Lei Maria da Penha: breves considerações
sobre "igualdade material"
Israel Domingos Jorio
Professor de Direito Penal da Escola do Ministério Público do ES, da Escola da
Magistratura do ES e da graduação e pós-graduação em Ciências Criminais da FDV.
Advogado criminalista.
Não por causa da Lei Maria da Penha, mas por conta do que estabelece a
Constituição, homens e mulheres são iguais perante a lei. Significa dizer que possuem os
mesmos
direitos
e
deveres, não
podendo ser-lhes
dado
tratamento
diferente
exclusivamente em razão do sexo. E é exatamente isso o que a Lei Maria da Penha faz.
Aos crimes praticados por homens contra mulheres se confere um tratamento bem mais
rigoroso do que aquele cabível para a hipótese inversa. Fica claro, já que o crime é
exatamente o mesmo (lesões corporais ou crimes contra a honra, por exemplo), que a
diferença se ampara, unicamente, nos respectivos gêneros do sujeito ativo e do sujeito
passivo. Com isso, é fácil perceber que a Lei Maria da Penha fere, frontalmente, o
Princípio da Igualdade (ou Isonomia), estabelecido pelo art. 5º, caput, da Constituição. Se
a Constituição estabelece tal igualdade, não pode uma mera lei ordinária afastá-la.
Argumenta-se que a Lei Maria da Penha viria "reafirmar"a Constituição, na
medida em que, ao proteger com maior vigor os direitos das mulheres, garantiria a sua real
igualdade ("igualdade material") perante os homens. Acontece que esse raciocínio é
construído a partir de dados históricos e estatísticos. Como se observou que os crimes
praticados por homens contra suas esposas ou companheiras são muito frequentes, e
como se constatou, por várias razões, um alto índice de impunidade, decidiu-se pela
criação de uma lei teoricamente capaz de saldar esse "débito" histórico. Ocorre que o
"débito" é social. Ele não pode ser transferido para o indivíduo, à custa de seus direitos e
garantias constitucionais, porque historicamente a mulher foi preterida. O homem de hoje,
equiparado pela Constituição à mulher, não pode arcar com o ônus de seus antepassados.
Não se pode fundamentar o maior rigor da punição do indivíduo que comete crime contra
sua esposa, companheira ou namorada no "histórico de abuso e violência contra as
mulheres". Até mesmo porque a culpa, na sua maior parte, é da ineficiência do Estado.
Sua vergonhosa morosidade e a falta de políticas sociais competentes favorecem a
proliferação de crimes e a sua impunidade. O que se quer fazer, com a Lei Maria da
Penha, é compensar o prejuízo acumulado pelas mulheres. Funciona quase como uma
"indenização" para aquele que, contrariando o princípio constitucional, voltaria a ser o
"sexo frágil" (expressão odiosa e mentirosa que, sempre tão combatida pelas próprias
mulheres, está sendo reavivada pela Lei 11.340/06).
A pena, em um Estado de Direito minimamente organizado, é absolutamente
individual. O indivíduo responde pelo que faz de errado, e a intensidade da pena varia de
acordo com a gravidade de seu desvio. Importa saber o que ele fez, como fez, por que fez,
etc., mas fatores históricos, culturais e sociais, alheios à esfera deresponsabilidade
pessoal acusado, não podem ser invocados para que seja aumentada a intensidade de
seu castigo. O indivíduo não paga pelas injustiças e falhas da sociedade ou do Estado.
Somente pelas suas falhas.
A falha de um homem que agride sua esposa ou companheira é a mesma
daquela observada na conduta da mulher que agride seu marido ou companheiro.
Primeiro, porque é reprovável agredir injustamente qualquer pessoa, independente de
gênero, idade, etc. Segundo, porque, do mesmo modo que se enxerga maior gravidade na
agressão da esposa pelo marido, deve-se reconhecer a especial gravidade da agressão
deste por aquela. Isso, porque o fundamento dessa maior gravidade é exatamente o
mesmo: por violar uma relação em que deveriam prevalecer especiais confiança e
respeito.
Argumenta-se que, embora exista uma igualdade formal perante a lei, a diferença
de tratamento se funda nadesigualdade concreta de força física e poder econômico
costumeiramente existente entre homens e mulheres. Ora, se for esse, realmente, o
fundamento, o tratamento mais severo somente poderia ser aplicado nos casos em que se
verificasse, em concreto, essa disparidade de forças, e não "automaticamente", por se
tratar de réu homem contra vítima mulher. Indo mais além, se a razão para o tratamento
mais severo é a desigualdade concreta de força física e poder econômico, a lei deveria
contemplar as duas hipóteses: a da hipossuficiência da mulher, frente ao marido, e da
eventual hipossuficiência do marido, frente à esposa.
É um erro muito grave justificar a lei a partir das estatísticas. O réu, em um
processo concreto, não quer nem saber se é mais comum a violência doméstica de
homens contra mulheres; se há grande impunidade neste tipo de crime; se historicamente
a mulher foi preterida; se o propósito da lei é estabelecer uma "igualdade material". O que
lhe importa é, somente, a gravidade da sua falha pessoal. Do mesmo modo, um homem
que, em condição dehipossuficiência, seja vítima da agressão de sua companheira (para
citar exemplo concreto, lembre-se do caso amplamente noticiado ocorrido em São Paulo,
em que o homem, idoso e portador de deficiência física, sofria maus tratos pela jovem
esposa), não quer saber se isso é mais raro, ou se o mais frequente é que o homem
agrida a mulher. Como vítima hipossuficiente em uma situação concreta, espera que
sejam dados à agressora os mesmos rigores que ele receberia, se fizesse exatamente o
mesmo contra sua esposa.
Aos defensores da lei, um importante lembrete: ela proporciona notáveis
injustiças referentes a diversas relações familiares. O avô, idoso e fraco, agride a neta,
maior de idade e saudável: aplica-se a Lei Maria da Penha. O mesmo não ocorre se a
neta, maior e saudável, agride o avô, enfermo e indefeso. O pai bate na filha: aplica-se a
lei Maria da Penha. Isso não se aplica à mãe que espanca o filho. O pai agride o casal de
filhos, o menino com seis, a menina com quinze anos de idade: aplica-se a Lei Maria da
Penha somente ao segundo crime, embora o primeiro seja visivelmente mais grave.
O pior argumento possível é o que presume que as agressões realizadas pelos
homens são sempre mais poderosas. A escala de gravidade das lesões corporais
é objetivamente estabelecida pelo Código Penal, independentemente do sexo do agressor
ou da vítima. Conforme o tipo de prejuízo causado pela lesão, ela será classificada como
leve, grave ou gravíssima, seja praticada em ambiente doméstico ou não. Assim, ao
contrário daquilo que se quer incutir na mentalidade da população, a lesão corporal do
homem contra a mulher não é necessariamente mais grave. Depende do resultado
concreto por ela trazido: escoriações, hematomas, pequenos cortes, etc. – leve;
incapacidade para ocupações habituais por mais de trinta dias, debilidade permanente de
membro sentido ou função, etc. – grave; perda de membro, sentido ou função,
deformidade permanente, etc. – gravíssima.
Conclusão: a Lei Maria da Penha viola o Princípio da Isonomia "na ida e na volta":
ao tratar mais severamente o réu, apenas por ser do sexo masculino; e ao proteger menos
intensamente a vítima, somente por ser do sexo masculino. O que se espera do Estado,
para sanar esse lastimável problema, é que a lei seja alterada. Que ela não preveja
tratamento mais rigoroso para os casos em que o homem agride sua esposa, mas, sim,
para os casos em que um réu mais forte física ou economicamente agride ou abusa de
seu parceiro ou parceira hipossuficiente, independentemente dos sexos do ofensor e do
ofendido. Se não for possível verificar essa hipossuficência concretacom segurança, então
não deve existir lei especial nenhuma. Homens e mulheres, sem constatadas condições de
hipossuficiência ou maior vulnerabilidade, devem ser tratados como iguais perante a lei.
Ponto.
Não parece que é o que vai ocorrer. A lei, como já dito, tem um forte
caráter simbólico – de prestação de contas para a sociedade. A começar pelo seu
sugestivo apelido de mulher. Leis simbólicas funcionam como um "cala-boca" dado pelo
Estado. O Estado cria uma lei, sem se importar com falhas, contradições e ineficiências; a
recheia de expressões apelativas e enfeites; a entrega para a sociedade, como um "livro
sagrado" que teria poderes mágicos; mas não atua, concretamente, para atingir os fins que
fundamentam a própria lei criada. É como se a lei bastasse, sem que fosse preciso esforço
de sua parte para solucionar os problemas que a motivaram. Uma prova simples de que o
Estado não se esforça: a Delegacia da mulher, na capital do Espírito Santo, não funciona
nos finais de semana e feriados. Pergunta: quando ocorre a grande maioria dos crimes de
violência doméstica? Há uma lei lotada de promessas e ornamentos, mas a delegacia da
mulher, órgão que daria suporte adequado para a efetivação dos direitos da mulher, não
funciona justamente no período em que os crimes mais acontecem. Só de segunda a
sexta, das oito da manhã às quatro da tarde.
Alguns juízes, incomodados com os absurdos e injustiças apontados, vêm
decidindo pela aplicação da Lei Maria da Penha em certos casos de crimes cometidos por
mulheres contra homens. A postura, embora possa partir de uma boa intenção (isonomia),
é absolutamente inadmissível. O mais importante de todos os princípios de um Estado de
Direito é o da Legalidade. Ele limita o poder punitivo do Estado aos casos expressa e
claramente previstos em lei. Com isso, gera segurança e estabilidade jurídica, protegendo
o cidadão contra as arbitrariedades e "surpresas" do poder púbico. Se não há previsão em
lei para a aplicação da Lei Maria da Penha em casos de crimes cometidos por mulheres
contra homens, nenhum julgador está autorizado a empregá-la. Por mais que isso soe
justo. Não se pode abrir mão daquela que é a mais importante conquista política do ser
humano, enquanto ser livre e digno, obtida, historicamente, às custas de muitas
perseguições e sofrimentos.
O problema não pode ser satisfatoriamente solucionado pelo Poder Judiciário.
Este, no máximo, pode afastar por completo a incidência da lei, por meio da declaração da
sua visível inconstitucionalidade. Compete ao Poder Legislativo providenciar as alterações
que venham a adequar o texto legal à Constituição e a garantir a chamadaigualdade
material, por meio de normas que protejam, independentemente do gênero, as pessoas
mais vulneráveis e hipossuficientes nas relações domésticas e familiares.
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