Farsas e Trage dias no Paıs do Tango Luiz Paulo Ferreira Noguero l* Ha quem diga que a Histo ria n˜o se repete e, se repetir, n˜o e bem uma repetic ˜o, pois as coisas n˜o se passam exatamente da mesma maneira duas vezes. Os atores quase sempre s˜o outros, ainda que os pape is possam ser os mesmos. O historiador Fernand Braudel, em O Mediterrˆ neo, apontava para continuidades e descontinuidades nas sociedades ao longo do tempo, de maneira, por exemplo, que as lınguas faladas em suas margens variaram consideravelmente, mas a culinaria mediterrˆ nica continua baseada no azeite, no p˜o de trigo e na uva, tal como na Santa Ceia. Na Argentina, os funerais da conversibilidade foram sancionados pelo poder legislativo local. Apo s dez anos, o plano Cavallo encontrava-se moribundo, tendo sido abandonado pelo pro prio pai, o que causou tal comoc ˜o que podemos considerar tal ato o tiro de miserico rdia em quem, com pouco mais de 10 anos de idade, morreu. Uma morte certa e t˜o esperada por todos que os mercados internacionais souberam, com antecedôncia, distinguir Brasılia de Buenos Aires, conferindo a cada qual o respectivo paıs e livrando FHC do risco de seguir os passos de De La Rua. O que e curioso no caso em quest˜o, e que o plano econõmico n˜o foi um natimorto, a exemplo de tantos outros, como o Bresser e o Ver˜o, mas sofria de uma doenc a congônita: o de ter sido gerado por uma economia perife rica, incapaz de lhe dar sobrevida a n˜o ser em condic àes excepcionais como as que vigoraram ao longo da de cada de 90 e que n˜o mais existem: uma sobreliquidez internacional que forc ou as portas do Terceiro Mundo em busca de campos de investimentos, criando, em um primeiro momento, um forte aumento da dıvida externa e uma grande disponibilidade de do lares e, agora, a necessidade de remeter rendimentos para os paıses centrais com escassez de divisas. A quem interessa o cˆ mbio fixo? Em um primeiro momento, podemos supor que interessa aos que assumiram dıvidas denominadas em do lares. Se, pore m, os termos contratuais forem alterados, como de fato agora foram, interessa aos credores, uma vez que a pesificac ˜o das dıvidas os incluem dentre os perdedores. Perdem, portanto, as empresas estrangeiras, as quais compraram o patrimõnio do Estado Argentino, realizaram diversos investimentos no paıs e devem satisfac ˜o aos acionistas residentes nos paıses centrais que esperam por dividendos, os quais s˜o remetidos em moeda forte. Apesar do que indicamos acima, e noto rio que a conversibilidade se transformou, na Argentina, em uma paix˜o pro xima ` que a populac ˜o sente pela selec ˜o nacional de futebol. N˜o e a primeira vez que interesses de grupos especıficos de uma determinada sociedade se transformam em projeto nacional, contando com o apoio da maioria e, por isto mesmo, tendo a necessaria legitimidade para impor sacrifıcios como a reduc ˜o dos gastos do Estado em educac ˜o, saude, salarios, pensàes, aposentadorias e defesa nacional, dentre outros. Desde Keynes sabemos que reduzir os gastos do Estado em uma conjuntura recessiva, visando obter equilıbrio entre despesas e rendimentos estatais, pode ser um tiro no pe . Sendo o Estado, em qualquer sociedade moderna, um dos principais demandantes de mercadorias e servic os, quando resolve reduzir gastos, diminui a receita de diversas empresas que, por isto, optam por n˜o realizar novos investimentos. O efeito esperado, * Professor de Formac ˜o Econõmica do Brasil do Departamento de Economia da UFRGS www.ufrgs.br/decon ent˜o, e a reduc ˜o dos gastos destas mesmas empresas, seja com fornecedores, seja com a folha de pagamentos. Com isto a recess˜o se aprofunda e, como vemos, o Estado acaba arrecadando menos do que previa, recriando o de fice que procurava eliminar. Curioso notar que a Argentina n˜o foi o primeiro paıs a adotar polıticas ortodoxas visando a fixac ˜o, ad eternum, de um prec o na economia. Os Estados Unidos, com quem um ministro das relac àes exteriores argentino recente pretendia que a nac ˜o mantivesse relac àes carnais, n˜o conseguiu, a partir de 1973, continuar com a paridade fixa entre o ouro e o do lar estabelecida em Bretton Woods, no final da Segunda Guerra Mundial. O Brasil fez o mesmo entre 1906 e 1913, assim como entre 1926 e 1930, visando a defesa dos exportadores de cafe que, com a forte entrada de divisas, verificada na e poca em que o paıs dominava o mercado internacional do produto e o complexo exportador cafeeiro dominava a polıtica nacional, se viam prejudicados pela valorizac ˜o do mil-re is. O caso inglôs, por fim, merece ser mencionado. Ate a de cada de 30, a conversibilidade da libra esterlina em ouro foi um cˆ none da City de Londres, o qual foi tido como interesse nacional pelo governo britˆ nico. A desvalorizac ˜o da libra significava a reduc ˜o da capacidade de realizar novos investimentos no exterior e, assim, a necessidade de redireciona-los para a pro pria economia do reino, a qual apresentava rendimentos inferiores. Em 1914, por forc a da iminôncia da Primeira Guerra Mundial e da paralisac ˜o dos fluxos de pagamentos internacionais, desvalorizou-se a libra e extinguiu-se a conversibilidade em ouro. Finda a guerra, optou-se pelo retorno ` conversibilidade `s taxas vigentes anteriormente, apesar da inflac ˜o do perıodo. Resultado: a libra se manteve sobrevalorizada ate que os efeitos da Crise de 1929 a jogassem no ch˜o. Enquanto isto, os produtos da decadente, mas ainda pujante industria britˆ nica, mantiveram-se mais caros do que os congôneres estrangeiros, comprometendo o emprego dos trabalhadores britˆ nicos, o crescimento econõmico futuro, a balanc a comercial do paıs e pondo em risco as pro prias atividades financeiras da City, que aos poucos viu minguar as reservas metalicas que sustentavam a conversibilidade. Se esquecermos que os investimentos argentinos s˜o muito inferiores aos que foram os ingleses, tanto em volume quanto em importˆ ncia, veremos que os casos se aproximam, dado que a sobrevalorizac ˜o do peso comprometeu, de saıda, o sucesso do plano e, com o tempo, levou a economia a recordes de desemprego e de fices comerciais. Ainda outra semelhanc a entre os casos: tal como Cavallo culpa o Brasil pelos problemas argentinos, em raz˜o da desvalorizac ˜o do Real de 1999, os ingleses culparam os franceses, que espertamente subvalorizaram o franco logrando expandir a industria francesa pela qualidade e prec o dos produtos que ela exportava. O Banco Central da Franc a acumulou reservas que escapavam da Inglaterra e do resto do mundo e os conflitos sociais franceses foram mitigados pela criac ˜o de empregos industriais. Resta perguntar, ent˜o, como, apo s tantos e sabidos casos de variac àes cambiais traumaticas e desesperados esforc os para evita-las, ainda haja quem saia por aı insistindo no assunto. E que se esgrimem conhecimentos macroeconõmicos por demais complicados para o entendimento geral, os quais servem somente para dar uma aura de ciôncia ao que, afinal de contas, e apenas interesse de grupos especıficos da sociedade. A Histo ria n˜o se repete, os processos e que s˜o perenes.