508 FRANCA E OS PROJETOS DE INDUSTRIALIZAÇÃO NO BRASIL: o caso de Hugo Bettarello e da Agabê (1945-1980). Rodrigo Mateus Silva1 (UNESP) O contexto da industrialização francana. A industrialização no Brasil conheceu um grande período de expansão a partir da década de 1930, tendo o Estado como impulsionador deste processo. No entanto, já durante a Primeira República, o Brasil começava a se transformar com o desenvolvimento da industrialização nos principais centros urbanos, o incremento da urbanização, a formação de um contingente urbano, que empregava sua força de trabalho em novas atividades econômicas como a indústria e o setor de serviços. Conseqüentemente, ocorreu a formação do operariado urbano, que pouco a pouco, diante do alto grau de exploração que o processo de acumulação de capitais exigia, começou a reivindicar direitos, melhores condições de vida e maior participação nos rumos políticos do país2. Coube assim, ao poder público incentivar as empresas privadas, implementar as indústrias de base e intermediar as questões referentes à expansão das lutas do movimento operário pela conquista de novos direitos3. Expressou-se, desta forma, a existência, ainda de acordo com Luis Verneck Vianna, de um distanciamento “crescente entre a natureza da Republica Oligárquica e a nova sociedade civil, demandante de mudanças político-institucionais e culturais, o que, por si só, já caracterizava uma crise no sistema da ordem” 4. Deste modo, a partir de 1930 o país conheceu um período de desenvolvimento industrial não circunscrito apenas em torno das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Outros eixos de desenvolvimento industrial começaram a surgir em várias regiões do interior do Brasil no decorrer das décadas de 1930 e 1940. Apesar de afastada [...] dos grandes centros urbanos de produção industrial e mesmo do poder, a cidade de Franca apresentou um desenvolvimento urbano e industrial considerável a partir da década de 1950. Sua indústria tradicional de couros e calçados teve um papel muito importante nesse processo que modificou 5 essencialmente a paisagem urbana em poucas décadas. A modernização em Franca ganhou impulso, desta forma, a partir de meados 509 da década de 1940 e prosseguiu durante a segunda metade do século XX6. A partir deste momento, passou-se a viver no município, de forma cada vez mais contundente, as transformações nas relações sociais. A consolidação da indústria calçadista local impunha, conseqüentemente, novas relações entre o capital e o trabalho, da mesma forma que ocorrera antes em outros centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro no transcorrer da década de 19307. Momento este em que o país encontrava-se envolvido em um “movimento” que mudou os rumos de sua história e tornou possível a largada rumo à modernidade. Em Migrantes Mineiros em Franca, Ronaldo Aurélio Gimenes Garcia enfatiza as transformações ocorridas no país depois de 1930: O período da historia do Brasil iniciado no pós 1930 trouxe consigo uma nova face para a sociedade brasileira que, abandonando suas características tradicionais, assumiu outra realidade baseada no crescimento das cidades, na industrialização e na migração das populações 8 rurais . A partir de 1945 a indústria calçadista de Franca encontrava-se em processo de expansão, trazendo reflexos para as condições urbanas do município. Assim, sob o impacto causado pela Segunda Guerra Mundial, as atividades da cafeicultura e da pecuária começaram a perder terreno para a indústria de calçados9, sendo que a cafeicultura já vinha sofrendo com os efeitos da crise de 192910. As pequenas oficinas existentes na cidade buscavam, durante a guerra, converter a produção de calçados rústicos, destinados a trabalhadores rurais, em calçados de melhor trato, devido a ausência do produto no mercado interno provocada pelo conflito internacional11. Os capitais locais, até então envolvidos na atividade cafeeira, direcionaram-se para o setor industrial, contribuindo com desenvolvimento do parque industrial calçadista. O complexo industrial francano contemplou, neste momento, diversos ramos industriais, que serviam de suporte a atividade couro-calçadista, como a indústria curtumeira, de solados de borracha e também de fabricação e assistência a maquinários de calçados12. Neste contexto de industrialização crescente e de grandes transformações políticas ocasionadas pela queda do Estado Novo e pela reestruturação da democracia política no país, a cidade de Franca, da mesma maneira que em outros centros urbanos, passou a ser alvo das movimentações dos partidos políticos em 510 suas bases locais, que possuíam em suas fileiras pessoas ligadas a produção industrial de calçados13. Com a intensificação da industrialização, no transcorrer da década de 1950, na qual as pequenas oficinas foram substituídas por fábricas de médio e grande porte14, num ativo processo de mecanização da produção, a cidade de Franca percebeu-se envolvida em transformações radicais em seu perfil urbano. Inicialmente, conforme a tabela 1 demonstra, ocorreu um crescimento acelerado da população urbana, quando novos indivíduos de origem rural, sobretudo mineiros15, chegavam à cidade em busca de empregos, os quais as fábricas ofereciam e, posteriormente, a consolidação do operariado urbano, alterou a vida política e as relações sociais no município16. Tabela 1: População urbana e rural de Franca (1940-80): Município de Franca (1940-80) Censo 1940 1950 1960 1970 1980 Rural 31.652 24.575 18.877 6.761 4.875 % 56,83 45,94 27,75 7,22 3,82 Urbano 24.038 28.910 49.150 86.852 143.640 % 43,17 54,06 72,25 92,78 96,18 Total 55.640 53.485 68.027 93.613 148.505 FONTE: FIBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censos Demográficos: Série Regional – São Paulo (1940-80). In GARCIA, Ronaldo Aurélio Gimenes. Migrantes Mineiros em Franca: memória e trabalho na cidade industrial (1960-80). Franca, 1997, p.40. A tabela 1 demonstra o incremento quantitativo e percentual dos habitantes que viviam na área urbana e rural do município de Franca entre os anos de 1940 e 1980. O processo de formação e incremento da indústria couro-calçadista em Franca incentivou, portanto, o desenvolvimento da urbanização no município, sobretudo com a chegada expressiva de migrantes das regiões adjacentes e das demais áreas rurais de Minas Gerais, que buscavam os postos de trabalho proporcionados pelo desenvolvimento fabril17. Entre a História Empresarial e a Micro-História: Hugo Bettarello, a Agabê e a busca de uma metodologia. Foi, assim neste contexto, que em 19 de agosto de 1945 Hugo Bettarello, aos 29 anos de idade, iniciou as atividades fabris do estabelecimento, que futuramente viria a ser a Indústria de Calçados Agabê, contando naquele momento com a produção de 100 pares de calçados por dia e um total de 20 funcionários18. 511 A instalação e a trajetória da empresa se desenvolveram em diversas conjunturas, também sendo difusas as políticas econômicas e de industrialização empreendidas pelos governos brasileiros no período. A partir de uma perspectiva micro-analítica poderia se pensar a atuação de uma empresa ou um empresário na consolidação ou ampliação do setor calçadista em Franca. A História empresarial foi, de acordo com José Amado Mendes19, pouco desenvolvida na Europa entre o final do século XIX e início do XX. Segundo o autor poucos estudos eram realizados sobre a história de empresas em virtude do tema não sido eleito pelos metódicos e, posteriormente pelos primeiros historiadores dos Annales, como objetos de suas pesquisas. Os primeiros, como historiadores do Estado, privilegiaram a biografia dos grandes homens e focaram nos eventos políticos ou militares. Já entre os membros dos Annales os primeiros trabalhos sobre a História empresarial foram tratados a partir da história global, que tanto caracterizou o grupo dos historiadores herdeiros da historiografia francesa. No entanto, como Eulália Lobo20 destaca, a História Empresarial encontrou melhor contexto ao seu desenvolvimento nos Estados Unidos, a partir da década de 1920 com a linha historiográfica da Businness History Society. Mas, foi no decorrer das décadas de 1940 e 1950, que o grupo de historiadores empresariais ganhou fôlego, criando-se o Centro de História Empresarial de Harvard, que passou a contar com os trabalhos de pesquisa de Joseph Schumpeter. Assim, Amado destaca que “Joseph Schumpeter, em meados do século XX, havia chamado a atenção para o papel decisivo da empresa e do empresário, na inovação e no desenvolvimento econômico”21. Portanto Schumpeter destacava que sucesso e o desenvolvimento de atividades econômicas estavam grandemente relacionados ao caráter criativo e empreendedor do empresário22. Outro autor do período, Alfred D. Chandler, alterou a visão liberal de Adam Smith a respeito da mão invisível no mercado na condução da economia, destacando que não mais as forças do mercado deixariam que a economia seguisse seu curso, mas seria a atuação do empresário profissional, que levaria ao êxito das atividades dos estabelecimentos fabris e, conseqüentemente ao desenvolvimento econômico23. 512 Neste cenário o empresário ganhava destaque e, igualmente como outros pensadores do período procuravam demonstrar, Werner Sombart24 foi além na caracterização das atribuições do empreendedor: o verdadeiro empresário (o conquistador!) deve ter a força e a decisão suficientes para permitir-lhe vencer todos os obstáculos, que se encontre em seu caminho. Mas também é necessário que seja um conquistador, ou seja, um homem bem ousado, que arrisque tudo pelo sucesso de sua empresa. Por esta inclinação ao risco se aproxima muito do jogador. O amor pelo perigo tem como condições a vivacidade intelectual, a energia moral, uma grande capacidade de concentração, uma vontade 25 perseverante . No entanto, este tipo de análise se apresenta um tanto quanto complicada para explicar a atuação dos empresários dentro do processo histórico de formação de uma empresa ou mesmo o desenvolvimento de um ramo industrial, pois existe a constante necessidade de desarticular mitos, evitando-se conferir caráter heróico ao empresário. Neste sentido, os empresários e suas respectivas trajetórias à frente de empresas ou representantes de alguns setores econômicos, ganharam força como objetos de estudo. Assim o método biográfico pode oferecer algumas contribuições para tais pesquisas. Sabina Loriga26 procurou demonstrar que diante das transformações historiográficas ocorridas no grupo dos Annales, que permitiram abordagens diferentes daquelas de caráter globalizantes, surgiram os adeptos da biografia, já que o indivíduo voltara ao campo das pesquisas históricas. No entanto, a autora destaca que apesar da crise dos conceitos totalizantes ter relação com o aprofundamento da noção histórica do indivíduo, o resgate da biografia, não permitiria o retorno dos métodos empreendidos pelos metódicos. A biografia, que contemplaria o resgate de indivíduos, estaria mais presente em “experiências no campo da história atentas ao ‘cotidiano’, a ‘subjetividades outras’: por exemplo, a história oral, os estudos sobre a cultura popular e a história das mulheres”27. Portanto, não se trata de fazer uma história biográfica, cronologia e apologética, mas acima de tudo uma biografia que contemple a História-problema. Assim, a biografia como uma História-problema poderia servir ao estudo dos empresários sem que se chegue à caracterização do biografado em conteúdos similares aos descritos Sombart. Loriga28 destaca, a partir de considerações feitas por Jean-Claude Passeron, que o método biográfico deve procurar uma dimensão interpretativa, não voltando às práticas historiográficas, que já foram superadas. 513 Amado destaca, nesta conjuntura, que se trata em entender o papel das empresas e de empresários em certos contextos, ou suas respectivas trajetórias contribuindo com o desenvolvimento de ramos ou atividades econômicas mais amplas29. A partir também dos documentos pessoais de Hugo Bettarello associados com a historiografia que procurou analisar a trajetória da industrialização no Brasil, o estudo do caso específico da Agabê, procurando integrar a empresa em redes maiores de contatos estabelecidos pelo seu proprietário, procura-se empreender uma contribuição para se pensar a própria trajetória industrial no Brasil. A Agabê e o processo de industrialização do Brasil. Quando a fábrica foi instalada e suas atividades se iniciaram Barbosa relata, que as indústrias já eram uma realidade concreta no município, existindo um “entusiasmo pelo ritmo de industrialização que marcava a cidade em meados da década de 1940”30. Para Maria Celina D’Araújo durante o Governo Dutra, intervalo entre o primeiro e o segundo governo Vargas, a política econômica se caracterizou pelo liberalismo cambial, que resultou em déficits na balança comercial. Para resolver tal problema as importações foram restringidas, sendo concretizadas somente a partir de prévia aprovação governamental. Até 1952 essa medida trouxe resultados positivos para a indústria, no entanto ela foi alterada pelo governo Vagas em virtude do agravamento no desequilíbrio nos balanços de pagamentos e o aumento da inflação. Neste momento o governo adotou o cambio livre e adotou a distinção de taxas de importação e exportação31. Assim, com relação à Franca Barbosa argumenta que na década de 40 a indústria foi, gradativamente, colocada no dia-a-dia dos moradores da cidade. No entanto, Barbosa ainda considera que a consolidação da atividade industrial em Franca só aconteceu na década de 1950, quando o setor foi favorecido pela política econômica de Vargas32. De acordo com D’Araújo a política “de desenvolvimento do segundo governo Vargas continuou a se caracterizar por desenvolvimento industrial, nacionalismo, dirigismo estatal e aproximação com o capital estrangeiro”, [... então...] “em julho de 1951 Vargas criou a Comissão de Desenvolvimento Industrial (CDI), organismo pioneiro no âmbito da administração governamental subordinado ao Ministério da Fazenda”. [...] A tarefa principal da CDI era o estudo e a proposição de medidas econômicas, financeiras e 514 administrativas ligadas à política industrial. [Como resultado a...] CDI formulou um Plano Geral de Industrialização para o país, estabelecendo uma classificação das atividades industriais e designando os setores prioritários em que o governo deveria atuar, entre eles energia, metalurgia, 33 transformação mineral, química, têxtil, borracha e material de construção. Neste contexto, Lucia Lippi de Oliveira salienta que diversos projetos de desenvolvimento foram pensados para o Brasil, entre eles as propostas apresentadas pela Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL – pertencente às Nações Unidas, cujas referências foram as idéias do economista Celso Furtado. Preocupados com o desenvolvimento, pensando formas de modernização substituindo o arcaico a CEPAL proporia “a industrialização pela substituição de importações; a deterioração dos termos de troca; a necessidade de proteção do mercado interno; o papel fundamental do Estado no processo de desenvolvimento”34 Assim, durante o governo Vargas, como Antônio Luigi Negro demonstrou, existiam esforços para a implementação da indústria automobilística no Brasil, mostrando-se “determinação em produzir bens de consumo 100% nacionais35” sendo que tal projeto acabou sendo implementado durante o governo de Juscelino Kubitschek36. O projeto industrial de Vargas contribuiu deste modo, com a indústria de calçados de Franca, quando esta procurava se consolidar na economia local. Pois, segundo Barbosa houve acesso ao crédito, facilidade de importação de máquinas e, conseqüentemente, um aumento na produção de 43% entre os anos de 1950 e 195437. O projeto de industrialização de Vargas, segundo D’Araújo “Lançou as bases para o desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e inspirou os governos militares até as crises do petróleo dos anos 1970 e 1980”38. No entanto, já a partir da segunda metade da década de 1950, quando o projeto desenvolvimentista de Kubitschek estava em curso no país, as diversas facilidades encontradas pelo setor calçadista francano, durante o Governo Vargas foram perdidas, como Barbosa enfatiza: O ritmo intenso de modernização vivido na primeira metade da década de 1950 sofreu estrangulamento, pois o Plano de Metas proposto por Kubitschek favoreceu especialmente o grande capital. [Havia, assim, um...] ressentimento dos industriais da cidade em face da política econômica 39 restritiva, bem como da perspectiva de crise advinda desse processo . 515 Mesmo com algumas dificuldades nos anos do governo de Juscelino Kubitschek, a situação da indústria calçadista começou a se transformar na década de 1960. No governo de João Goulart, de acordo com Carlos Eduardo Sarmento40 a política econômica, conduzida por Celso Furtado, pretendia conter a inflação e reduzir os gastos públicos. Naquele momento político especifico, que era marcado pela realização do plebiscito, Goulart buscava maior rigidez na condução da política econômica, se afastando inclusive de muitos preceitos da CEPAL, com o objetivo de conseguir maior apoio político, contornando as oposições. Visto que Goulart havia acumulado alguns problemas na implementação de sua política econômica, sobretudo nas tentativas de captação de recursos e ao mesmo tempo pressionado por setores trabalhistas Goulart cedeu na concessão de subsídios e nas negociações sobre o reajuste de salários, o que levou conseqüentemente ao acúmulo de déficit nas contas públicas e, portanto, recessão econômica. Neste cenário, Marieta de Morais Ferreira argumenta que diversos grupos buscavam discutir formas de redução das crescentes desigualdades sociais e afastar o subdesenvolvimento. Com a posse de Goulart, torna-se possível a implementação das chamadas “Reformas de Base”, que previa, “um conjunto de iniciativas: as reformas bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e 41 universitária” . As reformas pretendidas por Goulart fracassaram, pois a falta de apoio voluntário dos diversos grupos sociais impediu o êxito do Plano Trienal, que buscava por fim a crise econômica. O plano pretendido pelo governo exigia sacrifícios imediatos, porém, os benefícios somente seriam sentidos em longo prazo e eram bastante incertos42 A questão da reforma agrária tornou-se, no entanto, mais complexa e foi a principal causa do esvaziamento de apoio político sofrido por João Goulart, que ocasionou a sua queda em 1964. Na década de 1960 “não foi possível alcançar uma solução institucional que combinasse democracia política com reformas sociais43” Para essa autora: No início dos anos 60, no Brasil, tornou-se impossível a construção de um compromisso que combinasse reformas e democracia em um projeto político consciente, porque democracia e reformas eram percebidas como 44 objetivos políticos conflitantes 516 Vários grupos políticos movimentaram-se em torno das reformas, divididos entre conservadores, defensores de reformas moderadas e os grupos “proreformas”, que pleiteavam reformas bem mais radicais. A radicalização política entre esses dois setores atravancou o andamento das reformas no congresso, o que impediu a sua realização no âmbito do legislativo nacional, do qual os conservadores representavam a maioria. Para dar prosseguimento ao plano de reformas, o governo federal procurou realizá-las por meio de decretos, desagradando os conservadores, mas também aos radicais, que esperavam do executivo nacional, ações mais efetivas. Com esta falta de consenso, o governo acabou perdendo o apoio político que possuía, ficando vulnerável diante de um pequeno grupo do empresariado, sobretudo udenista, e do exercito. Ambos de inclinação golpista foram responsáveis pelo desfecho de 1964, que contou com amplo respaldo da opinião publica. Assim, o posicionamento tanto da direita como da esquerda, revelou a falta de compromisso político de ambos os lados para com a democracia representativa: a direita para impedir o avanço e a consolidação das reformas; a esquerda para eliminar os obstáculos que se antepunham a esse processo. Em conseqüência, nesta conjuntura, o golpismo, concepção e prática já arraigada na direita brasileira, se combinava drasticamente com a ausência de tradição democrática da esquerda, levando a uma confrontação que 45 seria fatal para a democracia. Dentro de uma visão semelhante, José Murilo de Carvalho46 afirma que o fim da democracia política ocorreu devido à falta de convicção democrática da elite brasileira, que abandonou a defesa de suas instituições presentes no país desde 1945. O movimento, então, iniciado pelos militares, que buscava por fim a presente crise política surpreendeu, no entanto, o empresariado udenista47, quando os militares em vez de redirecionarem as prerrogativas de controle do poder a outros grupos civis, como ocorrido anteriormente48, os colocou, ineditamente, em suas próprias mãos. O regime militar instaurado em 1964 representou, sem dúvida, uma mudança de rumos na história do país, pelo menos em termos de transformações na infraestrutura econômica. Em relação à Franca, apresentou uma conotação bastante próxima a uma verdadeira revolução nas bases econômicas da cidade. A partir deste momento, a situação que já vinha se concretizando em Franca desde 1945, acentuou-se assustadoramente e o município, conforme relata Hercídia Mara Facuri 517 Coelho em A voz da cidade, assim “como outras cidades do interior de São Paulo, entusiasmou-se com a exportação incentivada pelo governo e, assim, rapidamente a paisagem urbana modificou-se pela instalação de inúmeras fábricas e a vinda de migrantes, principalmente da zona rural de Minas Gerais, limiforme à cidade”49. Na ocasião, Franca vivenciou um acelerado desenvolvimento econômico, tendo o Estado como parceiro ideal para expansão efetiva de sua indústria calçadista50. Nesse período, a produção calçadista procurou romper os limites do mercado interno, no qual a oferta de calcados era sempre maior do que a procura, o que resultava para o setor uma constante sensação de crise iminente. Desta forma, sua consolidação em grande centro produtor e exportador de calçados masculinos trouxe ao habitante da cidade um sentimento de jubilo não circunscrito a um determinado segmento social. E isso, mesmo superando as dificuldades inerentes a uma certa instabilidade na produção em função da adaptação aos padrões de qualidade exigidos pelo mercado internacional51. Nos dados referentes à tabela 2, torna-se evidente que, desde 1950, a produção calçadista alcançou consideráveis aumentos com relação ao numero de pares produzidos. Tabela 2: Produção de calçados em Franca (1950-67): Ano Número de pares. Ano Número de pares. 1950 1.117.126 1959 2.388.542 1951 1.154.696 1960 2.456.500 1952 1.515.938 1961 2.922.794 1953 1.518.759 1962 3.328.687 1954 1.665.138 1963 3.335.000 1955 1.957.410 1964 3.380.000 1956 1.960.582 1965 4.300.000 1957 2.033.150 1966 4.300.000 1958 2.320.683 1967 7.200.000 FONTE: FIBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censos Industriais (1960 e 1970). In GARCIA, Ronaldo Aurélio Gimenes. Migrantes Mineiros em Franca: memória e trabalho na cidade industrial (1960-80). Franca, 1997, p.42. No entanto, a partir de 1964, a produção subiu de 3.380.000 pares de calçados para 4.300.000 em 1965, representando um aumento de quase um milhão 518 de pares, e, de 1966 para 1967, esse aumento chegou à casa dos três milhões, subindo de 4.300.000 para 7.200.000. Essa expressiva produção contribuiu, portanto, com os propósitos de exportação pretendidos pelos governos militares, como é enfatizado por Ronaldo Aurélio Gimenes Garcia da seguinte forma: Como forma de diminuir as importações e aumentar as exportações, mantendo o equilíbrio da balança comercial, os governos militares incentivaram a exportação de produtos como tecidos, bebidas, vestuário e calçados. Esta política de incentivos envolvia subsídios aos produtos destinados ao mercado externo, vantagens fiscais e linha própria de financiamento para implantação e expansão das indústrias desses 52 setores . Já a partir da tabela 3, observa-se um aumento acelerado nas exportações de calcados francanos, principalmente com relação ao faturamento dessas exportações em dólares. Tabela 3: Exportação de calçados de Franca (1976-80): Ano Número de pares exportados Valor em dólares 1976 2.147.887 23.821.693,50 1977 1.848.568 20.848.935,51 1978 2.259.014 26.230.969,19 1979 2.829.566 40.399.831,10 1980 2.957.069 44.078.833,18 FONTE: ACIF (Associação Comercial e Industrial de Franca). In GARCIA, Ronaldo Aurélio Gimenes. Migrantes Mineiros em Franca: memória e trabalho na cidade industrial (1960-80). Franca, 1997, p.35. Em tais circunstâncias, Franca alinhou-se ao projeto dos governos militares de expansão das exportações nacionais. Contudo, cumpre ressaltar que o processo de industrialização francano ocorreu de forma “praticamente autônoma”53, ou seja, não contou com a presença das grandes corporações multinacionais, como foi o caso da indústria automobilística concentrada na região do ABC paulista. Os capitais necessários para a expansão industrial continuaram alocados no próprio interior, sem a entrada de capitais internacionais, que foram utilizados em larga escala para compor grande parte do complexo industrial brasileiro. Referências Bibliográficas AGGIO, Alberto. BARBOSA, Agnaldo de Sousa. COELHO, Hercídia Mara Facuri. Política e sociedade no Brasil: (1930-1964). São Paulo: Annablume, 2002, p.69. 519 BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Empresário fabril e desenvolvimento econômico: empreendedores, ideologia e capital na industria do calçado (FRANCA, 1920-1990). Araraquara, 2004. Tese (Doutoramento), Faculdade de Ciências e Letras, p. 156. ______. Política e modernização em Franca: 1945-1964. 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Franca: p. 68, 1968. 1 Doutorando em História pela Faculdade de História, Direito e Serviço Social / UNESP-Franca. Sob a Orientação da Profa. Dra. Denise Aparecida Soares de Moura. 2 Diversas interpretações que procuram entender a defesa dos princípios centralizadores e intervencionistas marcaram o Brasil em debates, durante a década de 1920 e na prática política a partir da Revolução de 1930. Cada uma dessas interpretações buscava analisar os diversos projetos políticos que estavam em discussão naquela conjuntura. Resquícios dos ideais positivistas no Rio Grande do Sul, a defesa do liberalismo por diversos políticos republicanos que viveram a Proclamação, ainda há a defesa da continuidade dos poderes exercidos pelos caudilhos e, por fim, o surgimento dos ideais de centralização, que permitiram o desenvolvimento do processo de modernização do Brasil. E, entre os adeptos desta última vertente encontra-se Oliveira Vianna. 3 GARCIA, Ronaldo Aurélio Gimenes. Migrantes mineiros em Franca: memória e trabalho na cidade industrial (1960-1980). Franca: FHDSS-Unesp, 1997. p. 21. 4 VIANNA, Luiz Verneck, O Estado Novo e a ampliação autoritária da República. In CARVALHO, Maria Alice Rezende de (org.). República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da Republica, 2001.p.113 521 5 GARCIA, op.cit., p. 34 BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Política e modernização em Franca: 1945-1964. Franca, FHDSSUnesp, 1998, p.19. 7 VIANNA, op.cit., p.128-129 8 GARCIA, op.cit., p. 18 9 BARBOSA, op.cit., p. 34 10 TOSI, Pedro Geraldo, Capitais no interior: Franca e a indústria couro calçadista (1860-1945). Franca: Unesp, 2003., p. 196. 11 Ibid., p. 145-147. 12 TOSI, op.cit., p.242-247. 13 Cf. BARBOSA, op. cit. 14 VILHENA, op.cit., p.68 15 GARCIA, op.cit., p.40. 16 BARBOSA, op.cit., p. 37. 17 Ibid., p. 40 18 DONADELLI, Jorge Félix (Coord.) Vila Franca dos italianos. Franca: Ribeirão Gráfica e Editora, 2003, p. 61 19 MENDES, José Amado. História empresarial: da monografia apologética ao instrumento de gestão estratégica. In Universidade de São Paulo. 03 set. 2008, p. 2,3. 20 LOBO. Eulália L. História Empresarial. In CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da História Rio de Janeiro: Campus, 1997, 217,218. 21 MENDES, op.cit., p. 3. 22 BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Empresário fabril e desenvolvimento econômico: empreendedores, ideologia e capital na industria do calçado (FRANCA, 1920-1990). Araraquara, 2004. Tese (Doutoramento), Faculdade de Ciências e Letras, p. 156. 23 MENDES, op.cit., 3,4. 24 BARBOSA, op.cit., p. 157. 25 Ibid., ibid. 26 LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In REVEL, Jacques. (Org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998, p. 225,226. 27 Ibid, p. 225. 28 Ibid., 227 29 MENDES, op.cit., 1 30 BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Política e modernização em Franca: 1945-1964. Franca, FHDSSUnesp, 1998, p.34. 31 D’ARAUJO, Maria Celina de. Política cambial e indústria. In Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. E ele voltou... o segundo governo Vargas. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/ Acesso em: 18 out. 2008. 32 BARBOSA, op.cit., 37 33 D’ARAUJO, Maria Celina de. Comissão de Desenvolvimento Industrial. In Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. E ele voltou... o segundo governo Vargas. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/ Acesso em: 18 out. 2008. 34 Oliveira, Lucia Lippi de. Do atraso ao subdesenvolvimento. In Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. O Brasil do segundo governo Vargas. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/ Acesso em: 18 out. 2008. 35 NEGRO, Antonio Luigi. Automóveis 100% nacionais para Argentina e Brasil. Parceria desenvolvimentista no além-mar. In FORTES, Alexandre et al. Na luta por direitos: estudos recentes em história social do trabalho. Campinas: Ed. Unicamp, 1999, p. 132. 36 D’ARAUJO, Maria Celina de. Um panorama da política de desenvolvimento de Vargas. In Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. E ele voltou... o segundo governo Vargas. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/ Acesso em: 18 out. 2008. 37 BARBOSA, op.cit., p. 40. 38 D’ARAUJO, op. cit. 39 BARBOSA, op.cit., 41. 40 SARMENTO, Carlos Eduardo. O plano trienal e a política econômica no presidencialismo. In Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. A trajetória política de João Goulart: na presidência da República. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/index.htm Acesso em: 18 out. 2008. 6 522 41 FERREIRA, Marieta de Morais. As reformas de base - Governo versus Congresso. In Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. A trajetória política de João Goulart: na presidência da República. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/index.htm Acesso em: 18 out. 2008. 42 FIGUEIREDO, Angelina C. Democracia & reformas: a conciliação frustrada. In TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: visões críticas do golpe-democracia e reformas no populismo. Campinas: Unicamp, 1997, p. 51. 43 Ibid., p.47. 44 Ibid., p.48. 45 AGGIO, Alberto. BARBOSA, Agnaldo de Sousa. COELHO, Hercídia Mara Facuri. Política e sociedade no Brasil: (1930-1964). São Paulo: Annablume, 2002, p.69. 46 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 150 47 Ibid., p.158 48 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1979, p. 369 49 COELHO, Hercidia Mara Facuri.A voz da cidade: espaço urbano e política nos depoimentos dos francanos. In ______. Histórias de Franca. Franca: UNESP, 1997, p.125 50 GARCIA, op.cit., p.21-26 51 SILVA, Ana Maria Vieira Mariano da. As indústrias calçadistas de Franca nos anos 70. Estudos de História, Franca, v.6, n.1, p.55-66, 1999, p.57-59 52 GARCIA, op.cit., p.24. 53 GARCIA, op.cit., p.40