“Preservar é muito mais que tombar”
Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP diz que as ações de
preservação deveriam retratar o modo de vida de uma sociedade, e não expulsar os
moradores para recriar um cenário artificial
Márcia Pinheiro
Maria
Lucia
Bressan
Pinheiro
é
professora da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo (FAU) da Universidade de São
Paulo (USP) e diretora do Centro de
Preservação Cultural Dona Yayá (CPCUSP). Rema contra a corrente segundo a
qual apenas monumentos belos deveriam
ser preservados. Em entrevista a
História Viva, ela diz que esse ramo da
arquitetura é pouco prestigiado no Brasil
porque
prevalecem
os
interesses
econômicos
dos
especuladores
imobiliários.
História Viva – A preservação do
patrimônio
histórico,
no
senso
comum,
tornou-se
sinônimo
de
tombamento no Brasil. Trata-se de
uma visão equivocada?
(c) Gabriela Farcetta
Maria Lucia no Centro Cultural Dona Yayá: “É preciso manter a
população e criar atividades para ela, e não apenas recriar o que
supostamente existia no local”
Maria Lucia Bressan Pinheiro – A preservação é muito mais abrangente que o
tombamento. A preservação diz respeito a um conjunto de medidas, desde intervenções
físicas no bem cultural até políticas públicas. São iniciativas destinadas à preservação do
patrimônio para as gerações futuras. O tombamento é uma dessas medidas. Geralmente, é o
passo inicial no Brasil, porque não temos uma cultura preservacionista arraigada na
sociedade. Somos muito carentes, com problemas básicos não resolvidos, como pobreza e
falta de escolaridade, e isso limita a possibilidade de fruição do patrimônio. As pessoas nem
param para pensar que existe um passado, com coisas esteticamente bonitas, que contam
as nossas origens, a nossa história. A maioria está tão preocupada como básico que nem
tem olhos para o prazer. Não há como negar que existe uma hierarquia de necessidades. De
outro lado, no mundo inteiro, todos os valores da nossa cultura atual são de descarte, de
inventar novidades, buscar o novo pelo novo, até para movimentar a economia. Além disso,
como fomos uma colônia, sempre imitamos um paradigma português e europeu. Estamos
habituados a esperar modelos de outras sociedades.
HV– Há cidades que tombam pouco e preservam muito? Paris é um exemplo?
Maria Lucia – Certamente há cidades no exterior que preservam mais, em razão do
contexto. Os nossos municípios sofreram um processo de crescimento rápido e súbito com a
industrialização, a partir dos anos 1930. Instalou-se uma população urbana desenraizada do
local. Em Paris e Roma, que preservam mais, as cidades cresceram ao longo de muitos
séculos. Passaram por essa fase de explosão, mas quando já eram grandes e tinham uma
população arraigada, muito identificada com os centros históricos. Tinham outra relação de
pertencimento ao espaço.
Marlon Marcos/Divulgação
HV– A quem interessa a política de
só preservar se tombar?
Maria Lucia – Há uma apatia em relação
à preservação. Fica tudo a cargo do
Estado.
No
Parlamento,
não
há
representantes desse interesse. Isso
acontece porque os atingidos são os
especuladores imobiliários. Não são
todos, mas há empresas e pessoas que
não podem imaginar ter uma atividade
lucrativa em uma casa tombada. Um
empreendimento, como um restaurante,
ficaria muito mais charmoso. Chamo de
especuladores aqueles que só veem uma
forma de ganhar dinheiro: por meio da
destruição.
HV– Por que no Brasil só se pensa
em preservar imóveis coloniais?
A parte histórica do Museu Rodin de Salvador, que se transformou
em um espaço vivo graças a um bom projeto de preservação
Maria Lucia – É um viés dos modernistas, de que o século XIX não interessa. O próprio
Lucio Costa diz isso. O mélange de estilos daquela época foi visto como algo que não tinha
valor algum. Não era nem puro como o colonial, nem puro como o moderno. Esse era o viés
de quem trabalhava no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nos
anos 1930-40. Não é democrático privilegiar determinado tipo de bem cultural. Há exemplos
de imóveis não coloniais que deveriam ser preservados. O único critério que julgo
interessante é de um bem cultural que revele o modo de vida das pessoas. Gosto de ver os
vários momentos de uma cidade representados. Há a arquitetura de casas dos Jardins e do
Pacaembu (bairros de São Paulo), dos anos 1930, com cara meio normanda, meio
espanhola. São impuras, mas muito características de uma época. As fazendas de cacau no
Nordeste são outro exemplo. Há ainda a arquitetura alemã e italiana no Sul do país.
HV– Como evitar que um centro histórico dito preservado fique com um aspecto de
cenário, como o Pelourinho?
Maria Lucia – Temos uma visão equivocada de que restaurar é fazer o local retornar ao seu
estado original, que muitas vezes nem sabemos qual era. Ou completar o que falta. É o caso
do Pelourinho. As casas estavam arruinadas e as fachadas foram completadas, emulando a
arquitetura original. Isso é um grande equívoco. Houve ainda a expulsão dos moradores. A
única atividade de preservação que se fez ali foi uma intervenção física nos edifícios, o que
favoreceu a instalação de redes de grifes, como joalherias. A região não tem uma vitalidade
própria. Perdeu-se a originalidade do valor do patrimônio. Como se evita isso? É preciso
manter a população e criar atividades para ela. Deveria haver políticas públicas para fixar os
residentes e também promover um restauro especializado, não apenas recriar o que
supostamente existia ali.
HV– Por que se pensa tanto
em preservar unidades e não
conjuntos?
Por
exemplo,
tomba-se uma fábrica, mas
não a vila operária.
Marlon Marcos/Divulgação
Maria Lucia – Há um quê de
ignorância, mas essa não é a
única razão. É mais caro
preservar um conjunto que uma
só unidade. Prevalece a ideia de
que se preserva o que é
excepcional, um monumento. O
que é representativo de um
trabalho, de um cotidiano, isso
sim
deveria
ser
tombado.
Somente
dessa
maneira
saberemos
como
vivia Museu Rodin: o moderno ajudou a revitalizar o espaço sem tentar copiar um
determinada sociedade. É um passado artificial
conceito errado, meio de belasartes, de que só vale a pena o que é lindo e feito de materiais nobres.
HV– A política de preservação do patrimônio histórico brasileiro já foi pior?
Maria Lucia – Já foi bem pior, no sentido de ser mais restrita. Há, atualmente, mais
recursos canalizados para a área da preservação. Mas também um despreparo geral de
arquitetos que não têm conhecimento especializado para a restauração de edifícios. Existe
até um PAC do patrimônio. Acelerar a preservação não dá certo, porque é um processo
cultural e porque a intervenção física precisa ser feita com muito cuidado e pesquisa. O PAC
do patrimônio vai dar em Pelourinho. Desse ponto de vista, há mais recursos, mas com
gente despreparada. O resultado pode ser mais destruição do que preservação.
HV– A senhora daria exemplos bem-sucedidos de preservação patrimonial no país?
Maria Lucia – Em São Paulo, a Pinacoteca. Era um edifício tombado, sofreu uma
intervenção pesada em termos de projeto, mas que foi positiva. Ficou no limite correto entre
respeitar o que havia e introduzir novos elementos. E trouxe um ganho de uso, com mais
pessoas frequentando o espaço. Em Salvador, no Museu Rodin, ficou muito claro o que era
antigo e moderno, pois estão justapostos. É muito mais sábio explicitar os contrastes.
Revista Historia Viva
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/-preservar_e_muito_mais_que_tombar.html
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