Stage and Screen 22/10/2013 Dança diante do abismo A OSESP se apresenta em Berlim Por Sascha K rieger Não faz tanto tempo assim que a América do Sul era tida como uma mancha branca no mapa das orquestras importantes no mundo. Quem estivesse à busca de grandes corpos sonoros voltava-se para a Europa ou os Estados Unidos, talvez ainda com um olhar perscrutador para a Ásia, mas isso era tudo. Agora, não é mais tão simples assim: pelo menos desde o sucesso internacional de Gustavo Dudamel e sua Simón Bolivar Youth Orchestra, o (sub)continente não pode mais ser ignorado, uma vez que o boato se espalhou de que entre as orquestras ali estabelecidas também há algumas que sem dúvida podem fazer frente aos nomes sonoros no Norte e dou outro lado do Atlântico. Dessa forma, acabamos ouvindo também os nomes de orquestras ao sul dos Estados Unidos quando se fala das melhores do mundo. E de uma em especial: o da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP na abreviação). Continuamente, a orquestra com história turbulenta acabou fazendo um nome: devido a gravações muito aclamadas, programas ambiciosos, turnês exitosas e a entrada de Marin Alsop como regente titular. Portanto, quando a OSESP excursiona novamente pela Europa, ela vem envolta em muito mais que uma aura de exotismo. Mas ela não renega as suas raízes: pois em sua apresentação em Berlim, o programa começa com a obra de encomenda Terra Brasilis de Clarice Assad, uma “fantasia sobre o hino nacional brasileiro”. Em passo acelerado, a obra atravessa a história brasileira, caracterizando de forma musical as diferentes infuências culturais, até que todas desembocam em uma breve, porém densa citação do hino nacional. Marin Alsop reforça o caráter fragmentário da peça desfolhando, com olhar arguto, as inúmeras citações musicais de forma clara e pontuada, até fazer com que elas se amalgamem em uma unidade, aparentemente sem esforço e de forma natural. Não se consegue, porém, encobrir que se trata aqui de uma obra menos ambiciosa, mas em todo caso é um belo cartão de visitas. Passa-se, na sequência, ao coração da tradição musical europeia, o classicismo vienense. O quarto concerto para violino de Beethoven recebe um toque marcadamente brasileiro – também o solista Nelson Freire vem do país a sediar a próxima Copa do Mundo de futebol. Onde há pouco ainda reinava a naturalidade, agora impera perplexidade. De fato, tanto a orquestra quanto o solista têm difculdades em desbravar esta obra por vezes subestimada, que foi emoldurada pelos populares terceiro e quinto concertos para piano do compositor nascido em Bonn. Começando com a parte inicial, a cargo do solista: poucas vezes se viu o motivo inicial tocado de modo tão inexpressivo, em staccato duro, um motivo simples apenas na aparência, mas que abre espaço para tantas interpretações diferentes. Mesmo em seguida, a interpretação de Freire permaneceu dura e carente de nuances. A orquestra adequa-se a essa situação: o material temático é tocado de forma apenas protocolar, com uma sonoridade curiosamente diluída, imprecisa e sem qualquer força, não havendo uma relação entre solista e orquestra ao longo de todo o primeiro movimento. Felizmente, essa situação não se perpetua no Andante com moto. De forma clara e pontuada, Alsop trabalha o contraste entre o lirismo saudoso do piano e as duras paredes de cordas da orquestra, apoiado pela interpretação intimista e nuançada de Freire. Aqui, já é possível vislumbrar o abismo que se abrirá na última obra da noite. É tocante o esvair-se incrivelmente delicado do movimento. Depois disso, Alsop demonstra o seu sentido de coesão: como que vindo de longe, ela faz com que o último movimento venha se aproximando como um vento, antes de fazer com que ele se desdobre em todo o seu potencial. Na sequência, tece-se um diálogo intenso entre o solista e a orquestra, sendo que a última desenvolve uma incrível riqueza cromática e a regência de Alsop concentra-se nas inúmeras trocas de velocidade e intensidade sonora, que estão no foco de sua interpretação. Surge daí uma estrutura sonora extremamente dinâmica, que respira multiplicidade, fazendo jus a essa obra-prima de Beethoven - e tudo isso sem romantizar, como mostra o fnal claro e supreendentemente cortante. Após o intervalo, segue a quinta sinfonia de Serguei Prokofev, surgida nos últimos anos da guerra. Marin Alsop parece disposta a trabalhar essa referência histórica. E mesmo a temática da guerra não sendo tão evidente quanto em um Shostakovitch – a quem a orquestra não por acaso dedica um dos dois bis – essa obra seria impensável sem o incêndio mundial que foi a Segunda Guerra. No movimento inicial, Alsop faz as cordas escavarem, pesadas, de forma implacável, sem qualquer laivo de esperança diante dessa muralha impermeável. No segundo movimento, o olhar recai sobre a natureza demoníaca do material musical, de vivacidade otimista apenas na superfície; o foco recai na dinâmica crescente, desenvolvendo-se uma verdadeira dança dos infernos. Corresponde a isso a estrutura rítmica do Adagio construído sobre pés de barro, que Alsop interpreta como uma valsa fantasmagórica, dominada por um tapete de cordas soturno e denso. O ponto alto é o movimento fnal: esfacelado no começo, um mundo fragmentado, onde fcaram apenas retalhos de temas, que precisam se reencontrar lenta e pesarosamente. Contrastes claramente enfatizados, os elementos musicais entram em choque duramente, muralhas sonoras se erguem duras e pouco convidativas. Mesmo assim, no fm triunfa a vivacidade, regente e orquestra encontram um f nal extremamente vivaz, que não renega o terror anterior e, não obstante, permite certo otimismo. Marin Alsop nos apresenta uma dança diante do abismo, em que a tônica recai sobre a dança. Uma interpretação obrigatória e marcante, que encerra uma apresentação que para vários ouvintes certamente inscreveu essa orquestra no mapa musical.