IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS. 29 de Julho a 1° de Agosto de 2008. Vitória da Conquista - BA. DE PROFESSOR A POLÍ TICO: ALFREDO JOSÉ DA SILVA, TRAJETÓRIA DE UM PROFESSOR NEGRO EM CAETITÉ - BA (1926-1949) Gysele Lima de Toledo Especialista em História e Cultura Afro -Brasileira e Baiana pela Faculdade Católica de Ciências Econômicas da Bahia ( FACCEBA) E-mail: [email protected] Palavras-chave: Biografia social. Professor. Político. Biblioteca. Este artigo faz parte da pesquisa que estou realizando como trabalho de pós -graduação e tem como objeto de estudo Alfredo José da Silva (1887 -1985), professor negro que vem morar em Caetité a partir de 1926, e que em um espaço de tempo relativamente curto, cerca de 20 anos, estabelece relações pessoais com homens poderosos da cidade e constrói sua imagem enquanto um homem de postura “correta e idônea” em qu alquer cargo que ocupa durante sua vida na cidade. Outro aspecto relevante vem do fato dele constituir um grande acervo bibliográfico de cerca de 3.200 exemplares com vários títulos e áreas diferentes de conhecimento, como língua portuguesa, literatura, ci ências humanas e biológicas, manuais escolares, entre outros. Assim, esse trabalho tem como objetivo perceber o papel desse homem negro dentro da sociedade caetiteense e suas relações com os homens importantes da cidade, homens esses que chegaram a exercer forte influência no cenário político estadual da época. Pretende analisar também seus interesses em constituir um grande acervo bibliográfico e a influência das leituras em sua vida e na s suas posturas enquanto homem negro e “estrangeiro” numa cidade conservadora e tradicional , como Caetité, naquele período. Grande parte da documentação pessoal de professor Alfredo, como ficou conhecido, está sob a tutela de sua família, que por motivos pesso ais não permite o livre acesso à biblioteca e nem aos seus docum entos pessoais. Algumas informações que constam nesse texto foram encontradas em sua autobiografia manuscrita , que está no acervo particular; através de documentos da Escola Normal de Caetité, que se encontra no Instituto de Educação Anísio Teixeira ; documentos do legislativo municipal e através de entrevista com moradores entre 70 e 80 anos que ainda vivem em Caetité. Alfredo José da Silva, nascido em 20 de abril de 1887, no distrito de Baixão, na freguesia de Nossa Senhora d’Ajuda do Bom Jardim, município de Santo Amaro da Purificação, filho de Maria Afra da Costa e de Leonardo José da Silva, caçula de cinco irmãos, teve oportunidade de est udar, segundo sua autobiografia: 2 Cursei a escola particular de D. Romualda de Souza, no Engenho América, com quem aprendi as primeiras letras. Fui transferido para a escola p ública estadual, do sexo masculino, de Santana de Lustosa, em 1898, regido pelo professor Deocleciano Barbosa de Castro, excelente educador. Seus estudos prosseguem até o curso normal, na Escola N ormal de Salvador, no período de 1902 a 1905, o nde morou com seus tios até o té rmino do curso. É inte ressante pensar em que circunstâncias ele poderia ter estudado no período, visto que sua família não era uma família de posses. Acredita -se que ele teria, mesmo antes de ir morar em Salvador, recebido o auxílio de alguma família de posses da região . Seu filho Laertes Silvão, de 89 anos, que durante sua vida exerceu o cargo de agente dos Correios, faz menção em seu depoimento de algum tipo de ajuda que ele po deria ter recebido, mas sem esclarecer maiores detalhes sobre tal ajuda. Após o termino do curso normal o cupou cargo de professor da 4ª classe, indicado por decreto de 1909, para o Arraial do Carrapato no Municípi o de Bom Jesus do Rio de Contas . Nesse período, ele faz referência em sua autobiografia, ao secretá rio do estado Junqueira Aires, que mais tarde será seu colega de trabalho em Caetité. Casou -se com Otilia Alves Santana no ano de 1912, com quem teve sete filhos, sendo que dois morreram ainda criança s e três deles ainda estão vivos. No ano de 1915, antes de tomar posse no Carr apato, fez uma visita a Caetité ; nenhum dos entrevistados lembrou -se dessa visita, no entanto supõe -se que já existia algum tipo de ligação com alguém da cidade. Alguns entrevist ados fazem referência a sua amizade com Anísio Spínola Teixeira (1900 -1971), que pode ser percebida em um cartão enviado de Anísio a Alfredo, quando este era diretor geral da instrução na Escola Normal de Caetité, provavelmente entre os anos de 1930 a 1935 , Ao meu prezado amigo prof. Alfredo da Silva. Muito honrado pelo seu de licado telegrama de boas vindas. No ano de 1926, Alfredo foi transferido para Caetité para ocupar a cadeira de Lente Catedrático Interino de Língua Portuguesa e Literatura Nacional na recém inaugurada Escola Normal de Caetité. Segundo entrevista a senhora Agnalda Públio de Castro, formada professora por essa mesma escola no ano de 1931 e que ocupou o cargo de funcionária pública dos correios durante toda sua vida, “Todos os professo res que foram nomeados para a escola normal tiveram que receber o aval de Deocleciano Teixeira”. Pode -se pensar algum grau de ligação ou relações pessoais entre Alfredo e o senhor Deocleciano Teixeira, maior 3 liderança política da região no período, que ocu pou os cargos de intendente de Caetité e deputado estadual, tudo isso no período de 1890, quando chegou a Caetité, até 1930 quando faleceu nessa mesma cidade. Professor Alfredo, como ficou conhecido, com seu jeito fechado, sério e até frio, segundo alguns entrevistados, conseguiu estabelecer relações de amizade e confiança com as principais lideranças políticas da época, inclusive com o senhor Ovídio Antunes Tei xeira, que ocupou os cargos de prefeito, deputado estadual e senador, e que passou a ser o líder político da região, após a morte de Deocleciano Pires Teixeira. Segundo depoimento da filha do senhor Ovídio, a senhora Maria Magdalena Silveira Souza , de 91 anos, que ocupou ao longo da vida o cargo de Oficial do Registro Civil , o seu pai era amigo íntimo de professor Alfredo e trocavam visitas diárias , tendo como principal assunto a política local. Esse tipo de ligação com as lideranças da época garantia um prestígio social a todos que faziam parte desse grupo . Quando se pergunta aos entrevistados se prof essor Alfredo fazia parte da elite da época, a senhora Maria Magdalena afirma que sim, pois o cargo que ocupava e as pessoas com que se relacionava lhe garantiam esse status, já a senhora Agnalda Públio de Castro, diz que : “[...] de primeiro a elite era fo rmada pelos políticos dominantes e esses eram poucos, [...], esse professor Alfredo, acredito que ele comparecesse nas reuniões, que ele fosse convidado, mas não era elite não, [...]”. Apesar, da divergência de opiniões quanto ao uso do termo “elite”, pro fessor Alfredo se torna uma referência ao grupo a que pertencia. Após cinco anos de sua chegada à c idade, foi indicado para ser o diretor da Escola Normal de Caetité , cargo que ocupa durante cinco anos (1930-1935), recebendo, por diversas vezes , monção honrosa por sua competência à frente da direção da escola, todas registra das na atas da referida escola : Monção a congregação da escola normal de Caetité, resolve que seja consignado na acta de seus trabalhos de hoje, um voto de louvor ao ilustre professor Alfredo José da Silva, muito digno director pelo seu amor, zelo e dedicação, como também pela alta correção e brilhante critério com que vem desempenhando as funções inherentes ao seu elevado cargo (I livro de ata da Escola Normal de Caetité - 10/11/1934). Esse tipo de monção era comum aos diretores, no entanto, naquelas que faziam referência ao trabalho de professor Alfredo existe a necessidade de se fazer um a referência à sua postura enquanto homem correto e digno à frente da direção da escola . Esse ideal de postura está associado ao ideal de branqueamento que , segundo Ianni (2004, p. 96): 4 A nosso ver, o ideal de branqueamento, manifesto por todo o grupo, não é apenas produto do preconceito estético, mas principalmente, resultado de uma profunda atuação, na consciência dele, das condições efetivas de contato. Assim o ideal de branquidade não diz respeito aos caracteres somáticos do individuo, mas em primeiro lugar, às condições sociais a que os negros e mulatos aspiram. A imagem que professor Alfredo cons truía, através de suas posturas em relação aos grupos aos quais se relacionava se refletia nas idéias que eram construídas a seu respeito; por isso, é possível perceber nas entrevist as e documentos que fazem parte de seu acervo, uma necessidade de um trata mento bastante formal e enfático quando se trata de sua pessoa. Essa postura traz consigo uma perspectiva de aceitação do elemento negro à medida que ele se adequa aos padrões do homem branco, como coloca Fernandes (1969, p. 137), A filosofia política da solução da questão negra baseou -se sobre o velho padrão da absorção gradual dos indivíduos negros através da seleção e assimilação daqueles que escolhessem se identificar a si mesmos com os círculos dominantes da raça dominante e manifestar completa lealda de aos seus interesses e valores sociais. Segundo Pollak (1992, p. 200-212) em seu texto, Memória e identidade social existe uma necessidade de construção de uma imagem de si, para si e para o outro : Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si próprio, para acreditar na sua própria representação, mais também para ser percebido de maneira como quer ser percebido pelos outros. A sua postura enquanto negro sempr e esteve associado a sua retidão e seriedade em todas as funções que ocupou . Segundo entrevistados não havia discriminação p or cor na cidade naquela época. A senhora Agnalda, já citada, estabelece uma relação sobre a postura de Alfredo como uma resignação por sua cor. “No meu modo de pensar, naquela época era uma postura normal, porque se dentro da família existia aquele distanciamento entre pais e filhos e mães e filhos, também os mestres guardavam certa dist ância do alunado, mas nem por isso [...]. Ele era um pouco frio, um pouco reservado, [...] era uma característica talvez proveniente da raça, como negro ele talvez se sentisse inferior aos outros [...] e aquilo um pouco do seu jeito...”. 5 Ao ser perguntada se havia discriminação em relação a professor Alfredo ela disse: “Acho, [...] ele mesmo que se sentia discriminado, por causa da forma como a sociedade via o negro ainda com um resquício de escravidão , talvez aquilo doía nele” . Os lugares onde os negros moravam na cidade eram no “Pernambuco” , lugar que na época era afasta do do centro e próximo à feira . O senhor Rochael Batista de Souza, de 93 anos, que foi comerciante , colocou que haviam pou cos negros na cidade e os que existiam trabalhavam para as famílias dos poderosos, com algumas exceções , como professor Alfredo e o tenente Jorge , que era um comerciante na época. Pode-se perceber que em Caetité existe uma preocupação em se negar a presença do negro na cidade como se percebe no livro “Caetité pequenina e ilustre” da senhora Helena Lima que explica as características da sociedade caetiteense: Acontece que Caetité, desde os seus primórdios, foi habitada e colonizada por brancos, havendo nítida separação entre o senhor e o escravo. A população escrava nunca foi muito grande no município que não era minerador, e nos anos que precederam o 13 de maio de 1888, era de costume mandar vender escravos em S. Paulo, onde davam bom dinheiro. Em 1871, quando se procedeu a matricula dos escravos, conforme determinava a lei, seu número era de pouco mais de sete mil. Anos depois, este número era apenas de dois mil. O número de pretos foi diminuto e a sociedade caetiteense não aceita de bom grado as ‘autoridades de cor parda . A presença de um homem negro fazendo parte do grupo que representava a elite caetiteense, de monstra a importância que Alfredo ganha dentro da cidade , não só como professor, mas também como político. A senhora Agnalda , em seu depoimento, diz que se ele não agisse daquela forma não teria chegado onde chegou e não teria ocupado os cargos que ocupou, pois ele era negro. No ano de 1945, a pós o primeiro período governo de Getúlio Vargas (1930-1945), Alfredo é nomeado prefeito de Caetité, segundo Livro de Ata do Legislativo: Por decreto de 18 de dezembro de 1945, do Interventor Federal do Estado, fui nomeado Prefeito de Caetité, tendo tomado posse no dia 15 de janeiro de 1946 na Capital, assumindo o exercício a 23 do mesmo mês. Neste cargo estive até o dia 11 de janeiro de 1948, quando tomou posse o prefeito Dr. Ovídio Teixeira. Esse foi o seu mais alt o cargo dentro da política . Nos livros de registros contábeis e livros de atas do legislativo do período, não consta grandes realizações da prefeitura durante a 6 gestão de professor Alfredo , a não ser a criação de três escolas rurais a partir do parecer do Departamento de Educação , o que poderia significar muito diante das proporções que a cidade tinha no período. Outras funções inerentes ao cargo era a organização das atas das receitas e das despesas do município e os decretos de nomeação de f uncionários. Ao se comparar com os livros dos outros prefeitos da época é possível perceber que a prefeitura dispõe de pouca receita para a realização de obras na cidade , o que era comum a todos os mandatos da época. Professor Alfredo constituiu uma biblioteca ao longo de sua vida, de 3.200 a 4000 livros; a grande maioria d os livros são encadernados e timbrados com suas iniciais em letras douradas. Segundo sua filha, dona Tereza Silvão, ele leu todos os exemplares, pois permanecia horas na biblioteca, e só comprava novos títulos quando terminava de ler os anteriores. É importante colocar que nem mesmo seus filhos tinham acesso ao seu acervo . O senhor Osvaldo Pereira de Magalh ães, de 93 anos, padre de Caetité ao longo da vida , conta que uma vez tomou um livro dele empresta do, mas que ele mandou logo buscar, e que as pessoas para quem ele emprestasse um livro tinham que assinar um documento com prazo de devolução. É preciso pensar quais eram as verdadeiras intenções de professor Alfredo em constituir um acervo bibliográfico de tão grandes proporções e de foram tão sistematizada, pois ele adquiria, encadernava, timbrava, organizava, catalogava e lia todos os seus exemplares, sem, no entanto, despertar nenhuma intenção em compartilhar sua paixão pela leitura com seus alunos, am igos e nem mesmo com seus próprios filhos. Quando perguntado aos entrevistados se professor Alfredo poderia ser considerado um intelectual, a senhora Agnalda coloca: Dentro do que ele foi e de onde ele veio acho! Ele foi esforçado, agora, se não teve projeção, por que projeção é sempre dada a classe política, é ela que escolhe, mas ele era um Machado de Assis escondido, depois que morre é que repercute, que reflete. No entanto, não existe claramente, nenhum indício de que este era o seu interesse, ou seja, se ele pretendia de fato ser re conhecido enquanto intelectual . No Arquivo Público Municipal de Caetité , existem dois cadernos manuscritos, onde ele faz uma análise sobre literatura brasileira e as suas influências, desde as questões que envolvem aspectos da miscigenação do povo brasileiro, até as influencias de outras correntes literárias no Brasil . Esses manuscritos ser analisados enquanto construções "intelectuais” de professor Alfredo, mas que não trazem referencias quanto à publicação e que, com certe za necessitam de um estudo mais aprofundado. 7 O trabalho com biografia implica uma sé rie de novos problemas que surgiram ao longo do século XX . Se pegarmos a noção de biografia do in ício do século faríamos talve z um trabalho que exaltasse a f igura de Alfredo enquanto membro da elite local, ou pelo menos, alguém que exercia alguma influência sobre a mesma. No entanto, numa perspect iva mais atual, podemos colocar o problema das lacunas que ficam abertas s obre os momentos que queremos destacar, e sobre a forma como podemos nos apropriar de um conjunto de posturas e comportamento típicos da época e do objeto estudado. Em seu texto Usos da biografia , Levi (2006) coloca algumas perspectivas de estudos biográficos, onde busco identificar meu trabalho dentro da corre nte de biografia e contexto, analisando o meu objeto dentro do contexto histórico e social em que ele atuou , percebendo o que era comum e o que era característico do período. Assim pretendo continuar essa pesquisa, pois ela ainda oferece muitos caminhos e perspectivas que necessitam ser estudadas e analisadas de acordo com as fontes apresentad as e sob o olhar de novas referencias historiográfica, vencendo os obstáculos colados quanto ao acesso às fontes e a leitura das mesmas. Referências ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes . São Paulo: Companhia Editora Nacional, 196 9. 2v. IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004. LEVI, Giovannni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Morais. (Coord.). Usos e abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5. p. 200-212, 1992.