JOSÉ MARIA SILVA MONTEIRO FUNANÁ: DE TRADIÇÃO À INOVAÇÃO – UMA ANÁLISE LITERÁRIA INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO JUNHO DE 2006 2 José Maria Silva Monteiro FUNANÁ: DE TRADICÃOÀ INOVACÃO – UMA ANÁLISE LITERÁRIA – Monografia como pré-requisito de conclusão do curso de Licenciatura em Letras – ECVP – do Instituto Superior de Educação, sob a orientação do Professor José Maria Semedo. INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO – ISE Praia -2006 3 Instituto Superior de Educação Departamento de Estudos Cabo-verdianos e Portugueses Tema: FUNANÁ: DE TRADIÇÃO À INOVAÇÃO – UMA ANÁLISE LITERÁRIA O Júri _________________________________ _________________________________ _________________________________ Praia, Junho de 2006 4 DEDICATÓRIA À Loly e ao Bentinho, Que ao crescerem tornaram-me mais consciente dos meus deveres; À minha avó, Que partiu para sempre – que Deus a tenha; Para os meus pais que me deram a vida e a oportunidade de estudar e trabalhar, não obstante os parcos recursos que possuíam; assim como ao povo de Ribeirão Boi e Santa Cruz inteiro que deram uma contribuição valiosa para o meu progresso. Aos colegas de infância (em especial Loló), com quem palmilhei montes e vales, vencendo ladeiras e cutelos nas sucessivas idas e vindas na ânsia de aprender. – Consciente ou inconscientemente vocês me apoiaram. Obrigado à todos! 5 AGRADECIMENTOS Para que esse trabalho pudesse concretizar contamos com o apoio e dedicação de algumas pessoas e entidades. Neste âmbito começaríamos por agradecer em primeiro lugar ao Dr. José Maria Semedo, que sempre manifestou a sua disponibilidade em nos orientar. A sua orientação foi excepcional! De igual modo agradecemos a todos os Professores do ISE, que directa ou indirectamente influenciaram o rumo dos nossos conhecimentos. Ao Cláudio Furtado, que de maneira brilhante ajudou-nos a desenvolver na percepção critica da realidade e do mundo. Ao Leocádio Ramos da Silva, que sempre nos aconselhou, abrindo assim os nossos horizontes. Uma nota de apreço muito especial ao Zeca di Nha Reinalda, Kode di Dona, Kaká Barbosa, Djudju (homem de letras e de “Kultura”) Dju di Rabenta e Stivie – Homens da cultura com os quais tivemos um diálogo decisivo no quadro desse trabalho. 6 "Nunca desesperes face às mais sombrias aflições de tua vida, pois das nuvens mais negras cai “Funaná é caminho longe; funaná é liberdade.” João Cerilo Pereira Monteiro (Pó-di- Terra) 7 INDICE Introdução I. Breve Enquadramento Teórico/Metodológico Pags. 10,11 12 1.Situação Geográfica De Cabo Verde 13 2.Situação Politica 14 3.Situação Económica 14 II. Origem 1. Breve Historial de Funaná 2. Um Novo Funaná 15,16 16 17,18 III. Breve Bibliografia Dos Principais Executantes 1. Kodé Di Dona 2.Norberto Tavares – O PioneiroPai Do Funaná Moderno 3.Carlos Alberto Silva Martins - Katxás IV. De Campo À Cidade: O papel do conjunto 19 19,20 21 22 “Bulimundo” 1.Inovação no Funaná 2. O Papel do conjunto “Bulimundo” 22,23 23 3.Funaná E A Religião 23-25 4. Funaná E A Politica 25-27 V. Análise Literária De Algumas Músicas Do Funaná 28,29 – “Fomi 47”– Kodé Di Dona 8 1.Narração E Descrição Em Kodé Di Dona 2. Estrutura Do Texto (Plano Formal). 30 30,31 3.Tempo De Narração 32 4.O Eixo Paradigmático Da Canção. 33 5.Marcadores Da Narrativa E Da Oralidade. 34 6.“Fomi 47” Em diálogo com a Literatura 34 7.Os Recursos Expressivos Do Texto 35,36 8. Simbologia De Quatro Em Kode Di Dona 37 9.A Questão Da Rima. 38 VI. Ferru Gaita e o Ritmo da Modernidade 1. Fundu Baxu 39 2.Memória Textual 40 3.Estrutura Do Texto. 40 3.1.Plano Formal 42 3.2.Plano Ideológico 43 3.3.Plano Fónico 44 3.4.Conclusão Do Ponto De Vista Estilístico. 44 VII. Análise De “Dja´M Branku Dja)” – Bulimundo 1.Plano Semântico 45,46 46 9 2.Plano Formal 46 3.Plano Ideológico 47 4.Plano Fónico 47 VIII. Evolução Do Funaná IX. Conclusão 48-51 52 X. BIBLIOGRAFIA 53,54 XI. ANEXOS 55-65 10 INTRODUÇÃO A cultura cabo-verdiana, concretamente a música, desde principio indiciou um costume estético demonstrativo de que a essência da arte musical é um factor que bem utilizado constitui um dado histórico magistral na existência de um povo. A música, quer enquanto poesia quer enquanto narração novelística, apresenta-se como um dado importante no retratar do social, do espiritual e do psicológico de um país, de um povo ou de uma região. A semelhança da literatura, na música os autores cabo-verdianos começaram a empenhar-se em representar o ‘chão crioulo’e a usar a música para retratar a realidade social. Deste ponto de vista, o ouvinte/leitor percebe nitidamente a importância de um tema como a emigração na produção musical cabo-verdiana resultante de factores de ordem económico, geográfico entre outros. Neste trabalho pretendemos fazer um estudo ligado a música cabo-verdiana, especificamente o "Funaná", esse ritmo quente e gostoso que veio apoiar no enaltecimento do sentimento popular em Santiago porquanto que, só depois do aparecimento de executantes talentos de nível de Carlos Alberto Silva Martins, “Katchás” e de conjuntos como os “Apolos” ”Bulimundo” e “Finason”, que esse ritmo expandiu acabando por ser conhecido nacional e internacionalmente. Na literatura criada pelo Movimento Claridoso quer na poesia quer na novelística, a emigração, a fome, o evasionismo eram temas recorrentes. Será possível perceber esses aspectos nas letras da música “funaná”? Os compositores do funaná têm como atitude espiritual exprimir determinadas situações da existência do povo cabo-verdiano, decorrente do condicionamento geográfico e telúrico do arquipélago. Na literatura é conhecida a dicotomia "querer partir e ter que ficar" ou "querer ficar e ter que partir’ – Será possível encontrarmos esse aspecto também no funaná? No âmbito desse trabalho propomos analisar esses e outros aspectos que fazem parte da mundivivência do cabo-verdiano espelhado na nossa música, designadamente – o funaná. Conforme veremos mais adiante, de início estava confinado ao espaço rural (interior de S. Tiago), passou depois para a cidade, depois de feitas algumas mudanças a nível instrumental. Dantes era executado apenas com “Gaita” e ferrinho, depois passou a ser tocado com instrumentos electrónicos nomeadamente violas e percussão, a partir da independência de Cabo Verde em 1975. 11 Neste trabalho pretendemos fazer um breve apanhado ao que se tem dito em relação ao funaná com vista a chegar a uma breve análise das letras desse estilo musical que encerra algum valor poético. Resumidamente procuraremos fazer a decomposição de alguns textos do funaná em suas partes constitutivas, para perceber o valor e o relacionamento que guardam entre si e para melhor compreender, interpretar e sentir a musica/poema como um todo completo e significativo. Assim sendo teremos em consideração na nossa breve análise os seguintes aspectos teóricos: a)Plano Semântico b) Plano Formal c) Plano Fónico d) Plano ideológico. 12 I. BREVE ENQUADRAMENTO TEÓRICO/METODOLÓGICO O funaná, estilo musical oriundo do interior de Santiago tem despertado interesse de estudo por parte de diversos agentes culturais como etnólogos, antropólogos, sociólogos, nomeadamente na sua vertente “musicológica”, dando realce ao ritmo, compasso e outros elementos melódicos. Como estudante de literatura esse estilo chamou-nos atenção pela beleza e riqueza das suas letras, do seu conteúdo temático e semântico, concretamente falamos das diversas sugestões que a sua letra nos apresenta. Então, a partir das letras pretendemos fazer uma análise literária com vista a aferir mudanças na produção literária que enformam as letras dessa música. As questões iniciais e que permeiam este trabalho são as seguintes: - Que mensagem literária apresenta as letras do funaná? - Que contributos tem dado o funaná, para o enriquecimento da cultura cabo-verdiana? - As letras musicais do estilo funaná têm constituído uma mais valia para a nossa cultura? -Será que essas mensagens têm contribuído para a formação de identidade do caboverdiano? -A evolução do funaná fica devido a presença da nova geração ou esta simplesmente deu uma nova roupagem ao já existente? Propomos responder essas e outras questões ao longo deste trabalho através de pesquisas e entrevistas. 13 1.SITUAÇÃO GEOGRÁFICA DE CABO VERDE Constituído por 10 ilhas e oito ilhéus, o arquipélago de Cabo Verde se divide em dois grupos: o de Barlavento, formado pelas ilhas de Santo Antão, Sã Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boa Vista, e o grupo de Sotavento, formado pelas ilhas de Santiago, Maio, Fogo, Brava. As ilhas se dividem, quanto ao relevo, em ilhas planas e montanhosas. As planas são as mais orientais, Sal, Boa Vista, e Maio. As montanhosas são as ilhas de Santo Antão, Santiago e São Nicolau, sendo que as restantes são de relevo acidentado. O ponto culminante do arquipélago situa-se na ilha do Fogo, com o cume do vulcão medindo 2.829 metros acima do nível do mar. A temperatura média anual do arquipélago é de 25º e a sua amplitude térmica não ultrapassa os 11º, isto devido à presença do mar. A bruma, seca que por vezes aparece nas ilhas, é proveniente dos ventos do deserto e tem duração incerta. Nos meses de Julho a Outubro temos a época das chuvas, e é quando as ilhas se cobrem com verdejante manto fresco e tão esperado por todos. 14 2.SITUAÇÃO POLÍTICA Depois de 15 anos de regime de partido único, Cabo Verde abraçou a democracia representativa em 1990. As primeiras eleições livres e pluralistas aconteceram a 13 de Janeiro de 1991, tendo sido vencidas pelo Movimento para a Democracia (MpD), passando o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV, sucedâneo do PAIGC) para a oposição. O MpD, hoje na oposição, manteve-se no poder nos 10 anos seguintes, até ser substituído pelo seu rival, PAICV. De acordo com a actual Constituição, Cabo Verde é um Estado de direito democrático, onde os direitos dos cidadãos são respeitados. O regime em vigor é de base republicana e parlamentarista. Pedro Pires, veterano da luta pela independência, é o actual chefe de Estado; e José Maria Neves, um dos mais jovens chefes de governo de África, o Primeiro-Ministro. A Cidade da Praia é a capital do país, que ainda possui um poder local organizado em câmaras e assembleias municipais. 3.SITUAÇÃO ECONÓMICA As ilhas de Cabo Verde têm poucos recursos e são afectadas pela seca. A agricultura é prejudicada pela falta de chuvas regulares e está restringida a apenas quatro ilhas. Estimado actualmente à volta de 1500 dólares per capita, o PIB é produzido, maioritariamente, pelo sector terciário, ou seja, pelos serviços. A moeda cabo-verdiana, o escudo, está indexada ao euro, valendo um euro 110 CVE. 15 II.ORIGEM O funaná é um ritmo musical de Cabo Verde, mas precisamente da ilha de Santiago e é tocado com gaita e ferrinho. Diz-se que a origem do termo "Funaná" vem de um homem que se chamava Funa e tocava gaita (correspondente ao acordeão) e de uma mulher chamada Nana que tocava ferro (ferrinhos). O "Funaná" nasceu no interior da Ilha de Santiago, na República de Cabo Verde para animar as actividades nas zonas rurais, qualquer que fosse a festa (um casamento, um baptizado, uma festa religiosa) era sempre ao som do "Funaná". A sua origem é objecto de muita especulação porquanto não existem documentos que provem esse aspecto. Assim sendo encontramos diferentes hipóteses sobre o seu surgimento. O funaná ou badjo gaita foi no passado ao lado batuque músicas marginalizadas. Significasse ou proviesse do “fungagá” (música reles, trivial), ou da aglutinação dos nomes dos tocadores de gaita e ferrinho “ Funa” e “Naná” , facto é que até ao surgimento dos conjuntos os “Apolos” 1 e “Bulimundo” 2 , o termo “Funaná” evocava coisas reles e banal na mentalidade de grande parte dos cabo-verdianos. Na opinião de Kaká Barbosa, o funaná não existia como música e nem como ritmo. Porque segundo ele os ritmos existem pela sua própria natureza. Agora o que aconteceu é que depois da independência criou-se um chapéu e por baixo dele colocou-se vários ritmos: funaná lento, funaná “rapikadu”. Chamou-se funaná para criar uma designação que coubesse um determinado número de ritmos. A gaita de fole era tocada pelos camponeses, sobretudo no interior de Santiago; Como ela não é um instrumento que contém todas as notas musicais é provável que o tocador cortou as partes que não o interessava deixando aquilo que a gaita pudesse exprimir dando origem a uma nova musica. Segundo o mesmo para marcar o compasso usa-se a mão esquerda que faz o compasso de baixo, é um compasso que de acordo com o teclado da mão direita com o puxar e levar a gaita para exprimir uma certa melodia, determinado tom, houve deturpações, houve uma nova acomodação tanto de ritmo como de melodia dando origem a uma música diferente que é a música do interior de Santiago. 1 Nome dado ao conjunto musical cabo-verdiano surgido na década de 80 em homenagem ao Deus da música e da poesia. Segundo a mitologia, nasceu em Delos, num dia sete. Nesse dia, cisnes sagrados deram, sete vezes, a volta à ilha; (Cf. Dictionnaire dês Simboles). 2 Conjunto musical cabo-verdiano fundado pelo músico Carlos Alberto Martins. O nome provém da designação do maior edifício de Perda Badejo, terra natal do musico, que no passado funcionou como lugar de assistência aos doentes e famintos em épocas de crise. 16 É um género recente, surgido, segundo uns, no final do século passado, segundo outros nos princípios ou meados deste. Algumas pessoas, designadamente Lídia Mendonça 3 afirmam que depois da importação da gaita ela difundiu-se pela ilha de Santiago, e que ao se manusear o instrumento sem uma aprendizagem prévia, surgiu este tipo de música que evoluiu e originou diversas variantes. Para outros, talvez pela igreja, para substituir os órgãos. Constata-se a partir daí que a origem do funaná é bastante controverso. 1. BREVE HISTORIAL DE FUNANÁ Segundo reza a história recente, o funaná constitui sempre uma música do campo, com pouca aceitação na cidade e sem prestígio social nas camadas elitistas. Não era bem vista, uma vez que nas actividades em que era, surgiam sempre atritos e confusões de que acabavam por terminar com as actividades muitas vezes no meio de guerra, pancadarias, choros e apupos; às vezes até terminavam com mortes. No passado esse género de música foi proibido pelos colonialistas. Talvez por ser muito eufórico e muito sensual, características que faziam dele uma musica conflituosa. Segundo Virgolino, mas conhecido por Dju di Rabenta, conhecido tocador de gaita, a mentalidade do povo não ajudava, pois o baixo nível cultural das pessoas propiciava o surgimento desses conflitos. Os próprios tocadores também agitavam a assistência ao disputarem o melhor executante. Normalmente nos bailes de funaná os tocadores tinham o hábito de se desafiarem um ao outro; a medida que tocavam aproximavam – se um do outro numa clara atitude de desafio; isso as vezes levaria a desentendimentos que não raro terminavam em brigas sangrentas. As pessoas aproveitavam do momento dessas festas para ajustarem as velhas contas, que tinha por motivo na maioria das vezes a concorrência pelas meninas bonitas da aldeia, o ciúme descontrolado, enfim - richas do passado. Esses aspectos originam sempre choques às vezes sangrentos entre os familiares, e sendo festa de camponeses, com regras tradicionais próprias, o desfecho de certos embates não era com certeza, de acordo com certas normas da lei e moral dos colonizadores e de uma sociedade civilizada. Daí que, as apreciações que se registam em relação ao funaná, na era colonial, sejam sempre depreciativas, o que motivou o isolamento desta música, que se tornou um símbolo de resistência, no interior de Santiago, facto até agora muito pouco estudado e assinalado pelos estudiosos. 3 Senhora já idosa residente Santa Cruz. Mulher de finaçon, txabeta e batuku; Conceituada dançarina do funaná. 17 Para Carlos Gonçalves 4 , estudioso da música cabo-verdiana, em 1978, no seguimento do movimento de retorno às fontes tradicionais da música, que surgiu a partir de 1974, o músico e compositor Carlos Alberto Martins (Katxás), desencadeou com o seu conjunto Bulimundo, o aproveitamento das bases melódicas e rítmicas do funaná e a sua adaptação aos instrumentos electrónicos. Este trabalho, no início contestado por muitos intelectuais, mas amplamente aceite pela camada jovem e pelo povo de Santiago, revestiria a forma de uma verdadeira revolução musical no arquipélago. O surgimento do Bulimundo daria um impulso novo na música de cabo Verde, que se viu enriquecida com mais uma forma musical. Tratase, pois, de uma nova forma de música com outra instrumentação e até outra estrutura musical e temática, mas com raízes no funaná tradicional que lhe deu origem. Actualmente, o funaná (na sua nova versão) é juntamente com a Morna e a Coladeira, um género musical nacional, cujas composições fazem parte do reportório de qualquer conjunto ou orquestra. A sua dança, do tipo europeu (dama e cavaleiro de braços dados) tem características próprias e uma elegância digna de qualquer salão. UM NOVO FUNANÁ Ainda de acordo com Gonçalves a Independência de Cabo Verde em 1975, regista-se uma verdadeira explosão musical, caracterizada pela popularização da chamada “Música Revolucionaria”, que consistiu na tradução nos versos de mornas e Coladeiras, de temas sobre o nacionalismo, louvações à independência e temas de protesto. Nos finais dos anos 70, surge o conjunto “Bulimundo”, sob a orientação de Carlos Alberto Martins que retoma o princípio do retorno às fontes. O trabalho desses grupos incide primeiro sobre o funaná, e depois sobre o batuque, géneros da ilha de Santiago, com grandes potencialidades e até então inexplorados. O “Bulimundo” efectuou um estudo profundo dos ritmos, estrutura melódica e acordes, desses géneros, que transporta para uma orquestra de instrumentos eléctricos. No início interpreta e adapta simplesmente, as composições de músicos tradicionais (Sema Lopi, Kodé diDona, Caeteninho e outros). O sucesso e aceitação desta nova música é imediato, pelo que o novo género “Funaná” (com instrumentos electrónicos) passa logo a dispor de composições e compositores próprios, bem como de uma quantidade de variantes de ritmo e de orquestrações. 4 Estudioso da música cabo-verdiano, tendo publicado um trabalho sobre funaná na revista fragata (nº22) em 1999, sob o título “ Funaná: O cartão de visita de Cabo Verde" (Pags.16,18 e 19). 18 Nesta mesma altura, Norberto Tavares gravava em Lisboa, um disco com o sugestivo título “Volta pa Fonti”, de facto, um regresso às fontes da música tradicional: o Batuque e o Funaná. Embora distante (Lisboa e Praia) Norberto Tavares e Katxás estão coincidentes nos objectivos destes novo movimento. Este trabalho, que tem muito sucesso, antecipa o Bulimundo na gravação desta nova forma do Funaná (electrónico). Controversa no seu início, esta nova música só consegue impor-se totalmente, depois de uma grande luta com os tradicionalistas que julgavam estar-se perante a deturpação de uma género folclórico, que devia ser conservado e interpretado tal qual. Nos anos 80, o tão almejado e controverso terceiro género musical, muito procurado (desde 1973) consegue impor-se na sua plenitude em todas as ilhas como musical nacional, em pé de igualdade com a Morna e a Coladeira. O “Novo – Funaná” é, sem dúvida, a maior conquista da música caboverdiana, no seu processo de evolução. Por um lado, enriqueceu o panorama musical nacional, e por outro levou a uma revalorização da chamada música tradicional (que se circunscreve a realidade regionais ou mesmo locais), que só viria a ter uma maior expansão nos finais dos anos 80 e nos anos 90. Como em outros países com músicas tradicionais por transmissão oral, o Funaná esteve quase a desaparecer no final dos anos 70 do sec. XX. Como foi referido atrás, foi muito importante o trabalho do Katchas nos “Bulimundo” para que o Funaná não morresse; É então que no decorrer dos anos 80 muitos tocadores voltam a fazer bailes de Funaná, depois de terem parado. Com a evolução dos meios técnicos, muitos tocadores gravam CD’s: Bitori nha Bibinha, Sema Lopi e Julinho da concertina (este residente em Portugal) entre outros. Até que aparecem os Ferro Gaita (finais da década de 90 a combinarem a Gaita e o Ferro com o Baixo eléctrico e a Caixa de ritmos (Drum’s machine) – à semelhança do que o “Bulimundo” já tinham feito, que se tornam rapidamente num fenómeno de popularidade. De referir que este movimento, a par do Batuco centra-se essencialmente na ilha de Santiago, em oposição à Morna e Coladeira mais centradas em S. Vicente. 19 II. BREVE BIBLIOGRAFIA DOS PRINCIPAIS EXECUTANTES 1.KODÉ DI DONA – (de gaita ao peito) Nasceu em S. Domingos, a 10 de Julho de 1940, filho de Estêvão Vaz e de Francisca Pereira Cabral, Kodé di Dona passou muito tempo da sua vida em Santa Cruz depois em S. Francisco onde reside actualmente. Nas ilhas, a década de 40 seria uma das mais fustigadas pelo flagelo das secas engendrando fomes imensas, com os mais fracos a morrer pelos caminhos, na retirada para a cidade e para a emigração. Segundo o testemunho do próprio ele não estudou: “puseram-me a correr atrás de burros, cabras e vacas. A primeira gaita que tive foi trocada por um bidão de vinte e duas quartas de milhos” Foi parar a tribunal por ter tocado gaita numa festa de baptizado. 2.NORBERTO TAVARES – O “PIONEIRO” DO FUNANÁ MODERNO De acordo com um artigo de Santos Spencer 5 , o artista de nome completo Norberto Santos Tavares, nasceu no dia 6 de Junho de 1956 em Cutelo, próximo da Assomada, no 5 www.cvonline.com - Quinta-feira, 28 de Agosto de 2003 20 concelho de Santa Catarina, filho de um santiaguense e de uma bravense. A música corre nas suas veias uma vez que o seu pai, que infelizmente falecera quando Norberto tinha apenas 9 anos de idade, era um excelente executante de violino e violão enquanto que a mãe, residente há largos anos nos EUA, sempre revelou queda para o canto. Assim, sem poder receber lições do pai, o consagrado músico teve que “desenrascar” sozinho na fase de aprendizagem, começando por adquirir um violão aos 11 anos de idade, lançando-se no mundo das composições no ano seguinte. Como era um “menino de igreja” que, inclusivamente vestia a pele de “ajudante de padre” teve acesso a um órgão que acabou por ser peça fundamental na sua moldura artística. Entre 1971 e 1972 foi activista cultural na então Vila da Assomada onde integrou o grupo católico “Os Mensageiros”, que fazia teatro e música. Em 1973 Norberto parte para a emigração, fixando residência, durante cerca de 6 anos, em Portugal onde exerceu a profissão de tipógrafo mas também desenvolveu uma intensa actividade musical com a criação do seu primeiro grande conjunto, Black Power (1974). Foi também em terras lusas que gravou o seu primeiro disco a solo, o célebre LP “Volta pa fonti”, com a participação do prestigiado saxofonista Teck Duarte e do baterista dos “Black Power”, Manel. Em 1979 muda para os Estados Unidos da América onde assumiu de vez a condição de músico profissional. Em finais de 79 com o irmão António Tavares (viola baixo) e outros músicos da comunidade, entre eles, Terêncio (guitarra), Jack (bateria) e Felisberto (viola ritmo) cria e lidera o conjunto Tropical Power com o qual viria a lançar dois discos, tendo o segundo trabalho contado com a participação da cantora Gardénia Benrós. 21 3.KATXÁS – O ESTILIZADOR, O COMPOSITOR E O ORQUESTRADOR Natural da vila de Pedra Badejo, Santiago, Carlos Alberto Silva Martins, formou-se em Portugal no curso de Engenheiro técnico agrário (ex regente agrícola). Como emigrante viveu algum tempo na França. De volta a Cabo Verde e no interior da sua ilha natal, formou com mais companheiros o conjunto Bulimundo. Vítima de um acidente de viação, morreu numa terça-feira, 29 de Março de 1988 pelas 11 horas e 20 minutos, o guitarrista, compositor e orquestrador. O acidente que o vitimou ocorreu na madrugada de domingo, pouco depois da realização do espectáculo de gala realizado no palácio da ANP, para assinalar o encerramento do I encontro de Musica Nacional. Assim noticiava o jornal “voz di povo” 6 , a quando do passamento físico de Katxás. Katxás, que contava 36 anos de idade, foi um dos responsáveis pela valorização e divulgação do funaná na sociedade cabo-verdiana pós-independencia. Até então confinado ao meio rural de Santiago este género musical passara a conhecer dias de gloria, em parte, graças ao trabalho meritório de Carlos Alberto Silva Martins e dos seus companheiros do Bulimundo. Da sua fundação em 1978 até 1985 esse agrupamento musical gravou seis álbuns, todos sob a orientação de Carlos A. Martins. Além do funaná constam desses trabalhos discográficos todos os géneros musicais de cabo verde o que fazia desse agrupamento um conjunto nacional na sua essência. Considerado por muitos como o pai do funaná moderno, Katxás é um homem que fica na história, pois provocou mudanças no panorama musical cabo-verdiano, as quais reflectiram nas gerações que lhe sucederam. 6 In: “Voz di Povo” , edição de 30 de Março de 1988. 22 IV. DE CAMPO À CIDADE 1.O PAPEL DO CONJUNTO “BULIMUNDO” O conjunto musical ”bulimundo ”surgiu no ano de 1978, três anos depois da independência de Cabo Verde, tendo como fundador principal Carlos Alberto Silva Martins, conhecido por Katxás como já foi referido. Segundo Zeca de Nha Reinalda, 7 o nome advém do facto desse agrupamento ter sido fundado em Pedra Badejo onde existe um edifício chamado “Bulimundo” que faz parte da história de Pedra Badejo. Na sua fundação participaram: Katxás, Kim di Santiagu, Mandala, Silva Lú di pala, Rui Casimiro (batarista). Depois deu se a fusão com “Opus Sete”. O papel desse conjunto no cenário musical cabo-verdiano é de valor indelével segundo Kaká Barbosa 8 : “Bulimundo” trouxe uma música nova, inovou, trouxe uma coisa nova para a Praia. Na altura a Praia era ignorante em relação àquilo que se fazia no interior de Santiago. Praia não era na altura uma Praia esclarecida. Só abriu os olhos depois da independência.” 2.INOVAÇÃO NO FUNANÁ Na opinião de Gláucha Nogueira 9 embora Katchás, o líder do “Bulimundo”, apareça como o grande rosto dessa “revolução” que foi trazer a música de ferro e gaita para a cidade e para os instrumentos eléctrico, é ele próprio que, num artigo no jornal Tribuna, em 1986, reconhece: “Se tivesse tido a intenção de fazer o primeiro disco da história do funaná, Norberto Tavares tê-lo ia realizado.” O próprio Norberto Tavares revela não ter a noção deste pioneirismo: “Não tenho em mente quando é que o “Bulimundo” começou a gravar, mas se foi a partir de 1980, eu gravei antes, 1979, o funaná Mariazinha Lebam bu Palavra”. 7 Elemento do grupo “Opus Sete” que integrou o grupo “Bulimundo” cinco meses após a sua fundação a convite de Katchás. É um distinto e conceituado músico cabo-verdiano, sendo considerado “rei de Funaná”. 8 Conhecido músico, activista cultura, homem de tradição oral cabo-verdiano e actualmente é deputado nacional. 9 Num artigo escrito para a revista de bordo dos “TACV”, nº 2, III série, 2005 – de Julho a Setembro, Gláucha Nogueira, reconhece Norberto Tavares como o pioneiro do funaná eléctrico. 23 Deve-se referir que na mesma altura estava na forja um outro conjunto denominado “Opus Sete”, que integrava os irmãos Zeca e Zezé de Nha Reinalda. Esse conjunto veio a fundir-se dando origem ao “Bulimundo”. Conta Zeca: “A fusão processou – se da seguinte forma: correram rumores de que Katxás iria regressar para França, ele veio e trouxe uns materiais, então eu tinha algum dinheiro; Pedi uma reunião com ele em minha casa, para negociar com ele aqueles materiais, então fomos à minha casa e lembro inclusive do almoço daquele dia que era Congo; alias eu gosto muito do Congo, mas antes já tinha avisado aos rapazes do opus sete e levei-lhe para uma demonstração uma vez que nós também já tínhamos iniciado a tocar funaná. Fomos o primeiro conjunto a tocar “Djonzinhu Kabral. Quando ele viu o que estávamos a fazer, e para minha surpresa cinco dias volvidos convidou 5 elementos do opus sete para integrarem “Bulimundo”. Fui eu , Tony, Santos, Zé Gustu mais tarde saiu Lú di Pala do “Bulimundo” e entrou Zé Cara Bedja” 3.FUNANÁ E A RELIGIÃO Segundo Kodé Di Dona, sendo uma música de pendor pagã, nunca se deu bem com a igreja, designadamente igreja católica que no passado teve maior convívio com a cultura cabo-verdiana devido à própria história da igreja em Cabo verde que confunde muitas vezes com o próprio povoamentos das ilhas, pois foi a primeira religião a ser implantada no país pelos colonos. Evidentemente seria ela uma das primeiras instituições a opor a esse tipo de música por considerá-la um obstáculo ao incremento da fé cristã. Como se sabe o funaná e é uma música de combate e por isso agita muitos espíritos designadamente ao retratar o quotidiano. O funaná foi muito bem acolhido no campo (interior de Santiago) mas pouco apreciado pela igreja que via nessa música uma forma dos fies darem costas a igreja, isto por um lado, por outro a mensagem do funaná era muitas vezes considerada pecaminosa. Note-se que na época além das músicas religiosas, praticamente não se ouvia outras músicas no campo e o funaná apareceu exactamente neste contexto de dominação religiosa. Sobre isso transcrevemos o testemunho de um Ansião de Santa Cruz: “Na altura só se ouvia a música na missa. Quando ia à Praia costumava ouvir músicas do Brasil com um amigo. Não se ouvia música cabo-verdiana. De vez em quanto ouvia-se falar da morna”. “ Quando apareciam tocadores de gaita, era uma festa, todos queriam ver gente da terra a tocar, a cantar; isso não era todos os dias. Havia quem faltasse a missa para ir ao baile; se o padre ou o catequista soubessem essa pessoa não tomava comunhão no próximo domingo”. Tinha pecado, conclui o nosso entrevistado. 24 Neste aspecto Kaká Barbosa, tem a uma opinião muito mais contido: “A igreja nunca esteve de acordo que as festas religiosas integrassem o paganismo. Não era contra o funaná. Era contra o que era tradição popular para se juntar com a festa religiosa. Talvez a igreja gostasse que a festa religiosa fosse uma festa unicamente religiosa, as pessoas rezassem e fossem para casa. Mas o povo nunca entendeu assim. O povo tem as suas tradições, a sua cultura, a sua vivência; tem a sua forma própria de conviver e de estar com a cultura. Essas eram coisas evidentes da cultura que tinham de ser exercida - ao lado da igreja, sem igreja - tinha que ser exercida na mesma.” De resto diga-se de passagem que funaná era tocado essencialmente por “badios di fora”, pessoas simples, de baixa condição social, iletrados que a olhos de colonos eram vadios, vagabundos; enfim gente desocupada. O curioso é que segundo algumas pessoas mais idosas o funaná terá surgido a partir das condições criadas pela própria igreja ao substituir os pesados órgãos por gaita, instrumento esse utilizado no acompanhamento das missas. Alias o próprio Norberto Tavares, um dos exímios do funaná moderno terá formado no seio da própria igreja: Norberto refere em entrevista a Santos Spencer: “Sempre quis fazer um trabalho com ideias que tinha, com a música de Caboverde, ou melhor de Santiago. Mas, no grupo, isso não foi possível, porque a maior parte dos elementos não percebia as minhas razões, ao querer gravar coisas como o funaná e o batuque. Então, quando o conjunto acabou, fui para o estúdio fazer aquilo sozinho, toquei praticamente todos os instrumentos”. E continua: “ O funaná e o batuque eram menosprezados, o se considerava musica de Cabo Verde eram a morna e a coladeira”, confirma Tavares que, na infância, ouvia o pai tocar estes generosos nos vários instrumentos que dominava. Contudo, lembra o artista, “ fui sempre uma pessoa observadora, cresci na vila de Assomada e via as pessoas que vinham do campo com a gaita ao peito, para tocar no dia de Santa Catarina e em outras datas simbólicas… Eram coisas que me intrigavam, porque parecia que só havia coladeira e morna, mas não era verdade. Mas as pessoas desprezam as essas coisas de badio di fora… Eu via essa reacção e não fazia perguntas, mas sentis que havia um desprezo”. 25 O certo é que o funaná é tocado na maioria das vezes nas festas de carácter religioso designadamente baptismos, casamento e festas de santos o que demonstra ser um tanto quanto paradoxo. A entrevista de Kodé di Dona é elucidativo em relação a isso: «Tocávamos Funaná e batuque nas festas de casamento e de baptizado. E finsde-semana, sábados, na função. As festas de Santiago, do Divino Senhor, de São Domingos, de Salvador do Mundo, Santa Catarina. Tudo festa religiosa. » “Quando havia festa, as pessoas dançavam. E os catequistas iam dizer ao padre, fazer queixa da gente... A gente não se importava, mas uma vez o cabochefe veio buscar e levou-me a tribunal, por tocar concertina em festa de funaná.” 4.FUNANÁ E A POLITICA Não foi só o clero a não gostar do funaná. Também o governo colonial não tinha «grandes amores» para esse estilo. Como se vê das afirmações de Kodé di Dona, inclusivé o cabo-chefe, representante da autoridade judicial na comunidade intervinha para por fim a esse género de música e a semelhança do que aconteceu em relação à religião, o funaná foi perseguido pela classe política desde a sua génese. Os colonos depreciavam – no por considerá-lo um atentado à ordem e a segurança públicas e à cultura, dita erudita. Eis porque não se perseguia a morna ou a coladeira; estes eram considerados géneros civilizados. É evidente que devido ao seu conteúdo denunciador e revolucionário, não agradava em nada os colonos que consideravam-no rebelde, contra a decência e provocante. Aliás foi sempre assim e sabemos que os tocadores foram perseguidos por tocarem gaita e ferro; esse estrato de música de João Cirilo é elucidativo: “Funana é kaminhu longi, Funana é liderdadi, Colonialista manda prende’m ku nha gaita, Só pamodi n’ grita viva funaná, É txoma’m di diskudadu, É txoma’m di vagabundu.” … Esse trecho ilustra o quanto o funaná foi perseguido na época colonial. Houve casos mais extremos em que artistas foram julgados no tribunal e só não foram parar a cadeia por 26 terem pago uma pesada multa. É o caso de Kodé di Dona, que pagou trezentos escudos de multa por ter tocado funaná por dois dias seguidos. O padre não gostou, fez a queixa e o músico/tocador foi punido severamente segundo o próprio: “ Paguei uma fortuna naquela época. Trezentos escudos eram muito dinheiro. Queixaram de mim por ter feito festa de funaná. Era baptismo do meu filho. Como não tinha lugar para os convidados deitarem toquei funaná, mas o catequista não gostou. Foi dizer ao padre, que por seu turno queixou de mim.” Com a independência, e por conseguinte com a almejada liberdade o cenário melhorou, mas não a ponto de agradar a todos. Assim surgiram mais tocadores do funaná, que teve como corolário a criação do grupo “Bulimundo”. Por um lado queriam fazer emergir a cultura cabo-verdiana com a introdução de um novo estilo no panorama musical caboverdiano. A par disso continuaram a transmitir a mensagem do campo, e a retratar as difíceis situações por que passavam a população rural em particular e a cabo-verdiana em geral. Porém, alguns, fizeram isso as expensas da crítica as instituições e ao governo. A reacção foi imediata e traduziu-se um congelamento de muitas obras discográficas e silenciaram muitos artistas, uns com sucesso, outros continuaram a revelia a produzir músicas revolucionárias e de combate. Norberto Tavares contemporâneo de Katxas, foi um dos recusou determinantemente a ceder, e como auge dessa rebeldia cantou “Na nha juiz ê mi ki ta manda” e com um conteúdo ímpar: “Marra’m mom, marra’m pé , marra’m boka. Má bu ca podi marra’m pensamento… Ma bu ca ngana’m nem nha tripa, nem nha bofi-bofi, qui fari nha miolo” Antes já tinha cantado “PAIGC ki ta branda nhos” e “si e pa bu n´pinha bu terra kubri bu kasa di padja”. Ambas foram silenciadas e praticamente não ouviu essas músicas por um longo período. A esse respeito Kaká Barbosa diz: “Havia uma elite instruída que estava sobretudo na praia e nas outras ilhas que desconheciam o interior de Santiago, é normal que essa gente considerasse uma música mal tocada na gaita, que fosse música de gente indígena ou marginalizada, sem expressão naquela sociedade instruída. Eles não entendiam a mensagem, não entendiam, a música. É normal que rejeitassem.” De facto os tempos mudaram e os ventos da mudança chegaram à Cabo Verde. Era a democracia emergente e a liberdade consequente. 27 Na verdade houve uma evolução, mas não a ponto desejado e não passou muito tempo para os compositores começaram a demonstrar o seu descontentamento. Uns um pouco mais contidos, outros mais acutilantes. A suposta liberdade de expressão tão propalada não se efectivou e não passou de miragem, segundo alguns cantores, designadamente Zeca di Nha Reinalda. Segundo ele, o artista deve cantar o real “real” e não o real imaginário, dai que a convivência não foi pacífica, uma vez que as características do real colidem com os interesses de políticos ou de grandes grupos económicos. No excerto seguinte nota-se exactamente isso: “Nhu manu braku ki nu brinkaba di djunto Djunto nu subiba na puder, Mas na puder é torna puderosu, E mandanu pa nu ba korri arku. Es ta pita, es ta djuga Es ta djuga, es ta pita. Divergência na Kambra, kulpa é di poder Abuso na asembleia, kulpa é di poder” 28 ANÁLISE LITERÁRIA DE ALGUMAS MÚSICAS DO FUNANÁ FOMI 47 – Kodé di dona Ie, Eh, Eh, Eh… Era na 59, Txuba skoregadu, Dizanimadu nha bida, N’djobe santa, Pa n bai S. Tomé. N bem Praia Santa Maria, Na skritoriu Fernandi Soza, N´dal nomi é po na papel, Es dan numbru 37. Coro- Ie, Eh, Eh… Hum… Kuato dia, ku kuatu noti, Era kuato ora di madrugada, N´odja barku Ana Mafalda, N´odja luz toma baia. N´da rinkada n ba pilorinhu, Txiga na Bibi di keta ), N’ pol nha prubulema, É djuda’n mata fomi. Coro- Ie, Eh, Eh… Hum… Kuato dia, ku kuatu noti, Era kuato ora di madrugada, N´odja barku Ana Mafalda, 29 N´odja luz toma baia. Fladu Ana Mafalda ki dja bem, Pa leba argúem pa S. Tomé e Príncipe, N´poi kabessa na txon , N´xinta , n kuda bida. Oh Naná, oh Naná, Oh Naná, oh Naná, - hum… N´djunta nhas manduchu , N´po dentu sakutelu, Toma boti n´ba pa Bordu, Rumadu moda saku. Kantu dia sem sustentu, Kantu dia sem kebra djudjum, Kantu dia sem mata fomi, Na puron de barku ta bai. Oh Naná, oh Naná, Oh Naná, oh Naná, - hum 30 1. NARRAÇÃO E DESCRIÇÃO EM KODÉ DI DONA Kodé di Dona é um artista que usa a técnica da narratividade em parceria com a descrição para compor as suas músicas. Em «Fomi 47» por exemplo encontramos elementos que confirmam essa afirmação a permear toda a composição. Começa por narrar a situação de fome que assolou Cabo Verde na década de 40, no século passado. Através da memória desse acontecimento perfeitamente catastrófico, o artista rememora, narra e descreve de forma magistral uma das etapas mais tristes da história de Cabo Verde recente. Usando a descrição como um modo textual que dificilmente se apresenta de forma autónoma, mas se integra nos outros modos discursivos, com as mais diversas funções, o artista forma uma espécie de “retrato”, que permite conhecer paisagens, ambientes, pessoas e processos que levaram à emigrar uma grande quantidade de cabo-verdianos, tendo com destino as ilhas de São Tomé e Príncipe, tendo a migração como proposta de solução de uma seria de problemas insolúveis de forma simplista. Porém, a questão da emigração como linha temática na literatura como na música cabo-verdiana não é despida de polémica. Em 1963, o escritor e crítico Onésimo Silveira 10 denunciou o aspecto ‘evasionista’ da literatura caboverdiana no seu artigo "Consciencialização na literatura cabo-verdiana". Nesta música a temática de emigração é tratada como algo que resolve os problemas, mas na actualidade torna-se cada vez mais evidente que a emigração não resolvesse os problemas “tout-court” como alguns nos fizeram saber nas suas obras. Em “fomi 47”, o compositor pormenoriza e individualiza o ser /objecto descrito pelo uso de elementos linguísticos importantes, substantivos e adjectivos, e por recursos estilísticos, figuras de linguagens, responsáveis por “fazer ver” e “fazer sentir” respectivamente. No processo de composição, o descritor selecciona esses elementos e os organiza para levar o interlocutor a formar e a conhecer a imagem do ser descrito. 2.PLANO FORMAL – ESTRUTURA DO TEXTO. Mesmo sendo uma letra de música, portanto um texto para ser ouvido, “FOMI 47” apresenta bonito trabalho formal. O texto se compõe, fundamentalmente, de oito estrofes de quatro cada versos com excepção da estrofe introdutória que dispõe de cinco versos livres. As 10 Consciencialização na literatura cabo-verdiana (1968). 31 estrofes não apresentam um esquema fixo de rimas: o primeiro verso nem sempre rima com o segundo, mas no caso da quarta estrofe notamos que o segundo verso rima com a quarta: Era kuato ora di madrugada N´odja barku Ana Mafalda Já o refrão é repetitivo ao longo do poema. É um refrão similar ao choro, o que sugere dizer que o sujeito poético quis transmitir todo o seu lamento, enquanto evoca o interlocutor, neste caso, Naná. Oh Naná, oh Naná, Oh Naná, oh Naná, - hum Do ponto de vista métrico, observa-se que o autor não se preocupou em criar uma métrica elaborada: os versos que constituem as estrofes não são do mesmo tamanho e é notório a simplicidade que norteia a formação dos mesmos. Inocente ou não, a verdade é que essa música é um hino à Santiago numa época de crise e a todo a sua gente com todo sua simplicidade; Os primeiros verso funcionam como refrão. As ideias básicas do poema são expostas logo no início e reafirmadas pelo fim do poema que traz o refrão como se quisesse iniciar uma nona estrofe. Ao introduzir no final do poema a repetição, como se fosse iniciar uma nova estrofe, o autor deixa livre para a reflexão do leitor que poderá buscar no subconsciente qualquer facto que se assemelha às amarguras anteriores (possivelmente vividas pelo ouvinte apreciador) para completá-lo. Essa é, sem dúvida uma das características de Kodé di Dona com semelhança em relação a outros músicos desse género. As músicas “Yota Barela” e “Beta Branka”, são claros exemplos paradigmáticos desse estilo, de autoria masculina para um Eu-lírico feminino, cujo tema sugere um lamento pela ausência, a dor de amor a falta de pão e consequentemente a partida como solução imposta. Esse é, sem dúvida, um recurso marcante nas músicas funaná designadamente as de Kodé di Dona e de Katxas. É também usado nas músicas dos autores contemporâneos como por exemplo Norberto Tavares e Zeca Di Nha Reinalda. 32 3.TEMPO DE NARRAÇÃO Como sugere o próprio título a música “fomi 47”, tem como tema a fome, e como assunto a emigração; narra-se aspectos do passado, pondo tónica nas agruras e nas dificuldades que pairavam sobre os cabo-verdianos num passado não muito distante. “fomi 47” designa também uma época de incertezas e sofrimentos que se foram prolongando durante vários anos (desde a decáda de 40 até década de 60 aproximadamente. Por esse facto o autor/compositor menciona neste música a data de 1959. Essa data simboliza o desespero de tantos cabo-verdianos que esperaram anos a fio para que as coisas melhorassem e na impossibilidade de ocorrerem melhorias muitos decidiram emigrar mesmo depois de 47 época de fome mais conhecida em Cabo Verde. Na realidade o período de fome foi mais além de 47. Temos em Fomi 47 que chora essa ida á S.Tomé, porém, mesmo assim é considerada uma possível solução. Já numa análise contrastiva essa composição é diametralmente oposto a quadra “Príncipe di Ximento” do já falecido compositor Frank Minita: Oh príncipe di Ximentu, Oh rapaz di mementu, O príncipe ka bu bai pa, Santo Tomé e Príncipe, Nha buro ka nha besta, Ta kumé banana, Sabidu na skritoriu, Ta kumé cacau. Nhu buro ka nha besta, Nhos temkabesa rixu… Aqui o compositor apresentou com toda a clarividência a sua aversão à ida para S. Tomé, chamando de “burros” e “bestas” àqueles que optam por essa emigração. 33 4.O EIXO PARADIGMÁTICO DA CANÇÃO. No que se refere aos aspectos sintácticos, deve-se referir que o sujeito presente na canção constitui o (SN – sintagma nominal) e seus respectivos predicados (SV – sintagma verbal). O ponto mais importante da canção está no segundo verso de cada estrofe. Ele tem sua carga significativa centrada no verbo, sempre na primeira pessoa do singular, tendo como SN - ELE, o sujeito poético. Evidentemente que esse sujeito representa no contexto da história um colectivo, pois, muitas pessoas a semelhança do sujeito dessa canção tiveram o mesmo destino. Há, também, outro SN que é introduzido no enredo e faz parte do contexto, sem importância central mas que desempenharam um papel no âmbito das actividades desenvolvidas na época, referimos essencialmente a Fernandi Soza, Bibi di Keta 11 . Mas o eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a presença dos verbos conjugados em 1ª pessoa do singular, sendo fundamentalmente verbos de movimento que expressam a grande dinâmica das acções verificadas na música. Eles se fazem presente no segundo verso de cada estrofe, denunciando a desafortunada vida de cabo-verdianos, numa determinada altura. Assim, desanima, anda, procura, chora, emigra; Temos, assim, um ciclo que se inicia com o verbo Ser (era) e fecha – se com p verbo arrumar (rumado)para demonstrar a forma desumana com que eram tratados aqueles que decidiram escolher S. Tomé como destino. Quanto aos verbos, podemos afirmar que eles fazem a função da narrativa, exibindo a condição do sujeito, o “eu”lírico da canção. 11 Bibi di Riketa - senhora que viveu na cidade da Praia nas décadas de 50-60. Era detentora responsável dos impostos no mercado da Praia naquela época. Em consequência disso gozava de algum prestígio social decorrente da sua presença “imponenete” e da posse que detinha. Já naquela época ela usava um dente de oiro e possuía um carrinho com rodas semelhantes as dos motos. Fernando Souza – senhor que também viveu na cidade da praia a semelhança de Bibi di Riketa. Era ao lado de Alfredo Veiga responsável pela contratação de mão de obra para as roças de São Tomé e Príncipe. 34 5.MARCADORES DA NARRATIVA E DA ORALIDADE. Há muito, muito pouca característica de oralidade no poema, podendo somente ser percebida no refrão, mais notadamente no coro. Na instância da narrativa não observamos fortes demarcações de tempo (não se define época ou momento histórico; considera-se um tempo determinado, falando no presente, mas se referindo a um passado determinado). Quanto ao espaço, este é demarcado como a cidade da Praia, antigamente denominada de Praia Santa Maria, havendo menções ao porto, ao ma, à barco “Ana Mafalda, ao pelourinho etc. Faz – se referencia à S.Tomé e Príncipe com espaço de destino. Do ponto de vista semântico, há um grande emprego de palavras com muita aproximação outras com muito distanciamento. Podemos destacar algumas palavras mais próximas semanticamente: skoregadu.. dizanimadu; prubulema... fomi; arguém… cabeça… Por outro lado, há outras mais distantes semanticamente: noti... luz; boti... bordu; manduxu... sakutelu;. Mas o texto em si apresenta um grande sentido e existe uma grande unidade formal. Nota-se uma relação íntima entre a forma e o conteúdo. Assim como irregulares os versos também é desequilibrada a vida das pessoas em “fomi 47” É notório que o poema em construído em quadras na sua maior parte. O que nos remete para o numero quatro. Alias, quatro é um numero marcante nas composições de Kodé di Dona : Kuato dia, ku kuatu noti Era kuato ora di madrugada N´odja barku Ana Mafalda N´odja luz toma baia. 6.FOMI 47 EM DIÁLOGO COM A LITERATURA “Fomi 47” ” estabelece um diálogo com alguns textos que fazem parte da literatura caboverdiana. Quando se pensa no ideário dos claridosos, mas concretamente na temática que permeava a sua produção, observa-se que fome, a seca e a emigração eram temas recorrentes. Referimos aos escritores têm ajudado a desvendar o inconsciente colectivo, a fixar a memória colectiva e a própria história do povo cabo-verdiano permitindo assim a paulatina formação 35 de uma consciência histórica, referencial de base para qualquer povo e qualquer época, designadamente as obras: • “O Escravo” de Evaristo d’Almeida • “Chiquinho” de Baltasar Lopes • “Flagelos do Vento Leste” de Manuel Lopes • “Arquipélago” de Jorge Barbosa • “O enterro do Sr. Napumoceno da Silva Araújo” de Germano Almeida Kodé di Dona, apesar de não ser escolarizado, soube observar bem o drama do seu povo e da sua gente, transferindo esse olhar e esse sentir na música que produz. De forma poética ou narrada o autor faz-nos lembrar os escritores claridosos. 7.OS RECURSOS EXPRESSIVOS DO TEXTO “Fomi 47” é texto muito bem elaborado, tanto na sua estrutura quanto nas referências à um dado momento histórico do nosso país. Numa primeira leitura ou audição dessa música somos fisgados pela emoção estética da música, podendo até nos determos em algumas passagens específicas. Mas só com sucessivas leituras, realizando um trabalho mais racional (sem perder a emoção) é que chagamos à uma interpretação mais rica do texto. Isso faz dela um poema, embora haja indícios de narrativa ao passar uma ideia do que aconteceu com os cabo-verdianos, designadamente os santiaguenses nas décadas de 40 – 60. Algumas metáforas mais expressivas podem ser destacadas facilmente na canção e sua significação é, quase sempre, muito subtil. Outro recurso o presente é a comparação. Ao expressar a condição do cabo-verdiano, o autor valoriza suas palavras com ideias comparartivas, para realçar uma ideia já apresentada: N´djunta nhas manduchu N´po dentu sakutelu Toma boti n´ba pa Bordu (portu) Rumadu moda saku 36 O autor usa também metáforas na sua composição, para construir os seus versos dando ao poema uma outra linguagem, sugerindo várias ideias. Kuato dia, ku kuatu noti Era kuato ora di madrugada N´odja barku Ana Mafalda N´odja luz toma baia. /Quatro dias e quatro noite/Eram quatro horas de madrugada/vi barco Ana Mafalda/vi a baía tomada de luz/ “Luz na baía” parece ser uma metáfora querendo significar esperança para tantos quantos como o sujeito poético, passavam noites ao vento e ao relento, a luz das “kafukas” 12 e as vezes ao som de gaita a espera que o navio aparecesse. Além do sentido denotativo essa expressão sugere uma ideia conotada de alegria instantânea pela presença do barco que era sinónimo de viagem. Viagem que muitas vezes era definitiva e sem regresso. Refere-se ainda ao uso da anáfora, figura de linguagem usada para realçar o número de dias que os candidatos a emigração passavam no barco depois da para partida para São Tomé até chegarem: Kantu dia sem sustentu Kantu dia sem kebra djudjum Kantu dia sem mata fomi Na puron de barku ta bai. /Quantos dias sem sustento/quantos dias sem tomar café/quantos dias sem comer/ 12 Candeeiro feito a base de pedaços de pano colocado no gargalo de uma garrafa com petróleo para iluminar as pessoas nas longos noites que faziam na época da crise 37 8. SIMBOLOGIA DE QUATRO EM KODE DI DONA Se atentarmos na simbologia do número quatro 13 , verificaremos que está ligado ao quadrado e a cruz que é a marca mais evidente do sofrimento para os cristãos. Desde épocas próximas da pré-história que esse número foi utilizado para significar o sólido, o tangível, sensível. A sua relação com a cruz fazia dele um símbolo incomparável de plenitude, de universalidade, um símbolo totalizador. O cruzamento de um meridiano e um paralelo divide a terra em quatro sectores. Em todos os continentes, chefes e rei são chamados Senhores dos quatro mares….dos quatro sois… etc. o que pode significar ao mesmo tempo a extensão do seu poder em superfície e a totalidade do seu poder sobre todos os actos súbditos. Existem quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do Universo, quatro fases da lua, quatro estações do ano, quatro elementos, quatro humores, quatro rios do paraíso, quatro letras no nome de Deus (YAHV), do primeiro homem (Adão), quatro braços da cruz, quatro Evangelistas etc. O quatro designa o primeiro quadrado da década. Quatro é também o número que caracteriza o Universo na sua totalidade (na maioria das vezes trata-se do mundo material, sensível); Assim os quatro rios que saem do Éden, segundo o Génesis, 2,10 – irrigam e delimitam o universo habitável. O Apocalipse (7, 1;20, 8) fala das quatro extremidades da terra donde sopram os quatro ventos (Jeremias, 49, 36; Ezequiel ,37,8; Daniel, 2e7) e distingue quatro grandes períodos que abrangem toda a historia do mundo. O espaço divide-se em quatro partes; o tempo mede-se por quatro unidades: o dia, a noite, a lua e o ano; as plantas têm quatro partes: a raiz, o caule, a flor e o fruto; A vida humana divide-se em quatro colinas: a infância, a juventude, a maturidade e a velhice; quatro virtudes fundamentais existem no homem: a coragem, a paciência, a generosidade e a felicidade. Kodé Di Dona, não obstante ser um iletrado, apresentou o número quatro com diversas significações e conotações como se verifica na composição desta letra, dando –o diversas dimensões ao longo desta composição. 13 Dicionário de símbolos. 38 9.A QUESTÃO DA RIMA. As rimas em “Fomi 47” parecem ser simples, tendo a presença marcante dos verbos desanimar, escorregar, dar, ajudar isto é verbos terminados em “AR” nas primeiras estrofes do poema musical. Contudo existe uma variação nas terminações verbais sempre ocupação com a rima. É de se enaltecer um aspecto de rima emparelhada na 4ªestrofe, um caso de rima perfeita: Era kuato ora di madrugada N´odja barku Ana Mafalda Mas, nem por isso não podemos afirmar que as rimas que se apresentam na canção não são muito sofisticadas. Elas existem certamente em diversas instâncias dessa canção, em forma de rimas toantes internas. A seguir, destacamos alguns pares dessas rimas: Verbos Estrofe Escorregar Desanimar Skoregadu Dizanimadu 1ª Praia Maria 2ª Dia Baia 4ª Bem Arguem 5ª 39 VI.FERRU GAITA E O RITMO DA MODERNIDADE 1.FUNDU BAXU Fundu baxu rubera era xeio d’agu Ntinha baka parida n’tinha boi ta pilaba N’subi riba laxidu, n’djobi la ponta baxu, N’odja txada ta treme, n’odja rotxa ta bai, Mi Ntoni Lopi n’ta kunfia na nha azagua, N’ta kunfia na limaria, nem ‘nka tem medu trabadju. Toti Guida fla mós larga di kel seka, Bu larga storia di inxada bu sai na djobi otu bida. Ki ta duem é pa n’larga nha família, Pa n’larga lem di rubera, Pa n’tra nha tudu speransa. Mas o txuba fla’n undi bu sta, Ku nha fé di kampunes n’ta sperau ti ki bu bem N’subi riba laxidu ma n’djobi la ponta baxu, N’po nha mo na kexada ma n’pidi Diós pa djuda’m, Ma kantu nta xinti ma n’tinha lagua na odjo, E mi ke Ntoni Lopi dja’m sta bedju n’ka bali nada. Sodadi dja da’m, Sodadi dja da’m, Sodadi dja da’m, Sodadi dja da’m. 40 2.MEMÓRIA TEXTUAL “Fundo Baxu”, uma canção do conjunto musical “ferru gaita” é uma composição de anos 90 em plena época da implantação da democracia em cabo Verde. É um funaná que retrata a saudade da vida no campo durante épocas de fartura. É uma dedicatória ao camponês e as suas gentes. Muito simples, marcado por uma mensagem iminentimente telúrica. Prega um misto de saudosismo, nostalgia e frustração do sujeito poétioo que presumivelmente terá sido incitado a deixar o campo, algo que não se efectivou devido a resistência desse mesmo sujeito 3.ESTRUTURA DO TEXTO. “Fundu baxu” é estilisticamente um poema, cujo tema é natureza e o assunto a seca. Semanticamente encontramos várias palavras que estão directa ou indirectamente ligadas a natureza: Rubera Rotxa Agu Limaria Baka Txuba Boi Kampunes Txada Dios Além de sua estrutura poética, possui também a narrativa, o que faz dele um mini conto, pois possui um só núcleo. Sua narração começa em num dado momento do ano e as acções são introduzidas sequencialmente até chegar a um fim esperado. Por isso, a narração é homodiegético, centrada no narrador. Com o foco narrativo na 1.ª pessoa, o narrador vê tudo e pouco pode fazer para mudar o decurso da sua história. Assim, observa-se que ele detém saberes do campo que ele não pode aplicar em outras paragens, devido à diversos condicionalismos, como por exemplo a idade dele. Ele não consegue controlar toda a mudança que se foi ocorrendo no campo depois de anos de seca. A seca aparece aqui como enfoque principal dessa uma narração. Constituído por seis estrofes e um refrão. A primeira e a terceira estrofes constituem um dístico assim como a quinta estrofe. A segunda estrofe e a quinta formam uma quadra perfeita. 41 A música começa com um lamento em jeito nostálgico, tendo o sujeito poético começado por rememorar dos tempos passados e que fundo baxu (lugar da natureza rural) era aquele espaço ideal e idílico, onde não faltava nada e a fartura grassava pela abundância das chuvas, pela criação de animais e pelo fabrico de grogue (aguardente de cana). Esses primeiros versos representam o antes, o glorioso: Fundu baxu rubera era xeio d’agu, Ntinha baka parida n’tinha boi ta pilaba. A segunda estrofe ao contrário da primeira nos remete para um outro tempo, onde as coisas mudaram. O que dantes constituía um motivo de júbilo transformou-se na razão do sofrimento e de tristeza. Há como que um misto de sofrimento e lamento no espírito do observador/sujeito poético, motivado pela observância de um quadro que antes era fabuloso e que de repente se transfigurou sem solução a vista, apesar de ser trabalhador e esperançoso: N’subi riba laxidu, n’djobi la ponta baxu´, N’odja txada ta treme, n’odja rotxa ta bai, Mi Ntoni Lopi n’ta kunfia na nha azagua, N’ta kunfia na limaria, nem n’ka tem medu trabadju. De súbito como que aparece Toti Guida a interceder junto desse sujeito dando-lhe conselhos no sentido de abandonar o campo e se detenha em outros afazeres porquanto a vida no campo já não resulta. Esses dois versos nos ajudam a compreender a razão por que muitos abandonam o campo, invadem a cidade provocando o chamado êxodo rural e a emigração: Toti Guida fla mós larga di kel seka Bu larga storia di inxada bu sai na djobi otu bida. Porém o sujeito insiste e não pretende abandonar o campo de ânimo leve uma vez que para que tal aconteça ele teria que abandonar as suas esperanças, a sua ribeira, o seu cutelo e os seus animais. E isso na óptica desse sujeito lhe traria tristezas e sofrimentos: Ki ta duem é pa n’larga nha família Pa n’larga lem di rubera, Pa n’tra nah tudu speransa. 42 Na mesma linha ele continua nas estrofes seguintes a explicar as suas razões, as suas mágoas e as suas dores de saudade. Saudade de um lugar, saudade de um passado, saudade que provoca lágrimas de sofrimentos. Tempos que já lá vão: N’subi riba laxidu ma n’djobi la ponta baxu N’po nha mo na kexada ma n’pidi Diós pa djuda’m Ma kantu n’ta xinti ma n’tinha lagua na odjo E mi ke Ntoni Lopi dja’m sta badju n’ka bali nada. Sodadi dja da’m Sodadi dja da’m Sodadi dja da’m Sodadi dja da’m 3.1.PLANO FORMAL A natureza é o elemento que provoca um misto de sentimentos no espírito do sujeito poético. Esse sentimento é manifestado por um lado através do animismo, uma das figuras do estilo presentes no texto: N’odja txada ta treme N’odja rotxa ta bai. De igual modo usa também a personificação, nomeadamente no terceiro dístico: Mas o txuba fla’m undi bu sta Ku nha fé di campunes n’ta sperau ti ki bu bem. Nota-se também a presença da função apelativa da língua, empregado para expressar o apelo de uma personagem ao sujeito poético. Toti Guida fla mós larga di kel seka Bu larga storia di inxada bu sai na djobi otu bida. Em síntese temos uma composição com três dísticos, duas quadras, um terceto e um refrão; Pode-se identificar uma situação de antítese na estrofe inicial em relação a segunda e 43 terceira estrofes. Encontramos expressões que nos remetem para uma conotação positiva e outras que traduzem uma situação negativa. Essa oposição pode ser resumido no seguinte: Conotação Positiva Negativa Agu Txada treme Baka Rotxa bai Boi Seka Limaria Mo na kexada Txuba Lagua na odju 3.2.PLANO IDEOLÓGICO Trata-se de uma música caracterizada por uma pobreza ideológica evidente. Remetenos para nostalgia aliada a ideia de sofrimento e impotência. No entanto, a natureza aparece como responsável pelo sofrimento imposto ao sujeito poético. Ela procura comprar a vida no campo em duas épocas distintas. É exactamente as mudanças ocorridas na natureza amada que provocam um estado de nostalgia e melancolia na alma do “eu” poético. 3.3.PLANO FÓNICO Existe, nesta composição, a predominância da vogal aberta [a], que aponta para o sofrimento do poeta, numa tradução do seu lamento: baka rubera agu seka azagua 44 O som fechado [i], está, também, presente e traduz ainda o grito de dor, provocado pelo sofrimento do “eu” poético: subi djobi bai xinti bali 3.4.CONCLUSÃO DO PONTO DE VISTA ESTILÍSTICO. “Fundo Baxu” é um poema narrado a semelhança do “fomi 47” . Sua história ocorre no pretérito, numa época bem determinada. Ao contrário de “fomi 47”, “fundo baxu” espelha uma época de “sabura” seguida de uma época de crise. Enquanto que no fomi 47 a esperança residia no partir, no deixar a pátria; aqui a esperança está exactamente no ficar no campo a espera de melhores dias. O campo aparece como espaço de realização onde o homem realiza os seus desejos com o esforço do seu trabalho, mas também contando com ajuda divina. Por essa razão deus é evocado para mandar chuvas abundantes com vista a obterem boas colheitas. Essa musica é “anti-evasionista” não preconinizando a fuga como resolução de situações difíceis que o camponês enfrenta. VII.ANÁLISE DE “DJA´M BRANKU DJA)” – BULIMUNDO 1.PLANO SEMÂNTICO É uma composição cujo tema é “Mudança”. Tendo em conta que a música contribui para a mudança de mentalidade e de situações que não favorecem o ser e o estar do homem; e considerando a sua função “Pedagógica” e instrumental o compositor possivelmente ciente disso fez essa composição. 45 A ascensão social, a mudança no status social aparecem como um objectivo que se alcança através de artimanhas, cinismo, hipocrisia. O engano e o maquiavelismo são tidos como ponte para mudança de status na sociedade. Na primeira estrofe encontramos um sujeito poético cínico que procura através do fingimento alcançar os seus objectivos. N’ta kontra ku bo na rua, N’ta mostrabu nha dentona, N’ta xinta n’ta ri ku bo, Bu ta kuda ma mi é bu amigu. A segunda estrofe vem na mesma linha de continuidade, evidenciando com mais clareza como ele (o “eu” poético) conseguiu a partir da inversão de valores reverter a situação a seu favor:: La di riba na nha trabadju, Xefi grandi gosta di mi, Di serbemti n’bira kapataz, Kapataz bira serbenti. A melhoria de vida do sujeito poético não ocorreu só a nível profissional, também a nível social, pois os seus familiares também beneficiaram com a astúcia do mesmo. É o que reza a terceira estrofe: Nha korpu sta bem dispostu, Nha bariguinha dja bira grandi, La na kasa ka tem prublema, Nha minis sta tudu gordinhu. Já na quarta estrofe, ele aconselha ao seu interlocutor, demonstrando-lhe vias, forma ou modelos de ascensão; segundo ele é preciso ser “mantegueru” e “n´graxador” para se poder ser bem sucedido. Nessa lógica não faz sentido estudar, pois o sucesso, para ele depende somente de artimanhas e troque: Si bu kre ser sima mi Si bu kre sabi nha segredu Bu fala ku mantegueru 46 Bu fala ku ngraxador O, io,io ioi Dja´m branku dja O, io,io ioi Dja´m branku dja 2.PLANO FORMAL A música é caracterizada por elementos que numa determinada sociedade e numa dada conjuntura onde a subserviência e a manha podem ser vistos como formas de subir na vida. Toda a composição fica permeada por palavras que demonstram a inversão de valores. É um texto com muita harmonia e pode-se verificar a unidade entre forma e conteúdo, pois os versos dispõem praticamente do mesmo tamanho e são uniformes. Ser uniforme é não contrariar – é estar sempre disposto a aceitar tudo passivamente para alcançar os objectivos pretendidos. Dai a presença de adjectivos fortes como: • Manteguero • N’graxador 47 As diferentes classes de palavras que aparecem são exactamente para realçar essa uniformidade. Vejamos algumas dessas palavras: Substantivos Adjectivos Verbos advérbios Rua Dentona Kontra La Amigu Garandi Xinta Kapataz Mantegueru Gosta Korpu N’graxador Bira Bariguinha Sta Serbenti Tem Xefi 3.PLANO IDEOLOGICO Essa música foi composta nos anos 80, isto é em plena época de partido unico. A música foi usada com um papel de denúncia, de critica e neste caso de satirizar. 4.PLANO FONICO Observa-se a presença da aliteração logo no título, resultante da repetição de sons consonânticos: - Dja’m branku dja - (D+D+J+J+a ) = Dja + branku+dja. Temos uma consoante sonora (d) associada a uma consoante constritiva (j), que por seu turno se associa a uma vogal aberta (a). De uma forma geral predomina a presença de vogais abertas, sons que indiciam uma certa alegria manifestada pelo sujeito poético – como ele diz : “Dja’m branku dja”. 48 VIII.EVOLUÇÃO DO FUNANÁ O funaná enquanto género musical passou por muitas transformações ao longo da sua história. Como elemento cultural de indiscutível valor que é esse ritmo enriqueceu o panorama cultural nacional devido a sua evolução, evolução essa ocorrida devido a vários factores como por exemplo o conhecimento adquirido pelos compositores e pelos executantes. A interpretação do real que se verifica na música funaná está intimamente ligada ao estudo, pois isso ajuda numa boa análise da realidade. Com as mudanças sociais e políticas que ocorreram nos últimos anos houve uma transfiguração social, dando abertura ao diálgo e ao debate outrora proibida; novos horizontes apareceram como que por encanto; novas responsabilidades se impuseram nos ombros do Cabo-verdiano, responsabilidades essas que envolveram, entre outras coisas, a reestruturação social, económica e política, que por si só dão a entender e conhecer o ambiente que se viveu em Cabo verde nos últimos anos. Como não podia deixar de ser, a música cabo-verdiana também sofreu o impacto. Sendo um elemento de comunicação que é, também o funaná teve que se adaptar a novos tempos e costumes, trazendo outras mensagens, embora se deva reconhecer que também há muita repetição. A esse respeito Zeca di Nha Reinalda é de opinião que: “Para mim não evoluiu, pois cada vez que oiço essa música vejo coisas que já tinha cantado, pedaços de coisas que já tinha cantado, melodias que já tinha tocado. Há dias fui á Santiago para ouvi-los cantar “nbem di fora”, “nha guenti es ano n’ pasa ma”l, música de mais ou menos vinte e tal ou trinta anos. Parece-me a mim que deveriam ir mais para frente ao invés de ficarem com coisas do passado”. 49 Muitos conjuntos pararam. Os melhores pararam, cada um com seus motivos, “Bulimundo”, “Finason”… “Bulimundo” está presente, mas se formos ouvi-los cantar, vê – se que são músicas de 1978 e 1980 que ainda tocam. Penso que deveriam lutar para trazer novidades. O mundo evoluiu em termos de letras, muita coisa mudou, mas eles continuaram na mesma. A mensagem antiga é boa para as pessoas antigas que recordam o seu passado, mas e a juventude de hoje que não têm nada ver com aquelas músicas?” Sem pretensão de fazer juízos valorativos pensamos que o funaná não ficou no ponto de partida, pois o que dantes era executado por apenas dois elementos, transformou chegando ao ponto onde vários elementos se ajustam para executar um ritmo semelhante ao genuíno mas com nuances de diferença em relação ao passado. A revolução tecnológica permitiu que com evolução social, o funaná seja tocado com instrumentos electrónicos e executado por grandes grupos de dimensão transnacional. Se formos ver em termos de conteúdo, constata-se que houve um tempo em que as músicas do campo retratassem apenas a vida social no campo e a temática era virada para esse componente social. Tudo se circunscrevia ao campo o ponto de partida desse género musical. A vivência no campo constituía elementos essenciais das composições até uma determinada altura. Ao ser estilizado saiu do seu habitat e passou a assumir um outro o papel - o da critica social tendo sido valorizados aspectos sócio-politicos e a critica social passou a ser mais avançada e mais elaborada. Portanto em termos de letra houve evolução. Não raramente encontramos composições fervorosas onde a temática “liberdade” se torna o centro das atenções. Às vezes uma mistura de liberdade, política e um pouco de sensibilidade artística consegue nos proporcionar composições maravilhosas como essa de Norberto Tavares: “Maran pé, maran mo, maran boka, – bu ka podi maran pensamento” Ou então essa de Zeca di Nha Reinalda que metaforiza o poder político instalado a partir de 1990 chamando-o de “minina bó é boa”, querendo com isto dizer que PODER é algo muito bom; que as pessoas esperassem um pouco para ver o quê que os novos dirigente iam fazer para o país: 50 “N’kre staba riba pico di antoni, Pam papai ku tudo povo, Pam flas pa nu sumara tempu” Ó minina bo é boa - minina bo é boa, Ó minina bo é rai di boa.” Hoje temos 3 quadros do funaná: • Funaná inicial, executado com gaita e ferrinho. • Funaná estilizado, tocado pelo grupo “Bulimundo”, “Finaçon” e outros, com instrumentos eléctricos/electrónicos. • Funaná mix, resultante da mistura dos instrumentos já apresentados (gaita, ferrinho, viola etc). De referir que a par dos músicos já citados temos uma longa lista de executantes, compositores e intérpretes do funaná entre os quais se pode destacar: • Séma Lopi • Txota Suaris • Bitori´l Bibinha • Caitaninho (já falecido) • Virgulino (Dju di Rabenta) • Ntoni Sancha • Kaká Barbosa • Kim di Santiago 51 O funaná enquanto género musical, evoluiu à semelhança de outros elementos culturais cabo-verdianos. Sendo a linguagem uma coisa dinâmica e se considerarmos a musica uma linguagem verifica-se que ocorreram algumas mudanças no decurso da história do funaná. “Em termos melódicos também evoluiu bastante, porque a linha melódica do funaná antigo em relação ao funaná moderno é totalmente diferente. Hoje há mais acabamento. As melodias são muito mais acabadas e mais perfeitas”. Diz-nos Kaká Barbosa. 52 IXCONCLUSÃO A Independência nacional trouxe uma grande valia para a nossa música. Após 1975, sucessivas constituições e governos têm reconhecido a todos os cidadãos o direito à educação, o que tem implicado na massificação do ensino o que contribui de forma incontestável para o aumento do nível intelectual e cultural do nosso povo. Algumas estruturas foram criadas para a edição e divulgação de música, designadamente o Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco. Estúdios de gravação foram criados e muitos produtores começaram a aparecer e a apostar na música nacional. Neste quadro, Cabo Verde passou por rupturas culturais e inevitáveis atinentes a um processo de transformação, com o ganho de uma nova dinâmica, através da dignificação do povo cabo-verdiano, de maior abertura ao mundo, de novo dinamismo no exercício do pensamento, da perda de vários medos, do contacto mais facilitado com novas formas novas realidades a nível mundial e, sobretudo, por ter oportunizado aos músicos cabo-verdianos o contacto descomplexado com a realidade nacional e transnacional. Tudo isto terá influenciado as novas gerações de músicos e, dentro de algum tempo, pensamos que já se poderá falar, sem arrogância e saudosismo, por um lado, e timidez, por outro, de um novo quadro do funaná, marcando assim a presença na panorama musical universal. O funaná não obstante ser um estilo musical tipicamente rural, saiu do seu “habitat” dando um contributo valioso na valorização da cultura cabo-verdiana; fazendo por conseguinte avançar a sua Civilização e a sua idiossincrasia. O funaná ajudou a representar a terra através de muitos factores determinantes à toda problemática cabo-verdiana quer no aspecto económico e social, como ainda psíquicos. O funaná desempenhou, em Cabo Verde, aquilo que a música deve desempenhar em qualquer parte: Ela é uma imitação da vida nos âmbitos do sonho e da esperança; é mensagem pessoal e colectiva; Sendo uma das principais formas de expressão cultural, contribuiu para a divulgação da cultura do nosso Povo, o reforço de Identidade nacional e a manifestação da nossa capacidade individual e colectiva para, livremente, exprimirmos os nossos sentimentos, os nossos anseios, as nossas ambições e preocupações. 53 X.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADAM, Jean Michel (1997, trad.). A Análise da Narrativa. Lisboa: Gradiva. AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel (1977). Competência Linguística e Competência Literária. Coimbra: Almedina. IDEM (1990). Teoria e Metodologia Literárias. Lisboa: Universidade Aberta. AMORIM DE CARVALHO (1987). Teoria Geral da Versificação. Volumes I e II. Lisboa: Editorial Império. CEIA, Carlos (1995). Textualidade. Uma Introdução. Lisboa: Editorial Presença. CUNHA, Celso ; LINDLEY, Cintra, (1999) 15ª Edição, nova gramática do português, JSC. CÚCIO FRADA, João José (1993). Guia Prático para Elaboração e Apresentação de Trabalhos Científicos. ECO, Umberto (1991, trad.), Como se faz uma Tese em Ciências Humanas. Lisboa: Presença. ECO, Umberto (1993, trad.,. Leitura do Texto Literário. Lector in Fabula. Lisboa: Editorial Presença. JACINTO, Conceição ;LANÇA, Gabriela, (1996) Análise do Texto 1, Porto Editora. LOPES, Baltazar, (1993), 7ª Edição, chiquinho, Alac, LOPES, Manuel, (1996).Os flagelados do vento leste, Sépia. PROPP, Vladimir (1983, trad.). Morfologia do Conto. Lisboa: Vega. REIS, Carlos (1981). Técnicas de Análise Textual. Introdução à Leitura Crítica do Texto Literário. Coimbra: Almedina. IDEM (1982). Construção da Leitura. Ensaios de Metodologia e de Crítica Literária. 54 Coimbra: INIC / Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. IDEM (1995). O Conhecimento da Literatura. Introdução aos Estudos Literários. Coimbra: Almedina. REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M. (1990). Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina. SERAFINI, Maria Teresa (1986, trad.). Como se faz um Trabalho Escolar. Da Escolha de um Tema à Composição do Texto. Lisboa: Presença. SILVEIRA, Onésimo, (1968)), consciencialização na literatura cabo-verdiana, CEI MOISÉS Massaud,( 1974) guia prático de análise literária, EDITORA CULTRIX, 4.ª ED. 55 ANEXOS ENTREVISTA COM ZECA DI NHA REINALDA 1. O que é funaná? Bom, há quem diga que originou de uma mulher que se chamava funa e outro que se chamava Naná. Mas isso nunca me entrou na cabeça. Penso que um nome dado pelos colonialistas naquele tempo, não essa hipótese de Funa e Nana. 2.Quando terá surgido? É uma pergunta difícil, pois temos pessoas com oitenta e tal anos, noventa anos que é Antão Barreto, tocava funaná, ele talvez mais do que eu, ele sabe onde começou. Ele pode até saber onde é que começou. 3.Onde? Eu acredito mais que isso aconteceu na zona de cidade velha, apesar de não existirem muitos tocadores de gaita naquela zona, acredito ser ali 4.Quem? Com quem? Como? É a mesma coisa que eu te disse. É melhor chegar numa pessoa mais velha do que eu (Antão Barreto), ele está praticamente no seu final e pode ter mais informação acerca disso. 5. Será que o funaná evoluiu? Se sim, como? Se não, porquê? Acho que relacionado com o nosso tempo (“bulimundo” e “finaçon”) eu acho que o funaná decaiu, funaná veio para trás, porque se vires um conjunto como ferro gaita, que para mim é um grande conjunto, cada vez que eu os vejo tocar, cada vez que eu os vejo cantar, vejo sempre um pedaço daquilo que eu já tinha feito. Eu vou ouvi-los para ouvir coisas diferentes, para aprender coisas diferentes, mas quando eu for e oiço 1,2,3 oiço coisas do meu tempo. Não vejo nada para frente. 56 6.Então para não evoluiu? Para mim não evoluiu, pois cada vez que oiço essa música vejo coisas que já tinha cantado, pedaços de coisas que já tinha cantado, melodias que já tinha tocado. Há dias fui á Santiago para ouvi-los cantar “nbem di fora”, “nha guenti es ano n’ pasa mal”, músicas de mais ou menos vinte e tal ou trinta anos. Parece-me a mim que deveriam ir mais para frente ao invés de ficarem com coisas do passado. 7.Porque n’bem di fora? Talvez porque o conjunto formou-se no interior de Santiago, na Pedra Badejo. Quem fez essa música foi Katxás, deu-lhe esse título, pois ele também veio do interior. 8.Quantos estilos de funaná temos? Eu conheço funaná lento, funaná tipo sambado, conheço funaná meio andamento, (tipo fomi 47), conheço funaná rápido e ainda um mais rápido que é designado de Pilan Katuta – é tocado frequentemente na zona dos Picos. 9.“Fomi 47”. O que tu achas dessa música? Essa música posso te dizer que é uma música minha e do Kodé e vice-versa. Maior parte das letras daquela música são minhas, Ex.Eh, é é... Aquelas lamentos e choros todos são meus, inclusive aquela expressão o Naná. Aquela de “n’da rinkada n’ba pilorinhu”. Cantei isso porque antigamente a minha gente rematava mercados e pelourinhos, tempo de Bibi di Riketa. Foi minha família, lembrei da sua história e outras história. 10. Mas quem era essa pessoa, de quem se tratava? O que ela representava? Ela era uma mulher que na altura, naquele tempo só namorava com mulheres. Era uma mulher grande que andava sempre com um pau nas mãos, nunca arranjou homens, só tinha pequenas. Naquela altura ela tinha carro. 11. Aqueles choros e lamentos, que tu inseriste na “fomi 47” tinha que função concretamente. Seria para clarificar os sofrimentos que as pessoas tinham? 57 Como era uma música que fala se S.Tomé e as pessoas não iam lá em sabura, iam á procura de uma vida melhor e iam sempre injuriados e maltratados. Foi feito para retratar uma situação concreta para pessoas que não presenciaram esse triste capitulo da nossa historia. 12.Mas esse “Naná” tem alguma a ver com a outra/o que tocava com “funa” e que deu origem ao funaná (para alguns)? Não. Absolutamente nada a ver. Nem sequer estava a lembrar que havia “funa” e “nana”. Veja a coincidência: eu falo de fernmandi Soza, dizem que ele e Alfredo Veiga que eram os responsáveis pela emigração das pessoas para S. Tomé. Eles contratavamnas. Ainda menino, recorda as pessoas no fundo de Taiti a espera do barco. As noites antes da chegada do barco era de “gaitadas” a base de “kafuca” . Eu assisti ainda criança. Então apareceu essa parte “o Naná” , como uma situação momentânea. Não tinha a ver com a outra. E veja, hoje quem o representante de Fernandi Soza é o Nana advogado(Arnaldo Silva)! Que coincidência! (risos). 13.Então não evolução, só há repetição. Na tua opinião o que terá contribuído para que não houvesse evolução? Muitos conjuntos pararam. Os melhores pararam, cada um com seus motivos,”Bulimundo”,” Finason”…Bulimundo está presente, mas se formos ouvi-los cantar, vê – se que são músicas de 78 e 80 que ainda tocam. Penso que deveriam lutar para trazer novidades. O mundo evoluiu em termos de letras, muita coisa mudou, mas eles continuaram na mesma. A mensagem antiga é boa para as pessoas antigas que recordam o seu passado, mas e a juventude de hoje que não têm nada ver com aquelas músicas? 14.Então achas que não estão a retratar a realidade actual? Sempre voltam para o passado? Sim eu os ouvi a tocar na Gambôa, e foram músicas do meu tempo; eu deixei os “Bulimundo” faz já 23 anos. 58 15.Achas que o artista deve sempre acompanhar a evolução social? Claro. Se não deixa de ser artista. Deve acompanhar para poder retratar com arte. 16. “BULIMUNDO”. Porquê deste nome? Em entrei 5 meses após a fundação… Mas penso que o nome advém do facto de o conjunto ter sido fundado em Pedra Badejo onde existe um edifício chamado exactamente “Bulimundo”. Esse edifício faz parte da história de Pedra Badejo. 17. Quando surgiu? Surgiu no ano de 1978. 18.Quais são os fundadores? Os primeiros são: Katxás, Kim di Santiagu, Mandala, Silva Lú di pala, Rui Casimiro (batarista) 19.. Como foi a fusão com o opus sete? A fusão processou – se da seguinte forma: correram rumores de que Katxas ia regressar para França, ele veio e trouxe uns materiais, então eu tinha algum dinheiro; Pedi uma reunião com ele em minha casa, para negociar com ele aqueles materiais, então fomos à minha casa e lembro inclusive do almoço daquele dia que era Congo; alias eu gosto muito do Congo, mas antes já tinha avisado aos rapazes do opus sete e levei para uma demonstração uma vez que nós também já tínhamos iniciado a tocar funaná. Fomos o primeiro conjunto a tocar “Djonzinhu Kabral”, a mais conhecida música chamava-se Lucianu Brazão. Era na altura do 3º congresso do PAIGC. 59 Quando ele viu o que estávamos a fazer, e para minha surpresa em cinco dias convidou 5 elementos do opus sete para integrarem Bulimundo. Fui eu , Tony, Santos, Zé Gustu mais tarde saiu Lu di pla dos Bulimundo e entrou Zé Cara Bedja 20. Então estavam na mesma linha? Sim. Mais penso que éramos mais forte que bulimundo. 21.Mas porque não usavam gaita? Não o próprio “bulimundo” começou com 4 violas: 3 violas de 6 cordas e um baixo. Tocodao por Katxas, Toni e Santos. Silva tocava baixo. Mas tarde arranjamos um teclado. 22.E porque não usavam gaita? Sabes que Katxás estudou em e trabalhou no estrangeiro, nomeadamente em França. Ele tinha um outro nível de formação o que lhe facilitava na execução de instrumentos como a viola e outros instrumentos modernos. Relação: funaná/igreja 23.Como foi a relação do funaná com a igreja no passado? Diz-se que a relação não era muito pacífica. Porquê? Por dois motivos. Primeiramente a igreja achava que o funaná desviava as pessoas das missas matinais. E assim sendo reduzia o número de fieis e aumentava o número de pagãos. Por outro lado a igreja estava junto com os colonizadores que não gostavam que as pessoas cantavam em crioulo. Não digo que isso só acontece ao funaná e ao batuque; pois em crioulo podemos falar muitas coisas que os colonialistas não entendiam. As pessoas criticavam e eles não entendiam. Podia-se mandar mensagens, que eles não entendiam. Eu me lembro que no nosso caso, em 1991, apoiei o MPD, mas eu cantava musicas que tinham como alvo o regime que acabou de ser implantado no país. Tinha a ver com eles, mas no entanto eles dançavam contentes, pois não compreenderam a minha mensagem. Por exemplo quando eu cantei “ Menina bó é boa”, “menina” para mim era 60 sinónimo de poder que o MPD alcançou na altura. “N’kre staba riba pico di Antoni pa’m papai ku tudo povo, pa’m flas pa nu sumara tempu”. Os dirigentes do país dançavam essa música, gritavam de alegria, porque não perceberam a letra. Mas as pessoas do povo eram capazes de entender aquela mensagem. Quando as pessoas estão no poder esquecem de que existe algo de baixo que lhes possa beliscar. 24.E quando perceberam, qual foi a reacção? Mas eles não perceberam, depois cantei “ Ta pita ta djuga”, de forma mais evidente. Aí é que começaram os problemas. Eu disse: Já cantei e não compreendem, então deixeme ser claro. Muitas vezes as pessoas pensam que o artista canta só por cantar. Mas na maioria das vezes o artista pretende mandar uma mensagem, chamar atenção para uma determinada situação. As vezes o povo está contra você, você está lutando por ele e ele não entende. A parte positiva disso tudo é que existem pessoas que estão contigo e que entendem o alcance da sua mensagem. 25. Então os colonizadores proibiram o funaná. E em relação a morna? A morna é menos profundo. É mais claro. É diferente do funaná ou batuque que usa muitos provérbios e linguagem figurada. Os colonizadores sabiam que a mensagem da morna não lhes prejudicava. 26.Qual foi a relação dos “finaçon” com o poder? Desde que fundamos o “finaçon”, lutamos pela existência da democracia em Cabo Verde. Para que houvesse liberdade para todos. Lembro-me uma vez em 1987, estávamos a cantar em Pedra Badejo e chegou um grupo de dirigentes do PAIGC/CV, cantei uma excerto da musica que dizia “nhos ka ta nganan”. Eles voltaram para mim olhando… mas o dito excerto fazia parte do contexto musical que estava cantando naquele momento. Mas eu fiz aquilo consciente. Antes da existência do multipartidarismo em Cabo Verde já cantávamos “Dexa koitadu vivi di si manera”, pa ke manda mininu ba skola. Poquê mandar os meninos para escola? Se eles aprendem e não podem falar, para quê ir à escola? Não pode demonstrar o que aprendeu… Cada baile era um comício. Por isso penso que lutamos muito para que houvesse abertura em 1990 ao invés de outros que estavam 61 usufruindo das mordomias do poder. Uma vez eu disse isso no programa 13-14 com Rosana Almeida e acabaram com o referido programa. 27.Considera funaná música de combate? Sim é de combate, de conquista e de cultura de Cabo Verde e o dia-a-dia do nosso povo. É isso que encontramos no meu último disco cujo título é exactamente “dia-a-dia”. 28. Quem é o pai do funaná moderno? Zeca, Katxás ou Norberto Tavares? Eu lembro-me que já no “opus sete”, cantei a música de Norberto Tavares “ Mariazinha Lebam bu palavra”. Lembro-me de ter cantado essa música no cinema. Podemos chamar essa música de funaná mal tocado, claro que no princípio não tinha chegado no ritmo que hoje o conhecemos. Penso que quem gravou o primeiro funaná foi Norberto Tavares. 29. Pensas que o funaná contribui para o enriquecimento da cultura cabo verdiana? Poderá ser considerada como factor de unidade nacional? Sem dúvida. Pois em todos os lugares onde vou cantar é por causa do funaná. Agora todos os cabo - verdianos cantam o funaná. Muitos “sampadjudus” cantam e gravam o funaná, que pode ser considerado um ritmo de Santiago. 62 ENTREVISTA COM: Kaká Barbosa 1.Em termos de origem, como acha ter surgido o funaná? No meu ponto de vista eu acho que é um aproveitamento de ritmos que havia. Mas eu queria explicar: no meu ponto de vista e em conformidade que já escrevi é que o funaná não existia como musica e nem como ritmo. Porque os ritmos existem pela sua própria natureza. Mazurca não é funaná, uma marcha não é funaná. Agora o que aconteceu é que depois da independência criou-se um chapéu e debaixo desse chapéu há vários ritmos: funaná lento, funaná rapikadu, chamou-se funaná para criar uma designação que coubesse um determinado número de ritmos. Mas a gaita de fole tocada pelos camponeses, sobretudo no interior de Santiago; Como a gaita de fole não é um instrumento que tem todas as notas musicais é provável que o tocador cortou as partes que não o interessava deixando aquilo que a gaita pudesse exprimir deu origem a uma nova musica. Mas também o compasso que a mão esquerda faz que é o compasso de baixo é um compasso que de acordo com o teclado da mão direita com o puxar e levar a gaita de fole para exprimir uma certa melodia, determinado tom, houve deturpações, houve uma nova acomodação tanto de ritmo como de melodia dando origem a uma música diferente que é a música do interior de Santiago. 2.Porque razões os tocadores usavam somente a gaita e não a viola? O pobre não pode comprar viola. Gaita foi o primeiro instrumento achegar as mãos do camponês de Santiago, por via da igreja provavelmente. 3.Acha que o funaná evoluiu? Toda coisa evolui. A música evolui. Uma língua é viva. Os instrumentos são vivos. Tudo aquilo que é vivo evolui. 4.Em termos de conteúdo? 63 Houve um tempo em que as músicas do campo retratassem a vida social no campo e a temática era virada para esse componente social. A vivência no campo. Portanto saiu dali passou a assumir um outro o papel de critica e tem politica e tem critica social mais avançada. Portanto em termos de letra houve evolução. Em termos melódicos também evoluiu bastante, porque a linha melódica do funaná antigo como do funaná moderno é totalmente diferente. Hoje há mais acabamento. As melodias são muito mais acabadas e mais perfeitas. 5.Não acha que há muita repetição? Eu acho que há muita coisa que foi feita após a independência e que foi roubada ao passado porque quem é que faz muitas melodias e muitas letras? Não se sabe quem, mas nasceu no interior de Santiago, agora as pessoas aproveitaram e roubaram, roubaram isso e fizeram suas essas músicas o que de facto não são. Porque eu lembro-me de várias melodias que existiram há muitos anos em Santa Catarina que é um fundão da tradição oral popular, da música. 6.Quem deverá ser considerado o pai do funaná? Eu não diria “pai” eu diria estilizador. Porque a grande verdade é que Norberto Tavares começou a trabalhar primeiro. Agora essas coisas dependem da oportunidade. Se formos ver que gravou primeiro foi Katxás, gravou numa outra altura e teve impacto. 7.Dizem que Norberto gravou primeiro. Mas está bem. Poderia ter gravado primeiro, numa altura que essa musica não tinha impacto nenhum. Katxas é o estilizador é o homem que concebeu o projecto e chegou lá e apresentou. 64 8.Qual terá sido a razão desse sucesso? “Bulimundo” trouxe uma música nova, inovou trouxe uma coisa nova para a Praia. Na altura a Praia era ignorante em relação àquilo que se fazia no interior de Santiago. Praia não era na altura uma Praia esclarecida. Só abriu os olhos depois da independência. 9.Batuque/funaná/confusão. Porquê dessa relação? Sabe, as festas no interior são bem vividas. É muito natural que nos momentos mais eufóricos desse juntamente de pessoas para celebrarem os dias dos seus santos e fizerem as suas festas, matarem o seu gado estarem a volta é normal que nessa função o funaná entre com o uma coisa de tal ordem que fizesse exaltar os ânimos. É provável que a exaltação exagerada de ânimos dêem lugar a atritos, a confusão a facadas até. 10.Como foi a relação com a igreja? A igreja nunca esteve de acordo que as festas religiosas integrassem o paganismo. Não era contra o funaná. Era contra o que era tradição popular para se juntar com a festa religiosa. Talvez a igreja gostasse que a festa religiosa fosse uma festa unicamente religiosa, as pessoas rezassem e fossem para casa. Mas o povo nunca entendeu assim. O povo tem as suas tradições, a sua cultura, a sua vivência, tem a sua forma própria de conviver e de estar com a cultura. Essas eram coisas evidentes da cultura que tinham de ser exercida - ao lado da igreja, sem igreja, tinha que ser exercida na mesma. Havia uma elite instruída que estava sobretudo na praia e nas outras ilhas que desconheciam o interior de Santiago, é normal que essa gente considerasse uma musica mal tocada na gaita, que fosse musica de gente indígena ou marginalizada, sem expressão naquela sociedade instruída. Eles não entendias a mensagem, não entendiam, a musica. É normal que rejeitassem. 65 11.Rejeitar a ponto de perseguir? Bem as leis coloniais achavam isso de selvageria. Uma coisa selvagem não poderia estar na cidade, na urbe, onde havia uma determinada regra. A tabanka não ia ao “platô”. Não tinha lugar dentro de uma cultura que os colonizadores defendiam. Uma cultura portuguesa que tinha de ficar a frente da cultura com raiz africana. Não conseguiram eliminar isso porque isso nunca se elimina. Depois da independência houve um resgate daquilo que é autenticamente nosso. Passamos a ser nós mesmos, com as nossas coisas. É normal que a nossa vivência popular ganhou expressividade porque passaram a considerar parte da nossa cultura. Havia gente colonial que considerava que não, a maior parte do povo considerava que sim. Depois da independência regressamos ao ponto de todos dizerem que isso é nosso. 66 BETA BRANKA E,Eh,E,Eh,E,Eh Portu Nhu Santiagu Portu Baxu só faluxu Portu Riba só taberna Kutelinhu ta da ku pedra. Nha Rufam Barela Bò é pikinoti Ma bu petu é fraku Sakedu ketu pan papia ku bó O Beta Branca Ba 10 di janeru na kadjeta Pidiu licensa pan skrebebu um karta Bu fla boamenti de boa vontadi Nbem na Portu di Nhu Santiagu Na kaza Djusé Beniciu Montero Man kumpra um karta pa quato tistom N xinta baxu pé di amendua. N’pista Tomás Montero kaneta N’skrebe karta n’manda kadjeta Ku Karlinhu Moniz Pa dá Beta Branka na portu. Kantu n’ba katorze janeru 67 Bespa di Nossa Senhora Socor Ami na Saltu Baxu N’kontra ku menina. N’dal bo tardi é ka ruspondem Mam passa n’ba Ponta Berdi Kasa denxul’Rita N’passa noti ti cedo parmanham. Kantu n’ sai kin ta bem di lá N’da rinkada n’ta bem kalheita Ma atxa Beta Branka Xintadu riba di porta. É fla Kod´txiga na kasa N´fla Beta Branca n’ka ta bai É fla pamo bu ka a bem É ba tadjan na strada N’fla Beta Branka n’ka ta bai Pamodi bu fazem falsia Ndabu botardi bu ka ruspondem Na meio d’amigu ku tudo kolega. É fla kodé ka bu atxa mal di mi Pamodi mi é pikinoti, mi pikinoti Man ka tem idade. Bizinhus di roda Ba konta mamãe na kaza man sa ta tem Ku Kodé di Dona lá di portu nhu Santiagu. Gosi n’ka ta ba rubera, Mamaé ka ta dexam, oki bu sta li, 68 N’da rinkada pa Ponta Berdi, Bu kamba Nona sukuru, N’ba pa fundu Nu ba kontrá. Kantu n’bai kim ta bem di lá, Fla Beta Branka Kodé dja bai, É tra si lencinhu mé tapá na rostu Ta txora lagua, korasom da duem, Ami djan bai, Kodé dja bai Kantu n’bai na Portu, Ki n’odja Salina Ki n’odja Bulimundo Kurasom ta duem. Na tempus antigu Portu Baxu só faluxu Portu Riba só taberna Salina só sal , ku nomi. Lagoa grandi só tainha Lagoainha só tabuga Sodadi Txada Fazenda Kodé di Dona dja bai Fla Sabu Preta nha mama La Txada Fazenda Kodé di Dona dja bai 69 YOTA BARELA Yota Barela nha fidju kuse bu tem É tempu fomi 47, É Txiku Nhu Kaitanu Baru Ki dam um quarta e meio de midjo Korenta merés di dinheru Nu tinha três dia nu ka pega lumi. O Yota, o Yota, Cedu ki dja manxi parmanham Abo tristi riba bu banku mo na kexada Bum ai purguntau, nha fidju kuse bu tem Mamai ka febri, ka dor di kabesa Ka sezan, ka dor di bariga. Mamai é nobu kim ka sta Pamodi ki bu ka fla Muxim, Nka fla pamo é ka purguntam O Yota sodadi Libron Kokeru Tudo povo sekedu ta sakuta Bodi na korda, mandika rinkadu Ta spera fogueti pa povo djunta Nem fogueti ka obidu Maninhu Lopi, n’pidiu kabrito bu nega dan Si bu daba mi bu kabrito, kabritu txomada 70 Bibinhua Lopi, Busca kabritu, bu ba oferta noiba ké bedja Oi ma noiba bedja ka ta ronkadu Koitadu é Djusé Txota Ki bendi tera kumpra fogueti Oi ke bendi terra kumpra véu Trokadu um koxa noiba bedja … Minuniu fêmea fika ku skola na kabesa Na karis ka ta ruspondedu Na sombra banana ma ka ta badu Rubera di tardi kambar di sol Tudo rapasis bera rubera Pur isso nhos sa ta ka ka guetu Oi, o Yota, nha fidju. MARIAZINHA LEVAM BU PALAVRA Mariazinha ba rubera Kamba na orta bu speram N’sata bai ku boi Sa ta libra só pés kodjam Mariazinha mi djam krebu Ma bu mai ku bu pai ka kre pa bu krem Ma si bó bu krem sima kreu sima n´krebu Nem ke fim di mundu nu ta bai. Mariazinha leba lata N´ta leba nha boi 71 Mariazinha lebam bu palavra N´ta lebu di um bês. Príncipe di Xumentu Frank Mimita Oh príncipe di Xumentu Oh rapaz di mementu O príncipe ka bu bai pa Santo Tomé e Príncipe Nhu burrro ka nha besta Ta kumé banana Sabidu na skritoriu ta kumé cacau Nhu burrro ka nha besta nhos temkabesa rixu Bibinha é temoza Nha tem kabesa rixu Djondjon dja flaba nha ma es midjo é pa kamoka. FORTI TRABADJA PA ARGUEM Oio, o, io, io,ioi Nha guenti forti trabadjas pa arguem Nha rabu nha kria frida ka sta recebe kurativi N’ba Santo Tomé es flan pa n’fla sim sinhor N´ba pa Lisboa es flam pa n’ fla sim sinhor Kantu n´txiga na txom di Holanda, Es flam pa n´fla sim sinhor Nha geunti és flam pa n´fla Sim sinhor só pa n’kredu. 72 N’BEM DI FORA – BULIMUNDO Nau, nau k anhos stranham Mi si kim fetu Nhor Dês ki fazem si Nha boka ka sabi lixonxa Pamo n’ka kria na meio di branku Mi ti kim intxi n’ta pupa N’ta rabentu pan. N’bem di fora oi N’bem di fora oi N’bem di fora oi É mi, É mi ki bai S. Tomé Ku fomi Ma ku sperança…. FUNDU BAXU Fundu baxu rubera era xeio d’agu Ntinha baka parida n’tinha boi ta pilaba N’subi riba laxidu , n’djobi la ponta baxu N’odja txada ta treme, n’odja rotxa ta bai Mi Ntoni Lopi n’ta kunfia na nha azagua N’ta kunfia na limaria, nem ‘nka tem medu trabadju. Toti Guida fla mós larga di kel seka 73 Bu larga storia di inxada bu sai na djobi otu bida Ki ta duem é pa n’larga nha família Pa n’larga lem di rubera, Pa n’tra nah tudu speransa Mas o txuba fla’n undi bus ta Ku nha fé di kampunes n’ta sperau ti ki bu bem N’subi riba laxidu ma n’djobi la ponta baxu N’po nha mo na kexada ma n’pidi Diós pa djuda’m Ma kantu nta xinti ma n’tinha lagua na odjo E mi ke Ntoni Lopi dja’m sta badju n’ka bali nada. Sodadi dja da’m Sodadi dja da’m Sodadi dja da’m Sodadi dja da’m Djam Branku Dja N’ta kontra ku bo na rua N’ta mostrabu nha dentona N’ta xinta n’ta ri ku bo Bu ta kuda ma mi é bu amigu La di riba na nha trabadju Xefi grandi gosta di mi Ti serbemti bira kapataz Kapataz bira serbenti Nha korpu sta bem dispostu Nha bariguinha dja bira grandi 74 La na kasa ka tem prublema Nha minis sta tudu gosdinhu Si bu kre ser sima mi Si bu kre sabi nha segredu Bu fala ku mantegueru Bu fala ku ngraxador Na mo skerdu n’tem lata graxu Na mo direita n’tem skova fina O, io,io ioi Dja’m branku dja Dja’m branku dja Dja’m branku dja O, io,io ioi Mundu sta pa bó. Zezé di Nha Reinalda Funaná é so na barraca papelon Catriça po calderon Ragala odju pa ca torra cima carbon Tidi Deus pa txuba catem Pa kama ka solopa Pa mininus ka deta na lama sima liton So morna na palaciu na maior salon Fatu rascon, vison, diskriminaçon Cantiga di povu ta nkomoda ambienti Ambienti di kés mesmu djentis Ki ngana ma ngananu kontenti 75 76