PESSOA COMO VALOR: Leitura fenomenológica 0 - INTRODUÇÂO Nesta sociedade dominada pela técnica, onde se fala por todo o lado de falta de valores ou de criação de novos valores, é necessário, como diz Etelvina Nunes, «repensar os valores e os princípios que constituíram a nossa civilização e a nossa cultura e que vão perdendo a sua ênfase» 1 . Continuando com a autora, esta refere que ligada a esta questão dos valores emerge também a demanda da identidade pessoal, que hoje se encontra descaracterizada e por vezes ameaçada 2 . Perante este mal-estar, relativo à compreensão actual dos valores, surgem algumas questões, tais como: serão os valores findáveis? Serão os valores imutáveis? Serão os valores mutáveis? Será a pessoa humana por natureza um ser axiológico? Será partindo destas questões, que faremos a nossa reflexão. Em termos ontológicos, o conceito de «valor» é rigorosamente indefinível; apenas podemos descrevê- lo mais ou menos fielmente 3 . Pertence àqueles conceitos supremos, como os de «ser», «existir», etc., que não admitem definição. O que se pode fazer é uma clarificação ou uma descrição do seu conteúdo, tal como o fizeram Platão, Kant e M. Scheler, entre outros. A palavra «valor», quando pronunciada pode querer traduzir três coisas distintas 4 : a vivência de um valor, a qualidade de valor de uma coisa, ou a própria ideia de valor em si mesma. O significado da palavra «vivência» permanece no domínio da consciência, da psicologia. Mas, se entendermos o «valor» como uma qualidade, isto é, como uma particularidade de ser das coisas, permanecemos no domínio do naturalismo, em que o valor é apenas uma qualidade real de certos objectos. Se entendermos por «valor» apenas a sua ideia, estamos a ―coisificar‖ esses valores. 1 NUNES, Etelvina - «Pós-Modernidade e Valo res: para uma leitura de Charles Taylor». In: Conferência pronunciada no AFFEN, Universidade de Coimbra, 2005, (1-14), p. 1. 2 Ibidem. 3 CA BRAL, Roque – Temas de Ética. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2000. p. 150. 4 HESSEN, Johannes – Filosofia dos valores. Tradução e prefácio de Prof. Cabral de Moncada; Coimbra: Ed ição Almedina, 2001, p.43. 1 Roque Cabral diz que «o valor é uni aspecto do bem, tanto no plano fenomenológico como no ontológico. A ―essência‖ fenómeno, lógica do valor, consiste na estimabilidade ou amabilidade, ―carácter das quais, que consiste em elas serem mais ou menos estimadas ou desejadas, merecerem mais ou me nos estima, satisfazerem a um certo fim‖ (Lalande). Por sua vez, a natureza ontológica do valor reside na plenitude de ser ou de, perfeição que lhe é própria (…). No sentido moderno do termo, valor acrescenta à referida noção de ―aspecto do bem‖: a referencia a um sujeito (em ultima análise a o espírito): o valor vale ―para alguém‖; a estima efectiva da ―importância‖ que o valor tem…»5 . Sendo a pessoa humana um dinamismo, um agir constante, isto é, actor de todas as suas acções significa que o valor deve ser pensado em relação com a acção 6 . O problema da acção e a questão dos valores encontram-se indissoluvelmente ligados. Agir pressupõe sempre uma opção, uma tomada de posição, uma valorização, implícita ou explícita. Reflectir sobre os diversos valores adoptados pelo homem é compreender melhor a sua acção. Não menos importante é reflectir sobre a relação da pessoa com o mundo que se reveste pelo descobrir do seu próprio ―valor‖ de pessoa. Daí a importância em analisarmos o alcance desse ―valor‖. 1 – AO ENCONTRO DOS VALORES Segundo E. Nunes, 7 se quisermos manter a nossa identidade, como sinónimo da dignidade e da pessoalidade, é necessário considerar que a pessoa humana é por essência um ser axiológico, uma vez que se constitui na referência a valores, a a lgo que o constitua, ou seja, a «quadros de referência», como refere Charles Taylor 8 . Assim, a identidade pessoal não se estabelece sem quadros de referência que transcendam o ser humano e que necessitem de ser articulados e hierarquizados. A este respeito, Michel Renaud fala-nos do círculo hermenêutico do valor, que traça o esquema formal que 5 CA BRAL, Roque – Temas de Ética. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2000. p. 150. RENAUD, Michel. - «Os Valores Num Mundo Em Mutação». In: Brotéria: 1994, (299-322), p.300. 7 Ibidem. 8 Cf. TA YLOR, Charles. 1997, p.35. Para Taylor, «Quadro de referência co mpreende u m conjunto importantíssimo de d istinções qualitativas. Pensar, sentir, julgar , no seio de u m quadro de referência, quer dizer funcionar na base da percepção que uma certa acção ou um certo modo de viver ou de pensar é incomparavelmente mais elevado de outros que nos são acessíveis». Ibidem, p. 7. 6 2 permite captar a dificuldade central da problemática do valor 9 . Indo mais além, E. Nunes diz que o problema passa também pela necessidade de reconstituir uma espécie de cisão entre a presente geração, no seu posicionamento em relação aos valores, e as gerações que nos precederam10 . Parece-nos oportuno questionar: o que são os valores? A conceptualização, ou melhor, a tematização dos valores é discutível, porque existem duas correntes no que diz respeito à concepção dos valores. Uma, que defende que o valor pode ser o resultado de uma dedução quanto ao bem; para esta, o bem é a priori, os valores pré-existem ao agir. A outra, a posteriori, defende que os valores existem na ou pela acção. Ora, a este respeito M. Renaud sublinha: «a criação dos valores na ou pela acção pode ser entendida como a não preexistência do valor relativamente ao agir; neste sentido, a criação do valor pela liberdade faz deste um a posteriori relativamente à acção, mas um a priori relativamente à sua tematização reflexiva» 11 . Para resolver esta questão, entre o a priori e o a posteriori dos valores, a teoria do círculo hermenêutico pode ajudar na descoberta dos valores. E ao fazer-se referência à expressão «descoberta dos valores» está implícito que o valor é diferente das normas morais 12 . «O valor é um bem real ou ideal, desejado ou desejável para uma pessoa e ou colectividade»13 . De facto, o valor mostra-se ao ser humano como um bem, no sentido em que é desejado como algo que reconheço interiormente como um bem. Neste contexto, não pode apenas vir de fora, mas deve passar pela preferência e pela escolha. Neste sentido, E. Nunes refere que a teoria do círculo hermenêutico defendido por M. Renaud pretende articular, não só as referências do sujeito em relação ao bem, mas introduzir o sujeito numa experiência, que lhe permita ter aceso a um valor, que até ali não conhecia 14 . Assim, a teoria do círculo hermenêutico do valor enuncia-se do seguinte modo: ―Crer para compreender e compreender para crer‖. O primeiro ―crer‖ solicita o sujeito a uma adesão da vontade para aceitar fazer a experiência de um determinado valor, ou seja, o sujeito, enquanto participa na experiência, está a ―compreender‖ 9 RENAUD, Michel «Os Valores num Mundo e m Mutação».In: Brotéria: 1994, (299-322), p. 300. NUNES, Etelvina - «Pós-Modernidade e Valo res: para u ma leitura de Charles Taylor». p. 11. 11 RENAUD, Michel - « Os Valores Nu m Mundo Em Mutação». (299-322), p. 305-306. 12 NUNES, Etelvina -«Pós-Modernidade e Valores: para u ma leitura de Charles Taylor». p. 11. 13 LAZCANO, Rafael – «Sobre los valores». In: Revista Agustiana, vol. XXXVI, 1995, (345-359), p. 351. 14 NUNES, Etelvina - «Pós-Modernidade e Valo res: para u ma leitura de CharlesTaylor». p. 12 10 3 existencialmente o valor, isto é, faz a experiência do mesmo, em sentido lato, ou seja, a nível ontológico. O segundo ―compreender‖ consiste no momento da reflexão sobre a experiência feita, ou seja, é o momento em que se faz um desenvolvimento interpretativo, conceptual. É o momento onde se encontram as razões pelas quais o sujeito confere valor ao valor ou, no caso de um contra-valor, porque não vale. Neste sentido, podemos dizer que o segundo “crer” consiste no momento em que o sujeito reconhece o valor enquanto tal, e, neste sentido, decide por ele. Continuando a nossa exposição, pode afirmar-se que se um determinado valor, ao ser reconhecido por mim, vale, é também obrigatório que eu adira a ele, porque «este, a partir de agora constitui- me, requer a submissão de mim a ele, transcendeme»15 . E, simultaneamente, reconheço que todos aqueles que partilharam comigo a experiência deste valor o viveram. Como tal, o valor já existia antes da minha participação nele, e, consequentemente, ao aderir a ele, eu acrescentei valor ao valor, isto é, dei- lhe mais valor porque o vivi, não como simples repetição, mas com o meu modo singular, único, igual e, ao mesmo tempo, diferente dos outros 16 . Significa que o «eu», ao experimentar, ao vivenciar um valor, está a reconstruí- lo e, consequentemente, a transformá- lo. Podemos dizer que através do círculo hermenêutico do valor compreendemos que este é a priori e a posteriori, porque, ao vivenciar o valor, participo nele com a minha criatividade e, reconstruo-o. Perante o que foi dito, podemos afirmar que o homem é criador dos seus valores. Se o valor me constitui, cabe perguntar se há necessidade de o hierarquizar. Constitui- me segundo uma ordem de preferência, porque a nossa subjectividade e a nossa pessoalidade realizam-se pela referência significativa, pela qual se edifica comigo e cria em mim uma identidade homogénea, embora sujeita a alterações 17 . Neste sentido, é necessário que seja o sujeito a escolher e a reconhecer aqueles valores que são inerentes à sua realização como pessoa, uma vez que permitem indicar o horizonte da nossa acção, numa relação dinâmica com a subjectividade. Só assim os valores podem ser adaptados à mudança sem que, no entanto, percam o seu valor. 15 Ibidem. Ibidem. 17 Ibidem, p. 13. 16 4 Em suma, somos da opinião de E. Nunes, que vai ao encontro de Ch. Taylor, ao dizer que «sem quadros de referência, a dignidade do ser humano não se realiza; estes são fundamentais no seu processo de dignificação, tanto pessoal como comunitário» 18 . 2 - A DIMENSÃO DO VALOR NA IDENTIDADE DA PESSOA Max Scheler reconhece na pessoa um carácter dinâmico, pelo que não a reduz simplesmente a um conjunto de actos, mas declara, de forma explícita, o «valor da identidade» do homem, conforme àquela que ele mantém sobre a autoconsciência da pessoa. Esse dinamismo do homem é precisamente o sinal inequívoco da sua não involução 19 . Compreende-se, assim, que a pessoa, para ser ela mesma e para alcançar maiores características de identidade, necessita de não se fechar sobre si mesma; pelo contrário, deve ter mais capacidade para sair de si mesma. Mas onde nasce e como se realiza essa identidade? É a questão central do sistema scheleriano. Scheler responde que ela surge do valor da mesma identidade do homem. Mas em que sentido? Segundo Vergés Ramírez, através da análise do que está na génese da identidade do homem, conclui-se que a base dessa identidade está na capacidade radical de relação 20 . O valor da pessoa é objecto da participação activa do homem. Ou seja, através da experiência vivencial, o homem tem de construir o valor da sua identidade como pessoa. A forma como a pessoa se expressa faz «ser ela mesma», porque corresponde à essência do próprio valor de pessoa 21 . De uma forma resumida, podemos dizer que Scheler acrescenta algumas novidades, que residem em duas áreas: uma, na maneira de expor o valor da identidade — esta é concentrada na autoconsciência do homem; a outra, no desenvolvimento que faz do conteúdo do dito valor, pois pertence ao ser mais profundo da pessoa. Assim, o valor da identidade do homem está na linha do ser, como «valor por s i e em si mesmo»22 . Além da dimensão de valor da identidade da pessoa, analisada até aqui, Max Scheler aborda uma outra dimensão: o valor de pessoa tem um carácter introvertido ou é 18 Ibidem. VERGÉS RAMÍREZ, Salvador – «La persona es un valor por si mis ma, segundo Max Scheler». In : Revista Pensamento, Vol. 55, nº 212, p.250. 20 Ibidem, p. 251. 21 Ibidem. 22 Ibidem. 19 5 de cariz comunicativo? Scheler diz que a essência de tal valor não é unidimensional, mas sim intersubjectiva. 2.1 - A dime nsão do valor intersubjectivo Segundo M. Scheler, o termo «intersubjectividade» mostra que a identidade da pessoa não é um «valor monolítico excluinte, mas sim um valor mais universal»23 . Por isso, Scheler acrescenta à noção inicial de pessoa a de «pessoa total», traduzindo esta um valor de pleno humanismo, de maneira que o homem não seria plenamente pessoa se não tivesse essa dimensão intersubjectiva, indispensável ao valor da sua identidade, que é particularmente intercomunicativa 24 . Neste «progresso axiológico da pessoa»25 , M. Scheler fala numa dupla área, pessoal e social, como plena realidade dos outros, uma vez que cada um vive em si mesmo de uma forma originária como pessoa social, assim como pessoa íntima 26 . O carácter social do homem dignifica-o de tal forma que o faz «ser ele mesmo», e, procurando a raiz da questão, desenvolve todas as virtudes da sua condição humana. Por isso, M. Scheler descreve esta abrangência com o termo «pessoa total», designando assim, de uma forma precisa, esse valor global. Deste modo, a «pessoa total» é a autorealização 27 do homem, em todas as suas dimensões, como o centro da sua plenitude humana. A este respeito, Vergés Ramírez citando A. Vergot, sustenta que «o outro está inscrito no fundamento do eu intersubjectivo» 28 . Em suma, M, Scheler responde à questão «o que é o homem?» equiparando o «valor da pessoa» com o da comunidade, e o «valor da sociedade» com o da «pessoa total». Neste sentido, podemos dizer que esta dimensão social é indispensável para a sua própria existência. 23 Ibidem, p. 252. A este respeito, M, Scheler refere que esta intersubjectividade pode ser observada num duplo plano – por um lado, a realidade profunda da pessoa, isto é, a sua «capacidade radical» de s e relacionar co m os outros; por outro, o seu «comportamento disfuncional» relativamente a essa relação, motivada por causas mu ltifactoria is, que podem certamente distorcer o seu valor como pessoa, mas nunca o anula. Todos eles pertencem ao «actuar» e não ao «ser» da pessoa. Ibidem. 25 Ibidem, p. 254. 26 M. Scheler intitula de ―pessoa íntima‖ toda a que vive tendencialmente em si própria, dist inguindo-a claramente da pessoa social, ou seja, do conteúdo vivencial de todas as formas de viver ind ividual, resultante de uma referência nu ma art iculação dos seus membros num todo. 27 O termo «auto-realização pressupõe um conjunto de possibilidades humanas pré-determinadas, que devem ser actualizadas harmoniosamente». GEVA ERT, Joseph. – El Problema del Hombre – Introducción a la Antropología filosófica. p. 194. 28 VERGES RAMÍREZ, Salvador – «La persona es un valor por si misma , segundo Max Scheler». In Revista Pensamento, vol.55, nº 212, 1999, p. 253. 24 6 Uma outra abordagem do valor de pessoa, importante no progresso do valor humano, é o amor. O amor deve ser considerado como a condição de base para a convivência humana e social. 2.2 - Amor e valor do home m Segundo Vergés Ramírez, não seria compreensível o progresso do valor em Scheler, se este não estivesse previamente relacionado com o amor. M. Scheler define o amor, parafraseando S. Tomás de Aquino, (bonum quod omnid opetunt) como querer o bem, seja para mim mesmo, seja para os outros. Mas porque razão M. Scheler associa o amor ao bem? M. Scheler fundamenta esta associação, primeiro, porque o bem é a expressão concreta do valor, que é universal. Segundo, porque o bem constitui o fim do homem, que possui o valor da liberdade perante os «bens concretos» e a distingue do bem universal29 . O «bem» pode ser multifacetado, tanto para mim, como para os outros. Mais uma vez M. Scheler intitula, como laço mediático do valor, «o amor do homem a si mesmo com o amor do outro, sem solução de continuidade» 30 . Agora, pergunta-se: o amor precisa de algum adicional para obter uma nova classificação, porque nada é maior que o amor? Só através da amizade, do amor da pessoa para com outra pessoa, o homem toma consciência de si e da própria dignidade humana. Com efeito, trata-se simplesmente de redescobrir a faceta do amor profundo, que é o carácter valioso. Neste sentido, M. Scheler foi o único que «une o amor ao valor, pelo que o constitui na «pessoa», por um lado, e na maneira de amar, por outro 31 . O amor que se adquire no valor pessoal do outro, por si mesmo, está isento de todo o atributo. M. Scheler considera-o como genuíno. O valor do amor é referenciado como intrínseco. Não são duas realidades independentes que formam uma terceira, mas o amor da pessoa é um valor por si mesmo. Isto é, no sentido mais profundo do homem, como «pessoa total». Assim, M. Scheler sustenta que «todos os outros são o modo de uma pessoa total»32 . A este respeito, Vergés Ramírez diz que Colomer comenta acertadamente o pensamento de M. Scheler, sobre o amor heterocêntrico, ao descrever este como «a 29 Ibidem, p. 255. Ibidem. 31 Ibidem, p. 256. 32 Ibidem. 30 7 tendência a sair de si e entregar-se»33 , porque a condição de possibilidade do valor pessoal habita precisamente no amor do outro. A pessoa necessita, para a sua identidade plena, de viver o valor na sua vertente social, como «pessoa total», instalada no amor comunicativo 34 . Deste modo, ser amado por outra pessoa deve ser considerado como condição de base para a convivência humana e social, decorrendo daí a importância de analisarmos o valor da ―solidariedade‖. 2.3 – Solidariedade como valor É do nosso conhecimento que a filosofia de M. Scheler se fundamenta sobre duas linhas paralelas: uma é a ―teoria‖, a outra é a ―praxis‖. Assim, o valor de pessoa implica esta dupla dimensão, uma vez que a vida da pessoa não se circunscreve só ao pensamento mas também à acção, como elemento essencial da mesma. A acção da pessoa faz-se sempre revestida da roupagem teórico-prática, à qual corresponde a sua dignidade, à semelhança do vestido 35 dado que pessoa, segundo M. Scheler, é Taetigkeiz. Se, por um lado, a solidariedade se balanceia entre o valor do ser pessoal e a acção do amor, por outro, questiona-se: em que sentido o amor denota partilhar, não só o «ter», mas o próprio «ser», que é qualitativamente maior? Antes de mais, é necessário aclarar o conceito de solidariedade, uma vez que a entrega do «ter» da pessoa a outra não se pode confundir com o «dom» do próprio ser, que é intransferível. Em segundo, esse aspecto negativo da solidariedade remete para outro, superior, de carácter positivo 36 , pelo que a solidariedade implica viver a dimensão meta-antropológica da própria pessoa, que é «ser o Outro», na qualidade do valor mais profundo do humano 37 . Assim, «a solidariedade aparece com o rosto do valor, ao conjugar-se este com aquela»38 . A este respeito, Lévinas, na sua fenomenologia religiosa, toma como ponto de partida a ideia da responsabilidade pelo Outro: olhando nos olhos o meu semelhante, 33 Ibidem. Ibidem, p. 257. 35 Ibidem, p.260. Co m efeito, importa, antes de mais, relembrar que M. Scheler, na sua definição de pessoa, integra os ―actos da pessoa‖ como formativos do homem e a acção é formada na vertente da ―auto-expressão‖ do homem, por um lado, e na realização do seu ―ser comunitário‖, por outro. Com efeito, M. Scheler at ribui valor destacado à conjugação dos actos de cariz social da pes soa, cheios de amor pelos outros. Ibidem. 36 Ibidem, p. 261. 37 A este respeito, Vergés Ramírez diferencia ―ser com‖ o outro de ―estar com‖ o outro, referindo que o ―estar com‖ o outro é só local, em relação ao primeiro, que possui características «meta-antropológicas». Ibidem. 38 Ibidem. 34 8 não posso deixar de sentir um imperativo de solidariedade para com ele, ao dar prioridade ao Outro. Desvalido no caminho. Facilmente se vê, portanto, que esta simbiose do valor da pessoa com a solidariedade representa um passo à frente de significado profundo em Scheler, porque manifesta a participação activa na promoção do outro, como de si mesmo se tratasse. Neste contexto, a solidariedade é a tomada da consciência vivencial de que o Outro é parte constitutiva de si mesmo. Daí que a solidariedade não signifique nenhuma desvalorização da outra pessoa, mas deve ser interpretada como movimento de reciprocidade que se tem de estabelecer entre todos os indivíduos. Desta maneira, nasce o amor solidário entre as pessoas, como um fruto maduro da comunidade social, em que todos são membros activos sem qualquer descriminação. Sem querermos negar ou menosprezar esta imagem do valor social da pessoa, não estará esta possuída de um idealismo, alheio da realidade? Antes de responder a esta questão, é conveniente dizer que o fenómeno pode, sem dúvida, induzir em erro, mas também a realidade do ser pessoal tem outro estrato de valor mais profundo. É aqui, precisamente, que M. Scheler baseia a sua fenomenologia axiológica, ao expor «dimensão solidária» como específica do valor da pessoa. Pretende esta resposta insinuar que a solidariedade é uma necessidade congénita da mesma pessoa? Sem dúvida, existe uma inclinação de ordem conatural do homem na sua associação com os outros, compartilhando um mesmo projecto de comunidade de vida social. Podemos dizer, na expressão de M. Scheler, e, em consequência, que não só não impede a sua «liberdade de eleição», mas que aumenta ou desenvolve mais intimamente o seu valor humano 39 . Daqui resulta o alcance do valor da solidariedade, nas suas formas plurifacetadas, como condição de possibilidade do valor da convivência das pessoas nas suas diferentes áreas. Em suma, a solidariedade, enquanto expressão de carácter intersubjectivo, não só do saber do homem mas da sua própria realidade significativa, é um sinal verdadeiramente constitutivo do ser do homem, do qual cada um deve tomar consciência e no qual o homem tem de inspirar a sua própria conduta. Deste modo, nos últimos anos, o alcance do valor de solidariedade alargou-se enormemente e, hoje, abrange, não só o direito à igualdade, mas também o direito à 39 Ibidem, p. 262. 9 diferença e à corresponsabilidade. Não podemos esquecer que a solidariedade é hoje um valor fortemente reclamado, que necessita de uma educação intercultural. 3 – EDUCAR PARA OS VALORES Embora a dignidade seja aquilo que todo o homem possui indivisivelmente desde o início da sua existência, ela também implica o reconhecimento do Outro. Importa, porém, sublinhar que é esta dimensão de intersubjectividade que leva cada homem a interrogar-se acerca da sua responsabilidade perante si e perante o Outro. É graças à sua consciência 40 que o homem se torna capaz de se perguntar, em cada situação concreta, qual é a forma de agir «correcta» e o que «deve fazer», assumindo uma responsabilidade. A consciência moral faz parte da realidade humana 41 . Ela impõe uma questão central: «o que devo fazer?», e um imperativo categórico: «tu deves». Para Kant, este imperativo categórico «tu deves» impõe-se ao homem. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. É, portanto, uma obra da razão e da liberdade, porque depende da liberdade do homem, da sua capacidade de determinar, ele próprio, o bem ao qual se submeterá. Com efeito, para Kant, a consciência moral nada tem a ver com regras impostas do exterior, mesmo que imediatamente interiorizadas. Porém, a resposta que o homem dá a este imperativo depende do sentido que consegue captar em cada situação. Seja o valor moral incondicional ou absoluto, apresenta-se como superior aos demais valores com que o homem se encontra, preferível a qualquer deles, não sacrificável perante nenhum42 . Por tudo isto, a consciência moral, idealizada como um bem a atingir e um mal a evitar, não consegue escapar à confrontação com a realidade — realidade de vivermos em sociedades com mudanças constantes, em tempos incertos, onde «faltam valores que relacionem e agrupem as vontades humanas que nos juntem em torno de ideais» 43 . É desta confrontação que advêm os inevitáveis conflitos morais. 40 Convém referir que ―consciência‖ é a capacidade que a inteligência humana tem de julgar acerca do valor moral dos próprios actos. 41 CA BRAL, Roque – Temas de Ética. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2000. pp. 78-82. 42 Ibidem, p. 79. 43 Cf. CAMPS, Victoria. Paradojas del individualismo. Barcelona: Ed. Crít ica, 1993, pp. 61-62. In : LAZCANO, Rafael. – «Sobre los valores». In: Revista Agustiana, vol. XXXVI, 1995, pp.345-359, p. 355. 10 Neste contexto, passamos a citar I. Kant: «O homem só pode tornar-se homem pela educação»44 . Neste sentido, a educação é então um caminho pelo qual o homem se constitui como pessoa. Todavia, neste caminho, o homem precisa dos outros homens45 , porque ele só se constitui plenamente numa relação com outrem, quer seja uma relação parental, de amor, ou de amizade, quer seja vivida numa existência comum e na reciprocidade de um reconhecimento mútuo. Por outras palavras, a educação propriamente dita dirige-se a um ser extremamente valioso - o ser humano - nas várias etapas da sua vida. Aqui radica a ligação intrínseca entre educação e valor. Toda a educação futura precisa de uma orientação, uma finalidade, a qual depende da concepção que se faz do homem ou de uma antropologia. Ela apoia-se sobre um conjunto de valores que dão a sua valia à condição humana 46 . As exigências educativas da formação humana estão claramente expressas nos termos «valor» e «virtude»47 . Falar da educação em valores, frase que foi moda nos últimos anos, é fugir à tarefa mais dura, mas, ao mesmo tempo, a única que justifica a educação moral, que é a aquisição de disposições estáveis e eficazes para o «bem», quer dizer, se não tivermos medo das palavras, diremos formação de hábitos morais 48 . Os autênticos valores educativos, tais como o próprio critério para ordenar as ideias e tomar decisões, a sinceridade nas palavras e na conduta, a dignidade pessoal em qualquer situação ou actividade, o espírito de trabalho, o sentimento de justiça, a generosidade, a sobriedade na posição e uso das coisas, são valores que se tem de «cuidar expressamente», para que a educação, no mundo de hoje, não fique por um vago ecologismo e numa preocupação por uma vida exclusivamente corporal 49 . 44 KANT, Immanuel. – Traité de pédagogie. Paris: Hachette Classiques, 1981. p. 37. Ibidem, p. 36. 46 ROCHA, Filipe – Educar em Valores. Aveiro: estante editora, 1996. p. 16. 47 Para Victor Garcia, «a palavra ―valor‖ tem u m sentido impreciso, mas amp lo porque permite por isso mes mo incorporar mu itas manifestações concretas da vida, que talvez escapem aos conceitos precisos de virtude. O vocábulo ―virtude‖ referencia claramente um tipo de actos determinados. Neles pode-se fundamentar com clareza e rigor u ma acção educativa, uma vez que a virtude é algo que se pode adquirir precisamente através da própria actividade do sujeito humano». Cf. GA RCIA HOZ, Víctor « Los Valores en la educación: una difícil travesía y un confuso destino »: Anales de la Real Academia de Ciencias Morales y Políticas 46/71 (1994) 42-43. em LAZCA NO, Rafael. – «Sobre los valores». In: Revista Agustiana, vol. XXXVI, 1995, (345-359), p. 357. 48 Ibidem. 49 Ibidem. 45 11 Conclusão: Numa primeira parte, analisámos especificamente a forma de conceptualizar a descoberta dos valores, tendo como referência temática a «Pós-Modernidade e valores: para uma leitura de Charles Taylor», de E. Nunes. Podemos dizer que, feita a análise ao círculo hermenêutico do valor, percebemos que o valor é a priori e a posteriori, ou seja, ao vivenciar o valor, participo nele com a minha criatividade e, reconstruo-o. Neste sentido, podemos dizer que o homem é criador dos seus valores. Então, se o valor me constitui, haverá neste sentido necessidade de o hierarquizar? Constitui- me segundo uma organização de preferência, porque a nossa subjectividade e a nossa pessoalidade realizam-se pela referência significativa, pela qual se edifica comigo e cria em mim uma identidade homogénea, embora sujeita a alterações. Neste sentido, os valores devem ser adaptados à mudança se m que, no entanto, percam o seu significado. Para que isto aconteça, é necessário que seja o sujeito a escolher e a reconhecer aqueles valores que são inerentes à sua realização como pessoa, uma vez que permitem indicar o horizonte da nossa acção, numa relação dinâmica com a nossa subjectividade. Numa segunda parte, pelo que foi dito ao longo deste estudo, pode dizer-se que na antropologia de M. Scheler que está presente a «concepção do progresso da pessoa»50 . De facto, o homem vive desde o nascimento em direcção à sua plena realização. Mas nem todos os homens conseguem o pleno desenvolvimento. A análise efectuada permite-nos dizer que Scheler sustenta a ideia de que a capacidade do homem para actuar está direccionada para o desenvolvimento total, mercê da articulação dos seus actos. Mas tudo isto é incompreensível sem a vinculação dessa pessoa aos seus «valores». Deste modo, analisámos o sentido fenomenológico da relação entre «pessoa» e «valor», assim como o seu posicionamento na hierarquia de M. Scheler. Neste processo, descobrir a pessoa significa entrar no mundo de todos os seus valores, hierarquizados por M. Scheler, em diferentes categorias. Assim, M. Scheler situa o homem no centro de todos os valores, porque o homem, além de ser um «sujeito de valores», é um valor pessoal. O valor do homem é único, em virtude do valor 50 Ibidem, p. 27. 12 intrínseco da dignidade da pessoa. Com efeito, a pessoa é «autovalor», como fornecedor de referência de todo o valor infra-humano. Para M. Scheler, o valor da identidade do homem está inscrito no ser como «valor por si e em si mesmo». É através da participação activa que o homem tem de construir o valor da sua identidade como pessoa. É a forma de se expressar que faz a pessoa «ser ela mesma», correspondendo esta à essência do próprio valor de pessoa. M. Scheler atribui uma maior relevância à dimensão axiológica da pessoa no seu aspecto relacional. Segundo ele, o progresso do valor interpessoal encontra-se na comunidade, na sociedade, na chamada «pessoa total» ou «pessoa valiosa», considerando a dimensão social do homem como essencial para a sua própria existência. A harmonia, que possa existir entre a pessoa individual e a pessoa social, é depositária de um «valor positivo» da pessoa enquanto unidade. A desarmonia existente entre uma e outra é depositária de um «valor negativo» 51 . Neste sentido, ser amado por outra pessoa deve ser considerado como condição de base para a convivência humana e social. O amor e o valor «vivem» em união, pelo que M. Scheler o constitui na pessoa, por um lado, e na maneira de amar, por outro. O valor do amor é referenciado como intrínseco. Com efeito, o amor da pessoa é um valor por si mesmo, no sentido mais profundo do homem como «pessoa total». Assim, o amor solidário nasce entre as pessoas como fruto maduro da comunidade social, em que todos são membros activos, sem descriminação alguma. Em M. Scheler, a solidariedade representa um passo à frente no significado profundo da pessoa, porque manifesta a participação activa na promoção do Outro, como de si mesmo se tratasse. Com efeito, a solidariedade deve ser interpretada como um movimento de reciprocidade que deve estabelecer-se entre todos os indivíduos. Compreende-se assim que a solidariedade seja a tomada da consciência vivencial de que o Outro é parte constitutiva de si mesmo. Para finalizar, poderemos dizer que os valores desempenham papel educativo, uma vez que não representam só o produto da sociedade, mas correspondem a aspirações individuais e a um ideal de conduta humana. 51 SCHELER, Max – Ética, nuevo ensayo de fundamentación de un personalismo ético. p. 387. 13 Bibliografia CABRAL, Roque – Temas de Ética. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2000. HESSEN, Johannes – Filosofia dos valores. Tradução e prefácio de Prof. Cabral de Moncada; Coimbra: Edição Almedina, 2001. KANT, Immanuel – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1988. (Tradução de Paulo Quintela). LAZCANO, Rafael. – «Sobre los valores». In: Revista Agustiana, vol. XXXVI, 1995, (345-359). NUNES, Etelvina. - O Outro e o Rosto – problemas da Alteridade em Emmanuel Levínas. Faculdade de Filosofia de Braga: 1993. NUNES, Etelvina - «Pós-Modernidade e Valores: para uma leitura de Charles Taylor». 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