência, seja na posição de vítima ou de agressor, tanto no âmbito da família como da sociedade” (MUSZKAT 2002: 50). Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br que vêem os pais agredindo as suas mães durante a infância crescem revoltados e essa é uma forma de tornar as pessoas violentas. A violência é portanto, uma reprodução social que se dá no âmbito da cultura, da família e dos indivíduos. A partir desse ponto de vista, foi possível compreender e identificar um processo de naturalização da violência. Isso ficou bastante claro nos relatos de muitos jovens que manifestaram o desejo de ser violento com quem pratica violência, ou seja, agir com um agressor da mesma forma que este último com sua vítima – principalmente como uma forma de punição. Essa idéia esteve presente em muitas redações. O linchar e espancar emerge como parte constitutiva do universo desses jovens. Vejamos alguns exemplos: “Depende da violência tem que fazer o mesmo com ele. E eu não falava nada. Ajuntava muitas pessoas e espancava ele”. (Nº 155) Em outra redação, o jovem relata o caso de uma amiga muito querida que sofria abuso sexual pelo tio. Ele tem a seguinte reação: “(...)fiquei super irritado e contei para todo mundo na rua nós da rua pegamos o safado linchamos e chamamos a polícia (...) quando ele retornou a rua nós falamos ‘você tem 24h para sair da rua e se acontecer algo a ‘X’ você morre’ mas nem precisou isso tudo ele foi embora...” (Nº 132) Percebemos que a violência é uma forma de resolver uma situação de conflito, totalmente legítima na perspectiva deles, como em outro caso15 em que o jovem bate num agressor e declaradamente se diz ativo no combate à violência contra a mulher. Portanto, não é errado constatar que a violência não só está presente na vida dos indivíduos, como é mobilizada de forma legítima em determinados casos. Nesse sentido é possível identificá-la como um fenômeno “natural” ou até mesmo banal16 aos olhos da grande maioria dos jovens com quem trabalhamos. Entretanto, isso não significa ausência de nuances com relação à concepção do que seja violência. Vejamos o caso de algumas redações, como por exemplo a Nº203: “(...) se o cara bate por besteira ele merece tomar uma surra e morrer (...) mas tem algumas mulheres folgadas que enchem o saco do homem e 15 Redação número 212. Veremos adiante que a violência também tem a ver com a questão da masculinidade e a forma como os homens são socializados. 16 Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br merecem tomar uns tapas mas mesmo assim não merecem apanhar”. Além da extrema violência como punição, fica a questão: tapa não é o mesmo que apanhar? Será que apanhar é considerado violência só quando há espancamento? Houve um número razoável de redações em que a ‘ideologia machista’ ou o ‘machismo’ emergiram como fatores de violência simbólica e moral, que geram preconceito e discriminação, impedindo o desenvolvimento profissional da mulher. Devemos ressaltar que, nesses casos, a submissão tem o status de violência simbólica. O “marido e os filhos fazendo-a de escrava, destruindo seus sonhos e planos de vida (...) por causa de puro machismo, dizendo que seu lugar é dentro de casa...” (Nº 244) Outro jovem17 diz diretamente que o machismo é uma violência contra a mulher, assim como a discriminação no mercado de trabalho. É interessante a sensibilidade que os homens jovens apresentaram com relação ao mercado de trabalho e ao preconceito desse setor da sociedade: “(...) seus empregos são de empregadas, faxineira, lavadeira, babá, chamados trabalhos femininos, e quando conseguem empregos melhores iguais aos dos homens ganham menos, tem mais, além de tudo tem que chegar em casa e cuidar dos filhos”. (Nº245) Esse jovem identifica, portanto, o fato de que mesmo trabalhando fora e sofrendo preconceito, a mulher acumula a função de cuidar da casa e da família. Diz que apesar da obediência aos homens vir de antigamente, ela “só cresceu com o passar dos anos esse tratamento foi ficando agressivo”. As percepções da influência da ideologia machista na sociedade e nas relações entre homens e mulheres, abarcam toda a complexidade que esse fenômeno comporta. Surgiram falas que caminharam no sentido de identificar a figura feminina como ‘fraca’ em relação à figura masculina, com uma forte conotação moral e sem demonstrar nenhuma concepção de violência aí embutida: “(...) a mulher não tem como se defender fisicamente e é também a mulher muito mais fraca em termos de popularidade”.(Nº 180) Mas também um outro ponto de vista surgiu, fazendo um contraponto com o anterior, com uma análise menos simplista e incorporando o papel da mídia no contexto de construção da imagem 17 Redação 174. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br da mulher – imagem que a prejudica por desvalorizá-la e configura uma violência simbólica: “Através da mídia, onde muitas, com seus corpos nus destroem a imagem da verdadeira mulher como se elas fossem somente peitos e bundas ambulantes, tentam mostrar para a sociedade que não importa a ética e sim a estética”. (Nº 622) A mídia foi alvo de críticas em outro momento, mas agora pelo aspecto do ‘incentivo à violência’ ao veicular “(...) desenhos animados que são só lutas (...) brigas que matam, mostram sangue (...)”. Essa crítica se estende em seguida à sociedade: “Nós ainda muitas vezes temos um pensamento que a sociedade impõe e nós seguimos, sem nem saber o porque daquilo. Como aquela idéia de que a mulher não pode trabalhar fora e o homem pode, isso é um tipo de violência com relação à mulher, a sociedade impõe isso e nós seguimos, isso nos mostra como a violência não se mostra só em agressão física mas sentimental” (Nº 598) Aqui se fala da influência da sociedade na cultura da violência, remetendo-se tanto ao tipo de informação presente na televisão quanto a uma cultura em que as pessoas reproduzem sem se dar conta – e que muitas vezes pode incentivar tanto a violência física como moral. As redações que acusam o machismo presente na sociedade como causa da violência, demonstram, de uma maneira geral, uma consciência maior sobre a influência dessa ideologia no comportamento dos indivíduos: “Os homens tem mais privilégios, se achando o tal, devido à essa cultura ele sempre vai oprimir as mulheres. Querendo que a mesma para sempre esteja submissa aos seus desejos machistas e egoístas...” (Nº 242) Este mesmo jovem acredita que o homem tem medo de ser superado pela mulher, e ele não foi o único. Essa questão foi colocada em outras redações, em que o aluno acha que a violência ocorre justamente por causa desse medo, ou seja, pelo medo que os homens sentem de que as mulheres possam “ter mais capacidade de obter sucesso na vida do que eles, por isso acabam usando a sua força que é maior do que a delas as tornando assim indefesas”. (Nº 496) Normalmente essa idéia veio acompanhada pela questão do trabalho fora de casa. A possibilidade de a mulher ganhar um salário mais alto do que o do Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br marido causa conflito. Ele pode não se sentir o ‘homem’ da casa ou o provedor da família, mostrar uma ‘masculinidade ofendida’, medo da independência da mulher ou da possibilidade de traição18 que seria proporcionada por essa independência19. Nessa mesma redação também é apresentado o fato de que “os homens não querem aceitar as mulheres como alguém que possa vir a mandar neles” quando o assunto é trabalho e desenvolvimento profissional. Vemos, portanto, que existe o lado social do preconceito - o de possuir um chefe do sexo feminino - e o lado mais particular e pessoal – em que o êxito profissional configuraria uma possível independência da mulher em relação ao homem e conseqüentemente uma mudança na relação de submissão e dependência. É importante destacar que a violência moral foi, na maioria das vezes, identificada como tal nos casos em que os homens proibiam o trabalho fora de casa, impondo a atividade doméstica como a única opção para a mulher - o que não foi o caso de muitas redações que relataram brigas e xingamentos, pois nem sempre identificaram o xingamento como violência verbal. A violência física - como veremos adiante – foi amplamente citada em diferentes situações, e pareceu ser a mais identificada como violência pelos jovens. Violência de gênero A violência de gênero segue a mesma lógica de naturalização, já que é um dos aspectos de um fenômeno mais amplo e está inserida nesse contexto. Se para esses homens jovens é normal que os indivíduos se relacionem de forma violenta, é compreensível que esse modelo de relação se estenda também para a relação entre homens e mulheres: “Uma vez eu vi na rua de cima um cara que estava drogado catou a namorada dele pelo pescoço e começou a encher ela de porrada. Mas eu não tenho nenhuma dó dela pois afinal a vaca teve um filho dele e ainda continua com ele e ele continua socando ela”. (Nº 126) Outra redação ilustra a naturalidade com que o jovem encara a violência entre os gêneros ao 18 Muitas redações, ao tratarem deste assunto, apresentaram a possibilidade de traição como o principal motivo pelo qual os homens não querem ver a sua mulher trabalhando fora de casa. Contudo, só o fato de estar fora de casa, na vizinha ou na casa de parentes já era motivo para ciúme e brigas, conforme relatado em muitas redações. 19 Redação 580. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br dizer que possui “(...) um amigo que bate na namorada e espanca até morrer (...)” (Nº 572) Ora, o fato de considerar o colega agressor como amigo pode significar que esse jovem não condena tais atitudes, pois não parecem caracterizar algo imoral. Ele apresenta um tom bem imparcial em relatos de outros fatos violentos sem que se coloque claramente contra ou a favor de quem pratica a violência. Se pensarmos no campo das relações primárias (relações diretas entre as pessoas), veremos que não só os indivíduos são diferentes, como a construção social baseada em gênero e a forma de socialização de homens e mulheres resultam em papéis diferentes para os sexos. A diferença, o poder, a dominação e a negociação são, portanto, fenômenos presentes em todos os aspectos da vida social, disseminados por todas as classes sociais. Tanto as camadas mais populares como a classe média e a elite são igualmente atingidas por esses fenômenos. O que muda é a visibilidade20 da violência física, diretamente relacionada à generalização da violência a que os mais pobres estão expostos, que por sua vez resulta do ambiente de marginalização e exclusão dessa camada social. No contexto de violência e complexidade que permeia a relação entre os gêneros surge o mito da mulher que “gosta de apanhar” ou que é “burra”. Veremos adiante que o universo da violência doméstica/familiar21 é muito mais complicado do que parece. Na grande maioria das vezes não é fácil romper com o ciclo da violência por meio da denúncia ou do abandono do agressor. Contudo, uma parcela razoável dos jovens apresentou a visão de que a mulher “gosta de apanhar”. O argumento principal é o fato de essas mulheres vítimas da violência conviverem com seus agressores e, em muitos casos, não os denunciarem. Após afirmar que a violência se tornou comum, um aluno diz que uma mulher que apanha “uma, duas, três vezes e ainda continua com o marido ou namorado (...) gostam de apanhar”. (Nº515) Os jovens também questionam o caráter da mulher 20 Visibilidade a que nos referimos é com relação ao número de casos de homicídios e agressões físicas que ocorrem na periferia, em contraponto ao número de casos que ocorrem nos bairros de classe média e alta. 21 “A violência doméstica se refere aos atos de violência entre pessoas que dividem um espaço geográfico. Ela não esgota o universo da violência entre pessoas de sexo diferente, da violência sexual ou da violência contra a mulher de maneira geral. Já a violência familiar é caracterizada quando há laços de consangüinidade, de adoção, laços afetivos entre a pessoa que agride e sua vítima. Está correlacionada a uma relação de poder que se estabelece; e inclui a violência conjugal.” (INSTITUTO PATRÏCIA GALVÃO 2003:04) Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br que apanha. Um deles relata uma cena de briga entre um casal em que “ele deu um tapa no rosto dela (...) depois de bater ele deu um beijo nela e um presente e ficou por isso mesmo. Onde está o caráter da mulher?” (Nº187). Embora a crítica contra o homem também apareça em alguns casos - “Eu diria que é uma covardia bater numa mulher mas se elas são daquele tipo que na hora fica adorando que o homem fique praticando violência neste caso eu fico na boa” (Nº154) - a tônica continua ser a de que a mulher gosta de sofrer violência. As ambigüidades surgem em algumas redações, revelando a complexidade do universo da violência de gênero, muitas vezes sem que os homens jovens se dêem conta de que expressam posições ambíguas: “Era uma mulher que o marido dela era um drogado e ele batia todos os dias nela e ela tinha medo de fugir pois ela temia dele ir atrás e mata-la mas se ela não toma iniciativa é porque gosta de apanhar e é mulher de malandro que apanha e gosta” (Nº136). Outro exemplo foi a redação Nº158. O jovem diz: “(...) Homem não bate em mulher, mas tem umas que são folgada demais e merece tomar uns boxes (...) A mulher que apanha do marido e não se separa dele é porque gosta de apanhar ou é porque tem medo de fugir e o marido ir atrás e matar”. A ambigüidade reside no fato de que, mesmo identificando o medo que as mulheres possuem de morrer por deixarem os seus maridos, acreditam que elas possam gostar da situação em que vivem. Não identificam esse medo como uma violência sofrida em forma de ameaça. Os rapazes expressam o velho preconceito de que a mulher convive com seu agressor porque não tem “vergonha na cara”, é estuprada porque “provoca” e “apanha porque gosta”. Possuem uma visão que cristaliza a postura da mulher no “gosta de apanhar” como se fossem as únicas responsáveis por viver nessa situação. Não se dão conta que na verdade existe uma série de violências envolvidas nessa situação. A violência doméstica envolve uma complexa dinâmica que extrapola a ocorrência de agressão física. Muita gente se confunde ao acreditar que violência doméstica é só agressão. (SOARES 2002) Também não se Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br pode deixar a questão da ameaça de lado até mesmo porque estudos comprovam que elas são para valer.22 Como os jovens operam com a questão do sofrimento alheio é o aspecto mais intrigante: nenhuma pessoa gosta de sofrer violência, seja ela de qualquer tipo. Essa reflexão parece estar longe da realidade desses homens jovens. Mesmo sofrendo com um cotidiano violento, não são capazes de se colocar no lugar do outro, estendendo a sua experiência pessoal para o próximo. Outras idéias que também intrigam (a respeito desta situação) surgiram, como por exemplo a redação Nº219. O jovem diz que a mulher ‘acostuma’ com a agressão com o passar do tempo – mas uma vez, encontramos um aspecto que contribui para naturalizar a violência. Pode-se dizer que a violência é um fato comum na vida desses jovens: “A violência é o que mais acontece em todo mundo homem espancando mulheres por ciúmes, as vezes por coisa nenhuma. Bater em mulher pra muito ta virando vício ou diversão gostam de ver a mulher sofrer, mas as vezes elas mesmo fazem por merecer, mesmo assim nenhum homem tem direito de bater em mulher alguma. E essas mulheres que são violentadas devem denunciar a pessoa, só assim para elas terem sossego. Porque solução já não tem mais”. (Nº374) Mas ao contrário das redações anteriores, este aqui já não pensa da mesma maneira. Ele acha que as mulheres não merecem apanhar mesmo quando agem de uma forma que possa incitar a violência. A denúncia aparece como um mediador do conflito, como uma forma de resolver o caso de quem sofre, sem configurar-se como um mecanismo para acabar com a violência que ocorre ‘em todo mundo’. A denúncia aparece em muitas redações como uma maneira de acabar com a violência, assim como o fato de a mulher não abandonar o seu marido agressor faz com que a violência aumente.23 Essas idéias fazem sentido, e de certa maneira se completam. Entretanto, a situação é muito mais complexa do que simplesmente denunciar ou abandonar o agressor. Outros jovens mostraram-se sensíveis para perceber que “(...) falta coragem para a mulher denunciar” (Nº479). 22 Segundo artigo de Guita e Maria Filomena, em 1999 “o homicídio (...) aparece entre as dez principais causas de morte de mulheres e o crime passional é o principal motivo pelo qual elas são mortas em São Paulo (...)” (DEBERT, GREGORI 2002:18/19). 23 Redação 215. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br Ou seja, subentende-se que nesse caso a mulher vive uma situação de ameaça. Em outra redação, foi apontada a questão do “vai e vem” das relações amorosas entre vítimas e agressores. A vítima denuncia os maus tratos, mas depois volta a ficar com o agressor.24 A questão da rigidez das leis também foi lembrada: “As penas deveriam ser mais rigorosas” (Nº66). Sabemos que muitas vezes a mulher denuncia o marido e tem que conviver com ele no momento seguinte, já que a pena para o agressor normalmente é o trabalho comunitário ou o pagamento de uma cesta básica para alguma instituição - e esse problema parece ser percebido pelos jovens. Esses relatos abarcam aspectos muito difíceis de se trabalhar na realidade, nos fornecendo exemplos na prática que apontam para a mesma direção dos estudos sobre o tema. Ao relatar o seu trabalho com os agentes policiais, Bárbara Soares afirma que “o mais grave é que não só os agentes da polícia operam sobre o pano de fundo do preconceito. Como cidadãos, eles expressam na linguagem policial o espírito que atravessa toda a nossa sociedade. Por isso, infelizmente, as mulheres em situação de violência também são tratadas de forma inapropriada por juízes, promotores, profissionais da saúde, por seus amigos e familiares (...). O problema, ao meu ver, é a conjugação dos clássicos esteriótipos sobre os papéis de gênero e sobre as relações conjugais, a uma enorme desinformação sobre as dinâmicas da violência doméstica. O resultado é que, diante da incapacidade dos profissionais em compreender-lhes o comportamento, as mulheres vitimadas tendem a se recolher. Forma-se, assim, um círculo vicioso: elas não procuram ajuda porque não encontram pessoas capazes de compreendê-las e de fato ajudá-las e são acusadas, por isso, de não quererem sair da situação de violência (...).”25 Como demonstrou outro estudo, muitas das mulheres que fazem denúncias – na maioria de lesão corporal – acabam retirando a sua queixa antes que a punição aos agressores seja efetuada (DEBERT, GREGORI 2002). Isso acontece mais nos casos de violência entre marido e mulher, e é justamente por isso que 24 Redação 583. SOARES, Bárbara Musumeci. A Antropologia no executivo: limites e perspectivas in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002, Pp. 43. 25 Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br essas mulheres acabam por adquirir a imagem de que ‘gostam’ de sofrer violência, e que são responsáveis por isso. Podemos compreender portanto, porque encontramos em tantas redações essa mesma idéia. Os jovens apenas expressam o que o restante da sociedade pensa. Contudo, o fato de as mulheres retirarem as queixas e abdicarem do seu direito à denúncia é totalmente compreensível numa situação de violência contínua pois “(...) o drama da violência doméstica é precisamente esse: ela é crônica, recorrente e aprisionante; ela abala a autonomia da vítima e destrói-lhe a auto-estima e a capacidade de tomar decisões; ela se torna, para a vítima, extremamente ameaçadora, a ponto de paralisar suas iniciativas, e se dá, em muitos casos, associadas a outros problemas graves, como a pobreza, a drogadição, a violência familiar e a violência social.” 26 Existe porém uma outra perspectiva, que extrapola a idéia comum de que as mulheres não buscam os seus direitos porque cedem às ameaças, assumindo a sua condição de vítimas e oprimidas: é a perspectiva da adaptação e negociação. Ela “aceita” a violência com o objetivo de preservar a sua família e mantê-la unida (MUSZKAT 2002).27 Embora exista essa outra perspectiva, está maciçamente presente nas falas dos homens jovens a idéia de que se a mulher não denuncia é porque gosta da situação em que vive. Porém, essa não foi a regra: “Eu acho que as mulheres devem lutar pelo seu direito e não ficar sofrendo como sofre hoje em dia. E tem o direito da liberdade, lutar pela sua igualdade em tudo” (Nº238). A denúncia implica uma noção sobre direito e igualdade. Vejamos um outro exemplo: “As mulheres buscam independência própria como em sua própria casa tendo o direito de trabalhar fora e o direito de opiniões próprias. Muitos homens pensam que suas mulheres devem ser iguais as de antigamente, cuidar da casa e dos filhos, só porque suas avós e suas mães o criaram assim”. (Nº503). Aqui o jovem faz uma 26 SOARES, Bárbara Musumeci. A Antropologia no executivo: limites e perspectivas in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002, Pp. 44. 27 Devemos, portanto, prestar atenção nas nossas próprias concepções – como estudiosos e atores da sociedade civil – e não cristalizar os papéis de vítimas e agressores. Existe sempre uma perspectiva de adaptação e negociação entre atores sociais, que tornam toda e qualquer relação algo dinâmico e fluído. Assim, o importante é compreender essa dinâmica e as situações dentro de seus contextos, tentando fugir ao máximo de modelos por nós construídos para entender a realidade. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br alusão ao machismo, proveniente da educação. Ele acredita que os direitos são iguais e acha que a violência ocorre porque os homens estão com medo de ser dominados. Numa outra perspectiva, um jovem cita as transformações sociais impulsionadas pelas mulheres, que foram à luta e conquistaram o direito ao trabalho, assim como a criação da delegacia de mulheres também figura como uma conquista. Ele coloca que antes a mulher não podia trabalhar fora, nem desobedecer ao marido. E atualmente isso mudou28. Outra redação aborda a questão do direito e da igualdade, caminhando na mesma direção que a anterior: “Hoje, vemos a cada dia que passa que as mulheres estão conquistando seu espaço numa sociedade machista que ainda acha que o sexo masculino é superior ao sexo feminino e que lugar de mulher é em casa passando e cozinhando para o marido (...) e parar de pensar que são inferiores a nós homens. Ou seja temos que acabar com essa desigualdade”. (Nº605) A noção de igualdade apresentou variações de perspectivas, como por exemplo, a que apresenta uma noção sobre os direitos, identificando uma desigualdade entre os sexos, mas identifica um processo em que as mulheres estão se igualando ao homem para o bem e para o mal: “Hoje em dia elas roubam, matam, usam drogas na maior, como se fossem um ‘homem perdido’”. (Nº630) Surge então uma visão diferenciada em que as mulheres, ao buscar igualdade em outros setores da sociedade – como no mercado de trabalho por exemplo - estão se igualando também na criminalidade, na chance de entrarem para o mundo do crime. Machismo Os fundamentos dessa realidade repousam numa ideologia que denominamos ‘Machista’ e que implica principalmente a idéia de superioridade do homem em relação à mulher. Como conseqüência, outras também estão presentes, como a idéia de posse, do dever, de submissão e etc. Veremos também que a questão da masculinidade se faz importante não só para 28 Redação 576. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br compreender essa ideologia, mas também para entender como ela contribui para legitimar a violência de gênero. “Se eu ver um homem batendo numa mulher eu não faço nada porque tem que ver os motivos das brigas. Mas é errado bater em mulher (...) A violência contra a mulher é ridícula porque nenhum caso justifica a violência, nem a traição. Mas o homem não aceita a traição e acontece a violência na maioria dos casos”. Ao responder porque acontecem tantos casos de violência, diz somente: “Porque os homens são muito machistas e as são mulheres muito putas” (Nº 673). Aqui o jovem dá a entender que a violência não se justifica nem em caso de traição. Mas, ao dizer que é preciso examinar os motivos que causaram a violência, nos indica que em algumas situações ela é legitima – principalmente quando cita a traição e o fato de o homem não aceitá-la. Ao final da redação aponta para a necessidade de mais controle e diálogo por parte dos homens, além de leis mais rígidas para agressores. Talvez estejamos diante de um caso de ambigüidade com relação ao fenômeno porque o aluno, embora não concorde com a violência, parece achar normal que ela ocorra – até porque faz parte da dinâmica entre homens “machistas” e “mulheres putas”. “As mulheres precisa sofrer um pouco, as vezes nós homens brigamos com elas por causa delas, as vezes porque elas provocam ou porque são safadas demais. Mas é sempre assim as vezes acontecem violência por causa da mulher, eu nunca irei fazer isso só se minha mulher acendiar ai vou partir para a agressão porque acho que elas irão aprender.” (Nº 691) Nesta redação o discurso contra a violência aparece como pronto, dando a impressão de que foi ensinado para ser repetido, porém não internalizado realmente, muito menos traduzido em ações. Isso porque o rapaz diz que nunca bateria em sua mulher, mas se ela o desafiasse partiria para a agressão porque essa é uma forma de ensiná-la a não mais provocá-lo. A mulher é julgada como grande culpada pela violência “porque não faz o que o marido quer”, ou seja, não se submete ao marido. “Uma covardia porque homens são muito mais fortes que as mulheres, e abusam disso agredindo-as, eu conheço exemplo de homens que saem a noite deixando a mulher e filhos em casa e quando volta já tarde da noite bêbado e Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br ainda querendo ter relações sexuais com a mulher e se ela não for ela a espanca até sangrar, pra mim todo homem que agredisse uma mulher deveria ir pra a cadeia e ter pena igual a de estupradores, bandidos e etc. Porque o homem acha que a mulher deve ser submissa a ele, que deve fazer tudo o que ele quiser, que deve estar a disposição sempre que o homem quiser. A violência contra a mulher vem sendo um caso muito comum tanto no estupro tanto no casamento em conflitos, que nesses casamentos tem muitas mulheres que são ‘burras’ que depois de tudo feito pelo homem ela sai de casa, mas sempre acaba voltando para o marido que se diz arrependido e diz que nunca mais irá fazer isso, mas é tudo invenção porque acaba piorando e algumas vezes acaba em morte. E há algumas vezes que o homem é muito ciumento e a mulher não pode olhar para o lado que ele já emenda um tapa nela. A única forma de agressão contra a mulher que eu acho correta é quando a mulher trai o marido, tudo bem que não é certo, mas se acontecer comigo eu não penso duas vezes e dou um cacete nela, porque isso não se faz, eu não desejo isso pra ninguém, mas é claro que eu só faria isso se tivesse casado a muito tempo com filhos daí sim, mas em outro caso não” (Nº545). Essa redação foi transcrita na íntegra, pois é um bom exemplo de toda a complexidade que envolve a violência de gênero – que aparece aqui como a do tipo familiar. Apesar de o jovem identificar a submissão da mulher e a maior força física dos homens, vê de uma maneira simplista o fato dela sair de casa após apanhar e depois voltar, chamando-a de ‘burra’. Identificamos também uma certa naturalidade com que o jovem fala que a violência familiar pode acabar em morte, inclusive diz que a violência no casamento (assim como estupros) é muito comum. Mas o mais alarmante é que mesmo criticando a violência contra a mulher e achando que os agressores devem ser punidos e ir para a cadeia, ele acha que a traição justifica a agressão. E mais: que só se estiver casado há muito tempo e com filhos. Vemos portanto, que não há uma postura coerente com a fala, e que a questão da honra do homem no casamento é um fator de suma importância. Essa postura se estende para muitos jovens que, como dito anteriormente, identificam a idéia de posse e submissão da mulher como machista, que por sua Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br vez implica uma noção de honra do homem no relacionamento, como causa da violência. Assim, parece que importante é não ser enganado, e principalmente, não ter a sua virilidade colocada em questão pela mulher que procura outro, mancha a sua honra e questiona a sua masculinidade. Infelizmente o fato de identificarem uma postura ‘machista’ entre os homens não os impedem de agir da mesma forma. Em muitos casos não é preciso nem estar casado, para agredir a mulher: “Eu acho que quase 100% é pelo ciúmes. Como eu tenho ciúmes da minha namorada se eu catar ela com outro mato eu juro” (Nº 105). Há exemplos em que, apesar deles não admitirem diretamente que bateriam em suas namoradas ou esposas, concordam que outros homens pratiquem as agressões: “Em alguns casos eles estão certos (...) Porque tem muita mulher safada” (Nº 190). A traição aparece como fator de legitimidade por excelência da violência de gênero. Alguns rapazes a identificam como o principal motivo para que a violência ocorra: no caso da redação Nº 487, além dessa idéia estar presente, o autor generaliza dizendo que todas as mulheres traem. Interessante que não é uma hipótese nem uma suspeita, mas uma afirmação. Num outro caso, ao responder o porquê da violência, o jovem diz que “A mulher tem que se por no seu devido lugar e não tentar enfrentar o homem, por esse motivo elas apanham. E o Homem está certo, tem que sentar o pau” (Nº 224). É possível supor que existe uma idéia entre eles de que a violência é uma atitude natural de um homem quando enfrentado por sua esposa, e isso fica claro em narrativas em que descrevem casos de violência que começam justamente porque a mulher é independente ou enfrenta o marido: “... Alguns homens são muito machistas, e mandões e quando uma mulher competente encorajada vai enfrentar o homem machista, o homem já se explode e ai acontece a violência” (Nº 470). Masculinidade Existe a idéia de que a violência é uma atitude natural do homem e ela tem a ver tanto com a questão da masculinidade, quanto a forma como os meninos são socializados em nossa sociedade. Segundo Malvina Muszkat, “vivemos numa Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br sociedade que condena a violência social, mas que estimula os meninos, no seu processo de socialização, a supressão de todas as suas emoções com exceção da raiva (...). São submetidos a um processo de ‘endurecimento emocional’ (...). O impedimento de manifestações de ternura e o exercício da força e da agressividade não é para que se “sintam fortes”, mas porque “não podem se mostrar fracos” (...). Qualquer sensação de fragilidade pode ser o móvel desencadeante de sentimentos de humilhação e raiva muitas vezes incontroláveis”.29 Assim, não foi difícil encontrar falas condizentes com a idéia de que a violência é algo natural no homem, em uma série de redações: “O homem é descontrolado mesmo” (Nº 552) ou que “infelizmente o homem é mais violento” (Nº 566). Houve até uma redação em que o aluno, apesar de achar que os homens são muito violentos e se dizer muito calmo, admite a possibilidade de violência se alguém o tirar do sério (Nº 485). Podemos identificar nuances, ou seja, uns vêem como algo totalmente natural, outros vêem com mais cautela (ou com alguma crítica, como nesse último caso). Porém, infelizmente, ainda dentro de uma lógica que admite a violência como legitima na expressão de uma identidade “masculina”. Devemos lembrar que o outro lado da moeda é a socialização das mulheres, que como num oposto complementar aos homens, devem ser meigas, submissas, frágeis e seu lugar por excelência é dentro de casa. Assim, entramos na velha dicotomia homem/mulher, racional/emocional, fortes/fracas, rua/casa. A lógica que rege a violência como uma expressão de masculinidade – nossos homens agem assim porque é assim que “homem que é homem” deve agir – e a submissão como uma expressão da feminilidade, é a mesma que rege as relações de poder entre os homens e mulheres dentro da família. Dentro dessa ótica, encontramos alguns exemplos que valorizam a mulher pelo trabalho desempenhado dentro de casa, ao mesmo tempo em que vêem como natural a violência praticada por homens/maridos quando descontentes com suas mulheres/esposas: “...São elas que lavam roupa limpa a casa e faz comida para a gente por isso eu sou contra em bater em qualquer mulher depende do 29 MUSZKAT, Malvina. Violência e intervenção in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002. Pp. 50. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br motivo também tem muitas mulheres safadas no mundo de hoje em dia (...) Tem muita mulher que quando o marido chega do serviço já quer arrumar confusão. Tem mulher que bebe e enche o saco do marido em casa e o marido perde a cabeça e acaba batendo na mulher” (Nº 118). Outro exemplo em que poderíamos supor que o trabalho doméstico é bem visto porque é feito para o bem-estar do homem: após um longo discurso sobre as qualidades de uma mulher, o rapaz diz que ela “trabalhava, lavava as roupas dele, não ficava com graça com ninguém. Só que tem muitos homens que não sabem dar valor a mulher que tem. Apesar que tem umas mulheres que de vez em quando merecem apanhar”. (Nº 211) Ou seja, uma mulher que se valoriza trabalha em casa, não olha para o lado, e se não andar na linha apanha porque merece. Nesse caso há uma pequena crítica ‘aos homens que não valorizam suas mulheres’, mas que está longe de ser uma crítica ao modelo violento que rege as relações familiares. Numa outra redação encontramos uma perspectiva diferente, talvez um tom mais crítico com relação à violência desempenhada pelos homens dentro de casa. Esse jovem acredita que a violência acontece porque a maioria dos homens “casam só para ter que usar a mulher como uma empregada sem salário, onde ao invés de se reunirem e raciocinarem juntos parte pra agressão”. (Nº 169) Embora tenham surgido perspectivas diferentes sobre o papel da mulher dentro de casa, e a questão da submissão feminina, as redações em sua grande maioria reproduzem a idéia de que faz parte do papel da mulher ser submissa: “além da mulher ser bonita e atraente também é frágil e às vezes desobediente” (Nº 467). Existe aqui uma outra importante pista sobre masculinidade: a virilidade. Sabemos que a masculinidade em nossa sociedade está estreitamente ligada à virilidade dos homens e não foi difícil identificar esse aspecto nas redações analisadas, principalmente as redações que trataram de violência sexual, mais conhecida como estupro: “As mulheres se enfeitam toda e depois que ‘alguns’ homens se aproveitam delas elas sofrem muito com isso”. (Nº 491) Não há tom de acusação, mas de constatação. Não podemos descartar aqui uma culpa que parece recair sobre as mulheres por se arrumarem e se embelezarem. A mesma idéia pode ser constatada na redação Nº 481, onde o jovem acha que Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br as mulheres são “metidas” e “pomposas” e por isso são “atacadas” por tarados. Por fim pede que as mulheres sejam mais humildes e, apesar de dizer que “os homens se acham superior”, parece culpar as mulheres da mesma maneira que as redações anteriores. Podemos dizer que a idéia de que “homem que é homem” é viril e violento está implícita, pois foi manifestado uma legitimidade relativa e até mesmo uma certa compreensão no fato de um homem “atacar” uma mulher - porque teve seu “instinto de homem” aguçado por uma saia curta, ou um decote ousado. Outros exemplos confirmam a impressão de que “(...) roupas coladas bermudinhas curtas peitos grandes bunda grande (...) deixam os violentadores muito doidos e não só os violentadores (...) deixam qualquer homem doido” (Nº 72) Também foi bastante comum a idéia de que um estuprador é um homem que é “(...) louco por mulher e não tem capacidade para arrumar uma mulher (...)” (Nº 189). Interessante notar que embora o estuprador possua essa faceta de ‘homem viril’, o estupro surge como a violência mais execrável e condenável que se pode proferir contra a mulher. Assim, as falas dos jovens sobre esse tipo de violência estiveram, na maioria das vezes, voltadas para uma veemente punição do agressor. Na maior parte dos casos a punição ideal para este tipo de agressor é “virar mulher na cadeia” (Nº 200). Houve um caso mais extremo em que o relato nos mostra uma realidade bem diferente da que estamos acostumados: “(...) quando pegaram ele fizeram ele morrer que nem mulher, amarraram ele no poste, deram tudo nele e no final enfiaram um cabo de vassoura na bunda dele” (Nº 194). Talvez a justificativa para tanta repugnância seja a comparação de que a mulher estuprada poderia ser a mãe ou irmã do estuprador. Ao que parece, esse discurso é um exemplo de uma idéia que valoriza a mulher pelo seu papel na família e seu desempenho no trabalho doméstico, pois normalmente inclui falas do tipo “elas que cuidam das nossas roupas, fazem a nossa comida” e etc. O estupro aparece sempre como ação de estranhos, em lugares desconhecidos e perigosos. O estuprador quase sempre surge como um homem que “não controla os seus instintos”. Em alguns casos é apresentado também como alguém que possui problemas psicológicos. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br Nesse sentido, é compreensível que a questão do estupro doméstico pouco tenha aparecido. Há somente uma redação que o cita. Nela lê-se o relato de um marido que chega bêbado e quer transar com a mulher sem camisinha: “... não Marcos, só com camisinha o rapaz ficou muito nervoso começou a bater na mulher, a mulher por sua vez aceitou transar com o marido” (Nº 153). Uma hipótese para essa invisibilidade é que sendo o estupro muito mal visto por todos (“merecem virar mulherzinha na prisão” e etc.), se ocorrido entre marido e mulher deslegitima o ‘direito’ dos homens sobre suas esposas – ou, por outra perspectiva, não estaria dentro da lógica em que as mulheres têm como “dever” satisfazer as necessidades sexuais dos maridos. De uma maneira geral, e seguindo o mesmo caminho, tudo isso também pode significar que os maridos agressores não parecem estar errados quando agridem suas mulheres. As ações, por mais violentas que sejam, ainda têm o respaldo da idéia de que o homem detém a posse de sua mulher (incluindo as vontades dela) no casamento. Associar um homem/marido à figura de um estuprador rompe com a idéia de que a mulher “tem deveres sexuais para com o marido” ou que, no fundo, ele não tem a posse da sua esposa e nem é dono de suas vontades. Não é de se espantar, portanto, que se identifiquem duas concepções implícitas nos casos de estupro – e que de uma certa maneira se completam nesse mesmo modelo de relações de gênero: uma relativa ao comportamento social da mulher – a mulher “provoca” usando roupas insinuantes – a segunda em relação ao comportamento instintivo/natural do homem que “não consegue se conter” ao ver uma mulher bonita. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br CONCLUSÃO As redações contemplam a questão da violência física e psicológica, a problemática da denúncia, do preconceito do marido com a esposa que trabalha fora de casa. Abarcam também aspectos do machismo e do ciúme, da traição, da submissão da mulher e seu papel como dona de casa, assim como razões para a ocorrência da violência de gênero. Contudo, por mais que esses aspectos tenham aparecido nas redações, não quer dizer que os jovens as tenham contemplado de forma coerente e consciente. A agressão física pode ser considerada a forma de violência mais identificada, pois se manifesta de maneira clara e pungente. São muitos relatos sobre mulheres que morrem nas mãos do marido, levam socos, tapas, são espancadas com canos e outros artefatos. Em muitos casos recrimina-se o ato violento, mas afirma-se que a violência serviria de lição aos agressores. Assim como foi comum a idéia da agressão como lição a uma mulher que não se submete ao marido. Ficou claro que a violência muitas vezes surge por motivos banais - segundo uma boa parte das redações – como por exemplo quando as mulheres questionam a demora do marido ou porque a comida não está pronta quando ele chega do trabalho. O álcool também figura como um dos principais motivos de violência e devemos atentar para o fato do contexto social em que estão inseridos: faltam espaços de lazer e educação; faltam empregos. Muitos abrem um pequeno bar para se sustentar. Outros que têm tempo livre passam a ser freqüentadores. Há portanto uma combinação cruel, social e cultural, que propicia o alto nível de alcoolismo e o surgimento de todos os problemas que esse tipo de doença pode acarretar. De uma maneira geral, identificamos diferentes nuances e ambigüidades a respeito do que é violência, incluindo aí a sua legitimidade em determinados casos. Intriga e preocupa a posição ambígua dos jovens. Houve muitos casos de redações em que a frase seguinte era completamente oposta à anterior. Como exemplo, a redação número 470: “(...) Homens que fazem violência contra a Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br mulher, que isso é um ato de covardia, pois há mulheres que até merecem uma corsa, mas jamais o homem pode agredir uma mulher”. Verificamos o mesmo na redação 570: o jovem inicia criticando os homens que batem em suas mulheres em casa, mas na rua “amarelam”; identifica o sofrimento das mulheres que ficam em casa submissas aos maridos, perdendo todo o contato com o restante da sociedade; o sonho de casamento que se transforma em pesadelo; e termina com a seguinte sentença: “Tem mulher que são safadas, não valem #*&=§, por isso merecem levar várias chibatadas, até morrer”. Percebemos portanto, uma repetição de um modelo vivido na prática mesclado a um discurso decorado, politicamente correto, mas não refletido, no sentido de não ter sido pensado por quem o produz. Nesse processo, todas as ambigüidades relativas à violência que estão presentes na sociedade, tanto no nível do discurso quanto da prática, vão sendo também manifestadas nas falas e ações do indivíduo. Refletem uma mentalidade mais geral da sociedade, porém de forma extremada porque se insere num contexto de ampla exclusão social, onde tanto a falta de educação formal, quanto os maus exemplos dentro da família, impossibilitam uma reflexão mais apurada sobre a realidade violenta em que vivem. O que mais impressionou no presente trabalho foi o fato de que a violência se apresenta como algo natural e até legítimo. Surge naturalizada por uma ideologia que assume a superioridade masculina e o direito dos homens sobre suas esposas. E que se apóia numa forma específica de socialização masculina – que por sua vez implica uma noção de que “ser homem” é ser forte (violento), sem demonstrações de sentimentos ou fraquezas. Também surgiu com muita freqüência a questão da “fragilidade feminina” como um fator que propicia a violência e essa idéia faz parte, como sabemos, do mesmo processo que, ao socializar os homens como “fortes”, opera de maneira oposta com as mulheres – que no caso são “fracas”.30 Embora os jovens tenham, em larga escala, admitido o machismo como causa da violência, muitas vezes eles mesmos assumiam a mesma postura. Houve redações que manifestam clareza sobre a condição de 30 Muito comum também foi o aparecimento da afirmação “homem que é homem não bate em mulher” ou a lógica de que um homem para ser macho tem que bater em outro homem e não numa ’frágil’ mulher; Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br opressão e submissão das mulheres, mas as que partiram de uma perspectiva totalmente oposta, examinando as atitudes das mulheres unicamente pela ótica masculina, foram maioria. Interessante que nos dois casos a atenção dos jovens se concentra muito no comportamento/ação das mulheres: escolher bem os maridos, denunciar, não usar roupas insinuantes, tomar cuidado para não ser estuprada, etc. A análise das redações focando a violência de gênero é então coerente com o universo de estudos sobre o fenômeno, e mais especificamente sobre a violência familiar – que tem seu maior expoente no casamento, ou seja, em sua grande maioria, os agressores por excelência são os maridos. Em segundo lugar aparecem os namorados - e isso ficou amplamente demonstrado nos relatos contidos nas redações. Dessa forma, não seria errado focar o espaço doméstico, ou a unidade familiar para se compreender com mais clareza a violência de gênero não só porque foram exatamente esses casos que apareceram mais, mas porque há um tom de naturalidade nessas ocorrências o que a torna mais perigosa ainda. Segundo Malvina Muszkat “(...) o espaço privado é densamente carregado de conflitos. A dinâmica e a organização das famílias se baseiam na distribuição dos afetos, o que tende a criar no espaço doméstico um complexo dinamismo de competições e disputas que, antes de mais nada, são motivadas pela conquista de espaços que garantam o amor, o reconhecimento e a proteção, necessidades básicas da condição humana. O nível de intimidade e de disputa pelos afetos estimula sentimentos ambíguos de amor e ódio, aliança e competição, proteção e domínio, entre todos os seus membros.”31 Desta perspectiva, também é fácil entender porque apareceram relatos de mães que apanham dos filhos. Por mais que não tenham sido muitos, quando relatados havia a presença de drogas. Por sua vez, o álcool e as drogas estiveram presentes em muitos dos relatos de violência, em que é comum o homem chegar bêbado em casa e espancar a mulher por qualquer motivo. 31 MUSZKAT, Malvina. Violência e intervenção in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002. Pp. 49. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br Não estamos afirmando que a violência contra a mulher se dá unicamente neste espaço e na unidade familiar. Todos sabemos que ela é infinitamente mais ampla porque resulta de uma ideologia que atinge toda a sociedade e comporta nuances nem sempre visíveis como a violência física – é o caso da violência simbólica e do preconceito. Assim, de certa forma os jovens identificaram o preconceito no mercado de trabalho, a questão da educação, da “cultura da violência”, e do papel da mídia como fatores que incentivam a violência. A emancipação feminina e a liberdade que as mulheres vêm conquistando ao longo dos anos, e a relativa mudança dos papéis do homem e da mulher na atualidade, também foram citadas, em muitos casos num contexto em que o homem não aceitava tais mudanças. Embora haja muito preconceito contra a mulher, ele praticamente foi concebido como violência simbólica nos casos em que mulher não podia trabalhar fora de casa, e desta forma como uma violência praticada pelo marido - pois o emprego da mulher aparece sempre como uma possibilidade de traição e de superação do homem. Muitos foram os relatos que deram a entender que toda e qualquer ausência do espaço doméstico é motivo para que se suspeite da mulher e tenham ciúme. Assim, o preconceito foi largamente concebido como violência simbólica nas questões ligadas ao mercado de trabalho, à capacidade da mulher em exercitar determinados tipos de serviços e à diferença de salários entre ambos. Interessante o tom romântico e muito presente da mãe como aquela que “dá a luz”, que “cuida do homem” e “cuida da casa”. Quando os jovens reivindicam o respeito à mulher baseando-se numa comparação com suas mães, também está implícita uma visão em que a mulher acaba por ser valorizada justamente pelo seu papel doméstico, ou seja, o seu papel de mãe que, segundo eles, é cuidar da casa, dos filhos e do marido - ligada também a uma visão da importância das mulheres para a reprodução. Quando falam “pensem se fosse sua mãe” há uma valorização da mulher por esse aspecto “sagrado” que permeia a questão da reprodução - do fato de gerarem seus filhos e de que estes jovens foram gerados por uma mulher. Aqui, o respeito não provém de uma noção de igualdade de gênero/pessoas, mas sim por uma questão de respeito que todos devem ter por Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br suas mães. Também é interessante nesse caso pensar na dicotomia que cerca o imaginário sobre a mulher: ou ela é santa/mãe/submissa, ou ela é profana/puta/desobediente, e nesses casos identificadas como as “outras” – aquelas que merecem apanhar e sofrer nas mãos dos maridos. É importante ressaltar que nas redações analisadas, essa fala sobre as “mães” vieram acompanhadas de relatos de estupros – e numa pequena proporção ela apareceu em casos de relatos sobre agressão doméstica e/ou familiar. Quando possuem uma visão social mais consistente e ampla, atribuem como incompetência do Estado a falta de segurança e a impunidade. Nesses casos percebem que as leis não são rígidas e por isso mesmo não inibem os agressores. Uma questão que surgiu durante a análise de suma importância foi a denúncia. Ela parece ser vista como um mecanismo para solucionar o problema/conflito, o que não significa que implique uma noção de direitos iguais entre os homens e mulheres. Isso porque poucas redações se referem às denúncias como uma forma de garantir o direito à integridade física, à liberdade e à igualdade entre os gêneros. Na maioria das vezes, é citada simplesmente como uma forma de fazer um marido parar de bater em sua mulher, residindo nesse aspecto a sua função. Quase todas as redações que citaram a denúncia deixaram de fora as palavras direito e igualdade. Percebemos, portanto, que no universo estudado – a realidade dos jovens da periferia de São Paulo – a delegacia faz muito mais sentido do que os direitos. E essa é uma pista importante para pensarmos onde é que o mecanismo jurídico criado para a defesa dos direitos das mulheres emperra: como usar um instrumento do qual não se conhece os fundamentos? Essa é uma questão a se pensar em futuros trabalhos, tanto teóricos como práticos. Com o crescimento da desigualdade social, encontramos também um processo de esvaziamento dos valores humanitários assim como vem ocorrendo uma perda no referencial da família, que atualmente não tem tido condições de ajudar na construção dos ideais de autonomia, cidadania e alteridade, e estabelecer a noção de respeito ao próximo - o que possibilita aos jovens Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br reconhecer os próprios limites como indivíduos e como cidadãos, e estender esses referenciais não só às mulheres mas a toda a população. Hoje em dia nos deparamos com um Estado praticamente falido, incapaz de garantir os direitos dos cidadãos de todas as classes sociais, fomentando uma sociedade completamente desigual. Os direitos mais fundamentais como saúde, educação e moradia não se estendem a todos, e a ausência quase que completa de justiça amedronta uma população que vive cercada por todos os tipos de violência, muitas vezes impossibilitada de garantir os seus direitos. Portanto, não basta simplesmente saber que tipo de violência os jovens exercem ou são vítimas – até porque reproduzem aquilo que aprendem - mas quais as razões para a emergência dessa violência e como ela se instaura. A questão passa tanto pelas construções dos papéis sociais, quanto pelas relações de gênero, educação (formal/informal), quanto pela mídia – e todas as representações sobre os papéis de gênero que ela espelha ao mesmo tempo em que ajuda a construir. É relevante enfatizar que as redações desses jovens, pobres e amplamente excluídos da nossa sociedade, são um retrato fiel de “(...) uma população que vive em estado de marginalidade social (...). São sujeitos de famílias discriminadas e desrespeitadas pela sociedade (...). Sem condições apropriadas ao lazer, fazem do bar ou da rua seu ponto de referência social, tendendo-se a voltar-se para álcool, as drogas, o confronto entre homens e a sexualidade promíscua, desafiando quase sempre a estabilidade social. (...) Não se pode considerar o agressor dessa camada social como um representante típico do modelo hegemônico masculino. Mesmo que influenciado pelos seus esteriótipos de força e poder ele não usufrui os benefícios da supremacia masculina. (...) Uma coisa, porém, é certa: a violência exercida pelos homens se apóia em paradigmas tradicionais da cultura que (...) podem ser interpretados como uma forma de denúncia de uma sociedade ambígua e perversa que reprime e, ao mesmo tempo, cultua a violência”.32 Tendemos a nos impressionar, ficar horrorizados e a condenar a atitude dos nossos homens jovens, e de fato isso é necessário e legítimo, pois elas são 32 MUSZKAT, Malvina. Violência e intervenção in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002 Pp. 51/52 Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br extremamente ‘machistas’. Contudo, estamos tratando de instituições sociais, ou seja, de comportamentos instituídos pela nossa sociedade num processo que é histórico e que possui raízes muito profundas. Embora hoje não seja mais permitido encarar a submissão das mulheres com naturalidade - muito menos admitir que ela sofra violência física ou psicológica freqüentemente – devemos lembrar que há muito tempo esse foi um aspecto tido como “natural” da alma feminina. A batalha para desconstruir velhos esteriótipos que legitimam uma série de violências é uma tarefa árdua. Podemos condenar e punir determinadas condutas, mas não devemos esquecer que se nossos jovens tivessem consciência e opção, talvez agissem de outra forma. “O fato é que a violência e a desigualdade estão na base das próprias instituições. Suas raízes fazem parte do imaginário e permeiam as práticas e a cultura e é nisso que precisamos investir: na mudança de mentalidade”.33 A violência é também exercida sobre nossos jovens, influenciando os seus comportamentos e as suas atitudes. Desse ponto de vista, a violência cruel e desumana praticada por eles sobre suas namoradas e esposas é apenas a face mais visível de uma violência que a sociedade produziu e legou a si mesma; é a expressão da experiência cotidiana da desigualdade e da falta de cidadania em que vive a maioria da população. 33 MUSZKAT, Malvina. Violência e intervenção in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002. Pp. 52. Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br BIBLIOGRAFIA DEBERT, Guita e GREGORI, Maria Filomena. As Delegacias Especiais de Polícia e o Projeto Gênero e cidadania in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002 INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO (03/11/2003) Campanha Publicitária Contra a violência Sexual . Relatório Reunião com especialistas MONTES, Maria Lúcia Aparecida Violência, cultura popular e organizações comunitárias in VELHO Gilberto e ALVITO Marcos (Orgs) Cidadania e Violência Rio de janeiro: Ed. UFRJ: Ed. FGV, 1996 MUSZKAT, Malvina. Violência e intervenção in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002 SOARES, Bárbara Musumeci. A Antropologia no executivo: limites e perspectivas in CORRÊA, Mariza (org.) Gênero e Cidadania. Campinas-SP, Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero – Unicamp, 2002 VELHO, Gilberto Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva antropológica in VELHO Gilberto e ALVITO Marcos (Orgs) Cidadania e Violência Rio de janeiro: Ed. UFRJ: Ed. FGV, 1996 ZALUAR, Alba A globalização do crime e os limites da explicação local. in VELHO Gilberto e ALVITO Marcos (Orgs) Cidadania e Violência Rio de janeiro: Ed. UFRJ: Ed. FGV, 1996 Rua Araújo, 124 - 2º Andar - Vila Buarque - 01220-020 - São Paulo - SP - Brasil Telefax: 55-11-3255-1238 - [email protected] - www.ecos.org.br