O BRASILEIRO DEPORTADO A FALAR DE SI: UM ACONTECIMENTO LIMÍTROFE* Marcos Aurélio Barbai1 1 Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) [email protected] Abstract. The aim of this paper is to reflect a current event: the Brazilians’ deportation. We have this occurance like a limite event, because in our views the deportation is a process that blast a crisis, a chaos, ie, one time that have to be inhabited now. It is in the materiality of voice, hearing the deported Brazilian that speak about himself, through the interviews in the International Airport of São Paulo, that we want to construct procedures for the inedit discours to be taken. Keywords. event; deportation; voice; discours. Resumo. O objetivo deste texto é refletir um acontecimento atual: a deportação de brasileiros. Tomamos este acontecimento na qualidade do acontecimento limite, pois a nosso ver a deportação é um processo que irrompe uma crise, um caos, isto é, um tempo que tem de ser habitado agora. É na materialidade da voz, escutando o brasileiro deportado a falar de si, através de entrevistas realizadas no Aeroporto Internacional de São Paulo, que queremos construir procedimentos de modo a acolher o inédito que é o discurso. Palavras-chave. acontecimento; deportação; voz; discurso. Deportação: o espaço, o estranho, o limite Falar sobre a deportação (e acrescento, aqui, a expulsão e a extradição) possibilitanos pensar em três designações que, de qualquer maneira, determinam o envio do estrangeiro para fora do Estado estrangeiro em que ele se encontra. Há um trabalho do político, nas relações de força na linguagem, na construção de diferenciar o que no fundo constitui a mesma ação: banir o outro do espaço. Banir o outro do espaço (espaço simbólico que tem sua materialidade e formas específicas de significar2) é um modo de instalar uma fratura no corpo, já que o corpo dos sujeitos e o corpo da cidade formam um só (cf. ORLANDI, 2004:11). É um modo também de desengatar uma outra fratura: entre o homem (que possui direitos) e o cidadão (direito a cidadania – ‘droit de cité’ – dimensão jurídica de cidadão) ele é, para relembrar uma expressão de KRISTEVA (1998:102), uma cicatriz, ou seja, o estrangeiro. Estranho capaz de suscitar animosidade e irritação: ‘O que você está fazendo aqui?’, ‘Aqui não é o seu lugar!’ Há assim, os processos promovidos pelo Estado que instauram fronteiras (linhas de demarcação) e o direito de estar dentro delas e/ou atravessá-las e os mecanismos para permanência ou travessia: o documento de identidade para estar no Estado e, via de regra, um passaporte para atravessar as fronteiras entre Estados. Enfim, há uma ordem a ser seguida. 1 Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 133 / 139 Entretanto, há aqueles rompem a ordem, ou seja, esfacelam esse meio regular e estável para os nossos atos. BAUMAN (1998:37) diz que o que faz certas pessoas estranhas, e por conta disso, irritantes, enervantes, desconcertantes e, sob outros aspectos, ‘um problema’ é sua tendência a obscurecer e eclipsar as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas. Um corpo estranho, assim funciona o fenômeno da imigração clandestina. Esse corpo estranho é aquilo que esfacela um outro corpo, corpo com inúmeras cabeças (senão finito pelo menos numerável), ou seja, a população. O migrante está lá, jogado no seio da população e significando como um não natural, um estranho, um fora da ordem. Os problemas de imigração clandestina vão aparecer sob os efeitos da ordem econômica e política, e isso no nível de massa. Os imigrantes não compõem mais o par massa-indíviduo, das sociedades de disciplina; eles compõem, assim como todos nós, na sociedade de controle, como explicita DELEUZE (1992:222) amostras, dados, ou ‘bancos’. É aqui que encontramos o limite: o limite lugar, o limite tempo, o limite da subjetividade. Para alguns há limite: um espaço delimitado, um momento de parada, um corpo. Para outros há o confronto e aberturas e isso se aplica ao espaço, ao momento e ao corpo. Confrontar-se com os limites é redesenhar as fronteiras, fronteiras essa do espaço, do momento, da subjetividade. É nesse despedaçar das fronteiras que o migrante habita: uma experiência que pode engendrar o insuportável, um jogo com os modos de identificação, a façanha de não pertencimento a um lugar. O acontecimento limite Michel PÊCHEUX (1999) no colóquio o “Papel da Memória” sinaliza uma dupla forma-limite no processo de inscrição do acontecimento no espaço da memória. Ele fala do ‘acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever’ e do ‘acontecimento que é absorvido na memória, como se não tivesse ocorrido’. Essa dupla forma-limite coloca em jogo a contradição e a fragilidade do acontecimento, pois ora ele é um devir que escapa à inscrição e ora ele é tão frágil que sua irrupção passa quase desapercebida. A nossa proposta, então, é a de potencializar nessa dupla forma-limite o trabalho do próprio limite. Assim, operaremos, com a contradição (a impossibilidade de haver um acontecimento), com a fragilidade (a potência do acaso, do efêmero, do fugidio que é todo acontecimento). O limite é tomado, aqui, como avesso dessa dupla forma: um agora que resiste a escapar da inscrição, um agora que resiste a absorção. Um agora que desafia o que é absorvido inscrevendo o insuportável. O acontecimento limite instala o caos na subjetividade, uma crise que abre a estranheza materializada pelos efeitos fragilidade, vulnerabilidade, mutabilidade das coisas, desassossego. Ser habitado pelo limite é ser visitado pelo inumano no humano, pelo trágico. De certo modo a imagem de si se torna alheia a si mesma. Acolher os modos de estranhamento implica um trabalho com a voz, com a formasujeito do discurso, com os modos de filiação a uma rede sentidos, enfim, com as identificações. Concebemos a voz, atuando na instância do falar de si - gesto de um sujeito que se lança a si mesmo sem se reencontrar -, para além de um mecanismo anátomofisiológico para uma resposta acústica. A voz, como expressão humana privilegiada, transmite muito mais do que apenas veicula mensagens. Concretamente ela identifica quem fala (sexo, idade, origem, etc); sua nodulação indica intencionalidade, atitudes. 2 Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 134 / 139 Discursivamente a voz assume um estatuto de visibilidade das posições sujeito frente a si mesmo e frente ao semelhante. A voz é uma instância material que emerge processos de subjetivação e trabalha múltiplos jogos de sentido. Ela é uma linha imaginária no simulacro do processo de significação e exerce efeito no processo de subjetivação. A voz produz efeito no processo de identificação do sujeito. Falamos aqui da voz, pois trabalhamos com entrevista, ou seja, uma cena de discursividade montada. Este lugar de enunciação (um espaço de enunciação aberto) se dá, em nossa pesquisa, em um espaço físico particular: o aeroporto. É aí que o nosso corpus toma corpo. Realizamos 25 entrevistas com brasileiros deportados de várias partes do mundo: Estados Unidos da América, México, Bélgica, França, Inglaterra, Itália e Japão. Acrescento, aqui, que trabalhar com entrevistas é adentrar nos discursos do cotidiano e estes são os mais difíceis de se analisar, por conta de sua não regularidade. A nossa sociedade cria lugares de fala, uma política de significação. Os lugares são configurados, institucionalizados. O paradigma da sociedade era baseado na relação de classes (inclusão, exclusão – classe alta, classe baixa). Hoje, essa dinâmica não basta, pois as relações são relações de lugares: lugar do brasileiro, lugar do estrangeiro, etc. Acentuo isso porque o lugar em que se fala tem força. Falar como deportado significa, pois a posição engendrada nesse espaço estabelece uma relação de sentido aberta. O modo de dizer é uma materialidade significante. Há sempre alguém falando para alguém: em uma determinada língua, em uma determinada condição. O Falar de si assume nessa dinâmica do dizer toda uma particularidade: ele se dá pelo efeito daquilo que PÊCHEUX (1988) designa como mise en scène, ou seja, um efeito de presença do próprio sujeito, um efeito de reconhecimento que resulta de um desconhecimento. Pêcheux estabelece o suporte da identificação: o efeito de desconhecimento-reconhecimento – o sujeito está sempre lá, o sujeito está sempre constituído, o efeito ideológico elementar é a manutenção do eu. Além do mise en scène produz efeito, também, aquilo que Régine ROBIN (1997) denomina de fiction du soi – aquilo que faz do sujeito narrado um sujeito fictício – estamos assim, no terreno da narrativa de si mesmo, que para além da autoficcção, se dá como a escritura de um efeito sujeito (idem:25). O nosso interesse é observar na instância da subjetividade os sentidos possíveis sempre em jogo em uma posição-sujeito que emerge no-do acontecimento, pelo trabalho da ideologia, da memória e do esquecimento. Após esse breve percurso teórico apresentaremos alguns recortes de nossa base de dados. Temos o interesse de expor o olhar ao texto, de expor o olhar aos modos de formulação, pois é pela formulação, diz ORLANDI (2001:9), que a linguagem ganha vida, que a memória se atualiza, que os sentidos se decidem, que o sujeito se mostra e também se esconde. Formular é dar corpo aos sentidos, é ‘ser’ corporalidade no-do sentido. Análise As condições de produção que desencadeiam a deportação, via de regra, é o fato de o estrangeiro estar e/ou permanecer em um território estrangeiro sem o status legal para isso. Geralmente, as pessoas retiram um visto de turista – o que lhe dá um prazo e um direito de permanência e mobilidade em um dado território – e, quando este prazo expira (tal qual uma senha), o sujeito passa não mais a gozar de um status legal, o que lhe torna, agora, um intruso, um ser não-desejável, que deve ser expulso e reconduzido à fronteira da qual ele saiu. 3 Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 135 / 139 Comumente, a grande motivação da imigração clandestina é a vontade de ter um trabalho, todavia não podemos ser surdos às outras ordens: questões de guerra, de território, e de subjetividade. O trabalho assume um estatuto ímpar: ele pode ser reportado ao lugar que lhe deu ARENDT (1995) em ‘A Condição Humana’, isto é, algo correspondente a um artefato da existência humana, pois pelo trabalho o homem pratica a troca em todos os sentidos de modo a permanecer na Terra. Pelo trabalho o homem introduz seu conhecimento no espaço em que (con)vive de modo a modificar este e estabelecer um bem-estar. O trabalho, também, reafirma fortemente a questão do lugar. Revuz (1197:24) diz que ter um ‘lugar’ que popularmente retoma o termo emprego, é ter seu lugar (qualquer que seja este lugar) de modo a se achar intimado a elaborar uma maneira de ser com os outros. Tomemos dois recortes em que a questão do trabalho desencadeia alguns funcionamentos interessantes. Recorte [1] “Ah... primeiro... é pra melhorar o INglês:: né? que a gente toda vida::: é sonhava em falar inglês:: tal então:: foi um dos motivos que me levou:: a SÓ que quando você chega lá::.. você::: tem outras coisas mais importantes:: né? que é... ganhar dinheiro:: né? (risos) Entende:? Que é ilegal mas::... infelizmente é que todo mun todo o pessoal faz quando chega em qualquer outro país:: mesmo sendo:: ilegal trabalhar:: mas:: é dificilmente a pessoa cumpre com com essas regras:: né?” No recorte [1] o sujeito enuncia que o motivo que o levou a outro país era melhorar o inglês, pois ele sonhava (e aí irrompe, pela formulação, algo do domínio intimo, subjetivo do sujeito) a vida toda em falar inglês, mas quando ele chegou lá esse ‘sonho’ desfez-se e aí outras coisas tomaram o seu lugar: ganhar dinheiro, trabalhar. O interessante aqui é que o sonho de se falar inglês é o sonho de se trabalhar. As duas atividades se equivalem em proporção. O inglês era o sonho de toda a via o trabalho coisas mais importantes. Pelo efeito metafórico falar o inglês (sonho de toda uma vida) e trabalhar (coisas mais importantes) assumem o mesmo peso, o mesmo valor. Chamo, ainda, a atenção para o fato de o trabalho ser designado como ilegal. Ilegal não é permanecer no país, ilegal é trabalhar no país. Esse é um dos modos de funcionamento da razão de se ser deportado. Não se é deportado por permanecer em um país sem status legal, é-se deportado por trabalhar ilegal. O trabalho é aquilo que assegura a permanência, é aquilo que dá um lugar identitário. Esse lugar é um lugar ilegal. O ilegal, aqui, assume o estatuto de romper com regras e o rompimento das regras engendra um lugar subjetivo para quem as quebras. Recorte [2] “porque eu tinha um trabalho::: ótimo:::... a::: eu trabalhava com uma companhia de seguro de saúde:::.. a::: eu ganhava Super BEM:::... tinha vários amigos::: a::: saia:: era BEM COnhecida::: TUdo:::... e:::... tava vivendo ilegal mas::::... enfim:::.... (risos)” No recorte [2] é possível se observar um efeito narrativo que procura instaurar uma cena ligada ao mundo do trabalho e o que este permitia adquirir. Neste enunciado a formulação “porque eu tinha um trabalho::: ótimo:::...” marca uma ação que foi interrompida, mas capaz de desencadear uma série de outras ações também não concluídas: “trabalhava, ganhava, tinha, era”. O interessante deste enunciado é que alguma coisa do sujeito é dita pelo trabalho que ele realiza. Na escritura de si, porque se trabalhou, o sujeito conta-se, denuncia-se, mostra-se, mas também se esconde. Assim, o trabalho não é um ‘objeto no mundo’ como diz REVUZ (idem:30) ele é um ato humano, social, pois dizer seu trabalho, é sempre, ao mesmo tempo, dizer alguma de si, desencadeando, aí, a maneira íntima com qual se vive e se relaciona com as coisas, com outros. O fato de ter um trabalho 4 Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 136 / 139 (ação essa interrompida) é uma marca de subjetivação do sujeito, pois pelo funcionamento da metáfora (uma palavra por outra) o sujeito vai narrando a si mesmo e se inscrevendo o si mesmo, como algo natural, óbvio, como se ele pudesse se manter ali “ganhava Super BEM:::... tinha vários amigos::: a::: saia:: era BEM COnhecida::: TUdo:::...”. Cabe nesse enunciado destacar, o funcionamento do pré-construído, que faz explodir no nível da formulação uma explicitação. Essa explicitação se inscreve como um acréscimo “e:::... tava vivendo ilegal mas::::... enfim:::....” Esse acréscimo se dá pelo e, tomado aqui por nós como marca de junção carregado de sentidos implícitos. Ao tentar se manter, se colar no preenchimento que o efeito de ficção constrói de si mesmo algo na formulação irrompe, pelo trabalho da memória, desencadeando uma série de determinações que já estão sempre funcionando: “tava vivendo ilegal mas:::...”. A partir do momento que o sujeito decide migrar, há condições de produção específicas que esta imigração engendra. No caso de nosso trabalho o ilegal não cessa de reclamar sentido, de pedir interpretação. Há um jogo que aí se inscreve e que não se pode mais sair. Viver como ilegal aqui não se explica. O ilegal, pela formulação funciona, ou seja, ele coloca o sujeito nessa posição, o sujeito significa como ilegal no mundo. Viver ilegal é sua causa. Proponho, ainda, a análise de outros dois recortes em que os sujeitos contam de sua deportação: Recorte [3] então... na hora que ele falou vamos embora BRASIL... go home go home... (respira rapidamente) a eu já corri juntei meu colchão... meus negócios joguei e sai lá pra fora... eu fui o primeiro a sair... cheguei lá e já coloquei minhas roupas porque eu perdi as roupas tudo... aí ESsa camisa um amigo me deu... a calça um amigo que me deu... porque na travessia do rio eu travessei só de bermuda... aí eu perdi pelo rio abaixo... (...) aí eu fui pro eroporto... do eroporto eu já liguei pra minha mãe... minha mãe começou a CHOrar::... falei Não mãe tô indo embora não chora não porque amanhã quarta-feira eu tô aí... falou Não meu Filho muito tempo que eu não te Vejo::.... não esquenta a cabeça... não rápido já liguei.. dá aquela emoção... aí o cara falou que a gente ia voltar que a gente não ia vir embora... daí bateu aquela trisTEza... daí ele falou não... vamos embora Brasil... vou mandar vocês dois... aí colocou a gente no avião GRAças a Deus... a viagem foi boa nós tamos aqui... Com a graça de Deus::.... No recorte [3] é relevante apontar dois momentos no enunciado “hora que ele falou vamos embora BRASIL... go home go home... [e] aí o cara falou que a gente ia voltar que a gente não ia vir embora... daí bateu aquela trisTEza... daí ele falou não... vamos embora Brasil...” Está marcado aqui três ações: reconduzir para a fronteira do Brasil; a hesitação a este procedimento e, enfim, o procedimento propriamente dito. O interessante, aqui, é notar outros dois processos: a nominalização (o sujeito não é designado por seu nome próprio, mas designado por Brasil) e a presença do outro (do semelhante, do alheio) no fio do discurso na irrupção da língua estrangeira go home go home (e no tom imperativo e reflexivo no qual a expressão se reveste). O acontecimento enunciativo fez com o sujeito sofresse um efeito de encaixe: sai um nome X para figurar um Y. Se o nome é aquilo que dá corpo ao sujeito ao ser nominado por Brasil, o gesto já reveste de corporeidade o sujeito. Ao invés do indíviduo X, isto é, aquele sujeito que nasceu em um país, que possui um nome X, e goza de status de ser deste país ir para casa quem retorna é um sujeito com um nome encaixado e com todas as determinações que esta nominalização tem. Quando falamos em nome encaixado falamos para além de um nome suporte, mas de nome com substância material. O nome Brasil tem espessura semântica material. Está aqui funcionando, pela nominalização, um elemento já 5 Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 137 / 139 lá, mostrando do ponto de vista discursivo que sempre há uma relação com um elemento prévio ao discurso, não asseverado pelo sujeito, não submetido a discussão, enfim, um já esquecido, que funciona no dito. O funcionamento da nominalização aponta os traços de julgamento prévio, esteriótipos, lugares comuns. Quem deve vir embora não é apenas o sujeito cujo nome funciona pelo efeito de encaixe. Quem deve vir embora é o Brasil. Brasil... go home... Recorte [4] BOM... nesse momento lá... eles pediram meu:... eles me fize-deram uma carta é:... de seis dias:.. pra pra eu quitar o país:.. me me gentilemente me pedindo pra eu quitar o país... eu assinei a carta e fiquei... tranqüilo... mudei de apartamento... e tudo bem... após:... mais ou menos uns quarenta dias:... eu estava no trânsito... numa blitz... normal do dia-a-dia ... e fui parado:: com o meu carro... e pela placa do carro eles sabem... toda minha FIcha... como eu já tinha uma carta:... um CONvite:... pra deixar o país eles foram obrigados a cumprir a Lei... ESse é o motivo da minha deportação... No recorte [4] está em questão um funcionamento interessante desencadeado pela formulação “eles me fize-deram uma carta é:... de seis dias:.. pra pra eu quitar o país:.. me me gentilemente me pedindo pra eu quitar o país... eu assinei a carta e fiquei.. (...)como eu já tinha uma carta:... um CONvite:... pra deixar o país eles foram obrigados a cumprir a Lei... ESse é o motivo da minha deportação...”. O instigante dessa formulação é o funcionamento da expressão quitar o país. Há, aqui, a nosso ver, um embate material entre a língua portuguesa (a língua dita materna do sujeito) e a língua francesa (língua falada na Bélgica, com o qual o imigrante convive). Quitar em português funciona designando várias regiões significantes: perdoar, desobrigar de dívida, saldar contas, ser dispensado etc. Em francês há quitte [adjetivo] que significa estar liberado de uma obrigação jurídica, de uma dívida; estar liberado de uma obrigação moral e quitter [verbo] – que aponta outras regiões significantes – deixar qualquer coisa, ir, deixar de habitar, partir, imigrar, deixar um país, etc. O que seria nãodizível em português aparece, pela formulação e pelo jogo material da palavra, em uma relação em que o francês se dá como um suporte do português. É preciso aí o ‘efeito de tradução’ para ter acesso às vozes heterogêneas que aí irrompem. Vale ainda ressaltar a relação de oposição e os apagamentos que essa relação suscita quando no enunciado emerge as expressões carta e convite. Uma aponta para os mecanismos formais, jurídicos e a outra a uma solicitação. O sujeito recebeu a carta e a ignorou. Faço, aqui, eco ao neologismo lacaniano entre lettre (carta) e l’être (ser). A carta é um elemento que define a posição do sujeito, ou seja, em seis dias ele deve ‘quitar o país’. A posição é esquecida, recalcada, mas o esquecido e o recalcado sempre voltam. Daí a carta retornar sob o signo do convite, da solicitação: deixe o país e isso concretizar a deportação. Considerações Finais Apreender o acontecimento que é o discurso nem sempre é fácil. Ainda mais se o objetivo é observar na instância da subjetividade o trabalho do limite. A nosso ver, por mais que se tente definir o que é o limite ele sempre transborda, já que sem tem acesso, pelo discurso, aos rastos do acontecimento, aos rastros do funcionamento ideológico, capaz de abrir no discurso o equívoco e na língua a falha. A Lei, a ordem (o funcionamentos dos mundos semanticamente normais) corporificam a forma sujeito-de-direito (sujeito que tem direitos e deveres) classificando os indivíduos em categoria e amarrando-os, aprisionando-os em sua identidade. O migrante 6 Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 138 / 139 clandestino vive o espectro da deportação, pois ela é o insuportável, é aquilo que resiste a não se inscrever, inscrevendo-se pelos jogos de identificação (viver ilegal e trabalhar ilegal) – efeitos do já-dito, nos embates das filiações a uma memória. Quando o acontecimento da deportação irrompe, como um clarão, ele não quer ser absorvido, mas o funcionamento da memória faz o esquecido voltar, sob a forma do já dito, tecendo e (des)tecendo os contornos subjetivos. A subjetividade é a língua acontecendo no homem e, a nosso ver, o discurso se oferece um interessante instrumento para se observar esse acontecimento com suas margens, resistências, estranheza, confrontos derivas. Enfim, um devir que nunca cessa de produzir efeitos. Referências Bibliográficas ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992. KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Texto: formulação e circulação de sentidos. Campinas: Pontes, 2001. -------------------. Cidade dos Sentidos. Campinas: Pontes, 2004. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1988. ------------------. O Papel da Memória. In: O Papel da Memória. Campinas: Pontes,1999. REVUZ, Christine. (1997) Ouvir os Desempregados para Compreender a Relação com o Trabalho? In: Rua, v. 3, Campinas, p 9-37. ROBIN, Régine. Le Golem de l’écriture – De l’autofiction au cybersoi. Montréal (Québec): XYZ éditeur, 1997. * Agradeço à FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) a concessão de bolsa de doutoramento, em curso. Processo (04/07881-3). 2 Entre as formas da cidade se significar chamaria a atenção para a quantidade de pessoas, o movimento das pessoas, o agrupamento das pessoas, etc. 7 Estudos Lingüísticos XXXVI(3), setembro-dezembro, 2007. p. 139 / 139