Os grandes desafios do mundo e da igreja católica no final do século XX Luiz Eduardo W. Wanderley* Refletir sobre os grandes desafios da Igreja Católica (IC) e do mundo, no final do século XX, é tarefa gigantesca e instigante. O foco recairá nas aproximações e tensões. No plano mundial, constatou-se uma distância entre ricos e pobres, as mudanças na divisão social do trabalho, o peso do império norte-americano, a especulação financeira, a violência, a miséria. Houve avanços tecnológicos positivos e a construção de uma sociedade civil mundial. No plano da IC, elementos derivados de certos riscos históricos desafiadores que a tentaram e impediram o cumprimento de sua missão, e que afetaram também outras religiões mundiais; dentre outros, saliento o fundamentalismo, o integrismo, a cristandade, a perda do profetismo. Em nome de uma tradição nem sempre bem compreendida, para manter sua influência nas sociedades em que ela esteve inserida, ela se opôs à separação Igreja e Estado-Nação, ao advento da modernidade, à plena emancipação da mulher, às mudanças democratizadoras da sua organização interna. Depois de muito tempo, ela acabou incorporando as transformações externas mas sofrendo o desgaste da sua postura anterior, e alguns setores seus permanecem atados às concepções e formas do passado. Uma grande questão sempre presente é o das relações entre ela e o mundo secularizado. No âmago, os problemas: do poder, de ser aceita em cada Estado-Nação como uma instituição autônoma, de querer manter certos privilégios históricos, de influir na vida política, de assegurar a existência do Estado do Vaticano com sua representação oficial pelas Nunciaturas. A tentação de colonizar a vida civil está presente em círculos importantes do centro romano até em dioceses de todo o mundo, e é preciso um imenso cuidado para não fazer do projeto Evangelização do Novo Milênio mais uma tentativa de neocristandade, ainda que não esteja explícita nas palavras e nas ações. Por outro lado, setores lúcidos conseguem articular fé e política, de modo a colocar a religião a serviço de todos, principalmente minorias abandonadas e massas excluídas. Outra questão fundamental é o do papel de segmentos expressivos do catolicismo mundial e nacional no relacionamento com os modelos de desenvolvimento vigentes neste período. Neste ponto, não se pode esquecer que os católicos, muitos deles formados em escolas católicas, fazem parte das elites e classes dominantes que, tanto nos países ricos quanto nos demais, defendem a globalização dirigida pelos ricos, que se faz subordinada e assimétrica nos países subdesenvolvidos, impondo o neoliberalismo e os ajustes estruturais (ausência do Estado nas políticas sociais, privatizações de empresas públicas, domínio dos conglomerados multinacionais e do capital financeiro, imposição das regras do Banco Mundial e do FMI etc.). E ignoram suas conseqüências perversas em todo o Planeta, expressas na pobreza absoluta e relativa, no desemprego estrutural, na desqualificação e provisoriedade do trabalho, na exclusão social. Aqui se põe um paradoxo, pois se as maiorias católicas empobrecidas contestam este estado de coisas, se as autoridades religiosas e membros do Povo de Deus ora fazem pregações contra esta situação (por exemplo, proclamando a necessidade do perdão da dívida externa, reivindicando reformas estruturais etc.) e ora se organizam para denunciar e apresentar alternativas que rompam com essa realidade, os setores dominantes – até invocando em seu favor aspectos do cristianismo – persistem em suas posições. Outro problema está em como fazer com que esta Igreja permaneça no seu engajamento, extremamente positivo, em prol dos direitos humanos e das lutas pela justiça social, por meio das pastorais populares, das campanhas da fraternidade, de documentos críticos de análise das conjunturas, do resgate das dívidas sociais, da atuação em partidos políticos, movimentos sociais, associações profissionais, organizações não-governamentais e mesmo dentro dos organismos governamentais. O risco é o dela privilegiar movimentos de origem no exterior que, em nome da fidelidade estritamente espiritual, e que adquirem popularidade numa conjuntura atual de grandes incertezas existenciais e políticas e de extremado individualismo, perca esse compromisso social mais efetivo. No plano do diálogo e convivência harmoniosa com as outras religiões mundiais, surgiram tensões. Pode-se destacar: com aquelas de grande crescimento numérico no globo (como o islamismo); com outras (como algumas pentecostais protestantes) de perfil agressivo na conquista de adeptos e de ataques contundentes à vivência histórica do catolicismo e ao prestígio ainda prevalecente da Católica em muitas sociedades no caso da América Latina; com aquelas que atingem principalmente, mas não só, setores populares e que abrigam um sincretismo e servem de trânsito religioso (como as de origem afro-brasileira); e mesmo com as protestantes clássicas, com quem ela estabeleceu conflitos enormes no passado, e com seqüelas até os dias de hoje. A extrema dificuldade é a de como guardar a sua identidade sem se posicionar como a única dona da verdade. O fato da publicação da Dominus Jesus pela Cúria Romana, argumentando que a Igreja Católica é a única realmente verdadeira e completa, segundo a sua versão da tradição cristã, além de não expressar o sentimento de vastos contingentes católicos trouxe velhos ressentimentos e colocou sérios obstáculos ao entendimento. Se nas esferas oficiais, o ecumenismo cristão não avançou muito, foi nas práticas de ações conjuntas e na convivência nas comunidades (como nas CEBs) que ele vem frutificando. No Brasil, no plano do chamado macroecumenismo tem havido atritos reiterados e aproximações promissoras. Por fim, o desafio da democratização interna da instituição eclesial, revendo as funções papais, fortalecendo as conferências episcopais, assegurando a autonomia da igreja particular. Resguardando o papel específico dos leigos e mudando posições anacrônicas sobre a presença da mulher nas instâncias decisórias. Página síntese Grandes foram os desafios da humanidade no final do século XX. Por um lado, a globalização que reúne os ricos e separa os pobres, que endeusa a economia de cassino, que retira poderes do Estado-Nação, que obriga as sociedades a seguirem os ditames do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Por outro lado, as teses neoliberais que, em nome da estabilidade monetária e fiscal, trouxeram os ajustes estruturais, as privatizações, a defesa do Estado mínimo e conseqüente diminuição de sua presença no desenvolvimento e nas políticas sociais. Como efeitos perversos deste quadro, o aumento do desemprego estrutural, da especulação financeira, das quebras nos países que seguiram as regras do Consenso de Washington, da miséria absoluta e relativa, da exclusão social, da violência. Como dados positivos, os avanços tecnológicos, as facilidades de transporte e comunicação, o surgimento de outras formas de cidadania e de representação política (conselhos, organizações não-governamentais etc.) que estão construindo uma sociedade civil cosmopolista. A Igreja Católica se inseriu neste universo, com seus dilemas clássicos e virtualidades. De uma parte, com uma certa “involução eclesial” dada por posições retrógradas da Cúria Romana (nomeação de bispos pelo único critério de explícita obediência ao Papa e não pela diversificação de experiências, combate aos meios conceptivos, volta a uma espiritualidade desencarnada, recusa a um ecumenismo em igualdade de condições, acento na teologia tradicional e perseguição aos teólogos inovadores, entre outros). De outra parte, declarações e denúncias de situações de injustiça e desigualdade em todos os países, visitas do Papa a lugares históricos abrindo janelas, continuidade de ações de caridade para os marginalizados de toda a sorte, organização de pastorais populares em defesa dos direitos humanos, das crianças, dos aidéticos, dos sem-terra e sem-teto, e muita coisa mais. Dentre tantos desafios, vale ressaltar o da necessidade de democratização efetiva da instituição eclesial, superando a centralização excessiva no papado, revigorando as conferências episcopais, fortalecendo a posição do laicato e principalmente da mulher nas instâncias decisórias. E de manter o seu engajamento social concreto em prol da transformação dos sistemas e dominações opressoras, colocando-se a serviço das maiorias pobres do Planeta. [*Luiz Eduardo W. Wanderley: ex-reitor da PUC de São Paulo, sociólogo e professor universitário na mesma universidade, membro das ONGs CESEP e Ação Educativa].