A SUBJETIVIDADE EM DESTERRITORIALIDADE: TRAÇADOS IMAGÉTICOS FORMATIVOS 1 Maria dos Remédios de Brito 2 Quando eu atravessava os Rios impassíveis, Senti-me libertar dos meus rebocadores. (Arthur Rimbaud. O barco bêbado) Notas iniciais O ensaio em questão busca fazer uma análise a respeito da perspectiva de subjetividade a partir do pensamento de Gilles Deleuze e Feliz Guattari. Para isso, ele inicia-se com algumas notas sobre o sentido de subjetividade e a crítica que ambos constroem sobre a subjetividade centrada. Esses pensadores provocam com seus escritos novos modos de singularização e subjetivação para além da lógica da identificação. Para eles, a subjetivação está longe dos modos representacionais, sendo mostrada como uma eterna construção e reconstrução de si mesma, incansável e transbordante em fluxos que permeiam a constituição do indivíduo. Segundo Deleuze e Guattari, a subjetivação e a singularização estão em conexões entre fluxos heterogêneos, sendo que o indivíduo e o seu entorno seriam apenas algo resultante. As imagens da subjetividade são efêmeras e transitórias, por isso serão usadas como reforço interpretativo algumas imagens 3 de Escher 4 e René Magritte 5 para explicitar o que Deleuze e Guattari pressupõem para a 1 De modo especial, agradeço à inspiração de Débora Rodrigues Paes pela indicação do uso da imagem do pintor René Magritte, o que me levou a fazer uso de outras imagens para dar suporte analítico ao tema em questão. 2 Professora da Universidade Federal do Pará. Dra. em “Filosofia da Educação”. Trabalha com a disciplina “Filosofia da Educação”, atualmente desenvolve estudos na filosofia da diferença, tomando como intercessores Nietzsche, Deleuze e Guattari. Email: [email protected] 3 A intenção é usar imagens como um texto, escritura para auxiliar a interpretação, a construção textual. 4 Maurits Cornelis Escher (1898-1972) é um artísta gráfico Holandes conhecido no mundo artístico por suas xilogravuras, litografias e meios-tons, que representam construções impossíveis que exploram o infinito. Sua obra produz um efeito de movimento, transformações, que sai do padão usal geométrico ao olhar infinito de deslocamentos.(Cf: o seu site oficial: www.mcescher.com) sua constituição como um alargamento de agenciamentos coletivos e impessoais. Por isso, Guatarri faz uma crítica severa à subjetividade subordinada a modelos representacionais. Há uma cartografia conceitual em Deleuze e Guattari altamente complexa para se pensar a subjetividade na atualidade, cartografia essa que ainda está para ser explorada na formação contemporânea. Com essa nota, o trabalho que se segue visa mobilizar alguns elementos para o debate. I A Filosofia da representação 6 foi instaurada por Platão. Segundo Deleuze, tal perspectiva atravessou a história das idéias chegando à modernidade. Com isso, o pensamento tem se valido dessa perspectiva de conhecimento que influenciou significativamente os padrões lógicos de entendimento. Tal lógica filosófica reconhece uma espécie de imagem dogmática que tende a gozar de uma natureza reta e moralizante, bem como do exercício de uma prática ascética e de mortificação do corpo e da linguagem. Essa imagem tende a difamar tudo o que seja devir na existência e procura “loucamente” um telos, um porto seguro, uma ancoragem, que negue o despertar da potência criadora da vida. Assentada em bases moralizantes, o pensamento é configurado em sua severidade, o que leva a uma formação cansada e enfadonha. Deleuze e Guattari são críticos severos dessa perspectiva identitária 7 por se distanciar, dentre outras coisas, do enfrentamento do trágico. Nesse sentido, o tema que 5 René Magritte (1898-1912) é considerado surrealista. Sua arte é pintada com nitidez, apresentando outras organizações distintas da realidade. Seu objetivo é destacar uma arte reveladora e crítica que se opõe efetivamente à ordem estabelecida consagrada e faz, sem dúvida, uma libertação do espírito rumo a uma quebra da rotina, das certezas, promovendo dobras, o paradoxo visual, e mostrando que as diferenças coexistem, mesmo naquilo que seja estranho. (Cf: René Magritte. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira, 1995) 6 O termo representação “é um vocabulário de origem medieval que ainda indica a imagem ou a idéia (ou ambas as coisas) de um objeto de conhecimento qualquer. Num certo sentido, representar é pôr sob os olhos alguma coisa, mas é também tornar presente ao espírito algo que já esteve presente aos nossos sentidos. Para Leibniz, no entanto, as mônadas também têm uma “natureza representativa” – já exprimem naturalmente todo o universo (....). Podemos também dizer que em Descartes a “idéia”, como quadro ou imagem da coisa, tem um sentido de similitude absoluta. (Cf: Schöpke. R, Por uma filosofia da Diferença, p. 39) 7 O termo remete a uma longa história da tradição. Ele é colocado como um dos princípios lógicos ou ontológico ao lado dos princípios de contradição e do terceiro excluído. Pode-se dizer que a palavra identidade do latim clássico significa Identitas. Para a tradição, o termo diz respeito aquilo que é em sentido essencial, ou seja, as coisas são idênticas, unas, portanto, de algum modo ele revela a unidade, de outro modo, as coisas só são idênticas. A unidade da substância é a definição que a expressa. A identidade quer dizer aquilo que é, como verdades idênticas e afirmativas. (Cf: Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia) se pretende abordar: “subjetividade desterritorializada”, emite uma perspectiva para fora daquilo é perenizado e unívoco. Para esses pensadores a subjetividade 8 é uma trama que não está dada, mas que está em composição contínua com diferentes arranjos, sendo assim, ela não está na ordem do “identificado” como uma espécie de moldura formatada e fixada que leva à padronização do indivíduo ser conhecida e reconhecida. Com isso, sem dúvida, é possível dizer que não há algo invariante na subjetividade para ser preenchido independente das variações e ocorrências do mundo histórico, econômico, cultural e social. Assim, ela não é um “tesouro”, também não pode ser vista como algo “secreto” que faz parte do interior do indivíduo, nem está intacta, inata, nem está lá somente para ser desvelada ou descoberta. Sendo assim, não há nenhum “eu” que sendo pensante detenha o critério de tudo o que seja verdade, certeza, que leva a transformar o “eu” em subjectum, em um fundamento de toda a representação da coisa, que seja a unidade, o centro, o limite fundador, como sugere o pensamento moderno. Contra esse privilégio de uma lógica da verdade, Deleuze e Guattari trazem à tona as noções de “identidade”, “unidade”, “fundamento”, pois para eles esses conceitos são traços predominantes da filosofia metafísica e representacional e, assim, fazem um elogia ao devir, ao transitório, A multiplicidade, ao diverso, à diferença, como elementos capazes de mostrar um outro sentido para a compreensão da vida. Por isso, Guattari, em seu livro “Caosmose”, afirma que a subjetividade é polifônica, é plural, pois não há nenhuma instância estruturante e dominante que a determine segundo uma causalidade unívoca (GUATTARI, F. 1992, p. 11). A subjetividade interage, sofre também agenciamentos, produz sentidos, contra-sentidos, opera agenciamentos coletivos e individuais. Ela é heterogênea, diz Guattari. Cito-o: (...) na heterogeneidade dos componentes que concorrem para a produção de subjetividade, já que encontramos aí: 1-componentes simiológicos que se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte; 2-elementos fabricados pela indústria dos mídias, do cinema, etc; 3-dimensões simiológicas asignificantes colocando em jogo máquinas informacionais de signos, 8 O termo subjetividade diz respeito ao pensamento moderno e, segundo Marilena Chauí, ele refere-se a consciência , diz ela: “subjetividade ativa, sede da razão e do pensamento, capaz de identidade consigo mesma, de conhecimento verdadeiro, de decisões livres, de direitos e obrigações” ou melhor “ a subjetividade se manifesta plenamente como uma atividade que sabe de si mesma, isso não significa que a consciência esteja sempre inteiramente alerta” (Cf: CHAUÍ. M. Convite a Filosofia, 2006, p. 131/132). Deleuze e Guattari sem dúvida fazem a crítica a essa noção moderna, já que a mesma se põe como sendo uma atividade ou a sede capaz de ir ao encontro da verdade, do saber, do conhecer. Portanto, o centro do sujeito. funcionando paralelamente ou independentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significações e denotações que escapam então às axiomáticas propriamente lingüísticas. (GUATTARI, F. 1992, p.14) A subjetividade está sendo agenciada por vários componentes que não permitem mais um entendimento simplista e estruturalista de suas dimensões e composições. Na era atual, com o advento tecnológico avançado, que força a considerar uma tendência à homogeneização, à universalização, e assim a uma espécie de reducionismo da subjetividade, há também, uma tensão que leva a se pensar na heterogeneidade. Assim, é preciso considerar essas tensões que são reais em uma sociedade que tende à globalização a partir das tecnologias avançadas e da própria expansão do capitalismo e de seus meios de produção. Guattari também alerta para o caráter trans-subjetivo da subjetividade, pois entende que a “subjetividade em estado nascente que não cessaremos de encontrar no sonho, no delírio, na exaltação criadora, no sentimento amoroso...” (GUATTARI, F. 1992, p. 16), ou seja, ela está sempre em fluxos, sempre interagindo, conectando-se, transversalizando sentidos. Para esse autor, seria empobrecedor se a subjetividade fosse vista apenas por partes separadas, sem conexões e sem fluxos. Guattari sugere que a “subjetividade” não pode escapar da invenção criadora e nega uma subjetivação melancólica e reconhecedora, reprodutora e subordinada aos valores vigentes, sem força para produzir a si mesma. Com isso, a subjetivação não pode ser vista pela lógica estruturante, condicionante e recognitiva, ao contrário, para Deleuze e Guattari a subjetividade está em movimentos, não existe um a priori. Ela é composta por complexos de subjetivação, Indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas, que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se resingularizar (GUATRARI, F, 1992, p.17). Diz ainda, Assim se operam transplantes de transferência que não procedem a partir de dimensões “já existentes” da subjetividade, cristalizadas em complexos estruturais, mas que procedem de uma criação (...). Criam-se novas modalidades de subjetivação do mesmo modo que um artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispõe. (GUATTARI, F, 1992, p.17) Assim, há composições mais heterogêneas possíveis que insistem em romper e fissurar com as concepções deterministas de subjetivação. Aqui, Guattari sugere a subjetividade inventiva, criadora, desafiadora de si mesma, que se auto-produz em uma constituição que não cessa de percorrer caminhos e também deixá-los. Pois não se está mais diante de uma subjetividade dada em si mesma, conformista e subordinada. Ao contrário, esses pensadores são exigentes de uma vida que seja atravessada, transversalizada, que exija de si mesmo experimentos diversos. Então, a vida deve ser vista como uma espécie de teatro em que se exerce múltiplas facetas, onde se aprende efetivamente o caráter criacionista da produção da subjetividade. Nesse teatro multifacetado e criador, o corpo constrói para si outros modos de existências, um corpo que não tem receio de devorar e que permite exercitar o teatro da crueldade, da devoração, na medida em que esse corpo não se permite mais ser organizado nas estruturas encaixotantes. De forma provisória, Guattari afirma que a subjetividade é, o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como um território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. (GUATTARI, F. 1992, p. 19) Não há dúvida que a subjetividade exige um povoamento, um devir que não cessa de percorrer as grandes potências, as conjugalidades, as matilhas, que instaura agenciamentos, alianças, que atravessa e promove viagens que mudam e transformam e fazem linhas de fugas que levam à implicação de novas formas de expressões. A pintura de Magritte nos permite observar esse teatro que não receia de experimentar a si mesmo. Imagem I: Princípio da Incerteza- 1944- René Magritte Nessa obra, Magritte mostra uma jovem mulher que vê a sua sombra como um pássaro. A perspectiva da mulher é completamente alterada, levando a se pensar que há tantas imagens em cada pessoa, há tantos modos de ser, tantos despatriamentos, como uma espécie de coletivo em cada indivíduo, o que proporciona outros olhares, sem rigidez, sem espanto e horror. Por isso, dizem Deleuze e Guattari, “Estamos longe da produção filiativa, da reprodução hereditária, que só retém como diferenças uma simples dualidades dos sexos no seio de uma mesma espécie, e pequenas modificações ao longo das gerações. Para nós, ao contrário, há tantos sexos quanto termos em simbiose, tantas diferenças quanto elementos intervindo num processo de contágio. Sabemos que entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vêm de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes, e não se deixam compreender em termos de produção, mas apenas de devir” (DELEUZE, G. GUATTARI, F, 1997, p. 23) Sem dúvida a subjetividade heterogênea também sofre o devir, que não é “uma correspondência de relações, nem tampouco “é ele uma semelhança, uma imaginação e, em última instância, uma identificação. (...) Devir não é progredir nem regredir segundo uma série” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 2007, p. 18). Ele não é uma evolução, não é uma continuidade, da mesma forma, a subjetivação não pode ser vista como uma linha progressiva, uma evolução, tal como o devir ela é da ordem da aliança, da involução, antes, é efetivamente criadora. Com isso, a subjetividade não deixa de promover uma perspecriva rizomática 9 . Ela sem dúvida está na ordem da legião, pois como dizem Deleuze e Guattari, “não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Eu sou legião” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 20). E dizem ainda, “Essas multiplicidades de termos heterogêneos, e de co-funcionamento de contágio, entram em certos agenciamentos e é neles que o homem opera seus devires..” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 23), como se pode observar na obra de Escher. Imagem II: Encontro-1944- M. C. Escher Sem dúvida a arte soube promover essa subjetividade sem fronteiras. Nessa imagem, observa-se uma paisagem-corpo ou corpo-paisagem em multiplicidade, em devires, mostrando deslocamentos, ilusões, obrigando o indivíduo a sair da matriz, da fixidade, convidando o observador a fissurar as estruturas e exaltar os paradoxos, as diferenças, as metamorfoses. Esse jogo plástico produzido por Escher remete ao questionamento de quem seja o sujeito, há algum? E se há, qual a sua matriz? Aqui ele é posto em questionamento e vibração, pois Escher quebra com as hierarquias, com as dominações e promove novos jogos de subjetivação em que não se pode dizer onde é o começo e o fim. Os corpos, as imagens, sofrem deslocamentos contínuos. Em que o suposto “sujeito em si” parece desaparecer. Na imagem III, ninguém conseguirá dizer 9 Cf: DELEUZE, G. e GUATTARI, F, Mil Platôs, v. 1. Nesse volume os autores mostram o que entendem pelo termo. onde ela começa e termina, o que leva a indagar: onde começa a subjetividade e onde ela pode ir? Há um fim em si? Imagem III: Laços de União-1939- M. C. Escher O indivíduo opera tantas subjetivações possíveis, deixando assim de ser domesticado, fazendo de si um povo, que não se permite cessar, pois as matilhas, as multiplicidades, são desejadas e transformadas, mostrando a interação, a comunhão com o outro, uma vez que “o indivíduo excepcional tem muitas posições possíveis” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 25), mostrando que aquilo que se é, se é porque existe um outro, um outro que já é o contágio do outro e assim está sempre subvertendo a si mesmo. Por isso, Deleuze e Guattari se recusam a falar de um lobo, mas de uma lobiveração. (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 20) Esses pensadores instalam seus explosivos e com eles fazem suas rachaduras, suas fissuras no solo da subjetividade identitária, subvertendo as óticas, as imagens e o pensamento. Dessa forma, configuram uma espécie de auto-aniquilação, mostrando com suas implosões a catástrofe do sujeito centrado e ajustado. Escher, sem dúvida, mostra também essa implosão. É por isso que Deleuze e Guattari gostavam tanto de sua obra, pois ela promove multiplicidades, dobras, não havendo fora e nem dentro, tudo se mistura, tudo se devora, aceita-se o paradoxo, as tensões, as ilusões de óticas, as incertezas promovida pelas imagens, pelo movimento. A obra remete ao sentido de agenciamento conceito que Deleuze e Guattari buscaram investigar em seus trabalhos. Não há dúvida que essas imagens mostram o sentido da desterritorialidade, produzindo subjetivações deslocadas e intensas, subjetivações nômades e inventivas. Como é possível observar nas misturas, nos descolamentos e nos agenciamentos promovidos pelas imagens que compõem uma superfície em metamorfose que não se deixam ser capturada, mas que exercitam o devir, na figura abaixo. Imagem IV: Metamorfose III-1967-1968- M.C. Escher II Após essa breve explanação, pode-se finalmente entrar no conceito de territorialidade para depois inferir o que seja a “subjetividade desterritorialozada”. Para esclarecer o conceito de territorialidade, toma-se como norte de reflexão o abecedário de Gilles Deleuze que expressa de modo claro a relação do animal com o seu território. Deleuze destaca que os animais de território marcam e demarcam o seu espaço, através de urinas, posturas, cantos, cores. As posturas dos animais para Deleuze são verdadeiras linhas. Assim, ele afirma que o território “é o domínio do ter” 10 . O território segundo Deleuze é o domínio do animal, mas quando o animal sai desse território, ele desterritorializa-se, ou seja, experimenta outros lugares, aventura-se e isso é admirável, pois os animais saem e voltam para o território com grande maestria, sem inquietação. Para Deleuze, o território só vale no movimento do qual se sai. Não há território sem um vetor de saída, sem a desterritorialização. Ao sair do território, “do lugar do ter”, ele sofre a desterritorialide, ou seja, a saída, o deslocamento para outro lugar e nesse deslocamento há a reterritorialização. Com isso, quer-se dizer que uma subjetividade desterritorializada é operada pelo movimento, pelo deslocamento, ela torna-se criadora, pois se constitui sempre nesse movimento de territorialidade, desterritoralizando e 10 Cf: O abecedário de Gilles Deleuze pode ser conferido na internet com tradução de Bernardo Rieux. WWW.oabecedariodeGillesDeleuze.com. Acesso dia 20 de janeiro de 2010. reterritorializando. Sua fixidade é só para ser fluxo novamente, produzindo sentidos, paisagens, que não são um meio, um antes, mas um mundo desterritorializado que postula múltiplas relações, configurando um por vir desconhecido, inexplorado, paisagem que sempre vai se povoando e despovoando. Quando se desterritorializa, jamais isso acontece isoladamente, sem vizinhança, sem matilha, sem agenciamentos coletivos para se reterritorializar e isso não quer dizer o retorno a uma territorialidade, mas, como dizem Deleuze e Guattari, “implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua” (1996, p.40-41). Daí, tem-se todo um sistema de reterritorialização, profundo e de complexos movimentos que operam, que agem, que coordenam e colocam os corpos, os sentidos, em conexão com outros sentidos. Então, a subjetividade deriva do bando, pois não há cisão entre um dentro e um fora e, assim e excluída um buraco central ordenador, não há mais interior que apresente um muro, uma tela ou uma instalação de uma só face, como pode ser visto nas imagens de Escher. Então, a subjetividade desterritorializada torna-se uma máquina nômade, com suas combinações heterogêneas, polifônica, tornando-se uma trama e ao mesmo tempo quebrando toda e qualquer binaridade, fissurando os corpos disciplinados, saltando para além dos modos significado e significante, para além dos estratos organicistas, como se pode notar na imagem abaixo. Imagem V: Oito cabeças-1922- M.C.Escher Essa imagem opera um corpo que não aceita ser mais mumificado. Observam-se rostos, cabeças, que se misturam aleatoriamente, que dançam com suas vizinhanças e interagem mutuamente. A subjetividade em interação que deslizam entre si, sem saber onde inicia o si e o para si. Então, pode-se dizer que Deleuze e Guattari sugerem uma subjetividade que cria a sua intensidade em um Corpo sem órgão- CsO 11 . Assim, essa questão parece ser fundamental para uma nova subjetivação nesses autores. Um exercício de uma nova perspectiva de corpo. III Rumo a um corpo sem órgão, assim deseja a subjetividade desterritorializada, pois, com isso, descodificam-se os corpos e os conduzem ao encontro com a embriaguez do vir-se-ser, que rejeita a consciência repressora, o juízo dado e, em fim, explora uma subjetividade desejante da experimentação, que não receia o outro, o contato com o divergente, o diferente, ao contrário, o outro é uma prodigiosa intensidade. Sendo assim, será necessário negar o organismo para poder encontrar a potência e a vitalidade do mundo e da vida com toda a sua força trágica e transgressora. O Corpo sem órgão é uma transgressão à subjetivação edificante. O Corpo sem órgão se desfaz da consciência, do eu totalitário, guardião dos sentidos e das verdades, e libera as multiplicidade, os acontecimentos e multiplica rostos, cabeças, personagens, tornando-se uma povoação, porém isso não é feito sem sofrimento, sem rupturas, sem dor. Esse é o paradoxo: encontrar na doença, no sofrimento, a grande saúde; encontrar na dor a alegria, pois, segundo Deleuze, sofrer é exatamente se expor, estar fora, ser afetado, já que o corpo não deixa de se submeter ao sofrer dos encontros e desencontros, dos acertos e desacertos, das pátrias e dos despatriamentos. O tempo está sendo fissurado, transversalizado pelo mundo e pelos acontecimentos da vida. Diz Lapoujade, 11 Sigla criada por Deleuze e Guattari para representar o nome “corpo sem órgão”. Para um maior esclarecimento do termo é interessante conferir os seguintes textos: LINS, Daniel. A metafísica da carne: que pode o corpo. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.67-80; LAPOUJADE, David. O corpo que não agüenta mais. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.81-90; GIL, José. O corpo paradoxal. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.131-147. O corpo deve primeiramente suportar o insuportável, viver o inevitável. É o sentido do corpo sem órgãos em Deleuze: que o corpo passe por estados de torção, de desdobramentos que um organismo desenvolvido não suportaria. Todos os textos sobre o Corpo-sem-órgãos são, no fundo, textos de embriologia. Há em Deleuze uma verdadeira embriologia transcendental: o corpo ovo. Como suportar, então, o insuportável, como viver o inevitável (Como criar para si um Corpo-sem órgãos?) (LAPOUJADE, D. 2002, p. 87) A questão é o que pode o corpo, como deve manter seus mecanismos de defesa, como suportar certas inferências para depois encontrar sua resistência, sua força. Os seus agenciamentos não são sem dor e sem conflitos. Esse corpo que é um povoamento precisa também construir mecanismos de resistência. Porém, construir um processo de defesa do sofrimento, da dor, não é se manter distante e receoso ao seu enfrentamento, pois é na sua exposição com o fora que o corpo aumenta sua potência. É na altura do mais sutil, do mais baixo, que pode estar presente a fortaleza do corpo sem órgão, assim, dizem Deleuze e Guattari, o corpo sem órgão “Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite” (DELEUZE, G; GRUATTARRI, F. 2006, p.9). Ele é um exercício de força, de interação com o mundo e só pode exercitar a sua potência quando deseja a vitalidade. Diz Daniel Lins que, O CsO não cessa de desfazer o organismo, de fazer passar partículas a-significantes, intensidades puras. O CsO é uma espécie de máquina abstrata à qual só os agenciamentos importam.” (LINS, D, 2004, p. 74) Dessa forma, o tema da subjetividade nesses autores torna-se uma potência muito mais interessante e implicante quando conectada com sua perspectiva de um Corpo sem órgãos, que não cessa o desejo de devorar, de agenciar, de somar forças, de enriquecer com o contato e energia do outro, como visto na imagem de Escher. Ele é um corpo sem modelo, sem uma chegada, não determinado, pois é rizomático, desterritorializado, um provedor de devires que esmaga toda linearidade, pois, Para voar, na cena ou na vida, na cena como na vida, é preciso desfazerse dos órgãos, desembaraçar-se do juízo e deixar-se possuir como num ritual de iniciação xamanística, pela leveza de uma bebedeira adstêmia, por uma estética do corpo ao qual nada falta: nem verdade, nem juízo, nem órgãos. Começa aqui o teatro da crueldade, e com ele um sopro de vida. (LINS, D, 2004, p. 76) Com isso, o tema da “subjetividade desterritorializada” exige efetivamente uma estética da existência, um abandono radical do moralismo reinante, um abandono das formações essencialistas, da diciplinarização dos corpos. Isso requer coragem, para deixar viver o experimento. Deleuze, Guattari, Escher e Magritte, convidam a essa nova legião, a essa nova subjetividade transgressora, porém com um sabor de vida e de existência. Aquilo que a nossa longa formação institucional não foi capaz de fazer. Com isso, a educação, a formação é convidada também a refazer suas práticas. IV Para além da culpa e do ressentimento, isso cabe também para ensinar a formação, e constituir-se no seu grande desafio para configurar uma existência sem o peso. Os saberes e as práticas educativas padronizaram modelos, construíram autoridades representativas, hierarquias educativas, para forjar um tipo de educação que perpassa pela linearidade, pelo ajustamento individual e coletivo. Máquina de controle de rostidade, assim tem sido a Educação; uma educação baseada na reprodução de modelos, de identidades, que nega aos educandos o desafio de fazer seus próprios traçados experimentais e formativos. A pedagogia e a educação, por mais rupturas que fizeram em sua prática e teoria, ainda não conseguiram constituir intensidades para ouvir o diferente, sentir a vida selvagem atravessar por seus meandros. A Filosofia da Educação pode ser uma via de análise e de reflexão para se pensar uma outra forma de ação no fazer educativo por entender que tal setor do conhecimento pode ser o canal de interpretação, discussão e criação de novos conceitos. Dessa forma, a Filosofia da Educação deve estar para além de uma postura de reprodução dos conceitos filosóficos na educação e começar a pensar a partir de seus próprios acontecimentos. Sem fundamentações, é o que se deseja para a Filosofia da Educação, pois ela é que deve pensar sobre si mesma, sobre suas necessidades, suas angústias e promover o salto diante da imanência do seu fazer cotidiano, pois se espera que a crítica ao modelo identitário de subjetivação desafie a Educação e a formação no sentido de demolir a lógica do ajustamento individual e promova um olhar sem preconceito sobre a subjetividade nômade, que dobra sobre seu entre e desterritorializa a prática, as ações e os conceitos para reterritorializar o divergente, compreendendo o homem como um experimentador de si mesmo, de suas individualidades e singularidades, proporcionando-lhe travessias e transversalidades em suas experimentações, num jogo jogado com suas vivências, com seus acontecimentos, que recorre sempre a uma imagem esgotada para dar mobilidade a outra imagem-movimento. Sem receio de exercitar o devir, inventam-se outras formas de ser, como bem potencializou a arte de Magritte, de Escher, que em suas telas produzem a dobra, que contestam a representação, a lei, a linearidade, desterritorializando e promovendo uma desindentificação que renúncia a fixidade, como faz a filosofia de Deleuze e Guattari. Espera-se que essa reflexão possa tensionar a formação e promova a ideia de abandono da identidade, de unidade do ser, para navegar em um mar formativo de subjetividade em devires, em subjetividades dobradas, em multiplicidades clandestinas, para traçar um mundo possível de potências afirmativas e mais alegres no fazer pedagógico. Sem dúvida, isso pode ser uma nova linha de fuga para que a formação a partir de si mesma pense uma além-formação, mais condizente com o humano e com a vida. BIBLIOGRAFIA CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2006. Dicionário de Filosofia. ABBAGNANO, Nicola. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Feliz. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia.V.1. Trad. Aurélio Guerra neto e Celia Pinto Costa. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995. _________________________________. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. V. 3. Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claúdia Leão e Suely Rolnik.Rio de Janeiro, Ed 34, 1996. ________________________________. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. V. 4. Trad. Suely Rolnik. Rio de Janeiro, Ed 34, 1997. ESCHER. M. C. site: www.mcescher.com. Acesso em 09/02/2010. GUATTARI, Feliz. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claúdia Leão. São Paulo; Ed. 34, 1992. GIL, José. O corpo paradoxal. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.131-147 LINS, Daniel. Juízo e verdade em Deleuze. Trad. Fabien Pascal Lins. São Paulo. Annablume, 2004. __________. A metafísica da carne: que pode o corpo. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.67-80 LAPOUJADE, David. O corpo que não agüenta mais. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.81-90. MAGRITTE, René. Rio de janeiro. Ed: Civilização Brasileira, 1995. O abecedário de Gilles Deleuze. Acesso na internet em 02/02/2010. RIMBAUD, Arthur. Rimbaud Livre. Trad. Augusto Campos. São Paulo: Perspectiva, 2009. SCHÖPKE, Regina. Por uma Filosofia da Diferença: Gilles Deleuze, o pensador Nômade. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo; Edusp, 2004.