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FRANCA E OS PROJETOS DE INDUSTRIALIZAÇÃO NO BRASIL:
o caso de Hugo Bettarello e da Agabê (1945-1980).
Rodrigo Mateus Silva1 (UNESP)
O contexto da industrialização francana.
A industrialização no Brasil conheceu um grande período de expansão a partir
da década de 1930, tendo o Estado como impulsionador deste processo. No
entanto, já durante a Primeira República, o Brasil começava a se transformar com o
desenvolvimento da industrialização nos principais centros urbanos, o incremento da
urbanização, a formação de um contingente urbano, que empregava sua força de
trabalho em novas atividades econômicas como a indústria e o setor de serviços.
Conseqüentemente, ocorreu a formação do operariado urbano, que pouco a pouco,
diante do alto grau de exploração que o processo de acumulação de capitais exigia,
começou a reivindicar direitos, melhores condições de vida e maior participação nos
rumos políticos do país2. Coube assim, ao poder público incentivar as empresas
privadas, implementar as indústrias de base e intermediar as questões referentes à
expansão das lutas do movimento operário pela conquista de novos direitos3.
Expressou-se, desta forma, a existência, ainda de acordo com Luis Verneck
Vianna, de um distanciamento “crescente entre a natureza da Republica Oligárquica
e a nova sociedade civil, demandante de mudanças político-institucionais e culturais,
o que, por si só, já caracterizava uma crise no sistema da ordem” 4.
Deste modo, a partir de 1930 o país conheceu um período de
desenvolvimento industrial não circunscrito apenas em torno das cidades de São
Paulo e do Rio de Janeiro. Outros eixos de desenvolvimento industrial começaram a
surgir em várias regiões do interior do Brasil no decorrer das décadas de 1930 e
1940.
Apesar de afastada
[...] dos grandes centros urbanos de produção industrial e mesmo do poder,
a cidade de Franca apresentou um desenvolvimento urbano e industrial
considerável a partir da década de 1950. Sua indústria tradicional de couros
e calçados teve um papel muito importante nesse processo que modificou
5
essencialmente a paisagem urbana em poucas décadas.
A modernização em Franca ganhou impulso, desta forma, a partir de meados
509
da década de 1940 e prosseguiu durante a segunda metade do século XX6. A partir
deste momento, passou-se a viver no município, de forma cada vez mais
contundente, as transformações nas relações sociais. A consolidação da indústria
calçadista local impunha, conseqüentemente, novas relações entre o capital e o
trabalho, da mesma forma que ocorrera antes em outros centros urbanos, como São
Paulo e Rio de Janeiro no transcorrer da década de 19307. Momento este em que o
país encontrava-se envolvido em um “movimento” que mudou os rumos de sua
história e tornou possível a largada rumo à modernidade.
Em Migrantes Mineiros em Franca, Ronaldo Aurélio Gimenes Garcia enfatiza
as transformações ocorridas no país depois de 1930:
O período da historia do Brasil iniciado no pós 1930 trouxe consigo uma
nova face para a sociedade brasileira que, abandonando suas
características tradicionais, assumiu outra realidade baseada no
crescimento das cidades, na industrialização e na migração das populações
8
rurais .
A partir de 1945 a indústria calçadista de Franca encontrava-se em processo
de expansão, trazendo reflexos para as condições urbanas do município. Assim, sob
o impacto causado pela Segunda Guerra Mundial, as atividades da cafeicultura e da
pecuária começaram a perder terreno para a indústria de calçados9, sendo que a
cafeicultura já vinha sofrendo com os efeitos da crise de 192910.
As pequenas oficinas existentes na cidade buscavam, durante a guerra,
converter a produção de calçados rústicos, destinados a trabalhadores rurais, em
calçados de melhor trato, devido a ausência do produto no mercado interno
provocada pelo conflito internacional11.
Os capitais locais, até então envolvidos na atividade cafeeira, direcionaram-se
para o setor industrial, contribuindo com desenvolvimento do parque industrial
calçadista. O complexo industrial francano contemplou, neste momento, diversos
ramos industriais, que serviam de suporte a atividade couro-calçadista, como a
indústria curtumeira, de solados de borracha e também de fabricação e assistência a
maquinários de calçados12.
Neste contexto de industrialização crescente e de grandes transformações
políticas ocasionadas pela queda do Estado Novo e pela reestruturação da
democracia política no país, a cidade de Franca, da mesma maneira que em outros
centros urbanos, passou a ser alvo das movimentações dos partidos políticos em
510
suas bases locais, que possuíam em suas fileiras pessoas ligadas a produção
industrial de calçados13.
Com a intensificação da industrialização, no transcorrer da década de 1950,
na qual as pequenas oficinas foram substituídas por fábricas de médio e grande
porte14, num ativo processo de mecanização da produção, a cidade de Franca
percebeu-se envolvida em transformações radicais em seu perfil urbano.
Inicialmente, conforme a tabela 1 demonstra, ocorreu um crescimento
acelerado da população urbana, quando novos indivíduos de origem rural, sobretudo
mineiros15, chegavam à cidade em busca de empregos, os quais as fábricas
ofereciam e, posteriormente, a consolidação do operariado urbano, alterou a vida
política e as relações sociais no município16.
Tabela 1: População urbana e rural de Franca (1940-80):
Município de Franca (1940-80)
Censo
1940
1950
1960
1970
1980
Rural
31.652
24.575
18.877
6.761
4.875
%
56,83
45,94
27,75
7,22
3,82
Urbano
24.038
28.910
49.150
86.852
143.640
%
43,17
54,06
72,25
92,78
96,18
Total
55.640
53.485
68.027
93.613
148.505
FONTE: FIBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censos Demográficos:
Série Regional – São Paulo (1940-80). In GARCIA, Ronaldo Aurélio Gimenes. Migrantes Mineiros em
Franca: memória e trabalho na cidade industrial (1960-80). Franca, 1997, p.40.
A tabela 1 demonstra o incremento quantitativo e percentual dos habitantes
que viviam na área urbana e rural do município de Franca entre os anos de 1940 e
1980. O processo de formação e incremento da indústria couro-calçadista em
Franca incentivou, portanto, o desenvolvimento da urbanização no município,
sobretudo com a chegada expressiva de migrantes das regiões adjacentes e das
demais áreas rurais de Minas Gerais, que buscavam os postos de trabalho
proporcionados pelo desenvolvimento fabril17.
Entre a História Empresarial e a Micro-História: Hugo Bettarello, a Agabê e a
busca de uma metodologia.
Foi, assim neste contexto, que em 19 de agosto de 1945 Hugo Bettarello, aos
29 anos de idade, iniciou as atividades fabris do estabelecimento, que futuramente
viria a ser a Indústria de Calçados Agabê, contando naquele momento com a
produção de 100 pares de calçados por dia e um total de 20 funcionários18.
511
A instalação e a trajetória da empresa se desenvolveram em diversas
conjunturas, também sendo difusas as políticas econômicas e de industrialização
empreendidas pelos governos brasileiros no período. A partir de uma perspectiva
micro-analítica poderia se pensar a atuação de uma empresa ou um empresário na
consolidação ou ampliação do setor calçadista em Franca.
A História empresarial foi, de acordo com José Amado Mendes19, pouco
desenvolvida na Europa entre o final do século XIX e início do XX. Segundo o autor
poucos estudos eram realizados sobre a história de empresas em virtude do tema
não sido eleito pelos metódicos e, posteriormente pelos primeiros historiadores dos
Annales, como objetos de suas pesquisas.
Os primeiros, como historiadores do Estado, privilegiaram a biografia dos
grandes homens e focaram nos eventos políticos ou militares. Já entre os membros
dos Annales os primeiros trabalhos sobre a História empresarial foram tratados a
partir da história global, que tanto caracterizou o grupo dos historiadores herdeiros
da historiografia francesa.
No entanto, como Eulália Lobo20 destaca, a História Empresarial encontrou
melhor contexto ao seu desenvolvimento nos Estados Unidos, a partir da década de
1920 com a linha historiográfica da Businness History Society. Mas, foi no decorrer
das décadas de 1940 e 1950, que o grupo de historiadores empresariais ganhou
fôlego, criando-se o Centro de História Empresarial de Harvard, que passou a contar
com os trabalhos de pesquisa de Joseph Schumpeter.
Assim, Amado destaca que “Joseph Schumpeter, em meados do século XX,
havia chamado a atenção para o papel decisivo da empresa e do empresário, na
inovação e no desenvolvimento econômico”21. Portanto Schumpeter destacava que
sucesso e o desenvolvimento de atividades econômicas estavam grandemente
relacionados ao caráter criativo e empreendedor do empresário22.
Outro autor do período, Alfred D. Chandler, alterou a visão liberal de Adam
Smith a respeito da mão invisível no mercado na condução da economia,
destacando que não mais as forças do mercado deixariam que a economia seguisse
seu curso, mas seria a atuação do empresário profissional, que levaria ao êxito das
atividades dos estabelecimentos fabris e, conseqüentemente ao desenvolvimento
econômico23.
512
Neste cenário o empresário ganhava destaque e, igualmente como outros
pensadores do período procuravam demonstrar, Werner Sombart24 foi além na
caracterização das atribuições do empreendedor:
o verdadeiro empresário (o conquistador!) deve ter a força e a decisão
suficientes para permitir-lhe vencer todos os obstáculos, que se encontre
em seu caminho. Mas também é necessário que seja um conquistador, ou
seja, um homem bem ousado, que arrisque tudo pelo sucesso de sua
empresa. Por esta inclinação ao risco se aproxima muito do jogador. O
amor pelo perigo tem como condições a vivacidade intelectual, a energia
moral, uma grande capacidade de concentração, uma vontade
25
perseverante .
No entanto, este tipo de análise se apresenta um tanto quanto complicada
para explicar a atuação dos empresários dentro do processo histórico de formação
de uma empresa ou mesmo o desenvolvimento de um ramo industrial, pois existe a
constante necessidade de desarticular mitos, evitando-se conferir caráter heróico ao
empresário.
Neste sentido, os empresários e suas respectivas trajetórias à frente de
empresas ou representantes de alguns setores econômicos, ganharam força como
objetos de estudo. Assim o método biográfico pode oferecer algumas contribuições
para tais pesquisas. Sabina Loriga26 procurou demonstrar que diante das
transformações historiográficas ocorridas no grupo dos Annales, que permitiram
abordagens diferentes daquelas de caráter globalizantes, surgiram os adeptos da
biografia, já que o indivíduo voltara ao campo das pesquisas históricas.
No entanto, a autora destaca que apesar da crise dos conceitos totalizantes
ter relação com o aprofundamento da noção histórica do indivíduo, o resgate da
biografia, não permitiria o retorno dos métodos empreendidos pelos metódicos. A
biografia, que contemplaria o resgate de indivíduos, estaria mais presente em
“experiências no campo da história atentas ao ‘cotidiano’, a ‘subjetividades outras’:
por exemplo, a história oral, os estudos sobre a cultura popular e a história das
mulheres”27. Portanto, não se trata de fazer uma história biográfica, cronologia e
apologética, mas acima de tudo uma biografia que contemple a História-problema.
Assim, a biografia como uma História-problema poderia servir ao estudo dos
empresários sem que se chegue à caracterização do biografado em conteúdos
similares aos descritos Sombart. Loriga28 destaca, a partir de considerações feitas
por Jean-Claude Passeron, que o método biográfico deve procurar uma dimensão
interpretativa, não voltando às práticas historiográficas, que já foram superadas.
513
Amado destaca, nesta conjuntura, que se trata em entender o papel das
empresas e de empresários em certos contextos, ou suas respectivas trajetórias
contribuindo com o desenvolvimento de ramos ou atividades econômicas mais
amplas29.
A partir também dos documentos pessoais de Hugo Bettarello associados
com a historiografia que procurou analisar a trajetória da industrialização no Brasil, o
estudo do caso específico da Agabê, procurando integrar a empresa em redes
maiores de contatos estabelecidos pelo seu proprietário, procura-se empreender
uma contribuição para se pensar a própria trajetória industrial no Brasil.
A Agabê e o processo de industrialização do Brasil.
Quando a fábrica foi instalada e suas atividades se iniciaram Barbosa relata,
que as indústrias já eram uma realidade concreta no município, existindo um
“entusiasmo pelo ritmo de industrialização que marcava a cidade em meados da
década de 1940”30.
Para Maria Celina D’Araújo durante o Governo Dutra, intervalo entre o
primeiro e o segundo governo Vargas, a política econômica se caracterizou pelo
liberalismo cambial, que resultou em déficits na balança comercial. Para resolver tal
problema as importações foram restringidas, sendo concretizadas somente a partir
de prévia aprovação governamental. Até 1952 essa medida trouxe resultados
positivos para a indústria, no entanto ela foi alterada pelo governo Vagas em virtude
do agravamento no desequilíbrio nos balanços de pagamentos e o aumento da
inflação. Neste momento o governo adotou o cambio livre e adotou a distinção de
taxas de importação e exportação31.
Assim, com relação à Franca Barbosa argumenta que na década de 40 a
indústria foi, gradativamente, colocada no dia-a-dia dos moradores da cidade. No
entanto, Barbosa ainda considera que a consolidação da atividade industrial em
Franca só aconteceu na década de 1950, quando o setor foi favorecido pela política
econômica de Vargas32.
De acordo com D’Araújo a política “de desenvolvimento do segundo governo
Vargas continuou a se caracterizar por desenvolvimento industrial, nacionalismo,
dirigismo estatal e aproximação com o capital estrangeiro”, [... então...]
“em julho de 1951 Vargas criou a Comissão de Desenvolvimento Industrial
(CDI), organismo pioneiro no âmbito da administração governamental
subordinado ao Ministério da Fazenda”. [...] A tarefa principal da CDI era o
estudo e a proposição de medidas econômicas, financeiras e
514
administrativas ligadas à política industrial. [Como resultado a...] CDI
formulou um Plano Geral de Industrialização para o país, estabelecendo
uma classificação das atividades industriais e designando os setores
prioritários em que o governo deveria atuar, entre eles energia, metalurgia,
33
transformação mineral, química, têxtil, borracha e material de construção.
Neste contexto, Lucia Lippi de Oliveira salienta que diversos projetos de
desenvolvimento foram pensados para o Brasil, entre eles as propostas
apresentadas pela Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL –
pertencente às Nações Unidas, cujas referências foram as idéias do economista
Celso Furtado. Preocupados com o desenvolvimento, pensando formas de
modernização substituindo o arcaico a CEPAL proporia “a industrialização pela
substituição de importações; a deterioração dos termos de troca; a necessidade de
proteção do mercado interno; o papel fundamental do Estado no processo de
desenvolvimento”34
Assim, durante o governo Vargas, como Antônio Luigi Negro demonstrou,
existiam esforços para a implementação da indústria automobilística no Brasil,
mostrando-se “determinação em produzir bens de consumo 100% nacionais35”
sendo que tal projeto acabou sendo implementado durante o governo de Juscelino
Kubitschek36.
O projeto industrial de Vargas contribuiu deste modo, com a indústria de
calçados de Franca, quando esta procurava se consolidar na economia local. Pois,
segundo Barbosa houve acesso ao crédito, facilidade de importação de máquinas e,
conseqüentemente, um aumento na produção de 43% entre os anos de 1950 e
195437. O projeto de industrialização de Vargas, segundo D’Araújo “Lançou as bases
para o desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e inspirou os governos militares
até as crises do petróleo dos anos 1970 e 1980”38.
No entanto, já a partir da segunda metade da década de 1950, quando o
projeto desenvolvimentista de Kubitschek estava em curso no país, as diversas
facilidades encontradas pelo setor calçadista francano, durante o Governo Vargas
foram perdidas, como Barbosa enfatiza:
O ritmo intenso de modernização vivido na primeira metade da década de
1950 sofreu estrangulamento, pois o Plano de Metas proposto por
Kubitschek favoreceu especialmente o grande capital. [Havia, assim, um...]
ressentimento dos industriais da cidade em face da política econômica
39
restritiva, bem como da perspectiva de crise advinda desse processo .
515
Mesmo com algumas dificuldades nos anos do governo de Juscelino
Kubitschek, a situação da indústria calçadista começou a se transformar na década
de 1960. No governo de João Goulart, de acordo com Carlos Eduardo Sarmento40 a
política econômica, conduzida por Celso Furtado, pretendia conter a inflação e
reduzir os gastos públicos. Naquele momento político especifico, que era marcado
pela realização do plebiscito, Goulart buscava maior rigidez na condução da política
econômica, se afastando inclusive de muitos preceitos da CEPAL, com o objetivo de
conseguir maior apoio político, contornando as oposições.
Visto que Goulart havia acumulado alguns problemas na implementação de
sua política econômica, sobretudo nas tentativas de captação de recursos e ao
mesmo tempo pressionado por setores trabalhistas Goulart cedeu na concessão de
subsídios e nas negociações sobre o reajuste de salários, o que levou
conseqüentemente ao acúmulo de déficit nas contas públicas e, portanto, recessão
econômica.
Neste cenário, Marieta de Morais Ferreira argumenta que diversos grupos
buscavam discutir formas de redução das crescentes desigualdades sociais e
afastar o subdesenvolvimento. Com a posse de Goulart, torna-se possível a
implementação das chamadas “Reformas de Base”, que previa, “um conjunto de
iniciativas:
as
reformas
bancária, fiscal,
urbana,
administrativa,
agrária
e
41
universitária” .
As reformas pretendidas por Goulart fracassaram, pois a falta de apoio
voluntário dos diversos grupos sociais impediu o êxito do Plano Trienal, que buscava
por fim a crise econômica. O plano pretendido pelo governo exigia sacrifícios
imediatos, porém, os benefícios somente seriam sentidos em longo prazo e eram
bastante incertos42
A questão da reforma agrária tornou-se, no entanto, mais complexa e foi a
principal causa do esvaziamento de apoio político sofrido por João Goulart, que
ocasionou a sua queda em 1964. Na década de 1960 “não foi possível alcançar uma
solução institucional que combinasse democracia política com reformas sociais43”
Para essa autora:
No início dos anos 60, no Brasil, tornou-se impossível a construção de um
compromisso que combinasse reformas e democracia em um projeto
político consciente, porque democracia e reformas eram percebidas como
44
objetivos políticos conflitantes
516
Vários grupos políticos movimentaram-se em torno das reformas, divididos
entre conservadores, defensores de reformas moderadas e os grupos “proreformas”, que pleiteavam reformas bem mais radicais. A radicalização política entre
esses dois setores atravancou o andamento das reformas no congresso, o que
impediu a sua realização no âmbito do legislativo nacional, do qual os
conservadores representavam a maioria.
Para dar prosseguimento ao plano de reformas, o governo federal procurou
realizá-las por meio de decretos, desagradando os conservadores, mas também aos
radicais, que esperavam do executivo nacional, ações mais efetivas. Com esta falta
de consenso, o governo acabou perdendo o apoio político que possuía, ficando
vulnerável diante de um pequeno grupo do empresariado, sobretudo udenista, e do
exercito. Ambos de inclinação golpista foram responsáveis pelo desfecho de 1964,
que contou com amplo respaldo da opinião publica.
Assim, o posicionamento tanto da direita como da esquerda, revelou a falta de
compromisso político de ambos os lados para com a democracia representativa:
a direita para impedir o avanço e a consolidação das reformas; a esquerda
para eliminar os obstáculos que se antepunham a esse processo. Em
conseqüência, nesta conjuntura, o golpismo, concepção e prática já
arraigada na direita brasileira, se combinava drasticamente com a ausência
de tradição democrática da esquerda, levando a uma confrontação que
45
seria fatal para a democracia.
Dentro de uma visão semelhante, José Murilo de Carvalho46 afirma que o fim
da democracia política ocorreu devido à falta de convicção democrática da elite
brasileira, que abandonou a defesa de suas instituições presentes no país desde
1945. O movimento, então, iniciado pelos militares, que buscava por fim a presente
crise política surpreendeu, no entanto, o empresariado udenista47, quando os
militares em vez de redirecionarem as prerrogativas de controle do poder a outros
grupos civis, como ocorrido anteriormente48, os colocou, ineditamente, em suas
próprias mãos.
O regime militar instaurado em 1964 representou, sem dúvida, uma mudança
de rumos na história do país, pelo menos em termos de transformações na infraestrutura econômica. Em relação à Franca, apresentou uma conotação bastante
próxima a uma verdadeira revolução nas bases econômicas da cidade. A partir
deste momento, a situação que já vinha se concretizando em Franca desde 1945,
acentuou-se assustadoramente e o município, conforme relata Hercídia Mara Facuri
517
Coelho em A voz da cidade, assim “como outras cidades do interior de São Paulo,
entusiasmou-se com a exportação incentivada pelo governo e, assim, rapidamente a
paisagem urbana modificou-se pela instalação de inúmeras fábricas e a vinda de
migrantes, principalmente da zona rural de Minas Gerais, limiforme à cidade”49.
Na ocasião, Franca vivenciou um acelerado desenvolvimento econômico,
tendo o Estado como parceiro ideal para expansão efetiva de sua indústria
calçadista50. Nesse período, a produção calçadista procurou romper os limites do
mercado interno, no qual a oferta de calcados era sempre maior do que a procura, o
que resultava para o setor uma constante sensação de crise iminente. Desta forma,
sua consolidação em grande centro produtor e exportador de calçados masculinos
trouxe ao habitante da cidade um sentimento de jubilo não circunscrito a um
determinado segmento social. E isso, mesmo superando as dificuldades inerentes a
uma certa instabilidade na produção em função da adaptação aos padrões de
qualidade exigidos pelo mercado internacional51.
Nos dados referentes à tabela 2, torna-se evidente que, desde 1950, a
produção calçadista alcançou consideráveis aumentos com relação ao numero de
pares produzidos.
Tabela 2: Produção de calçados em Franca (1950-67):
Ano
Número de pares.
Ano
Número de pares.
1950
1.117.126
1959
2.388.542
1951
1.154.696
1960
2.456.500
1952
1.515.938
1961
2.922.794
1953
1.518.759
1962
3.328.687
1954
1.665.138
1963
3.335.000
1955
1.957.410
1964
3.380.000
1956
1.960.582
1965
4.300.000
1957
2.033.150
1966
4.300.000
1958
2.320.683
1967
7.200.000
FONTE: FIBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censos Industriais (1960 e
1970). In GARCIA, Ronaldo Aurélio Gimenes. Migrantes Mineiros em Franca: memória e trabalho na
cidade industrial (1960-80). Franca, 1997, p.42.
No entanto, a partir de 1964, a produção subiu de 3.380.000 pares de
calçados para 4.300.000 em 1965, representando um aumento de quase um milhão
518
de pares, e, de 1966 para 1967, esse aumento chegou à casa dos três milhões,
subindo de 4.300.000 para 7.200.000.
Essa expressiva produção contribuiu, portanto, com os propósitos de
exportação pretendidos pelos governos militares, como é enfatizado por Ronaldo
Aurélio Gimenes Garcia da seguinte forma:
Como forma de diminuir as importações e aumentar as exportações,
mantendo o equilíbrio da balança comercial, os governos militares
incentivaram a exportação de produtos como tecidos, bebidas, vestuário e
calçados. Esta política de incentivos envolvia subsídios aos produtos
destinados ao mercado externo, vantagens fiscais e linha própria de
financiamento para implantação e expansão das indústrias desses
52
setores .
Já a partir da tabela 3, observa-se um aumento acelerado nas exportações de
calcados francanos, principalmente com relação ao faturamento dessas exportações
em dólares.
Tabela 3: Exportação de calçados de Franca (1976-80):
Ano
Número de pares exportados
Valor em dólares
1976
2.147.887
23.821.693,50
1977
1.848.568
20.848.935,51
1978
2.259.014
26.230.969,19
1979
2.829.566
40.399.831,10
1980
2.957.069
44.078.833,18
FONTE: ACIF (Associação Comercial e Industrial de Franca). In GARCIA, Ronaldo Aurélio Gimenes.
Migrantes Mineiros em Franca: memória e trabalho na cidade industrial (1960-80). Franca, 1997,
p.35.
Em tais circunstâncias, Franca alinhou-se ao projeto dos governos militares
de expansão das exportações nacionais. Contudo, cumpre ressaltar que o processo
de industrialização francano ocorreu de forma “praticamente autônoma”53, ou seja,
não contou com a presença das grandes corporações multinacionais, como foi o
caso da indústria automobilística concentrada na região do ABC paulista. Os capitais
necessários para a expansão industrial continuaram alocados no próprio interior,
sem a entrada de capitais internacionais, que foram utilizados em larga escala para
compor grande parte do complexo industrial brasileiro.
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2,3.
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18 out. 2008.
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presidencialismo. In Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil. A trajetória política de João Goulart: na presidência da
República. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/index.htm Acesso
em: 18 out. 2008.
SILVA, Ana Maria Vieira Mariano da. As indústrias calçadistas de Franca nos anos
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VIANNA, Luiz Verneck, O Estado Novo e a ampliação autoritária da República. In
CARVALHO, Maria Alice Rezende de (org.). República no Catete. Rio de Janeiro:
Museu da Republica, 2001.
VILHENA, Maria Inês de Freitas. A Indústria de Calçados em Franca. Revista da
FFF. Franca: p. 68, 1968.
1
Doutorando em História pela Faculdade de História, Direito e Serviço Social / UNESP-Franca. Sob a
Orientação da Profa. Dra. Denise Aparecida Soares de Moura.
2
Diversas interpretações que procuram entender a defesa dos princípios centralizadores e
intervencionistas marcaram o Brasil em debates, durante a década de 1920 e na prática política a
partir da Revolução de 1930. Cada uma dessas interpretações buscava analisar os diversos projetos
políticos que estavam em discussão naquela conjuntura. Resquícios dos ideais positivistas no Rio
Grande do Sul, a defesa do liberalismo por diversos políticos republicanos que viveram a
Proclamação, ainda há a defesa da continuidade dos poderes exercidos pelos caudilhos e, por fim, o
surgimento dos ideais de centralização, que permitiram o desenvolvimento do processo de
modernização do Brasil. E, entre os adeptos desta última vertente encontra-se Oliveira Vianna.
3
GARCIA, Ronaldo Aurélio Gimenes. Migrantes mineiros em Franca: memória e trabalho na cidade
industrial (1960-1980). Franca: FHDSS-Unesp, 1997. p. 21.
4
VIANNA, Luiz Verneck, O Estado Novo e a ampliação autoritária da República. In CARVALHO,
Maria Alice Rezende de (org.). República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da Republica,
2001.p.113
521
5
GARCIA, op.cit., p. 34
BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Política e modernização em Franca: 1945-1964. Franca, FHDSSUnesp, 1998, p.19.
7
VIANNA, op.cit., p.128-129
8
GARCIA, op.cit., p. 18
9
BARBOSA, op.cit., p. 34
10
TOSI, Pedro Geraldo, Capitais no interior: Franca e a indústria couro calçadista (1860-1945).
Franca: Unesp, 2003., p. 196.
11
Ibid., p. 145-147.
12
TOSI, op.cit., p.242-247.
13
Cf. BARBOSA, op. cit.
14
VILHENA, op.cit., p.68
15
GARCIA, op.cit., p.40.
16
BARBOSA, op.cit., p. 37.
17
Ibid., p. 40
18
DONADELLI, Jorge Félix (Coord.) Vila Franca dos italianos. Franca: Ribeirão Gráfica e Editora,
2003, p. 61
19
MENDES, José Amado. História empresarial: da monografia apologética ao instrumento de gestão
estratégica. In Universidade de São Paulo. 03 set. 2008, p. 2,3.
20
LOBO. Eulália L. História Empresarial. In CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.).
Domínios da História Rio de Janeiro: Campus, 1997, 217,218.
21
MENDES, op.cit., p. 3.
22
BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Empresário fabril e desenvolvimento econômico: empreendedores,
ideologia e capital na industria do calçado (FRANCA, 1920-1990). Araraquara, 2004. Tese
(Doutoramento), Faculdade de Ciências e Letras, p. 156.
23
MENDES, op.cit., 3,4.
24
BARBOSA, op.cit., p. 157.
25
Ibid., ibid.
26
LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In REVEL, Jacques. (Org.). Jogos de escala: a
experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998, p. 225,226.
27
Ibid, p. 225.
28
Ibid., 227
29
MENDES, op.cit., 1
30
BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Política e modernização em Franca: 1945-1964. Franca, FHDSSUnesp, 1998, p.34.
31
D’ARAUJO, Maria Celina de. Política cambial e indústria. In Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil. E ele voltou... o segundo governo Vargas. Disponível em:
http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/ Acesso em: 18 out. 2008.
32
BARBOSA, op.cit., 37
33
D’ARAUJO, Maria Celina de. Comissão de Desenvolvimento Industrial. In Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil. E ele voltou... o segundo governo Vargas.
Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/ Acesso em: 18 out. 2008.
34
Oliveira, Lucia Lippi de. Do atraso ao subdesenvolvimento. In Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil. O Brasil do segundo governo Vargas. Disponível em:
http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/ Acesso em: 18 out. 2008.
35
NEGRO, Antonio Luigi. Automóveis 100% nacionais para Argentina e Brasil. Parceria
desenvolvimentista no além-mar. In FORTES, Alexandre et al. Na luta por direitos: estudos recentes
em história social do trabalho. Campinas: Ed. Unicamp, 1999, p. 132.
36
D’ARAUJO, Maria Celina de. Um panorama da política de desenvolvimento de Vargas. In Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. E ele voltou... o segundo
governo Vargas. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/ Acesso em: 18 out. 2008.
37
BARBOSA, op.cit., p. 40.
38
D’ARAUJO, op. cit.
39
BARBOSA, op.cit., 41.
40
SARMENTO, Carlos Eduardo. O plano trienal e a política econômica no presidencialismo. In Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. A trajetória política de João
Goulart: na presidência da República. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/index.htm
Acesso em: 18 out. 2008.
6
522
41
FERREIRA, Marieta de Morais. As reformas de base - Governo versus Congresso. In Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. A trajetória política de João
Goulart: na presidência da República. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/index.htm
Acesso em: 18 out. 2008.
42
FIGUEIREDO, Angelina C. Democracia & reformas: a conciliação frustrada. In TOLEDO, Caio
Navarro de. 1964: visões críticas do golpe-democracia e reformas no populismo. Campinas: Unicamp,
1997, p. 51.
43
Ibid., p.47.
44
Ibid., p.48.
45
AGGIO, Alberto. BARBOSA, Agnaldo de Sousa. COELHO, Hercídia Mara Facuri. Política e
sociedade no Brasil: (1930-1964). São Paulo: Annablume, 2002, p.69.
46
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p. 150
47
Ibid., p.158
48
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 6 ed. São Paulo:
Paz e Terra, 1979, p. 369
49
COELHO, Hercidia Mara Facuri.A voz da cidade: espaço urbano e política nos depoimentos dos
francanos. In ______. Histórias de Franca. Franca: UNESP, 1997, p.125
50
GARCIA, op.cit., p.21-26
51
SILVA, Ana Maria Vieira Mariano da. As indústrias calçadistas de Franca nos anos 70. Estudos de
História, Franca, v.6, n.1, p.55-66, 1999, p.57-59
52
GARCIA, op.cit., p.24.
53
GARCIA, op.cit., p.40
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