UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
LUIZ EDUARDO LOPES SILVA
PARA UMA CRÍTICA DO PROIBICIONISMO: A “Rua da Lama” e o
tráfico territorializado na cidade de Pinheiro
São Luís
2014
LUIZ EDUARDO LOPES SILVA
PARA UMA CRÍTICA DO PROIBICIONISMO: a “Rua da Lama” e o
tráfico territorializado na cidade de Pinheiro
Dissertação
apresentada
ao
Programa de Pós-Graduação em
História Social, da Universidade
Federal do Maranhão para a
obtenção do título de Mestre em
História.
Aprovada em: ______/______/______
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Profª. Drª. Isabel Ibarra Cabrera (Orientadora)
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
_____________________________________________________
Prof. Dr. Samarone Carvalho Marinho (membro externo)
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
_____________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Guida Navarro (membro interno)
Universidade Federal do Maranhão – UFMA
Silva, Luiz Eduardo Lopes
PARA UMA CRÍTICA DO PROIBICIONISMO: A “Rua da
Lama” e o tráfico territorializado na cidade de Pinheiro/Luiz
Eduardo Lopes Silva. – São Luís, 2014.
139 f.
Orientadora: Isabel Ibarra Cabrera. Dissertação (Mestrado)
– Universidade Federal do Maranhão, Programa de PósGraduação em História Social, 2014.
1. Drogas – Paradigma Proibicionista – Aspectos históricos
2. Tráfico territorializado 3. Pinheiro – MA. I Título
CDU 930.85: 613.83
Aos meus pais, meus irmãos e
todos àqueles que zelaram pelo
meu sono no momento em que
mais precisei. Especialmente meu
tio Carlinho e meus primos Wener
e Thiago. Mesmo as noites mais
sombrias têm seu alvorecer.
AGRADECIMENTOS
No ano de 2004 quando tinha apenas 16 anos fui alvejado por
uma bala perdida numa briga entre traficantes rivais no bairro do
Maiobão, onde nasci e fui criado, juntamente com a maior parte da
minha grande família. Depois de quase um mês na UTI e meses no
hospital, por alguma razão eu sobrevivi e justamente quando completa
10 anos do acontecido: 2014, consigo alcançar, com grande satisfação,
algumas conquistas importantes na minha vida, dentre elas, concluir
minha dissertação de mestrado. Gostaria de agradecer aqui a algumas
pessoas que me ajudaram nessa tarefa titânica.
Primeiramente à minha família nuclear: meu pai Inácio, minha
mãe Áurea, e meus irmãos Danilo e Dayane, pela ajuda, carinho e
paciência imensuráveis durante toda a minha trajetória. Sem o cuidado
de vocês eu viveria numa escuridão de solidão e chatice que me é
peculiar, como vocês sabem melhor do que ninguém.
Agradeço também a grande família Lopes, meus tios, minhas tias,
primos e primas, mas especialmente ao meu avô Benedito Lopes (Seu
Nhô Bom) e minha vó Maria Raimunda (Dona Diquinha), que apesar
das dificuldades saíram do seu interior onde a vida era farta para se
aventurar na mesquinhez da cidade grande com a finalidade de colocar
seus filhos para estudar, tarefa difícil que, agora, na terceira geração da
família (netos), seu ato de coragem dá frutos destacados, dos quais
agora me somo a sua neta Marcelle, minha prima, primeira e até então
única pessoa da família a conseguir o título de Mestre. Prima querida
que para mim sempre foi fonte de inspiração e orgulho e com quem eu
guardo várias afinidades, pois ambos escolhemos os descaminhos da
História!
À professora Isabel Ibarra, minha orientadora que me auxiliou
nessa difícil caminhada, construindo um ambiente de liberdade onde é
possível debater e fazer florescer o conhecimento. Ao seu esposo Rickley
Marques pelo incansável incentivo. Tive a sorte de encontrá-los na
caminhada tortuosa da minha vida.
Agradeço aos professores Dr. Samarone Marinho e Dr. Alexandre
Navarro, pela acessibilidade e por terem aceitado o convite para compor
a banca.
Quero agradecer também aos meus amigos queridos: Vinícius,
Saulo, Thiago, Rodolfo, Glauber, Arnaldo, Acrísio, Hugo e Adriano. Com
quem eu guardo além de um imenso carinho recíproco, uma confiança
teórica, política e poética que ajuda a tornar os ares dessa sociedade
desigual e tacanha menos irrespirável! Minha dívida intelectual com
vocês é imensa! Vocês são as minhas bússolas teóricas nesse mundo de
incertezas! As linhas que se seguem são compostas por inúmeros
pequeninos pedaços de seus espíritos.
Aos meus camaradas do GEMMARX, grupo 04, Acrísio, Marcelo,
Simon, Glaucia, Tauan, Talita, Davi, Márcia, Lucas Fontelles e a Nádia
pela arte da capa, bem como aos outros que de maneira mais
intermitente se arriscam na difícil tarefa de desvendar a obra do nosso
querido Velho Barbudo.
Aos meus amigos e minhas eternas paixões, com quem comungo
verdades existenciais desde a adolescência, fase mais feliz de minha
vida: Letícia, Marcella, Thiago, Rodolfo e Thaís. No entardecer de nossa
caminhada já vai ai alguns anos, “é chato chegar a um objetivo num
instante”.
Aos meus colegas de mestrado, especialmente Felipe Ucijara e
Patrícia Kauffmann, amigos que vieram para ficar, com quem desfrutei
os melhores momentos desses últimos dois anos.
A todos aqueles que aceitaram, gentilmente, participar desta
pesquisa.
Ao meu tio Gilson, ao meu primo Osvaldinho, ao meu primo
Adeílson, todos assassinados barbaramente no ano de 2011, e a todas
as famílias que perderam entes queridos, vítimas da guerra civil
brasileira que acumula 50 mil cadáveres a cada ano.
Seis litros de sangue derramados
por corpo, 300 mil litros anuais
formam o nosso mar morto! Que
evapora, condensa e vira chuva
ácida e no solo germina raiva
incurável pra antirrábica. Cresceu
um pântano em reação desse
desastre não-natural, e do casulo
surgiu uma espécie, em meio ao
lamaçal... (Letra da banda de Rap
Facção Central).
Todos
os
excessos
perniciosos, inclusive os
abstinência (Voltaire).
são
da
RESUMO
O trabalho que aqui apresento se propõe a fazer um exame crítico
daquilo que, a partir da leitura dos estudiosos do tema, conceituamos
de paradigma proibicionista das drogas. Que se caracteriza em tratar o
consumo, a produção, a distribuição e a circulação de determinadas
substâncias psicoativas como um crime, passível de ser punido
severamente. Essa política foi impulsionada em nível global pelos
Estados Unidos da América, nação que exportou seu modelo repressivo
às demais nações mundo afora. Contudo, em nossa análise, o
paradigma proibicionista, não é uma medida que visa proteger a saúde
pública dos efeitos perniciosos das drogas, pois na mesma medida em
que pune severamente algumas substâncias, demonstra tolerância
excessiva com outras. Assim, concluímos que o paradigma proibicionista
visa criminalizar grupos sociais e povos que estejam (ou pareçam estar)
associados ao consumo de determinadas substâncias proibidas. Assim,
ao mesmo tempo em que produz uma série de foras da lei, produz
também um mercado lucrativo e violento, ao qual analisamos um de
seus tipos mais nefastos – o tráfico territorializado -, com auxílio de
depoimentos orais de usuários, policiais e moradores do bairro Floresta,
na chamada “Rua da Lama” na cidade de Pinheiro, Baixada
Maranhense.
Palavras-chave: Paradigma proibicionista. Tráfico territorializado. “Rua
da Lama”. Pinheiro.
ABSTRACT
The work we present here proposes to make a critical examination of
what, from the reading of the scholars of the topic, we conceptualize as
the prohibitionist paradigm of the drugs. Characterized by treat the
consumption, production, distribution and circulation of certain
psychoactive substances as a crime that shall be punished severely.
This policy was driven globally by the United States of America, the
nation that exported its repressive model to other nations around the
world. However, in our analysis, the prohibitionist paradigm is not a
measure to protect the public health from the harmful effects of drugs,
because at the same time that severely punishes some substances,
shows excessive tolerances, with others. Thus we conclude that, the
prohibitionist paradigm, aims to criminalize social groups and people
who are (or appear to be) associated with the consumption of certain
prohibited substances. Therefore, while it produces a number of
outlaws, also produces a lucrative and violent market, which we analyze
one of their more nefarious types, aided by oral testimony from users,
policemen and residents of the neighborhood where exists the
territorialized trafficking on the street called "Rua da Lama" in the city
of Pinheiro in Baixada Maranhense.
Keywords: Prohibitionist paradigm, territorialized trafficking, "Rua da
Lama" street, Pinheiro.
RESUMÉ
Le travail qu’ici on présente se donne à faire un examen critique de ce
que, a parti de la lecture des specialistes du thème, nous conceptuons
de paradigme intervencionniste des drogues. Qui se caracterise en
traiter la consommation, la production, le distribution et la circulation
de determinées substancies psicoatives comme un crime, passible de
être punible sévèrement. Cette politique a été impulsioné au niveau
global par les États-Unis de l’Amerique, nation qui a exporté son modèle
repressif au plus autres nations au monde entier. Pourtant, à nos
analyse le paradigme intervencionniste, n’est pas une action que vise la
protection de la santé publique des effets pernicieux des drogues, donc
le même effets qui sont puni sévèrement quelques substancies,
remarquent des tolérances excessives avec d’autres. Ainsi nous
conclusion que, le paradigme intervencionniste vise criminalizer des
groupes sociaux et peuples qui étaient (ou qui se semblaient) associés à
consommation de determinées substancies interdites. Ainsi, au même
temps ce que le produit une serie de dehors de la loi, produit aussi un
marché lucratif et violent, auquel nous analisons un de ses type plus
dangereux, avec aide des depoiments oral de personnes que l’utilise,
policiers et des personnes qui habitent proche au quartier où il y a des
tráffic au champs dans l’appellé « Rua da Lama » à la ville de Pinheiro,
dans la provence Maranhense.
Mots-clé : Paradigme intervencionniste. Tráffic au champs. « Rua da
lama ». Pinheiro
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – ocupações desordenadas a partir de aterramentos de
planície de inundação do rio Pericumã em Pinheiro ...........................84
FIGURA 2 – ocupações desordenadas a partir de aterramentos de
planície de inundação em Pinheiro.....................................................85
FIGURA 3 – Localização da Rua Agostinho Ramalho, conhecida como
“Rua da Lama” no bairro da Floresta..................................................86
FIGURA 4 – Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”)........................87
FIGURA 5 – Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”) em 2012 .........88
FIGURA 6 – Esquina da Rua João Batista Soares com a Rua Agostinho
Ramalho (“Rua da Lama”) em 2012.....................................................88
FIGURA 7 – Rua João Batista Soares, Bairro Floresta.........................89
FIGURA 8 – Rua João Batista Soares, Bairro Floresta.........................89
FIGURA 9 - Terreno para vender na “Rua da Lama”..........................100
FIGURA 10 - Ponte sobre o rio Pericumã...........................................138
FIGURA 11 – Ponte sobre o rio Pericumã e o campo alagado.............138
FIGURA 12 – Planície alagada (campo)..............................................139
FIGURA 13 – Extração de material no Outeiro do Finca, Pinheiro, para
atendimento da demanda de aterramentos.......................................139
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS ..........................................................................12
1. INTRODUÇÃO ...............................................................................14
2. NOTAS METODOLÓGICAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE FONTES
ORAIS: história do presente, história oral e situações de
violência.......................................................................................20
2.1 A consolidação da história como ciência e a consagração do
passado e do documento escrito.................................................20
2.2 A história do tempo presente................................................21
2.3 Diferentes usos da História Oral...........................................22
2.4 Desafios metodológicos para história oral: o testemunho
sobre situações de violência........................................................27
3. O CONSUMO DE PSICOATIVOS: dos usos históricos à
consolidação da política proibicionista ...........................................38
3.1
3.2
Psicoativos: dos diferentes usos a proibição ................46
A Política proibicionista das drogas: um paradigma no
século XX........................................................................56
4. DESDOBRAMENTO DA POLÍTICA PROIBICIONISTA: A “Rua da
Lama” e a territorialização do tráfico na cidade de Pinheiro..........80
4.1 A “Rua da Lama”: Violência, repressão e tráfico no
contexto social de moradores, usuários e policiais ...............84
4.1.1 Tipologias do tráfico: O tráfico territorializado ..................93
4.2 A dinâmica do tráfico em Pinheiro ...............................102
4.2.1 Diferenciação entre traficantes e usuários por parte da
polícia ....................................................................................119
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................123
REFERÊNCIAS ................................................................................127
APÊNDICES ....................................................................................133
ANEXOS...........................................................................................137
14
1 INTRODUÇÃO
O trabalho que aqui apresentamos intitulado “Para uma crítica do
Proibicionismo: A ‘Rua da Lama’ e o tráfico territorializado na cidade de
Pinheiro” é resultado de um percurso de investigação de temas
relacionados à violência urbana desde a época da graduação no curso
de Licenciatura em História da Universidade Federal do Maranhão,
quando tive oportunidade de abordar no trabalho monográfico o
discurso midiático em torno dessa problemática na capital maranhense,
com o trabalho intitulado: “Do Crime ao Escárnio: o circo dos horrores
levanta a tenda em São Luís”, onde analisei como o discurso midiático,
presente em alguns jornais impressos, influencia as políticas de
segurança e tendem a criminalizar determinados sujeitos sociais e
determinados bairros da capital do nosso estado.
Na esteira dessa empreitada o trabalho que aqui se apresenta visa
abordar um aspecto ainda mais complexo dentro do amplo debate da
violência urbana, que é a questão do tráfico de drogas, hoje encarado de
maneira multidisciplinar em todo Brasil. Este trabalho pretende
investigar os efeitos da política proibicionista das drogas e sua relação
com a violência e com tráfico territorializado no contexto social de
usuários e de agentes da repressão (especialmente policiais da Polícia
Militar do Maranhão), na cidade de Pinheiro. Por proibicionismo ou
política proibicionista1, entendemos que:
Antes de ser uma doutrina legal para tratar a ‘questão das
drogas’ o proibicionismo é uma prática moral e política que
defende que o Estado deve, por meio de leis próprias, proibir
determinadas substâncias e reprimir seu consumo e sua
comercialização (RODRIGUES, 2008, p. 91).
Para levarmos a cabo tal análise, dividimos o trabalho em alguns
momentos de análise que estão interligados. Logo após a introdução, no
ponto dois discutiremos as especificidades das nossas fontes e do nosso
recorte temporal e das características específicas da nossa abordagem
Com o mesmo significado destes conceitos, utilizamos também ao longo do trabalho
os termos paradigma proibicionista, ou políticas proibitivas.
1
15
no campo da história do tempo presente e da História oral. No ponto três
nos preocupamos com a contextualização histórica da emergência dessa
política,
isto
é,
as
características
dos
consumos
históricos
de
psicoativos que a partir do século XX passa a ser alvo de várias políticas
proibitivas a níveis globais, encabeçadas pelos EUA, que impõe aquilo
que caracterizamos de paradigma proibicionista das drogas. Para
delinear os principais pontos dessa problemática, nos embasamos na
leitura de autores como: Xiberras (1989); Araújo (2012); Rodrigues
(2008); Escohotado (1996; 1997); Carneiro (1994; 2005); Iversen (2012);
Bucher (1996); Ribeiro; Seibel (1997), dentre outros, que serviram de
subsídio teórico para a elaboração da crítica ao paradigma proibicionista
que empreendemos no ponto três. A partir desse amplo debate,
entendemos que um dos argumentos centrais do proibicionismo é
encarar o uso de psicoativos como uma epidemia moderna. No intuito
de problematizar essa argumentação e demonstrar que ela é carente de
fundamentos históricos, inicialmente discorremos de maneira breve,
como várias substâncias que hoje são proibidas, são consumidas pela
humanidade há milênios, como é o caso da maconha, do álcool (que foi
proibido durante quase duas décadas nos EUA), do ópio e da folha da
coca (que não é exatamente proibida, mas seu plantio sofre repressão e
vigilância principalmente por parte dos EUA). A intenção não é fazer
uma análise exaustiva devido à grandiosidade desse processo, cujo
recorte temporal seria próximo de 10 mil anos, tampouco naturalizar os
usos dos psicoativos, pois entendemos que os diferentes significados de
seus usos são de caráter histórico e, portanto, cada época traz consigo
inúmeras especificidades, bem como algumas das próprias substâncias
mudam ao longo do tempo com o avanço do conhecimento no campo da
química e de outras áreas.
Ao identificar o uso histórico de determinadas substâncias
queremos apontar que as mesmas também são identificadas com
alguns povos que culturalmente desenvolveram o hábito de utilizá-las,
como o cultivo da folha da coca nos países andinos, que serve de
matéria-prima para a fabricação da cocaína, e por isso é alvo das ações
16
globais do imperialismo norte-americano. O mesmo acontece com o ópio
no sudeste asiático. Se ignorarmos o fato de determinadas substâncias
estarem historicamente ligadas a alguns povos e culturas, ignoraremos
também o fato de que a tal “guerra às drogas” não se trava contra uma
coisa inerte como são substâncias químicas, mas contra pessoas de
carne e osso que na maioria das vezes, tem uma identidade cultural
bem específica. Além dos grupos que historicamente estão ligados ao
consumo de determinadas substâncias, existem ainda aqueles que, ao
fazerem usos moderados de algumas substâncias, passam a ser
identificados com elas de maneira estigmatizante e passam a ser
representados como grupos perigosos, degenerados física e moralmente:
Desse modo, era recorrente, nas primeiras décadas
XX, entre grupos proibicionistas, na mídia e nos
governamentais nos Estados Unidos, a associação
negros à cocaína, hispânicos à maconha, irlandeses
chineses ao ópio (RODRIGUES, 2008, p. 95).
do século
discursos
direta de
ao álcool,
Deste modo, tentamos demonstrar a natureza política do
proibicionismo, que longe de ser uma política de defesa à saúde
pública, “revelam igualmente desorientação na forma brutal como
resolvem autorizar determinadas formas de intoxicação, com exclusão
dos restantes” (XIBERRAS, 1989, p. 14), se caracterizando, portanto
como uma política de opressão de classe e de criminalização de povos:
Proibicionismo é uma estratégia plena de potencialidades em
termos de controle social e criminalização de parcelas da
população que já deveriam ser (e eram) controladas pelo ‘bem
comum’ e em nome ‘da paz civil’. Em outras palavras, o
Proibicionismo, desde seus primeiros momentos iniciais, entre
as décadas de 1910 e 1930, foi um ‘fracasso’ se levarmos em
conta seus objetivos declarados, mas nem por isso deixou de
ser expandido (RODRIGUES, 2008, p. 94-95).
Por fim, buscamos entender como essa política é incorporada pela
maioria dos países, principalmente pelo Brasil, analisando os efeitos
perversos causados por essa “guerra às drogas”, como é o caso do
aumento da violência e do encarceramento em massa, lógica que o
Maranhão, infelizmente, não ficou de fora.
Entender como se consolidou o paradigma proibicionista nos
serve para pensar como surgiu o tráfico de drogas, já que: “o
proibicionismo estabelece um novo crime e um novo mercado; as
17
normas proibicionistas, antes de banir as drogas visadas, acabam por
inventar o narcotráfico” (RODRIGUES, 2008, p. 94).
Isto posto, partimos a outro momento da análise. No ponto
quatro, o foco central é o tráfico territorializado na “Rua da Lama”
(localizada no Bairro da Floresta, na cidade de Pinheiro, Baixada
Maranhense), cujo nome oficial é Rua Agostinho Ramalho, que ganhou
essa alcunha por sua infraestrutura precária e por ser uma localidade
onde a criminalidade, sobretudo o tráfico de drogas, segundo as
autoridades policiais2, é muito grande. Um espaço da cidade de baixa
renda e de outros problemas sociais, onde, o próprio léxico já tratou de
demarcar fronteiras materiais e simbólicas bem claras. Dessa forma,
buscamos demonstrar brevemente que a “Rua da Lama” é resultado de
um processo de urbanização capitalista caótico, num contexto onde
inexistem políticas públicas para atender a grande massa da população
migrante que busca nas cidades maiores da região da Baixada
Maranhense, como é o caso de Pinheiro, melhores condições de vida. Ao
se instalarem nessas cidades essa população pobre migrante tende,
pelo seu baixo poder aquisitivo, a ocupar áreas onde é ausente qualquer
infraestrutura urbana, ocupando assim as margens do Rio Pericumã e
dos seus campos alagados. É nesse contexto de pobreza e de
precariedade que o tráfico territorializado se desenvolveu.
Para analisar a questão do tráfico territorializado, utilizamos a
noção de territorialidade em rede ou descontínua do tráfico de Souza
(1995; 2012). Em relação as especificidades desse tipo de tráfico
também dialogamos com as pesquisas de Soares (2000; 2005 et. al;
2006 et. al; 2010). Sobre a polêmica em torno do consumo de crack,
utilizamos
principalmente
os
estudos
multidisciplinares
de
pesquisadores da PUC de Minas Gerais, organizado por Medeiros e
Sapori (2010) e o estudo da Universidade Federal de Juiz de Fora,
organizado por Ronzani (2013).
2Informações
levantadas junto ao 10° Batalhão da Polícia Militar do Maranhão
localizado na cidade de Pinheiro.
18
Dessa forma, nossa investigação centra-se na questão da política
proibicionista das drogas e como ela funciona como produtora
3
de
violência em relação a todos aqueles que de alguma maneira estão
ligados ao universo das drogas ilícitas: usuários, traficantes, policiais e
moradores dessas localidades onde o comércio e o consumo de drogas
ilícitas se fazem presentes no cotidiano, uma vez que o tráfico
territorializado, conforme veremos, é uma modalidade de tráfico ainda
mais violenta, pois se caracteriza, pela apropriação de determinados
espaços por parte dos traficantes, onde passam a exercer um controle
sobre este espaço que eles se apropriaram e das pessoas que ali
residem e que por ali transitam.
No ponto quatro, ao trazermos à baila a visão de usuários,
moradores e policiais, queremos trazer a tona as diferentes visões e
contradições existentes sobre o processo. O que nos enseja a
problematizar os diferentes tipos de estigmas sociais direcionados a
usuários de drogas, que, conforme veremos, para polícia pinheirense os
usuários são sempre vistos como um criminoso em potencial, e o
estigma direcionado a pessoas que moram nesses bairros onde há
tráfico territorializado, que tendem a ser identificados como potenciais
traficantes ou colaboradores do tráfico. Todo esse amálgama de
representações presentes nos relatos será analisado mais detidamente
no último capítulo.
Como a maioria das nossas fontes orais se remetem ao período
entre 2005 e 2011 (sobretudo os usuários e ex-usuários de drogas),
período que compreende também, um fenômeno importante para a
nossa pesquisa que é a transição da merla para o crack como uma das
drogas ilícitas mais consumidas no Maranhão e em Pinheiro, ponto
importante da nossa análise no ponto quatro. Bem como as estatísticas
sobre violência como índices de homicídios por arma de fogo e volume
de apreensões de drogas disponíveis para analisarmos se concentram a
3A
nossa principal referência teórica para entender esse processo de produção da
violência e da delinquência é Foucault (2009; 2012), segundo a precisa assertiva de
que as relações de poder não simplesmente dizem “não”, não apenas reprimem, mas
produzem: “De fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios de objetos e
rituais de verdade” (MACHADO, 2012, p. 20).
19
maioria nesse período, no que se refere a realidade maranhense ou
especificamente da cidade de Pinheiro. Esse é o recorte temporal central
da nossa pesquisa. Ainda que possamos ora ou outra nos remeter a
outros períodos, sobretudo a períodos mais antigos, isso se deve porque
o tráfico territorializado na “Rua da Lama”, apesar de não ter sido
possível precisá-lo remonta pelo menos ao início dos anos 1990.
Para
analisarmos
esse
período
lançamos
mãos,
como
procedimento metodológicos, de entrevistas realizadas com policiais da
cidade de Pinheiro (sobretudo PMs, mas não exclusivamente), usuários
e ex-usuários de drogas ilícitas, e moradores do bairro Floresta,
portanto, pelo recorte temporal e pelo caráter das fontes, a nossa
pesquisa se insere no campo da história oral e da história do tempo
presente, cujos especificidades teórico-metodológicas serão tratadas no
ponto seguinte.
20
2 NOTAS METODOLÓGICAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE FONTES
ORAIS: história do presente, história oral e situações de violência
2.1 A consolidação da história como ciência e a consagração do
passado e do documento escrito
A utilização de fontes orais no campo da historiografia é um
expediente que aqueles que trabalham com a pesquisa histórica lançam
mão desde a antiguidade, no entanto, com a profissionalização e
especialização ocorrida no séc. XIX, os historiadores no afã de se
imporem como uma casta de especialistas que gozam de estatuto
científico relegaram o trabalho de pesquisa com as fontes orais e
juntamente com ele a pesquisa sobre a história de acontecimentos
recentes a um lugar marginalizado:
O desprezo dos historiadores universitários pela história
recente explica também o porquê da desqualificação dos
testemunhos diretos. Esse campo dos estudos históricos
acabou se transformando em monopólio dos historiadores
amadores. A explicação para essa situação deve-se ao fato de
que o período recente não exigia uma farta cultura clássica,
nem o controle dos procedimentos eruditos do método
histórico. Os que se interessavam pelo contemporâneo na
verdade concebiam a pesquisa histórica como um meio de ação
política (FERREIRA, 2002, p. 316).
Com o intuito de se diferenciarem dos “amadores” não eruditos
que empreendiam pesquisas sobre a história do tempo presente, os
historiadores elegeram a fonte escrita o documento por excelência que
poderia levar o historiador a um conhecimento confiável sobre o
passado que ele busca entender. Com isso, fincaram-se dois pilares da
pesquisa historiográfica moderna, o primeiro que identifica o objeto do
historiador com o passado, portanto, concebeu-se que estudar a
história é estudar o passado, de tal maneira que somente em meados do
século
XX
os
historiadores
especialistas
começaram
a
debater
seriamente a possibilidade da pesquisa histórica voltada para o
presente. Nesse processo de valorização das fontes orais e da retomada
dos estudos dos tempos recentes pelos historiadores, observamos dois
marcos importantes, um foi a fundação do “Columbia Oral History
Office, organismo que serviu de modelo para outros centros criados nos
21
anos 50 em bibliotecas e arquivos no Texas, Berkeley e Los Angeles”
(FERREIRA 2002 p. 322) o outro em 1980 com a fundação do “Institut
d’Histoire
du
Temp
Present”
na
França.
O
segundo
pilar
da
historiografia moderna é o que elege o documento escrito como fonte
legítima da história, de tal maneira que apenas muito recentemente
discutiu-se
entre
os
historiadores,
a
possibilidade
de
encarar
seriamente pesquisas históricas que utilizassem fontes não escritas,
sejam elas orais, iconográficas ou quaisquer outras.
Podemos afirmar, com poucas chances de errar, que somente com
a crise paradigmática da década de 70 e, sobretudo 80 que atingiu em
cheio os grandes modelos metodológicos das ciências sociais, que o
estudo da história do presente e, juntamente com ela a utilização das
fontes orais, conseguiram ganhar espaço, ainda que relativo e tenso, no
seio da pesquisa histórica.
2.2 A história do tempo presente
A história do tempo presente começou a ganhar destaque com a
fundação do Institut d’Histoire du Temp Present (IHTP)4 em 1980 na
França,
tendo
como
diretor
o
historiador
François
Bédarida.
Anteriormente à década de 80 a história do tempo presente tinha
dificuldades em se firmar como campo de interesse aos historiadores:
O paradigma estruturalista dominante na história nos anos 6070 também via com desconfiança o estudo dos períodos
recentes. Ancorada em princípios que sustentavam a
necessidade do distanciamento temporal do pesquisador frente
ao seu objeto, ou seja, da visão retrospectiva sobre os
processos históricos cujo desfecho já se conhece (AMADO;
FERREIRA, 2006, p. 23).
No entanto, a partir dos anos 80 começou a ser questionado com
mais ênfase a tese angular da historiografia moderna que identificava o
objeto de estudo da história ao passado, abrindo assim a possibilidade
do estudo do tempo presente. Anteriormente, esse impedimento ao
estudo do presente era baseado na ideia de que os historiadores
4
Instituto de História do Tempo Presente.
22
correriam riscos de serem parciais por terem perdido o distanciamento
temporal necessário, tendo, portanto, sua objetividade afetada. Essa
tese passou a ser questionada, e os aspectos positivos dessa “falta de
distancia temporal” passou a ser encarada de outro modo:
Na história do presente a falta de distância temporal entre o
pesquisador e seu objeto, não é um inconveniente, na prática
pode se revelar como um aspecto importante para melhor
entendimento da realidade estudada (CHARTIER, 2006 p. 216217).
Dessa forma, à medida que se colocava em xeque a questão da
objetividade e da imparcialidade do pesquisador frente seu objeto no
conjunto das ciências sociais, a história do presente foi se consolidando
no campo da historiografia e aos poucos sendo reconhecida a
potencialidade e contribuição de suas análises:
A história do tempo presente contribui particularmente para o
entendimento das relações entre a ação voluntária, a
consciência dos homens e os constrangimentos desconhecidos
que a encerram e a limitam (AMADO & FERREIRA, 2006, p.
24).
Paralelamente ao processo de consolidação da história do tempo
presente como campo de pesquisa da historiografia, ocorreu o processo
de valorização dos testemunhos diretos sobre os fatos históricos que se
investiga. Em meio à “superabundância de fontes” (CHARTIER, 2006, p.
216) a qual se depara o historiador de tempo presente, há também o
diálogo profundo entre história do presente e história oral. A utilização
de fontes orais é um debate que está estreitamente ligado com a
questão da história do presente e essa relação diz respeito a nossa
pesquisa, questão que será tratada a seguir.
2.3 Diferentes usos da História Oral
Não faz muitos anos, o ‘relato’, denominado agora ‘história
oral’, fez seu reaparecimento entre as técnicas de coleta de
material empregadas pelos cientistas sociais com tanto sucesso
que, por muitos deles, foi encarado como ‘a’ técnica por
excelência, e até mesmo a única válida para se contrapor às
quantitativas. Enquanto estas últimas – reduzindo a realidade
social à aridez dos números – pareciam amputá-la dos seus
significados, a primeira encerrava as vivacidades dos sonhos, a
opulência dos detalhes, a quase totalidade dos ângulos que
apresentam todo fato social (QUEIROZ, 1988, p 14).
23
O debate sobre a utilização das fontes orais quando surgem no
campo da pesquisa historiográfica moderna aparece entrelaçado com
outras questões. Primeiramente a história oral foi vista em oposição à
história oficial baseada nos documentos escritos, essa história oficial
representaria a história vista do ângulo dos grupos dominantes, e, por
isso, muitos historiadores pioneiros na pesquisa com história oral viamse com uma missão política a cumprir, qual seja, dar voz aqueles que
foram silenciados pelo autoritarismo excludentes da história baseados
nos documentos escritos produzidos pelas classes dominantes. Esses
historiadores estavam fortemente influenciados pelo contexto das lutas
políticas da década de 1960:
As lutas pelos direitos civis, travadas pelas minorias de negros,
mulheres, imigrantes etc., seriam agora as principais
responsáveis pela afirmação da história oral, que procurava dar
voz aos excluídos, recuperar as trajetórias dos grupos
dominados, tirar do esquecimento o que a história oficial
sufocara durante tanto tempo. A história oral se afirmava,
assim, como instrumento de construção de identidade de
grupos e de transformação social — uma história oral militante
(FERREIRA, 2002, p. 322).
Somente a história oral, na visão desses pesquisadores, seria
capaz de investigar os acontecimentos a partir do ponto de vista dos
oprimidos. Visto que, os documentos escritos, em sua quase totalidade,
são produzidos por instituições que visam promover a dominação
permanente das classes hegemônicas, e por outro lado, somente uma
parcela minoritária de letrados são os que produzem tais documentos, a
massa de analfabetos, portanto, aparece sempre como agente passivo,
coadjuvante nessa história dominada pelos documentos escritos5.
No entanto, esse papel militante da história oral foi duramente
criticado no meio acadêmico, sobretudo entre os próprios historiadores.
Outros pesquisadores contestaram o fato da história oral ser utilizada
somente como meio de pesquisa dos excluídos e passaram à utilizarem
inclusive para o estudo das elites.
Para o debate sobre a relação entre história oral e analfabetismo ver: Vilanova
(1994).
5
24
Para além desse debate sobre uma história oral militante, debate
esse que é um dos que inauguram a entrada da história oral no
universo da pesquisa historiográfica moderna, outras questões se
fizeram presentes com o desenrolar das pesquisas com história oral, é o
caso do debate que coloca as fontes orais como modelo de pesquisa
qualitativa que visa investigar as lacunas deixadas por pesquisas
baseadas
em
grandes
modelos
quantitativos.
Esses
modelos
quantitativos foram um dos obstáculos que dificultou com que a
história oral se firmasse entre os métodos usuais de pesquisa histórica
até a década de 70, tais paradigmas de pesquisa, baseados em métodos
quantitativos, com ênfase nos grandes recortes temporais, fortemente
influenciados pelo estruturalismo, onde as ações dos indivíduos eram
vistos como algo acidental, e o que realmente importava era observar o
comportamento
da
coletividade,
das
estruturas
sociais.
A
predominância dos modelos matemáticos vigorou na historiografia de
meados do século XX:
O grande desenvolvimento das técnicas estatísticas, em fins dos anos
40, relegou para a penumbra relatos orais e histórias de vida, que
pareciam demasiadamente ligadas às influências da psique
individual. A técnica de amostragem com a aplicação de questionário
surgia agora como a maneira mais adequada de se obter dados
inquestionavelmente objetivos (QUEIROZ, 1988, p. 15).
A história oral era vista como demasiadamente subjetivista, os
historiadores tradicionais questionavam qual era a importância da
captura de uma visão idiossincrática e como uma visão parcial de um
individuo
fenômenos
isolado
poderia
históricos?
ajudar
Somente
o
com
historiador
a
a
compreender
guinada
metodológica
inaugurada na década de 70 e 80 a história passou a dar mais peso
para as ações dos indivíduos e com este, a importância de suas
respectivas visões de mundo:
Entretanto, a partir da década de 1980, registraram-se
transformações importantes nos diferentes campos da pesquisa
histórica. Revalorizou-se a análise qualitativa e resgatou-se a
importância das experiências individuais, ou seja, deslocou-se
o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de
posições para as situações vividas, das normas coletivas para
as situações singulares (FERREIRA, 2002, p. 319).
25
A partir dessas mudanças paradigmáticas, em muitas ocasiões
tornou-se necessário lançar mão de um método de pesquisa que
pudesse aferir as angústias, sentimentos, e questões do imaginário que
somente com uma abordagem qualitativa era possível perscrutar.
Passou-se pouco a pouco se perceber, no entanto, que valores e
emoções permaneciam escondidos nos próprios dados
estatísticos, já que as definições das finalidades da pesquisa e
a formulação das perguntas estavam profundamente ligadas à
maneira de pensar e de sentir do pesquisador, o qual
transpunha assim para os dados, de maneira perigosa porque
invisível, sua própria percepção e seus preconceitos (QUEIROZ,
1988, p. 15).
Mesmo com essa virada metodológica os modelos quantitativos
não foram totalmente postos de lados, e, muito menos, significa que o
trabalho
com
as
fontes
orais
excluem
o
trabalho
com
fontes
quantitativas. Vilanova (1994), por exemplo, propõem uma metodologia
que alia análise estatística com utilização de fontes orais:
Mas, para mim, o melhor da estatística, o imprescindível, é
encontrar a pergunta relevante (p. 46). [...] A porcentagem nos
assegura aquilo que é majoritário. Somente a porcentagem. E a
porcentagem da porcentagem nos aproxima de uma estatística
qualitativa fina que estabelece, finalmente, as perguntas
interessantes, porque abarcam o majoritário (VILANOVA, 1994,
p. 52).
Dessa forma, utiliza-se a estatística como técnica auxiliar da
pesquisa com fontes orais. Essa aliança entre estatísticas e fonte orais,
foi um dos procedimentos metodológicos que escolhemos nessa
pesquisa, conforme veremos adiante. Para Villanova (1994), a análise
quantitativa serve para definir qual a pergunta relevante que o
historiador deve fazer aos seus entrevistados, não adianta o historiador
querer empreender uma pesquisa qualitativa com ênfase na visão dos
indivíduos se ele não sabe o que realmente deseja aferir, por isso, a
historiadora afirma que, a análise quantitativa ajuda a delinear os
pontos específicos que somente a investigação qualitativa pode decifrar.
Com isso observamos que é perfeitamente possível aliar a história oral
com outros expedientes de análises. A história oral por si só, bem como
os documentos escritos, não esgotam as possibilidades de investigação,
pelo contrário, é cada dia mais comum que os historiadores trabalhem
26
com
história
oral
complementares.
No
e
ao
mesmo
tempo
ponto
quatro,
aliamos
com
as
outras
fontes
estatísticas
de
apreensões de drogas, com os relatos orais de usuários e ex-usuários
para entendermos o fenômeno de mudança da merla para o crack como
sendo uma das drogas mais consumidas no Maranhão.
Ainda sobre os diferentes usos metodológicos das fontes orais,
Ferreira (2002) argumenta que tem-se usado comumente as fontes orais
a partir de dois enfoques diferentes, um que trabalha com história oral
para cobrir as lacunas de fontes escritas, nesse caso trabalhando com
fontes complementares tal como explicamos acima, e também para o
estudo de grupos cujo outros tipos de fontes são quase inexistentes:
Uma avaliação mais detida do campo do que tem sido chamado
de história oral nos permite detectar duas linhas de trabalho
que, embora não excludentes e entrecruzadas em muitos
casos, revelam abordagens distintas. A primeira delas utiliza a
denominação história oral e trabalha prioritariamente com os
depoimentos orais como instrumentos para preencher as
lacunas deixadas pelas fontes escritas. Essa abordagem tem-se
voltado tanto para os estudos das elites, das políticas públicas
implementadas pelo Estado, como para a recuperação da
trajetória dos grupos excluídos, cujas fontes são especialmente
precárias (FERREIRA, 2002, p. 327).
No
caso
da
pesquisa
no
campo
da
violência
urbana
e
especificamente sobre tráfico de drogas no Maranhão, as fontes oficiais
são escassas e problemáticas como demonstraremos no final do ponto
três, por isso os depoimentos diretos dos agentes envolvidos nessa área
se fazem imprescindíveis.
Outra abordagem relevante no campo da história oral diz respeito
ao estudo das representações e com a relação entre história e memória:
Uma segunda abordagem no campo da história oral é aquela
que privilegia o estudo das representações e atribui um papel
central às relações entre memória e história, buscando realizar
uma discussão mais refinada dos usos políticos do passado.
Nessa vertente a subjetividade e as deformações do depoimento
oral não são vistas como elementos negativos para o uso da
história oral. Conseqüentemente, a elaboração dos roteiros e a
realização das entrevistas não estão essencialmente voltadas
para a checagem das informações e para a apresentação de
elementos que possam se constituir em contraprova, de
maneira a confirmar ou contestar os depoimentos obtidos. As
distorções da memória podem se revelar mais um recurso do
que um problema, já que a veracidade dos depoimentos não é a
preocupação central (FERREIRA, 2002, p. 328).
27
Esses são alguns delineamentos possíveis de como são utilizados
os métodos da história oral. A seguir, faremos uma análise mais detida
de como a história oral e com o foco mais voltado para a abordagem
feita especificamente na nossa pesquisa que trabalha com testemunhos
de pessoas que viveram situações de violência. Por isso, em seguida,
abordaremos questões que diz respeito a sobreviventes de situações
extremas, como guerra, terrorismo de estado, campos de concentração e
violência urbana, dentre outras. A indagação central é: como lhe dar
com testemunhos de vítimas de situações tão delicadas?
2.4 Desafios metodológicos para história oral: o testemunho sobre
situações de violência
Devido ao fato das fontes trabalhadas em nossa pesquisa, sejam
elas orais ou estatísticas, se remeterem ao período entre 2005 e 2011
(sobretudo
os
usuários
e
ex-usuários
de
drogas),
período
que
compreende também, conforme veremos, a transição da merla para o
crack como uma das drogas ilícitas mais consumidas no Maranhão e
em Pinheiro, ponto importante da nossa análise no ponto quatro. Os
levantamentos estatísticos em relação aos índices de violência, como
homicídios por arma de fogo e volume de apreensões de drogas
disponíveis para analisarmos se concentram também a maioria nesse
período, no que se refere a realidade maranhense ou especificamente da
cidade de Pinheiro. Esse é o recorte temporal central da nossa pesquisa.
Ainda que, algumas vezes nos remeteremos a outros períodos, porque o
tráfico territorializado na “Rua da Lama” remonta pelo menos a década
de 1990, apesar de não ter sido possível especificar cronologicamente
sua origem.
A nossa pesquisa se insere no campo da história do tempo
presente, pois “não é uma busca desesperada de almas mortas, mas um
encontro com seres de carne e osso que são contemporâneos daquele
que lhes narra às vidas” (CHARTIER, 2006, p. 215).
A história do tempo presente é um campo de investigação da
historiografia que se consolidou desde a fundação do Instituto de
28
História do Tempo Presente na França (IHTP), nos finais da década de
1970, conforme vimos anteriormente, tendo a sua frente o historiador
François Bédarida, que problematizou questões como a relação da
história com a verdade e a objetividade, argumentando que essas
problemáticas acompanham o historiador independente do recorte
temporal sobre o qual este se ocupe. No entanto, é inegável que a
história do tempo presente possui peculiaridades, pois: “se volta para
uma temporalidade próxima, quente, por vezes efervescente, em
sociedades que se modificam rapidamente, premidas pela aceleração do
presente” (BÉDARIDA, 2006, p. 225). Ainda que no Brasil haja
historiadores resistentes a história do tempo presente sua legitimidade
cada dia é mais difundida no cenário da historiografia como nos lembra
Hobsbawm (1998).
Para analisarmos a dinâmica do tráfico de drogas territorializado
na “Rua da Lama”, que diz respeito à parte mais empírica da nossa
investigação, nos utilizamos dos procedimentos metodológicos da
história oral, onde, a partir de relatos orais de usuários, policiais e
moradores,6
formamos
uma
massa
documental
sobre
a
qual
empreendemos nossa análise:
A história oral, como todas as metodologias, apenas estabelece
e ordena procedimentos de trabalho – tais como os diversos
tipos de entrevistas e as implicações de cada um deles para a
pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de
depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes
maneiras de o historiador relacionar-se com seus entrevistados
e as influências disso sobre seu trabalho -, funcionando como
ponte entre teoria e prática (FERREIRA; AMADO, 2006, p.16).
É desse modo que, a partir de entrevistas estruturadas e semiestruturadas7, com usuários de drogas na cidade de Pinheiro, com
agentes da repressão (sobretudo, policiais da Polícia Militar do
Maranhão), e com moradores do bairro da Floresta onde se localiza a
Demais agentes importantes na questão do tráfico, como é o caso dos traficantes,
não foram entrevistados, aparecem apenas indiretamente a partir das falas dos
usuários, policiais e moradores do bairro da Floresta onde se localiza a Rua da Lama.
7
Ver os roteiros das entrevistas no apêndice. Lembrando que os roteiros de entrevistas
em história oral tem a metodologia diferenciada de questionários fechados. O roteiro
para a história oral serve apenas como uma espécie de guia, com uma lista de temas a
serem abordados. Dessa maneira a entrevista, em alguns casos, pode extrapolar os
limites do roteiro.
6
29
“Rua da Lama”, respondemos algumas das indagações que são centrais
na nossa investigação, que tomaram formas mais amadurecidas a partir
de questionamentos levantados na contextualização do nosso objeto no
ponto três, a saber: como é a sociabilidade nas localidades onde se
localizam os principais pontos de venda da droga que, no caso do nosso
objeto específico, se trata da conhecida “Rua da Lama”? Qual o contexto
social das pessoas que usam drogas frequentemente? Como os policiais
enxergam
usuários
e
traficantes?
Há
diferenças
na
visão
dos
repressores entre esses dois agentes? Quais são as particularidades do
tráfico numa cidade como Pinheiro? Em suma, quais dos aspectos
universais que iremos discorrer ao longo do ponto três, sobre o tráfico e
a política proibicionista, e como elas se articulam para dar forma às
particularidades do nosso objeto de estudo? Essas são as indagações
centrais de nossa investigação.
Podemos afirmar que colher o material para empreender tal
análise foi algo bastante difícil, devido ao tema que é tão delicado e
cheio de nuances. Abordar qualquer problemática ligada à questão da
violência sempre é um grande desafio, do qual, como pesquisador, já
tinha experimentado desde a época da monografia, como já mencionado
anteriormente. Não é em qualquer lugar que achamos, por exemplo,
usuários ou ex-usuários de drogas que estejam dispostos a relatar suas
experiências, sobretudo na frente de uma pessoa desconhecida com um
gravador na mão. As entrevistas com os ex-usuários de droga se fizeram
possíveis
ao
entrarmos
em
contato
com
a
Fazenda
do
Amor
Misericordioso localizada na cidade de Pinheiro, instituição não
governamental, dirigida pelo Padre João Mansino que não dispõem de
recursos públicos e que abriga e oferece tratamento a dependentes
químicos.
Ao fazermos inúmeras visitas desde meados de 2013 ao início de
2014, podemos entrar em contato com usuários e ex-usuários de várias
localidades, mas principalmente de toda Baixada Maranhense, de
Pinheiro e de São Luís. A Fazenda, conta com mais de 55 internos, dos
quais eu conversei com a quase totalidade deles, no entanto,
30
infelizmente, poucos quiseram se ‘expor’ na frente de um gravador.
Ademais, a direção da Fazenda também não via com bons olhos a
gravação das entrevistas, pois, segundo o próprio Padre João Mansino,
uma das estratégias para não afugentar quem quer tratamento é não
indagar pelo seu passado. Ainda assim, as inúmeras conversas não
gravadas foram de valor incomensurável para a compreensão da
problemática da droga e do tráfico não só em Pinheiro como na Baixada
Maranhense. Dos 55 internos, 8 eram da cidade de Pinheiro, aos quais
foi dada atenção especial. Além dos internos existem também os
coordenadores que são ex-internos que depois do tratamento se
ofereceram para auxiliar e/ou coordenar os trabalhos na Fazenda. São
inúmeros, que hora ou outra aparecem por lá para contribuírem com as
atividades desenvolvidas. São chamados “filhos da casa”, e além desses
há 4 coordenadores que moram e trabalham na Fazenda, que também
são “filhos da casa”. Alguns destes coordenadores, devido suas longas
experiências na área, ficaram mais a vontade diante de um gravador e
permitiram que os relatos de sua vivência como usuário fossem
gravados.
Uma instituição como a Fazenda do Amor Misericordioso por si só
seria um belo objeto de estudo, dada sua complexidade enquanto
instituição e a riqueza da experiência daqueles que por ali passam, no
entanto, não é interesse desse estudo, entender a dinâmica desse tipo
de instituição, a qual demandaria outro aparato teórico-metodológico e
uma abordagem diferente da empreendida nesse trabalho. Por conta
disso, não vamos nos prender aqui, por exemplo, em relação à rígida
hierarquia e disciplina que a Fazenda, dirigida por um padre ex-capelão
do exército, mantém junto aos seus internos como forma de tratamento;
Nem ao discurso religioso que orienta suas ações; muito menos ao fato
de que não existe tratamento com remédios na Fazenda, pois o
tratamento para os dependentes químicos tem um enfoque bastante
espiritual, dentre outras coisas. Tudo isso são questões que nos
instigam bastante e que, contudo, deixamos de lado aqui. O que nos
interessa no momento, são os relatos dos ex-usuários, internos e
31
coordenadores, que nos retratam a dinâmica do tráfico, sobretudo na
cidade de Pinheiro.
As entrevistas com policiais do 10º Batalhão foi tarefa, na maioria
das vezes, mais simples do que as entrevistas com ex-usuários, desde a
concepção do projeto de pesquisa para o mestrado em 2011. Nas
primeiras visitas ao Batalhão, os policiais foram bastante receptivos;
tanto os oficiais quanto os praças, foram bastante solícitos em relação
às entrevistas, e falaram sobre diversos temas. A profundidade do
entendimento de alguns policiais sobre a problemática também me
surpreendeu. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, existem
muitos policiais que tem bastante noção dos problemas sociais que
influenciam na questão do tráfico e da violência, o que não quer dizer
que eles também não reproduzam preconceitos recorrentes, como
demonstrarei no ponto quatro, que os policiais tendem a ter uma visão
do usuário de drogas como um potencial delinquente. A existência de
muitos policiais universitários, mesmo entre os praças foi algo que me
ajudou a abrir algumas portas, porque compreendiam, ou pareciam
compreender com certa facilidade, a importância da pesquisa. Obvio
que, infelizmente, o tema a ser abordado nos leva muitas vezes a ter
muito cuidado sobre os tipos de perguntas que podemos fazer e até
onde podemos ir com os questionamentos. Sobre a problemática desse
tipo de relato, voltaremos adiante.
As entrevistas com os moradores foram, sem dúvida, as mais
difíceis, poucas pessoas moradoras do bairro Floresta que tivemos
acesso quiseram gravar entrevistas e infelizmente, nenhuma pessoa
moradora da Rua Agostinho Ramalho conhecida como “Rua da Lama”
permitiu ser entrevistada; o medo, não injustificado, por parte delas,
infelizmente foi uma barreira que não conseguimos transpor, e dessa
forma, demonstra, conforme iremos expor adiante, o terror a qual são
submetidas essas populações que habitam nesses locais de tráfico
territorializado.
Pelo fato de todas as entrevistas abordarem temas delicados,
como violência e tráfico de drogas, os nomes dos entrevistados foram
32
substituídos por nomes fictícios. A única exceção é em relação ao
último tópico do ponto quatro sobre a diferenciação entre usuários e
traficantes por parte das autoridades policiais, onde o delegado regional
de Pinheiro nos deu uma explicação minuciosa sobre aspectos
relevantes para a construção do inquérito policial e como a autoridade
policial faz essa diferenciação. Pela importância do lugar institucional
dessa fala, nós identificamos o entrevistado, porém apenas como
delegado regional de Pinheiro, preservando seu nome.
Como nossa pesquisa lança mão dos procedimentos da história
oral e das problemáticas desta com a história do tempo presente, parecenos pertinente uma reflexão bastante cara desse campo de análise
desde seu nascedouro, visto que todos aqueles que nós entrevistamos
de alguma maneira passaram por experiências onde a violência estava
presente o que nos levou muitas vezes a lembrar do famosíssimo
ensaio de Walter Benjamin: “O Narrador”, onde afirma que “No final da
Guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de
batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável”
(BENJAMIN, 1994, p. 198). Essa afirmação de Benjamin, muito
polêmica, inaugura um debate que ainda hoje é muito vivo, em torno da
possibilidade daqueles indivíduos que passaram por situações de
violência, como no caso da guerra, serem capazes de narrar suas
experiências. Não há dúvida que, caso a tese de Benjamin esteja
correta, trata-se de um grande desafio para a história oral e para a
história do tempo presente investigar fenômenos ligados a esse tipo de
experiência incomunicável. Não foram poucas vezes que nos deparamos
com “silêncios” durante as entrevistas que pareciam esconder algo, por
exemplo, quando questionávamos para um ex-usuário se ele já tinha
sofrido violência policial, muitas vezes eles preferiam silenciar ou mudar
de assunto; o mesmo se tratava quando indagávamos se por conta do
uso de drogas ele teve algum problema com a polícia; eram sempre
presentes também o medo de represália, por exemplo, ao falar de
violência policial e de outros assuntos delicados. Podemos apontar
também que o silêncio dos moradores da “Rua da Lama”, que não deixa
33
de ser também revelador. É esse desafio de trabalhar com fontes orais
com pessoas que viveram experiências traumáticas que é um dos
pontos da reflexão empreendida pela historiadora Beatriz Sarlo. O
núcleo da argumentação de Sarlo gira em torno da questão: como
Benjamin pode apontar o esgotamento da experiência transmissível,
numa era onde o testemunho direto dos atores sociais vive o seu
apogeu? Nas palavras da própria autora:
O apogeu do testemunho é, em si mesmo, uma refutação
daquilo que, nas primeiras décadas do século XX, alguns
consideraram seu fim definitivo. Walter Benjamin, diante das
consequências da Primeira Guerra Mundial, expôs o
esgotamento do relato devido ao esgotamento da experiência
que lhe dava origem. Das trincheiras, ou das frentes de batalha
da guerra, ele afirmou, os homens voltaram emudecidos. É
inegável que Benjamin se equivocava quanto à escassez de
testemunhos, justamente porque ‘a guerra de 1914-8 marca o
começo de testemunho de massas’. É interessante, porém,
analisar o núcleo teórico do argumento benjaminiano (SARLO,
2007, p. 25).
Mesmo duvidando da eficácia da tese benjaminiana, Sarlo não a
descarta e vai a fundo à sua análise. A autora se debruça sobre o
núcleo da argumentação benjaminiana. Segundo Benjamin, as rápidas
transformações trazidas pela modernidade capitalista teriam causado
um impacto tamanho na vida das pessoas que a capacidade destas de
assimilarem essas transformações e poderem transmitir isso em forma
de experiência para as pessoas mais jovens era quase impossível. Ao
passo que aquilo que aprendeu “a geração que ainda fora à escola num
bonde puxados por cavalos” (BENJAMIN, 1994, p. 194) pouco tinha a
ensinar para aqueles que nasceram num mundo dominado pela técnica,
a guerra, ou pelo menos a nova guerra altamente tecnizada, portanto,
seria a experiência limite do choque que essa nova sociabilidade
inaugurada pela modernidade impunha aos indivíduos. “Essa guerra é
uma revolta da técnica que cobra em material humano aquilo que lhe
foi negado pela sociedade” (BENJAMIN, 1994b, p. 196). Tal guerra
atravessaria a subjetividade humana como um raio nunca antes visto,
causando um trauma impossível de se relatar. Beatriz Sarlo em certa
altura do texto afirma: “Benjamin captou algo próprio da modernidade
capitalista em seu sentido mais específico. Ela teria afetado as
34
subjetividades até emudecê-las” (2007 p. 29). Esse emudecimento da
subjetividade imputado pela modernidade capitalista ao “frágil e
minúsculo corpo humano”, não nos parece:
O choque teria liquidado a experiência transmissível e, por
conseguinte, a experiência em si mesma: o que se viveu como
choque era forte demais para ‘o minúsculo e frágil corpo
humano’. Os homens, mudos, não teriam encontrado uma
forma para o relato do que tinham vivido, e a passagem da
guerra só conservava as nuvens. Benjamin assinala com
precisão: ‘as nuvens’, porque sobre todo resto voará o furacão
de uma mudança, imprevisível, quando as primeiras colunas
de soldados se encaminharam para os campos das primeiras
batalhas (SARLO, 2007, p. 25).
O argumento de Benjamin de tamanha sensibilidade se torna
ainda mais incrível quando paramos para pensar que seu autor não viu
os horrores dos campos de concentração e nem da guerra nuclear. É o
que questiona Beatriz Sarlo: se a Primeira Guerra Mundial causou
tamanho estrago na subjetividade daqueles que nela viveu o que é
possível pensar sobre outros eventos tão traumáticos ou mesmo piores
que aconteceram no século XX e de alguma maneira ainda acontecem?
Se esta [a Grande Guerra] rompeu a trama de experiência e
discurso, que rupturas não produziram o holocausto e, depois,
os crimes em massa do século XX, o Gulag, as guerras de
limpeza étnica, terrorismo de Estado? (SARLO, 2007, p. 28).
Todos esses acontecimentos, cujo eco escabroso ainda nos
perturba, sobretudo quando sua lembrança nos alerta que não estamos
livres do risco de voltarmos a vivê-los, o que a escavação de eventos tão
sombrios teria a nos dizer? Há considerações sobre essas questões que
é preciso atentar, é o caso do que é tratado pela análise de Primo Levi,
em seu livro “É isto um homem?”, onde o autor dá seu testemunho
como sobrevivente de um campo de concentração nazista e afirma que o
que deseja é que seu testemunho sirva para os leitores como a “matériaprima da indignação”, Sarlo analisa o depoimento de Levi e faz algumas
ponderações:
Os testemunhos dos que se salvaram é a ‘matéria-prima’ de
seus leitores ou ouvintes, que devem fazer algo com que lhes é
comunicado e que, justamente porque conseguiu ser
comunicado, é só uma versão incompleta. Os que se salvaram
‘não podem senão lembrar’ (escreve Agamben), e, no entanto,
não podem lembrar o decisivo, não podem testemunhar sobre o
campo na medida em que não foram vítimas totais, como foi o
35
‘mulçumano’ que se entregou e parou de lutar, e se separou
daqueles restos desagregados de sociedade que ficaram no
campo. Levi os chama ‘não-vivos’, isto é: não-sujeitos, que
perderam a noção de qualquer limite ético, para começar,
perderam a palavra em vida (SARLO, 2007, p. 35).
O testemunho dos sobreviventes desses crimes de Estado são
perpassados de polêmicas e paradoxos, um desses aspectos paradoxais
é
apontado
por
acima
Agamben,
portanto
sua
análise
e
instrumentalização para qualquer tipo de pesquisa não é de modo
nenhum tarefa simples:
De modo radical, não se pode representar os ausentes, e dessa
impossibilidade se alimenta o paradoxo do testemunho: quem
sobrevive a um campo de concentração, sobrevive para
testemunhar e assume a primeira pessoa dos que seriam os
verdadeiros testemunhos, os mortos. Um caso-limite, terrível,
de prosopopeia (SARLO, 2007, p. 35).
A verdade sobre o campo de contração é a morte! Portanto, de
alguma maneira, aqueles que sobreviveram ao campo não são provas
incontestáveis dessa verdade, pelo simples fato de que se ainda vivem
contradizem essa verdade. Eles porém, só podem falar em nome de
outros, daquelas que experimentaram radicalmente a verdade do
campo, cujo testemunho é impossível. Mas há outros casos, onde esses
testemunhos tem implicações “extra-teóricas” de natureza muito mais
preocupante, pois entram em contradições com outras fontes, e além do
mais, podem servir de base jurídica para responsabilização criminal dos
envolvidos. Nesses casos, o desafio do pesquisador se torna ainda
maior: como agir quando as fontes orais entrarem em contradição com
outras fontes? Quais são os limites éticos dos questionamentos que
pretendem colocar em xeque o testemunho dessas vítimas? O
historiador que pretende caminhar pela investigação desses fenômenos,
muitas vezes relacionados a crimes que um Estado impõe a uma
população inteira, se ver embaraçado com questões éticas e políticas
das quais não pode fugir. Quando nos referimos a situações limites
como essas, sempre há aqueles que defendem que a superação de tais
situações se dá pelo esquecimento desta, advogam uma “virada de
página” completa, outros pensam o exato inverso, que somente quando
depois que for debatido incansavelmente, esses eventos podem ser
36
superados. Esse é um debate muito importante para a historiografia
contemporânea, por exemplo, toca o âmago das memórias das vítimas
da ditadura militar da América Latina:
É evidente que o campo da memória é um campo de conflitos
entre os que mantém a lembrança dos crimes de Estado e os
que propõem passar a outra etapa, encerrando o caso mais
monstruoso de nossa história. Mas também é um campo de
conflitos para os que afirmam ser o terrorismo de Estado um
capítulo que deve permanecer juridicamente aberto, e que o
que aconteceu durante a ditadura militar deve ser ensinado,
divulgado, discutido, a começar pela escola. É um campo de
conflitos também para os que sustentam que o ‘nunca mais’
não é uma conclusão que deixa para trás o passado, mas uma
decisão de evitar, relembrando-as, as repetições (SARLO, 2007,
p. 20).
Nesses casos a tarefa da abordagem de fontes orais é uma tarefa
primordial, pelo fato de a maior parte das fontes oficiais serem
duvidosas quanto à veracidade de seu conteúdo, os autores Fournier e
Herrera ao abordar um tema polêmico como é o caso do massacre da
Praça das Três Culturas no México em 1968, sugerem que “a
compilação dos testemunhos” (2008 p. 107) é tarefa prioritária de
investigação da questão, visto a descarada manipulação das fontes
oficias e jornalísticas sobre o evento.
Muitas vezes nesse tipo de situação, o levantamento de fontes
orais é uma tarefa espinhosa, e se torna, em casos de denúncias de
crimes ou violência, fontes imprescindíveis. Isso acontece “quando
testemunho é a única fonte (porque não existem outras ou porque se
considera que ele é mais confiável)” (SARLO, 2007, p. 21). Parece-nos
claro, que mesmo se tratando de uma tarefa árdua, o trabalho com
fontes orais é uma tarefa indispensável, não porque acreditamos que a
fonte oral seja depositária de uma verdade que esteja acima de qualquer
outra fonte, mas porque entendemos que o simples fato do depoimento
de diversos agentes poderem ser ouvidos, expõe as contradições de
processos que tendem, quando sujeitos ao monólogo laudatório das
fontes oficiais, a apresentarem uma versão extremamente monolítica e,
portanto, limitada. Desde antes das tradições democráticas, mais
acentuadamente a partir delas, a reconstituição dessas situações de
37
violência por testemunhas é uma dimensão teórica indispensável à
democracia.
Parece-nos, ao chegar a esse ponto da análise, que é mais viva do
que nunca a antiga argumentação, da qual tratamos no inicio, de que a
história
do
tempo
presente
era
desprezada
pelos
historiadores
profissionais do séc. XIX pelo seu forte conteúdo político, observamos
quase dois séculos mais tarde a história do presente não tem menos
implicações políticas e, talvez por isso, ainda não é campo preferencial
de pesquisa para a maioria dos historiadores. No entanto, hoje já
sabemos que toda produção intelectual, seja ela em relação ao passado,
presente ou futuro, tem em si alguma implicação política e a tal da
imparcialidade é uma quimera há muito refutada, “se o historiador deve
manter um distanciamento crítico em relação ao seu objeto de estudo e
proceder com discernimento e rigor, nem por isso ele consegue ser
neutro” (BÉDARIDA, 2006, p. 227). É obvio que, em relação à história
do presente, quando os acontecimentos ainda estão quentes e os
interesses dos atores históricos são candentes, esse ponto de vista
político do pesquisador se torna algo ainda mais problemático. No que
diz respeito aos testemunhos de vítimas de situações de violência em
geral, fica cada dia mais claro que, mesmo que os historiadores no
passado terem afastado qualquer vocação militante da história oral,
hoje nos parece inegável que existe sim um papel político muito
importante a cumprir pela história oral em relação questões dessa
natureza.
O papel desse trabalho com o testemunho sobre acontecimentos
recentes de tamanha relevância numa sociedade que cada vez mais só
quem possui memória é a polícia (DEBORD, 1997), e onde apenas “a
justiça não se esquece de nada” (KAFKA 2001 p. 185), é uma tarefa
espinhosa para aqueles que nela se arriscam, mas sua relevância
acadêmica e, sobretudo social, com seu vasto campo de reflexão e ação,
parece recompensar aquelas que nela se ocupam.
38
3 O CONSUMO DE PSICOATIVOS: DOS USOS HISTÓRICOS À
CONSOLIDAÇÃO DA POLÍTICA PROIBICIONISTA
A palavra droga traz consigo uma carga valorativa muito grande, e
sua definição é objeto de contenda, pois seu conceito e caracterização
não dependem apenas da simples discussão científica em torno de sua
natureza química. O conceito de droga está demasiadamente envolto em
uma discussão ideológica e política de tal maneira que, segundo os
estudiosos não seria possível delinear um conceito de droga puramente
químico, isto é, que não sofresse implicações culturais, históricas e
sociais:
A droga como um objeto claro e definido nunca existiu. Sob a
sombra desse conceito polimorfo esconde-se, na verdade, uma
diversidade de substâncias e de usos distintos. O denominador
comum que centraliza essa noção ambivalente é o discurso
normatizador proferido pelas instâncias oficiais de ordem
cultural. (...) A droga sempre foi um conceito antes de tudo
moral. Os costumes e os hábitos é que determinaram o que é e
o que foi essa noção, cujo sentido contemporâneo é carregado
de um conceito ilícito e mesmo criminal (CARNEIRO, 1994, p.
157).
O conceito de droga, portanto deve ser proveniente de uma
abordagem multidisciplinar da questão, onde os aspectos puramente
farmacológicos não seriam levados em conta de maneira isolada, como
ressalta MacRae:
Uma abordagem exclusivamente farmacológica da questão da
droga não é suficiente, e que os efeitos tanto individuais e
subjetivos, quanto os sociais do uso de substâncias psicoativas
só podem ser entendidos a partir de uma perspectiva
biopsicossocial (MACRAE, 2010, p. 1).
E complementa com uma assertiva categórica surpreendente de
que “não existe droga a priori”:
Não existe droga a priori, uma vez que são a atividade
simbólica e o conjunto das motivações no consumidor que
transformam uma substância psicotrópica em droga, levando à
sua integração de maneira estável na estrutura motivacional do
consumidor (MACRAE, 2010, p. 1).
Tal afirmação, que pode soar estranha aos ouvidos não iniciados
na problemática da droga, é compartilhada por demais pesquisadores
da área que ressaltam a natureza relacional da questão, isto é, o
39
contexto social, histórico e cultural onde são consumidas determinadas
substâncias químicas:
O conceito de droga é relativo às configurações e significados
socioculturais de um contexto histórico, ou seja, ele é
construído socialmente, de acordo com processos sociais e
históricos de cada sociedade (ALBUQUERQUE, 2010, p. 15).
Neste sentido, o conceito de droga é multifacetado, uma
substância num dado contexto pode ser encarada como um simples
alimento e noutro como fonte de puro prazer ou mesmo como
componente de rituais religiosos ou terapêuticos:
O conceito de droga é extremamente polissêmico. Seus
significados abrangem tudo o que se ingere e que não constitui
alimento, embora alguns alimentos também possam ser
designados como drogas: bebidas alcoólicas, especiarias,
tabaco, açúcar, chá, café, chocolate, mate, guaraná, ópio,
quina, ipecacuanha assim como inúmeras outras plantas e
remédios (CARNEIRO, 2005, p. 5).
Nessa concepção as drogas tomam um sentido bem amplo, muito
maior do que as pretensões que este trabalho busca abarcar:
As drogas sejam consideradas como uma categoria complexa e
polissêmica que recobre e reúne, por vezes de modo
marcadamente ambíguo, como também isola e separa, tantas
vezes de modo instável, matérias moleculares as mais variadas.
Ela também propõe que essas matérias moleculares constituem
objetos sócio-técnicos que, embora sempre possam ser
distinguidos conforme as modalidades de uso (matar, tratar,
alimentar, por exemplo), não comportam diferenças intrínsecas
absolutas ou essenciais, mas sempre e somente diferenças
relacionais. Pois sucede às drogas (e aos medicamentos e
alimentos) o mesmo que às armas (e às ferramentas): tais
objetos
sócio-técnicos
permanecem
integralmente
indeterminados até que sejam reportados aos agenciamentos
que os constituem enquanto tais (Deleuze; Guattari, 1997, p.
72). Desta perspectiva, as drogas não dizem respeito apenas
àquelas substâncias que produzem algum tipo de alteração
psíquica ou corporal e cujo uso, em sociedades como a nossa, é
objeto de controle ou de repressão por parte do Estado, mas
também àquelas que Mintz (1986) chamara de “alimentosdroga” – como o açúcar, o café, o chá e o chocolate, por
exemplo – bem como àquelas que correntemente nomeamos
medicamentos ou fármacos. Esta perspectiva se contrapõe
àquela outra, mais restritiva e assimétrica, além de
historicamente posterior, que toma como dada ou estabilizada
a partilha moral (médico-legal) entre usos lícitos e ilícitos de
drogas, ou entre drogas (ou tóxicos, ou entorpecentes, ou
venenos...)
e
medicamentos,
alimentos,
condimentos,
cosméticos, etc. Ainda que essa partilha seja operativa entre
leigos e doutos, usuários e analistas, propõe-se mostrar aqui
que ela não é auto-evidente, mas o efeito alterado do
encontro/passagem de ondas de mobilização sócio-técnica
40
cujos rastros as notas deste trabalho se propõem registrar
(VARGAS, 2008, p. 41-42).
Segundo Vargas (2008), a origem etimológica da palavra droga é
bastante controversa, com possibilidades de ter se originado do latim
drogia, do irânico daruk, do árabe durâwa e do celta druko, porém “a
hipótese holandesa me parece a mais verossímil” (VARGAS, 2008, p.
42), é o que sustenta também Carneiro:
Provavelmente deriva do termo Holandês droog, que significa
produtos secos e servia para designar, do século XVI ao XVIII,
um conjunto de substâncias naturais utilizadas, sobretudo, na
alimentação e na medicina. Mas o termo foi usado na tinturaria
ou como substância que poderia ser consumida por mero
prazer (CARNEIRO, 2005, p. 11).
Pelo fato de contemporaneamente ter ganhado um conteúdo
criminoso, alguns estudiosos preferem utilizar a expressão psicoativos
no lugar da palavra droga:
Prefere-se o termo “substâncias psicoativas” à palavra “droga”,
de uso mais comum, por esta trazer uma conotação
demasiadamente negativa e preconceituosa. Lembramos que
estas substâncias são utilizadas não somente por adictos ou
dependentes mas por todo tipo de pessoas. O termo substância
psicoativa também tem a vantagem de aludir à psique,
escapando de um determinismo exclusivamente farmacológico.
Isso é importante pois remete à idéia que os efeitos resultantes
do uso dessas substâncias são resultado da complexa
interação de variáveis de natureza biológica, psíquica e
ambiental (MACRAE, 2010, p. 2).
Portanto, para o primeiro momento da nossa análise onde
delinearemos o amplo espectro da questão da droga e alguns de seus
diferentes usos na história da humanidade, optaremos, na maioria das
vezes, pelo termo: psicoativos. No entanto, no ponto quatro, onde nos
deteremos mais pormenorizadamente em relação às substâncias ilícitas,
portanto ao seu significado criminal como ressaltou anteriormente
Carneiro (1994), utilizaremos com mais frequência o termo droga, já
que é assim que ela aparece nas falas de usuários e policiais e demais
sujeitos que participam do universo das drogas ilícitas por nós
analisado, ainda que ambos os conceitos: drogas e psicoativos - sejam
utilizados como sinônimos pelos pesquisadores que aqui tomamos como
referência.
41
As substâncias psicoativas (lícitas ou ilícitas) foram e são
compreendidas a partir de uma plêiade de códigos culturais e
dizeres próprios. Uma das formas de se referir a essas
substâncias é o conceito de “droga” (ALBUQUERQUE, 2010, p.
14).
Uma problemática de tamanha complexidade como é a questão
dos usos dos psicoativos não pode ser analisada profundamente sem
que antes levantemos indagações pertinentes sobre a maneira de
abordá-la. E uma dessas indagações dizem respeito à problemática da
origem levantada por Foucault (2012). Em um texto famoso intitulado
“Nietzsche, a genealogia e a história”, Foucault (2012) alerta os
historiadores sobre o perigo da busca das origens das coisas, não
porque não precisemos mais entender os processos históricos pelos
quais os fenômenos sociais se desenrolam, mas pelo fato de que muitas
vezes essa busca da origem está metafisicamente orientada. O que
exatamente isso quer dizer? A busca da origem pode estar guiada pela
vã intenção de encontrar lá, onde exatamente tudo teria começado, o
verdadeiro sentido da coisa, isto é, a coisa mesma em seu sentido
primeiro, originário, em sua essência de pureza quase metafísica,
porquanto ainda não estaria “encharcada” de história. Dessa forma,
Foucault, na esteira de Nietzsche, assevera:
Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas
ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)? Porque,
primeiramente, a pesquisa nesse sentido, se esforça para
recolher nela a essência exata das coisas, sua mais pura
possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si
mesma, sua forma imóvel e anterior o que é eterno, acidental,
sucessivo (2012, p. 58).
Essa armadilha da origem é bastante perigosa para um historiador
do tempo presente que vai debruçar-se sobre um fenômeno que, ainda
que possua fortes traços contemporâneos, no entanto, é quase tão
antigo quanto o hábito de se alimentar. Dessa maneira, a assertiva
foucaultiana se revela ainda mais salutar. É preciso que não guardemos
nenhum tipo de ilusão metafísica da origem do uso de substâncias
psicoativas ao longo da história da humanidade. Mesmo que os estudos
tenham revelado que o consumo de psicoativos remonta aos tempos
mais remotos da humanidade, onde as plantas e ervas colhidas nas
42
florestas potencializavam diversas capacidades humanas, não quer
dizer que ali se encerra o sentido primeiro e essencial (e por isso
tolerável) do uso de substâncias psicoativas.
Ser enganado por esse mito da origem seria olhar para o
consumidor de chá de papoula do paleolítico com olhos de quem
enxerga o bom selvagem rousseauniano desprovido de maldades, que
apenas faz uso de um direito quase natural, que é o de usufruir daquilo
que o meio ambiente o oferece. E olhar para os consumidores de crack
8
modernos como aqueles que representam um tipo de uso degenerado e
passível de ser socialmente perseguido. Óbvio que ambos participam de
universos históricos, simbólicos e materiais totalmente distintos. Mas
não podemos deixar de observar o quão mais facilmente um parece ser
untado de legitimidade histórica, enquanto o outro seria, no mínimo,
digno do olhar desconfiado de muitos9.
Por que cargas morais e valorativas são despertadas de maneiras
tão diferentes, dependendo de qual imagem nos remetamos, se do
bebedor de chá do paleolítico (natural, essencial, e, portanto positiva)
em “sua mais pura possibilidade” (FOUCAULT, 2012, p. 58), ou do
fumador de ‘pedra’ do nosso tempo (artificial, dispensável, negativa)?
Em que momento da história essa ruptura aconteceu? Em que
momento da história o uso de substâncias psicoativas deixou de ser
potencializadora de um tipo de espiritualidade humana, e por isso está,
dentre outras coisas, intimamente ligado ao surgimento de muitas
O crack é uma droga de coloração branca, que obteve essa denominação devido ao
som gerado no momento em que o produto entra em contato com o fogo [...] As formas
mais comuns de uso do crack são a queima da substância juntamente com cinzas de
cigarro ou mesmo com maconha. Normalmente, essa droga é fumada em cachimbos
de vidros, ou pipas improvisadas com latas, PVC ou papel alumínio [...] O crack é uma
substância psicoativa sintética, elaborada a partir de pisoteio de folhas de coca
(ALBUQUERQUE, 2010, p. 20).
9 “Não se nega a potencialidade lesiva do crack, mas também não se pode deixar de
reconhecer a existência de um enorme contingente de usuários recreativos, isto é, que
se utilizam de outras substâncias etiquetadas como ilícitas e, por essa via,
apresentada como drogas (maconha, cocaína, etc.), sem maiores problemas” (TORON,
1997, p. 21).
8
43
religiões10, para ser quase que totalmente rechaçada pela maioria (para
não dizer a totalidade) das grandes religiões modernas?11 Por que o uso
de algumas substâncias psicoativas deixou de ser socialmente aceito,
ou melhor, desejado, para ser tido como socialmente perigoso e até
mesmo passando a ser perseguido com afinco?12 Óbvio que é necessário
dizer que hoje em dia há substâncias psicoativas que gozam de uma
tolerância bastante ampla e são até mesmo socialmente desejadas
muito mais que outras, o caso do álcool no Ocidente é um claro
exemplo. Mas quais foram os mecanismos históricos e culturais
acionados para haver tal distinção? Essa indagação nos inquieta.
Distinção por vezes tão clara entre determinadas substâncias, onde
algumas são socialmente aceitas, enquanto outras são brutalmente
execradas, uma diferenciação que existe inclusive entre substâncias
que, do ponto de vista puramente médico, não haveria quaisquer
motivos para serem execradas umas, enquanto outras seriam tão
amplamente tolerada.
Do ponto de vista dos riscos envolvidos, o álcool é
imensamente mais perigoso, sem dúvida alguma.
Enquanto a maconha13 não mata, não importa a dose, o
álcool tem uma margem pequena entre a dose necessária
para causar o efeito desejável e a dose suficiente para
colocar em risco funções vitais do corpo (BURGIERMAN,
2011, p. 232).
Sobre essa relação entre psicoativos e religiões primitivas, Escohotado (1996, p. 10)
afirma: “Las culturas de cazadores-recolectores- sin duda las más antiguas del
planeta – tienen en común una pluralidad abierta o interminable de dioses. Hoy
sabemos que en una alta proporción de esas sociedades los sujetos aprenden y
reafirman su identidad cultural atravesando experiencias con alguna droga
psicoactiva”.
11 Ainda hoje existem religiões que se utilizam de substâncias psicoativas como parte
fundamental de seus rituais, porém constantemente esses grupos estão sob o alvo da
criminalização. Por exemplo, sobre a estigmatização de grupos ayahuasqueiros, ver:
Goulart (2008).
12 Trataremos mais detidamente dessas questões quando discutirmos a consolidação
da política proibicionista no século XX.
13 “O cânhamo (também conhecido como maconha) é a droga recreativa ilegal mais
amplamente utilizada” (IVERSEN, 2012, p. 93). “Maconha é o nome popular de um
grupo de plantas arbustivas de origem asiática (talvez nativas da Índia), cujo nome
científico é Cannabis [...] A maconha tem sido usada ao longo da história nos mais
diversos tipos de cultura, para mudar o humor, a percepção e a consciência [...] Seus
efeitos psicotrópicos variam do aumento da capacidade imaginativa e da criatividade,
das experiências místicas, passando pelo aumento da sociabilidade e da capacidade
afetiva e intelectual” (COHEN, 1988, p. 13-21).
10
44
Temos plena consciência que todas essas são questões que
ultrapassam - e muito - os limites imanentes deste trabalho. Mas
pretendemos com elas despertar a atenção para duas coisas que neste
momento identificamos como sendo de alta importância para sua
caracterização.
A primeira é demonstrar que historicamente o uso de psicoativos,
inclusive em larga escala, é algo que, como veremos adiante, remonta
aos tempos mais longínquos da humanidade. O que quer dizer que não
se trata de uma epidemia moderna como, às vezes, nos fazem pensar
setores da mídia jornalística, destaca Noto (2013 et al.), demonstrando
como estes, em muitos casos, tratam de contribuir para a propagação
de mitos em torno da questão do uso de substâncias psicoativas: “para
as drogas ilegais [...] a mídia tende ao exagero” (NOTO, 2013 et al., p.
280). Embora seja óbvio que nossa sociedade moderna passe por um
processo agudo de crescimento de consumo, não apenas de psicoativos,
mas de praticamente todos os bens necessários (e por vezes até mesmo
os desnecessários) à vida humana. Algo típico do capitalismo moderno,
que para se reproduzir precisa produzir mais-valor
14
em escala cada vez
mais ampliada e com isso empurra para o cotidiano das pessoas o uso
desmedido e descartável de infinitas banalidades, enquanto, ao mesmo
tempo, pela sua natureza desigual e contraditória, condena outros
milhares à pauperização crescente, impedindo o acesso inclusive aos
bens mais primordiais da vida social. Portanto, se quisermos enxergar
apenas do ponto de vista do consumo, não são apenas os psicoativos
que são consumidos em larga escala, mas sim a tendência geral das
mercadorias produzidas pelo capitalismo contemporâneo. Queremos
apontar com isso, desde já, que, mesmo em razão do crescimento do
consumo, isto não justifica por princípio essa intolerância com
determinadas substâncias, tendo em vista, para citarmos um breve
exemplo apontado por alguns estudiosos, o consumo de álcool e tabaco
Deu-se preferência pelo termo mais-valor em detrimento da clássica tradução maisvalia, porque estamos tomando como referência a tradução dos cadernos
preparatórios d’O Capital no Brasil, levando em conta toda a problematização e
caracterização que nessa edição o tradutor Mario Duayer faz em torno desse conceito.
Cf. Marx (2011).
14
45
são responsáveis pelo maior dano à saúde pública mundial no século
XX, e continuam sendo legais na maioria dos países do Ocidente,
enquanto a maconha continua sendo proibida apesar de ter uma
potencialidade lesiva muito menor15. Mas nem por isso temos políticas
em escala mundial de perseguição à produção e ao consumo de álcool e
tabaco, pelo contrário, toleram-se amplamente campanhas publicitárias
(com exceção do tabaco, onde a propaganda é proibida no Brasil), que
incentivam inclusive jovens a continuarem se intoxicando com o uso
contínuo desse produto. Isto é, abordaremos não apenas como o uso de
substâncias
psicoativas
foi
historicamente
desenvolvido,
e
como
determinadas culturas se adaptaram profundamente a seus efeitos, até
mesmo os efeitos indesejados, enquanto em determinados momentos
criaram-se estigmas sociais sobre outras tantas.
Com
isso
chegamos
à
segunda:
como,
em
um
espaço
relativamente curto de tempo, várias dessas substâncias que têm uma
larga tradição de consumo passam a ser perseguidas e proibidas em
escala cada vez mais global? Tal política, caracterizada pelos estudiosos
de política proibicionista das drogas,16 é hoje o paradigma global de
gestão
de
substâncias
psicoativas
tidas
como
perigosas
ou
potencialmente perigosas em todo mundo. Como e por que essa política
ganhou força? Quais são os efeitos sociais que ela tem produzido nesses
quase cem anos de vigência? Essa é uma das principais indagações que
nos impulsionaram nesse capítulo.
“Os dados oficiais da OMS demonstram que o maior dano à saúde pública mundial
no século XX foi causado pelo tabaco, seguido do álcool. O tabaco sozinho seria o
maior vilão da história da humanidade, tendo matado mais do que todas as guerras,
numa cifra de cinco milhões de mortos por ano, totalizaria meio bilhão em todo o
século!” (CARNEIRO, 2005 p. 2).
16 “Proibicionismo é uma forma simplificada de classificar o paradigma que rege a
atuação dos Estados em relação a determinado conjunto de substâncias. Seus
desdobramentos, entretanto, vão muito além das convenções e legislações nacionais.
O proibicionismo modulou o entendimento contemporâneo de substâncias psicoativas
quando estabeleceu os limites arbitrários para usos de drogas legais/positivas e
ilegais/negativas. Entre outras consequências, a própria produção científica terminou
entrincheirada, na maior parte das vezes do lado “certo” da batalha, ou seja, na luta
contra as drogas. O proibicionismo não esgota o fenômeno contemporâneo das drogas,
mas o marca decisivamente” (FIORE, 2012, p. 09). Sobre o debate em torno do
proibicionismo ver também: ESCOHOTADO (1997), WOODIWISS (2007) e RODRIGUES
(2008).
15
46
3.1 Psicoativos: dos diferentes usos à proibição
Por onde começar, então? Pelo vinho, pela cerveja ou por
outras bebidas alcoólicas fermentadas? Pelos cogumelos
alucinógenos? Pela maconha? Pelo ópio? Mas tudo isso nos
levaria longe demais: se não à noite dos tempos, ao neolítico,
pelo menos. Além disso, por que essas substâncias e não
outras? (VARGAS, 2008, p. 42).
Sem qualquer pretensão de busca da origem e também sem
ilusões de que esgotaremos aqui a análise dos usos de diferentes
psicoativos em diversas culturas e civilizações ao longo da história, que
não caberia nos limites desta modesta abordagem, além de ser uma
ambiciosa, estafante e interminável tarefa, como nos lembra Martine
Xiberras, precisaríamos de um conhecimento e de uma investigação
interdisciplinar devido a transversalidade e riqueza do objeto:
A transversalidade deste objeto remete para o conhecimento de
diversas culturas tradicionais e para história das civilizações,
uma vez que as experiências com produtos tóxicos
desconhecem praticamente todo tipo de fronteiras temporais e
espaciais estipuladas pelos especialistas (XIBERRAS, 1989, p.
14).
Isso se deve, entre outras coisas, pelo fato da história do uso de
substâncias psicoativas, apesar de cada época trazer consigo suas
características específicas, muitas vezes se confunde profundamente
com a história de outras atividades humanas, como a alimentação, a
medicina e algumas práticas religiosas. Além, é claro, de exigir um
aprofundamento sobre características específicas sobre vários recortes
temporais que variam do paleolítico até os dias de hoje, isto é, variações
cronológicas que estão para além do alcance das especializações da
historiografia moderna. Portanto, o nosso interesse aqui é bem mais
restrito. Mesmo entendendo que o consumo de psicoativos nos tempos
modernos tem características bem particulares e que estão intimamente
ligadas a outros fenômenos modernos, como é o caso da urbanização,
da industrialização e demais avanços no campo da produção, conforme
apontaremos adiante. No entanto, pretendemos apenas traçar um
panorama geral sobre o consumo histórico de psicoativos, buscando
desmistificar assim um dos principais argumentos do proibicionismo
47
que identifica o consumo dos mais diversos psicoativos como sendo
uma epidemia moderna e, desta forma, entender que “as drogas
contemporâneas não surgiram como um deus ex machina” (XIBERRAS,
1989, p. 57), ou seja, não se trata de um acontecimento recente e
abrupto, que não teria vestígio nem linhagem semelhante. Conforme
aponta Noto (2013 et al), nos tempos atuais há em voga um
determinado discurso que, com traços sensacionalistas, pretende
perder de vista que o contato humano com substâncias psicoativas não
se trata de uma invenção moderna, ademais, sentencia Xiberras:
Pelo contrário, a epopeia dos psicotrópicos foi se desenvolvendo
aos poucos, de continente em continente, seguindo os ritmos
das trocas comerciais e culturais, ao mesmo tempo que a
variedade dos produtos e das utilizações se iam adaptando aos
contactos entre os diferentes sistemas sociais (1989, p. 58).
Dessa maneira, alguns estudos já apontaram que a prática de uso
de substâncias psicoativas remonta às épocas mais remotas da
existência humana.
Os primeiros humanos eram caçadores-coletores; tinham que
aprender quais dentre as diversas plantas em seu ambiente
eram boas para comer e quais eram venenosas. Por tentativa e
erro, eles também acumularam gradualmente conhecimento
sobre quais plantas ou outros materiais naturais podiam
ajudar a aliviar a dor ou tratar os sintomas de doenças
(IVERSEN, 2012, p. 07).
Para muitos pode soar mais que uma novidade a ser contada em
mesa de bar ou uma notícia a ser brindada na companhia de amigos,
mas a receita mais antiga da humanidade, um documento histórico
escrito em Sumério, ensina a fazer cerveja!
Ela foi escrita pelos sumérios, povo que se estabeleceu na
Mesopotâmia perto de 8000 a. C. e é considerado o exemplo
mais antigo de civilização humana. A bebida que eles
produziam não era muito diferente da de hoje e seus hábitos
em relação a ela parecem bem familiares. O ingrediente
principal era o malte de cevada – cereal da maioria das cervejas
contemporâneas e, curiosamente, o primeiro a ser cultivado
pelo homem. A maior diferença estava no aromatizante: mel,
em vez de lúpulo. As pessoas se reuniam para beber em festas,
banquetes ou tavernas (ARAÚJO, 2012, p. 25).
O que indica que o consumo do álcool engendra tipos de
sociabilidades entre os seres humanos há milênios. Percebemos que o
uso dessa e de outras substâncias se dava num contexto também para
48
além do religioso e medicinal, o uso puramente recreativo que, segundo
as fontes, era amplamente difundido:
O uso recreativo de drogas parece fazer parte do
comportamento humano há milhares de anos. É provável que o
álcool tenha sido a primeira dessas drogas – é facilmente obtido
por meio de frutas e leveduras silvestres comuns na maioria
dos lugares em todo o mundo. Foi necessário um pequeno
passo para descobrir como controlar o processo de fermentação
para produzir vinhos e cervejas [...] (IVERSEN, 2012, p. 17).
No Ocidente, o consumo do álcool tem sido amplamente tolerado
e até mesmo desejado em círculos bastante amplos, presente inclusive
na ritualística cristã. São famosos os trechos da Bíblia que citam o
consumo do vinho, o primeiro milagre de Jesus, narrado no evangelho
de João (2: 3-11), descreve a transformação de cerca de 600 litros de
água em 600 litros de vinho. O mais interessante desta fonte histórica
sobre o consumo de um psicoativo tão importante como é o álcool para
civilização ocidental, é que essa transformação se deu também para o
uso recreativo, ainda que se tratasse de um casamento, ritual sem
dúvida com contornos religiosos claros, o ato de tomar vinho entre os
convidados configura plenamente uma festa, isto é, Jesus assim como
os outros que participavam da festa de casamento tomavam vinho para
se divertir. O ritual da última ceia descrito no evangelho de Mateus (26:
26-28) é também muito famoso, onde a representação do vinho
simboliza o próprio sangue de Cristo, enquanto o pão simbolizaria a
carne. Tal ritual, da transformação do vinho em sangue sacrossanto, é
lembrado em todas as missas da Igreja Católica até hoje, bem como por
outras congregações cristãs. Outras substâncias gozaram por séculos
de status semelhantes em outras culturas, é o caso do cânhamo, ou
maconha, como é mais popularmente conhecido:
Esa actitud básicamente favorable al alcohol tiene su exacto
opuesto en la religión de la India desde sus primeros himnos.
Sura, el nombre de las bebidas alcohólicas en sánscrito,
simboliza ‘falsedad, miseria, tinieblas’ (Satapatha Brahmana,
V. 1.2.10) y seguirá simbolizándolo en el brahmanismo
posvédico. Tampoco serán gratas las bebidas al budismo,
aunque por diferentes razones; el santón budista prefiere el
cáñamo [maconha] como vehículo de ebriedad, mientras el
brahmán guarda una sociedad rigorosamente cerrada, donde
desinhibidores tan poderosos como las bebidas alcohólicas
amenazan el principio de incomunicación absoluta entre castas
(ESCOHOTADO, 1996, p. 21).
49
Da mesma maneira que o álcool e o cânhamo foram amplamente
aceitos em determinadas culturas, também o uso de ópio e derivados,
consumido e produzido amplamente na antiguidade, regiões da Suméria
e do Egito, se difundiu de tal maneira, através de rotas comerciais, que
foi no extremo Oriente, sobretudo na China, onde teve provavelmente a
sua mais ampla recepção, (ESCOHOTADO, 1996).
Na Antiguidade Clássica, segundo Araújo (2012), o uso e
conhecimento sobre plantas psicoativas era bastante amplo, a exemplo
do famoso trecho da obra “História das plantas”, escrita por Teofrasto,
contemporâneo de Aristóteles, sobre uso da Datura metel, administrada
segundo o princípio grego de que nenhuma droga é boa ou má em si,
depende da sensatez com a qual os indivíduos estabelecem a relação
com ela:
Administra-se um dracma (unidade de medida grega) se o
paciente deve apenas ficar bem disposto; o dobro dessa dose se
ele deve delirar e ter alucinações; o triplo se deve ficar
permanentemente louco; o quádruplo se ele deve morrer
(ARAÚJO, 2012, p. 30).
O autor faz referência ainda ao consumo de vinho e outros
psicoativos ligados ao culto do deus Dionísio. E a tradição dos
Pharmakón, discípulos de Hipócrates (tido como o pai da medicina), de
onde também permaneceria uma larga linhagem do conhecimento e do
uso de plantas e de substâncias com efeitos psicoativos e medicinais.
Ao longo da Idade Média, ainda para Araújo (2012), são as bruxas
e os alquimistas, ambos envolvendo conhecimentos efetivos sobre os
psicoativos
mesclados
com
rituais
místicos
e
ambos
também
largamente perseguidos pelo cristianismo, tidos como feiticeiros e
potencialmente perigosos para a moral cristã, visto que boa parte da
receita das bruxas (que nada mais eram que mulheres que possuíam
conhecimentos tradicionais sobre plantas psicoativas e medicinais)
serviam também como afrodisíacos potencializadores dos apetites
sexuais.
Com as grandes navegações dos séculos XV e XVI, a circulação
mundial de psicoativos cresceu bastante. Araújo destaca: “Drogas
estavam entre os principais produtos do mercado global inaugurado na
50
era dos descobrimentos” (2012, p. 41) e Escohotado (1996, p. 67)
afirma: “Que los tesoros americanos fuesen básicamente botánicos
sorprendió al conquistador”. Com a invasão da América pelos europeus,
pela primeira vez na história determinadas culturas puderam ter acesso
a substâncias que já eram consumidas há séculos por outras. Da
mesma forma que a América exportava a coca e o tabaco, chegavam à
América, drogas do mundo todo, como a maconha, o chá e o ópio:
A era das grandes navegações não proporcionou o
descobrimento do tabaco, apenas. Pela primeira vez na
história, drogas de todos os continentes circulavam pelo
mundo. Povos do mundo inteiro entraram num intercambio
inédito de remédios e sensações. A América era o principal
fornecedor desse escambo sensorial. Além do tabaco, ela
apresentou a coca, a erva-mate, o guaraná e uma coleção
enorme de substâncias alucinógenas e visionárias. No convés
de espanhóis e portugueses elas iam não apenas para a
Europa, mas para a África e o Oriente. Na contramão o Novo
Mundo também receberia drogas conhecidas havia muito
tempo no resto do mundo como o café, o chá, a maconha e o
ópio. Nenhuma droga daquele período, no entanto, tornou-se
tão popular em tão pouco tempo como o tabaco. Essa
popularidade repentina criou um mercado poderoso, que, por
sua vez, motivou as primeiras políticas de drogas da era
moderna. (ARAÚJO, 2012, pp. 42-43).
O
crescimento
do
consumo
e
da
circulação
de
drogas
desconhecidas para um número bastante significativo de povos e
culturas levou a um primeiro ciclo de proibicionismo da era moderna,
muitos povos não acostumados a lidar com os efeitos negativos do
tabaco, proibiram sua produção, distribuição, circulação e consumo,
uma medida que não podia se sustentar por muito tempo, por motivos
econômicos e políticos. Politicamente, devido ao grande número de
consumidores,
essa
medida
se
tornou
amplamente
impopular.
Economicamente, por outro lado, os países que ficaram de fora desse
comércio tão lucrativo, começaram a perder dividendos importantes
para países concorrentes, algo bastante relevante na época que as
relações de produção capitalistas começavam a se impor:
O rei da Inglaterra James I, um dos primeiros antitabagistas da
história, decretou em 1604 um imposto de 4.000% sobre o
valor do tabaco importado para o país. Em 1611, a Espanha
também criaria um imposto sobre a importação de tabaco de
suas colônias em Cuba e em Santo Domingo. Como a produção
e as vendas não paravam de subir os dois reinos logo
instituíram monopólios estatais sobre aquele comércio. Além
51
das políticas fiscais, países do mundo inteiro começaram a
criar leis para controlar o consumo desenfreado daquela nova
droga. Japão (em 1607), Império Otomano (em 1611), Suécia e
Dinamarca (1632), Rússia (1634), Nápoles (1637), Sicília
(1640), China (1642), Império Mongol (1671) foram alguns dos
Estados que proibiram seu consumo no século 17. (ARAÚJO,
2012, p.43).
Mesmo com a adesão de tantos países à política proibicionista,
com o empenho de governos e a promulgação de diversas leis e outros
esforços para combater o consumo do tabaco é muito difícil controlar o
que milhões de pessoas desejam fazer com seu próprio corpo. Se
atualmente em nossa sociedade, com inúmeros mecanismos de
vigilância proporcionados pela ciência moderna e instrumentalizados
pelo poder
17,
é difícil impor um controle sob a vida íntima das pessoas
e fiscalizar o que elas fazem com seu próprio corpo, além, é claro, pelos
motivos políticos e econômicos anteriormente citados, essa empreitada
no século XVII fracassou desastrosamente.
As proibições não duraram muito, porém. Primeiro, porque,
apesar das penas duríssimas os fumantes continuavam a se
multiplicar. Nenhum governo poderia sustentar por tanto
tempo leis tão impopulares. Depois, porque países como
Inglaterra, Espanha, Portugal e Holanda começaram a fazer
fortunas com a venda e a coleta de impostos sobre o tabaco –
exemplo seguido daqueles tempos até o dia de hoje. No final do
século 17, os interesses econômicos já tinham se sobrepostos
aos morais e religiosos, e o uso da droga parou de ser
perseguido – pelo menos por enquanto (ARAÚJO, 2012, p. 44).
Quando se trata do uso histórico de psicoativos, é preciso
entender,
obviamente,
que
o
tipo
de
consumo
de
substâncias
psicoativas na modernidade tem nuances bem diferenciadas que o uso
feito por sociedades tradicionais ao longo de séculos. Sobre isso
Xiberras (1989) elabora um corte analítico buscando distinguir o uso
moderno de psicoativos da análise de etnólogos sobre seu uso em
determinadas culturas tradicionais:
Outra forma de abordar o mundo da droga é a liberdade
estilística a que Castaneda recorre ao descrever os
ensinamentos de um feiticeiro Yaqui acerca da utilização dos
17
Usa-se este conceito de acordo com a caracterização feita por Michel Foucault onde
entende que as relações de poder não são algo que se baseia apenas na repressão,
mas na produção e gestão de diversos âmbitos da vida social: “quando penso na
mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir” (FOUCAULT, 2012, p. 215).
Essa acepção será posteriormente retomada na análise.
52
alucinógenos. O seu relato revela de imediato o acesso a um
universo mágico cuja descrição só se pode fazer através do
simbolismo e da mitologia que caracteriza uma determinada
cultura. Com efeito este jovem etnólogo, formado nas
universidades californianas da década de sessenta, debruça-se
sobre uma forma de intoxicação perfeitamente codificada e
circunscrita pelas representações de uma cultura tradicional.
O mesmo não sucede com o fenômeno das toxicomanias
modernas, que se afigura à primeira vista algo ainda
inacabado, e que se insere antes no elenco das mutações ou
das revoluções sociais (XIBERRAS, 1989, pp. 15-16).
Temos em mente que todas essas diferentes substâncias e os
distintos usos em épocas várias, possuem particularidades que,
conforme já deixamos claro anteriormente, estão além do nosso
interesse explicar em seus pormenores. No entanto, o nosso objetivo é
demonstrar que, desde a chamada “Pré-história”, passando pela
antiguidade, período medieval, e também pelo processo de invasão e
conquista da América, temos presente o uso, a produção e o comércio
em escala bastante ampla de substâncias psicoativas.
Passados
séculos
de
produção,
distribuição,
circulação
e
consumo de psicoativos, boa parte do seu uso ligado a usos medicinais
ou religiosos, ou puramente recreativos, queremos agora nos debruçar
sobre os usos modernos das drogas. Decerto, há semelhanças com os
usos tradicionais e, sobretudo os usos recreativos das drogas até aqui
apontados. No entanto, nos parece que a modernidade inaugura
rupturas e diferentes práticas de usos de psicoativos: “Por otra parte,
sólo el tiempo irá deslindando fiesta, medicina, magia y religión”
(ESCOHOTADO,
1996,
p.
11).
Dessa
forma,
no
alvorecer
da
modernidade, observamos o nascimento de outras tradições que
encaravam o uso dessas substâncias de maneira diferenciada18. A
18
Se quisermos questionar simplesmente os sujeitos modernos: Por que eles usam
drogas? “Com efeito, para os sujeitos sociais que se drogam a resposta não encerra
qualquer mistério. Fazem-no com intuito de obter certos efeitos que procuram nos
produtos psicotrópicos” (XIBERRAS, 1989, p. 16). No entanto, ao investigarmos sobre
os diferentes usos modernos das drogas queremos com isso: “descrever o universo da
droga como espaço real, um sistema social ou cultural, com seus modos de
representação e actuação específicos” (XIBERRAS, 1989, p. 15). Isto é, os diferentes
usos, em diferentes contextos históricos, criam representações sociais e, conforme
veremos adiante, estigmas sociais, independente se os efeitos puramente químicos
destas substâncias permaneceram os mesmos ao longo do tempo, é sobre as distintas
representações sociais e culturais, sobre os diferentes tipos de uso (ou tradições
toxicômanas), que aqui nos interessamos.
53
tradição moderna dos toxicômanos é bem diferente da “utilização
mística dos produtos tóxicos” (XIBERRAS, 1989, p. 17). Em relação a
isso, convém notar que uma das tradições de força do uso de
psicoativos na modernidade e pretende desenvolver potencialidades
criativas e aumentar a sensibilidade artística, chama-se de uso estético
das toxicomanias: “Um primeiro movimento começa a esboçar-se no
século XIX, durante o qual a apetência pelos novos produtos reside
fundamentalmente na busca estética” (XIBERRAS, 1989, p. 17). Nessa
tradição, os usuários são distintos e o fim buscado é algo bastante
específico:
Os adeptos são recrutados nos meios artísticos e a personagem
típica desta forma de sensibilidade e de utilização pode ser
representada por Baudelaire e pelo simbolismo dos anjos
pecadores ou dos poetas malditos [...] A utilização dos
psicotrópicos para fins estritamente criativos encontra no
Ocidente um eco tão profundo que é possível entrever nessas
práticas o nascimento de uma nova tradição da droga. Este
tipo de práticas repercutir-se-ia até os nossos dias, tendo como
chefes de fila, na literatura, nomes como, Artaud, Cocteau e
Michaux (na tendência francesa), e Huxley, Kerouac e
Burroughs, enquanto representantes do movimento alématlântico (XIBERRAS, 1989, p. 17).
A partir dessa fase vemos o despertar de uma longa tradição de
inspiração toxicômana que se desenrola fortemente até os escritores da
década de 50 e 60 do século XX, como William Burroughs e Jack
Kerouac. Ainda que, segundo nosso entendimento, os escritores da
chamada
Geração
Beat19
a
qual
pertencem
os
dois
literatos
supracitados, estes participam de um contexto social muito mais
convulsionado e o uso das drogas se configura como um uso libertário e
radical do próprio corpo, de tal maneira que, outros temas polêmicos
em relação ao uso livre do próprio corpo são tratados pela Geração
Beat, além do consumo extravagante de psicoativos, podemos ver
abundantemente a abordagem do tema da homossexualidade, da
Willer (2010, p. 10), citando o texto The Beat Book do poeta Ginsberg, afirma que o
movimento da Geração Beat “se refere a um grupo de amigos que trabalharam juntos
em poesia, prosa e consciência cultural desde meados da década de 1940 até que o
termo [beat] se tornasse nacionalmente popular no final dos anos 1950” [...] “O grupo
consitia em Kerouac, Neal Cassady, William Burroughs, Herbert Huncke, John Clellon
Holmes e eu [Ginsberg]”, posteriomente se juntaram a eles “Carl Solomon e Philip
Lamantia, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti e Peter Orlovsky”.
19
54
recusa ao trabalho, da prática de pequenos furtos, da liberdade sexual,
dentre outros.
O desregramento, historicamente, nada apresenta de novo.
Marcou a vida de artistas e escritores. A destruição dos limites
entre pornografia e alta literatura já havia sido promovida por
D. H. Lawrence, James Joyce e Henry Miller, cada qual a seu
modo (todos pagando o preço da censura a suas obras). Mas
nunca antes foi tão coletivo. A intricada rede de relações
corresponde a um grau de sexualização inédito no âmbito de
um grupo ou movimento literário. Isso permite falar em
revolução sexual (WILLER, 2010, p. 73).
Desta feita, a Geração Beat, não está de “fora” dessa tradição
“estética” do uso de psicoativos. Queríamos apenas salientar que a
interligação desse aspecto com outros temas para nós significa que a
Geração Beat está num espaço de transição entre duas tradições
modernas de intoxicação voluntária, entre a tradição estética e a tradição
política:
Um segundo período de intrusão marca o século XX,
caracterizando-se por uma nova orientação na utilização das
drogas. Outros produtos psicotrópicos encontram nos círculos
da juventude ocidental um movimento de revolta que sabem
aproveitar. Durante a década de 60, o consumo de droga é
reivindicado como um dos veículos de luta contra a ideologia
liberal e capitalista (XIBERRAS, 1989, p. 18).
De alguma maneira, a Geração Beat faz a ponte geracional entre
essas duas tradições de uso de psicoativos, ela representa a transição
entre a tradição estética e a tradição política Hoobler (1988, p.18)
também reconhece a influência da Geração Beat sobre a juventude na
década de 1950 e anos seguintes, em relação ao consumo subversivo
das drogas, de forma que “participando nas insurreições que se
desenrolam no mundo ocidental, a droga e as práticas que a
acompanham passam a revestir um significado marcadamente político”
(XIBERRAS, 1989, p. 18). A década de 1960 significou um período de
levantes da juventude20, e de movimentos, como os beatnicks, os
“Em várias partes do mundo o movimento de 1968 se fez presente, no entanto, em
cada país teve motivações distintas, ainda que em certa medida a crítica ao
capitalismo apareça em todos: na França onde a Universidade de Sorbonne é fechada
e logo em seguida ocupada pelos estudantes, questionava-se a sociedade capitalista
assim como a sociedade industrial e de consumo. Nos Estados Unidos a revolta
estudantil se volta à recusa a Guerra do Vietnã e ao ambiente vendido pela ideologia
oficial. Na Checoslováquia as reformas políticas da Primavera de Praga davam
prenúncio à crise do socialismo burocrático de Estado. No Brasil, estudantes lutavam
20
55
hippies, dentre outros, e onde o uso de substâncias psicoativas teve
uma conotação amplamente política, onde usar drogas era visto como
um ato libertário, que visava expandir a mente e o corpo para além dos
limites impostos pela ordem vigente.
Passado esse período de rebelião, mas ainda em parte sobre o seu
efeito, é a partir da década de 1970 que boa parte do uso das
substâncias psicoativas tomam um novo caminho, não por acaso, como
analisaremos
adiante,
este
decênio
também
é
um
marco
no
recrudescimento da política proibicionista das drogas.
Finalmente, a partir dos anos setenta e do fracasso destas
micro-revoluções, a droga, tal como os movimentos que a
transportaram, deslocar-se-ão para o centro das grandes
metrópoles ocidentais, onde darão origem, cada um à sua
maneira, a uma espécie de resistência subterrânea. É durante
este período que a droga passa a revestir esse rosto de morte
que começa realmente a perturbar a mentalidade e a boa
consciência do homem ocidental (XIBERRAS, 1989, p. 18).
É sob essa máscara da morte com a qual vestiram determinadas
substâncias psicoativas, que convivemos até hoje. Essa máscara da
morte, nascida nos escombros de pobreza das grandes metrópoles
capitalistas, cuja política proibicionista é, em parte, produto e produtora
desde os anos 1970, quando iniciou uma ofensiva que apenas agora,
mais de 40 anos depois, começa a dar os primeiros sinais de
arrefecimento, com a liberação ainda parca do consumo e da produção
de substâncias mundialmente perseguidas, como a maconha.
A liberação do consumo de maconha, em alguns poucos lugares
do Ocidente, ainda é um passo muito tímido, outras substâncias que
foram e são historicamente consumidas por várias culturas, ainda são
alvos de políticas globais de proibição. O consumo histórico e cultural
de determinadas substâncias mesmo tendo características particulares
em cada povo e cultura não as impediu de serem vítimas de política de
proibição global. Em relação a substâncias tradicionalmente utilizadas,
Zackon (1988) aponta, por exemplo, que o uso do ópio no extremo
Oriente, especialmente na China, foi durante certo tempo, quase tão
contra a ditadura militar, contra a reforma educacional, que iria mais tarde resultar
no fechamento do Congresso e na decretação do Ato Institucional nº 5” (MARTINS
FILHO, 1996).
56
tradicional quanto o uso do álcool no Ocidente (que também já foi alvo
de políticas proibitivas), ainda podemos citar outros casos como o da
folha da coca pelas civilizações andinas, e assim há outros exemplos,
como o uso da Cannabis (ou cânhamo) pela civilização indiana.
Inmemorial es también el empleo del cáñamo en India […] La
tradición brahmánica cree que agiliza la mente, otorgando
larga vida y deseos sexuales potenciados. También las
principales ramas del budismo celebraron sus virtudes para la
meditación. En usos médicos, la planta formaba parte de
tratamientos para oftalmia, fiebre, insomnio, tos seca y
disentería (ESCOHOTADO, 1996, p. 16).
De tal modo que, cada cultura ao longo de processos históricos de
séculos (até mesmo milênios), selecionou e soube lhe dar com
determinados psicoativos, ainda que estas substâncias, por motivos que
aqui analisaremos, hoje tenham sido tornadas ilegais. Dessa forma,
entendemos que as políticas que tornaram ilegais a níveis globais a
produção,
distribuição,
circulação
e
consumo
de
determinados
psicoativos, atingiram diretamente povos e grupos sociais específicos.
Isto é, é uma ilusão considerar que políticas de repressão são postas em
prática contra algo inerte que é uma determinada substância química, o
que se criminaliza, no final das contas, são milhares de pessoas, são as
práticas culturais seculares de povos inteiros. É preciso ter em mente
que a chamada “guerra contra as drogas” não é uma guerra contra
substâncias químicas, mas sim uma guerra contra sujeitos sociais e
históricos
concretos.
Nesse
ponto,
nos
deteremos
mais
pormenorizadamente adiante.
3.2 A Política proibicionista das drogas: um paradigma no século
XX
O século XX foi um século de expansão do consumo de
substâncias
psicoativas,
conforme
já
verificamos
anteriormente,
acomodou em si, de maneira recalcitrante, diversas tradições de
intoxicações voluntárias, passando pela tradição estética até chegarmos
à tradição política na década de 1960. E o tipo de uso sombrio marcado
pela morte e por seu conteúdo criminal, a partir da década de 1970,
57
predominante até hoje. Assim como outras tradições de uso21. Essa
politização e esse conteúdo criminal do uso de substâncias psicoativas
se deram, dentre outras coisas, pela crescente proibição destas ao longo
do século. O primeiro grande passo vitorioso da política proibicionista
no século XX foi a implantação da Lei Seca nos Estados Unidos da
América que durou de 1920 a 1933: “Em 1920, o movimento pela
temperança finalmente conquistou o seu grande objetivo e conseguiu
colocar na ilegalidade a produção e comércio de bebidas alcoólicas”
(ARAÚJO, 2012, p. 61). Segundo Carneiro (2013), a grande pretensão
da Lei Seca, resultado da pressão de grupos de industriais como Henry
Ford aliados a setores puritanos da sociedade, era aumentar a
disciplina entre os operários fabris, onde o álcool era visto pelos patrões
como um vetor de desordem e desobediência nas fábricas, devido ao seu
uso muito difundido entre a classe trabalhadora22.
Em relação ao
consumo de álcool por operários fabris, é bem conhecida a análise de
Engels (2008) em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”,
onde aponta que o aumento do consumo de álcool se deu juntamente
com o processo de industrialização. O álcool, segundo Engels, era um
instrumento de alívio para os operários escaparem da dura realidade e
sobreviverem, não apenas às rotinas estafantes de trabalho, mas
também para aguentar as condições de uma vida miserável nos seus
mais diversos aspectos. Iversen também salienta: “O uso excessivo do
álcool e o risco de dependência destacaram-se especialmente nas
cidades pobres do período industrial dos séculos XIX e XX” (2012, pp.17
-18).
Dias (2012, p. 14) aponta pelo menos outras duas tradições do uso da droga
vigentes no século XX: uma que busca a satisfação individualista através do ato de
consumo e a outra, também enquanto perspectiva de entretenimento, em que os
indivíduos tendem a “drogar-se para experimentar um grande ‘barato’, passar o tempo
ou anestesiar o tédio” (DIAS, 2012, p. 24).
22
“a influência de um forte movimento puritano de temperança foi capaz de impor uma
emenda à constituição norte-americana proibindo o comércio de álcool. Antonio
Gramsci, em “Americanismo e Fordismo”, analisou a Lei Seca nos Estados Unidos
como uma das manifestações dos mecanismos tayloristas de aumento da
produtividade através de um controle estrito não só da linha de produção como
também da vida cotidiana operária, especialmente de sua vida sexual e das formas de
diversão, onde o álcool passou a ser visto como o pior risco para a perda do autocontrole”(CARNEIRO, 2005, p. 05).
21
58
Desta maneira, a Lei Seca Norte-Americana é o exemplo muito
claro do que Foucault caracterizou como a tentativa das formas do
poder disciplinar de dominar os mais diversos âmbitos da vida social,
em vista de produzir uma individualidade dócil e útil, pois “é dócil um
corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2009, p. 118), isto é,
perfeitamente adequado aos fins políticos do crescimento da economia
capitalista.
O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à
modalidade específica do poder disciplinar, cujas fórmulas
gerais, cujos processos de submissão das forças e dos corpos,
cuja ‘anatomia política’, em uma palavra, podem ser postos em
funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de
instituições muito diversas (FOUCAULT, 2009, p. 209).
Da mesma maneira como os Estados Unidos foram os primeiros a
criarem e exportarem o modelo de produção fordista-taylorista, também
foram os primeiros a exportar no século XX a política proibicionista das
drogas. Antes mesmo da Lei Seca, segundo Araújo (2012, pp. 59-60), o
Congresso de Haia realizado em 1911, é tido como um dos marcos da
tentativa de implantação da política de proibição, ainda que, em 1902,
os EUA já estivessem esboçado sua vontade de proibir o comércio do
ópio no congresso em Xangai, onde os objetivos da política proibicionista
fracassaram. No entanto, em 1911, em Haia, esse contexto começou a
mudar e a política proibicionista começa a se impor em nível
internacional:
O novo acordo também não satisfez o objetivo americano. Em
vez de ‘proibir’ o ópio, os 12 países presentes no primeiro
encontro, iniciado em 1911, concordaram apenas em
‘controlar’ sua produção – apenas a exportação seria proibida.
A convenção também incluiu a morfina a heroína e a cocaína
entre as substâncias controladas. Ainda seria necessários dois
encontros (em 1913 e 1914) para conseguir a adesão de 44
países. Ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a
convenção foi incluída como um detalhe do acordo de paz
consagrado no Tratado de Versalhes, forçando sua adesão por
mais alguns países (ARAÚJO, 2012, p. 60).
As ideias norte-americanas defendidas em Haia, não possuíam
nenhum
embasamento
científico,
sua
base
argumentativa
era
moralista, e seu principal ideólogo, tido como o grande idealizador da
59
política proibicionista no século XX, é o Bispo Charles Brent, para quem
“sociólogos
americanos
denominam
como
um
dos
pioneiros
‘empreendedores morais’ da ‘cruzada contra as drogas’” (ARAÚJO,
2012, p. 58). A base moralista não se deve pelo fato de se tratar de um
religioso, algo que não o impediria de ser um especialista no tema, mas
trata-se de fato da ausência de argumentos cientificamente embasados:
O mesmo Bispo Charles Brent seria o chefe da delegação
americana e presidente da comissão em Xangai e sua linha
ideológica seria preservada em toda a sucessão de encontros
internacionais para controle de drogas, que aconteceria no
século 20, lideradas inequivocamente pelos EUA, que desde
aquele momento já eram uma potencia econômica, diplomática
e militar. A composição da delegação americana em Xangai –
formada pelo Bispo, um missionário cristão e um advogado – já
deixava bem claro que a questão era mais religiosa e política do
que cientifica, propriamente. A inclusão do estimulante cocaína
no conjunto de narcóticos (remédios que dão sono) a ser
controlados a partir do segundo encontro, em Haia (1911), é
outro indício de que a ciência não influenciava muito naquelas
decisões (ARAÚJO, 2012, pp. 58-59).
Escohotado (1997) também destaca a ausência quase completa de
argumentos
científicos
que
justifiquem
a
política
proibicionista,
inclusive em relação ao conceito de “estupefacientes”, espécie de
conceito guarda-chuva e pejorativo que os ideólogos norte-americanos
do proibicionismo desejavam englobar, nesta única caracterização,
substâncias tão distintas como a maconha, a cocaína, a heroína e a
morfina, e outras tantas. De tal forma que nos anos 60 o conceito de
“estupefacientes” é considerado a-científico pela própria Organização
Mundial de Saúde (ESCOHOTADO, 1997, p. 30).
No entanto, os acordos em Haia (1911) visavam apenas o controle
de parte do comércio, mais especificamente as exportações de algumas
substâncias, diferentemente da Lei Seca que previa penas severas
àqueles que se dispusessem a produzir em larga escala e comercializar
o álcool:
Não havia, porém, uma criminalização do uso. Ninguém
poderia ser preso por beber ou por portar bebidas alcoólicas,
mesmo que elas fossem obtidas com contrabandistas. Na
verdade era permitido inclusive fermentar e destilar sua
própria bebida, desde que ela não fosse comercializada de
forma alguma. Ou seja, a situação legal do álcool nos EUA
durante a Lei Seca era semelhante à dos países que, a partir do
fim do século 20, descriminalizaram a maconha. O foco da
60
repressão seriam os traficantes – e eles não tardaram a
aparecer (ARAÚJO, 2012, p. 61).
Em um tempo relativamente curto, milhares de bares foram
fechados nos EUA, se impôs rapidamente uma repressão forte ao
comércio, o que não impediu de maneira alguma que o número de
traficantes e contrabandistas de álcool crescesse rapidamente, e junto
com eles uma explosão nos índices de criminalidade, que cresciam na
mesma medida em que a guerra pelo controle de territórios e rotas
comerciais entre as quadrilhas de contrabandistas aumentava. O que
fez disparar os índices de homicídios na maioria das grandes cidades
americanas, as quadrilhas com os cofres cada vez mais cheios de
dólares graças à mina de ouro que a Lei Seca representava para suas
finanças, de tal maneira, que se tornou muito fácil o financiamento de
outros tipos de crime, como o jogo, a exploração da prostituição e a
extorsão que expandiam suas influências, e também sua ação no
mercado legal, para lavagem de dinheiro junto a bancos e empresas de
fachadas.23 Com o negócio do álcool cada vez mais lucrativo, visto que a
proibição elevava os preços, livra os empreendedores de impostos e
outros encargos legais como os direitos trabalhistas de empregados,
sobra dinheiro para a corrupção de policiais, políticos, juízes e outras
autoridades, ou seja, a proibição foi o paraíso financeiro para a máfia,24
que desde então passou a ser uma força presente em diversos âmbitos
da sociedade capitalista. Como argumenta Debord.
A Lei Seca norte-americana – grande exemplo das pretensões
dos Estados deste século ao controle autoritário de tudo, e dos
23
Qualquer semelhança entre a espiral de violência e corrupção gerada pela Lei Seca
norte-americana e os efeitos devastadores causados pela política proibicionista das
drogas hoje, não é mera coincidência para a maioria esmagadora dos pesquisadores
do tema: “A ‘Lei seca’ norte-americana (Volstead act, de 1919), revogada vinte anos
mais tarde, depois de haver alimentado a máfia, gerado uma pavorosa corrupção na
polícia na administração da justiça, seria um bom parâmetro para se pensar em torno
dos malefícios que a incriminação dos usos de drogas representa” (TORON, 1997, p.
23).
24
O mafioso mais conhecido dessa época foi Al Capone, que lucrou milhões de dólares
com a proibição do comércio do álcool, que virou um personagem imortalizado pela
literatura e pelo cinema. Até hoje ostenta o título de ter sido o homem a estocar a
maior quantidade de álcool já vista, cerca de 50 mil litros guardados de maneira ilegal.
Quando foi acusado por uma série de crimes, proferiu uma brilhante frase relembrada
por escritores e cineastas até hoje: “Não entendo como alguns escolhem o crime,
quando há tantas maneiras legais de ser desonesto”.
61
resultados que disso decorrem – deixou ao crime organizado,
durante mais de uma década, a gestão do comércio das
bebidas alcoólicas. A máfia, a partir de então rica e experiente,
ligou-se à política eleitoral, ao mundo dos negócios, ao
desenvolvimento do mercado dos assassinos profissionais, a
certos aspectos da política internacional. Durante a Segunda
Guerra Mundial, ela foi favorecida pelo governo de Washington
em troca de sua ajuda na invasão da Sicília. Ao retornar à
legalidade, o álcool foi substituído pelas drogas, que passaram
a ser a mercadoria-vedete do consumo ilegal. Depois, a máfia
assumiu grande importância no setor imobiliário, nos bancos,
na alta política e nos grandes negócios de Estado [...]
(DEBORD, 1997, p. 219).
No início da década de 1930, a Lei Seca começou a ser bastante
contestada, por um lado, em razão do fracasso da política proibicionista
que só conseguiu aumentar tremendamente o nível de violência nos
anos em que esteve vigorando, por outro lado, porque vários setores da
sociedade começavam a se organizar para lutar pelo direito de poder
consumir, produzir, distribuir e comercializar livremente o álcool.
Segundo Carneiro (2013), iniciou-se uma imensa mobilização popular
em prol da liberação do álcool, com passeatas que chegaram a contar
com cerca de 50 mil operários nas ruas.25 Por seu turno, a crise de
1929 teria representado um verdadeiro colapso para as contas do
governo norte-americano e muitos grupos políticos começaram a
defender a ideia de que a liberação do álcool e sua consequente
tributação poderiam ajudar a retirar as contas estatais do vermelho.
Dessa forma, as eleições presidenciais de 1932 contribuíram para dar
um desfecho rápido ao processo:
Na eleição presidencial de 1932, o candidato Franklin
Roosevelt incluiu a luta contra a proibição entre suas
promessas de campanha. Eleito, ele a cumpriu. Com seis
meses de mandato, a proibição foi extinta, em 5 de dezembro
de 1933. ‘Eu confio no bom senso do povo americano de que
ele não trará pra si o infortúnio do uso excessivo de bebidas
alcoólicas, para o prejuízo da saúde, moral e da integridade
social’, declarou o presidente em um pronunciamento de rádio
naquele mesmo dia. Os impostos arrecadados dali em diante
com a volta da droga o ajudariam a pagar a conta do New Deal,
programa de desenvolvimento que ele lançou para recuperar a
economia do país, falida desde a queda da bolsa em 1929.
25
“As atitudes antialcoólicas, apesar do seu triunfo momentâneo no início do século
XX, perderam influência no mundo ocidental, onde outras drogas ilícitas (maconha,
cocaína e opiáceos), a partir especialmente do fim da Lei Seca, nos anos 30, tomaram
o seu lugar como bodes expiatórios farmacológicos e produtos de um rendoso e
hipertrofiado comércio clandestino” (CARNEIRO, 2005, p. 6-7).
62
Derrubar a proibição, afinal, foi muito mais simples do que a
levantar. Afinal, as pessoas não precisavam imaginar ou
especular como seria o mundo sem a lei seca. Elas podiam
simplesmente lembrar (ARAÚJO, 2012, pp. 63-64).
Se de um lado, o fim da Lei Seca na década de 1930 representou
uma grande derrota para os grupos que defendiam as políticas
proibicionistas, de outro, em 1936, esses mesmos grupos obtiveram
uma grande vitória na convenção de Genebra, que pela primeira vez
previa pena para usuários e traficantes de substâncias como maconha,
cocaína e heroína:
Em 1936, os países, enfim, concordaram em ‘punir
severamente, particularmente com prisão’, a produção, a
compra, a venda e a posse das substâncias citadas na
Convenção – que desde o primeiro dos três encontros passou a
incluir a Maconha, então chamada de Indian Hemp.
Curiosamente, os EUA não assinaram a convenção desse ano,
por considerá-la branda. Apesar de esses tratados não terem
sido seguidos com muito afinco pela maioria dos países, as
convenções de Genebra foram um divisor de águas na política
internacional de drogas, ao prever, pela primeira vez, penas de
prisão tanto para traficantes como para usuários (ARAÚJO,
2012, p. 60).
Os Estados Unidos não assinaram os termos da convenção por
considerá-la branda demais, o que não os impediram de internamente
iniciar políticas cada vez mais severas aos usuários e comerciantes
daquelas substâncias. O critério para a escolha da criminalização
dessas substâncias, como já mencionado anteriormente, não possuía
nada de científico. O critério de escolha foi político. Segundo Rodrigues
(2008), proibiram-se nos EUA substâncias que estavam ligadas
diretamente a grupos étnicos que eram marginalizados na sociedade
estadunidense, ou seja, a maconha
comumente
pelos
negros
e
e a cocaína consumida mais
mexicanos
e
por
outros
migrantes
hispânicos, e o ópio consumido pelos migrantes chineses. Segundo
Hoobler (1988, p. 13) os imigrantes chineses teriam introduzido o ópio
nos EUA desde meados do século XIX. Já a maconha nas décadas de 20
e 30 “fez sua aparição no cenário norte americano. Inicialmente foi
levada em grandes quantidades por imigrantes mexicanos que iam para
os EUA à procura de emprego” (HOOBLER, 1988, p. 16). Isto é, a
“guerra às drogas” não é travada contra substâncias químicas, mas
63
contra sujeitos sociais concretos, e nesse caso, trata-se de sujeitos
sociais bem específicos. Juntamente com a criminalização dessas
substâncias, criminalizaram-se povos, classes, grupos sociais inteiros.
A proibição das drogas é até hoje nos EUA, o dispositivo de poder
acionado sempre que se pretende intervir repressivamente junto a esses
grupos. As formas de vigilância e de punição, como analisa Foucault,
são bastante criteriosas nas diferentes maneiras de classificar,
enquadrar e produzir os diferentes grupos de delinquentes que as
relações de poder pretendem construir:
A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades,
de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer
pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil
outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em
resumo, a penalidade não ‘reprimiria’ pura e simplesmente as
ilegalidades; ela as ‘diferenciaria’, faria sua ‘economia’ geral
(FOUCAULT, 2009, p. 258).
O escritor William Burroughs, pertencente à já mencionada
Geração Beat, na introdução de um dos seus livros mais conhecidos
“Junky”, publicado em 1955, escreve sobre o recrudescimento das leis
contra as drogas nos Estados Unidos, período que diz respeito às
décadas de 1950 e 1960, onde o discurso de que seria necessário um
combate ostensivo e repressor às drogas, que incluía a punição dos
traficantes e usuários de maneira quase indistinta, foi alimentado pela
mídia jornalística, por autoridades policiais e pelos ideólogos26 da
política proibicionista:
Qualquer lei antinarcótico é tida pelo público em geral como
uma coisa boa. Por esse motivo, o campo da legislação dos
narcóticos tornou-se um laboratório de testes para uma espécie
de lei nova dos EUA, mais comum em ditaduras. Nos estados
26
Podemos citar como um dos grandes ideólogos da política proibicionista das drogas o
chefe do Bureau Federal de Narcóticos, criado nos Estados Unidos em 1932 com a
finalidade de combater a produção, a circulação e o consumo de drogas, “Harry
Anslinger foi o chefe do Bureau desde sua fundação até a década de 50. Ele teve
grande influência na formação da opinião pública sobre a maconha no período
compreendido nessas duas décadas. Anslinger liderou uma eficiente campanha contra
a ‘erva daninha assassina’, cujo uso, segundo ele, levava ao comportamento criminoso
e a experimentar drogas mais perigosas. Por sua recomendação em 1937, foi aprovada
uma lei contra a maconha. Anslinger também combateu todas as tentativas de
classificar os viciados em drogas como doentes. Ele era categoricamente contra a
legalização do uso de drogas sob supervisão médica. A única concessão do Bureau
feita para os usuários de drogas foi a instalação de um hospital em Lexington,
Kentucky, onde os viciados podiam se internar para serem desintoxicados”
(HOOBLER, 1988, pp. 16-17).
64
da Louisiana e do Kentucky, ser viciado é crime punível com
prisão (na Louisiana, de dois a cinco anos; no Kentucky, um
ano). Trata-se de legislação ditatorial, que condena um jeito de
ser. Na lei da Louisiana, não são especificados os locais nem as
circunstâncias comprometedoras, tampouco é definido o termo
‘viciado’ (BURROUGHS, 2005, p. 251).
A distinção entre traficantes e usuários praticamente inexistia,
“As autoridades dos Estados Unidos fazem a menor distinção, e as
penas
por
tráfico
e
por
porte
são
praticamente
idênticas”
(BURROUGHS, 2005, p. 250). Até mesmo o ato de tentar tratar um
drogado era algo perseguido pelas autoridades policiais, “vinte mil
médicos foram processados por tentarem tratar drogados, milhares
foram multados e presos, entre 1935-1953, no que a associação médica
de Nova York chamou de ‘guerra aos médicos’” (GINSBERG, 2005, p.
270) até mesmo o fato de apenas conversar sobre drogas dentro do
ônibus ou no metrô, quem o fizesse corria o risco de ser preso, o que o
próprio Ginsberg (2005) chamou de “paranoia ditatorial das Agências de
Narcóticos” (p. 269). O significado dessa política, para Ginsberg, que
não apenas refletia sobre o assunto, mas era sua vítima direta, afirma:
A verdade básica e simples é que mancomunada com o crime
organizado, a Agência de Narcóticos estava envolvida no tráfico
feito por debaixo do pano; portanto, criara mitos reforçando a
‘criminalização’ dos viciados, em vez de proporcionar-lhes
tratamento médico. O motivo era puro e simples: a ganância
por dinheiro, por salários e pelo lucro da chantagem e das
ilegalidades, à custa de um grupo de cidadãos classificados
pela imprensa e pela polícia de ‘viciados’ (GINSBERG, 2005, p.
270).
A produção de párias sociais na sociedade americana foi o
resultado dessa política proibicionista, como afirma Carneiro (2013).
Essa política foi exportada para centenas de países e nos lugares onde
se instaurou tem produzido sistematicamente efeitos semelhantes.
Dessa maneira, observamos sob a ótica foucaultiana, que o fenômeno
do poder disciplinar na sociedade capitalista, expresso nos diferentes
tipos de punição e vigilância, não tem apenas a função de dizer “não”,
mas de produzir e de moldar a realidade, obedecendo suas finalidades
estratégicas, “de fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios
de objetos e rituais de verdade” (MACHADO, 2012, p. 20). Assim como,
“o poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção do
65
poder e do saber” (MACHADO, 2012, p. 24). Deste modo, gestou-se nos
EUA uma “nova economia do poder de castigar” (FOUCAULT, 2009, p.
68), em relação a usuários e comerciantes de distintas substâncias, que
a partir de então classificada pelo rótulo simples e negativo de drogas.
Porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio
da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação. Os
castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global
das ilegalidades (FOUCAULT, 2009, p. 258).
Nos anos do pós-guerra, a ONU recém-criada, serviu como
mediadora para a imposição da política proibicionista para o mundo todo
a partir de suas convenções organizadas nos anos de 1961, 1971 e
1988. Em 1961, as resoluções tomadas nesse congresso foram no
sentido de tentar reprimir a produção global de algumas substâncias,
especialmente a oferta: “a convenção também criou, pela primeira vez,
uma escala para enquadrar as substâncias em diferentes níveis de
controle (com a maconha e a folha de coca entre as mais perigosas)”
(ARAÚJO, 2012, p. 70). Já no congresso de 1971, quando se tratou de
incluir novas substâncias nas listas das tidas como perigosas, as
resoluções do congresso foram bem mais brandas, não existe mistério
nenhum em relação a essa mudança de postura sensível. No congresso
de 1971, a principal discussão foi em torno das drogas sintéticas, isto é,
das drogas fabricadas pelos grandes laboratórios farmacêuticos,
(estimulantes,
anfetamínicos,
sedativos),
que
tiveram
uma
larga
popularização na década de 1960:
Como o alvo dessa convenção eram drogas produzidas por
indústrias importantes para a economia de países
desenvolvidos (e politicamente influentes na ONU), os controles
impostos pelo documento são muito mais brandos do que da
convenção de 1961 (ARAÚJO, 2012, p. 77).
Novamente, temos diante de nós mais uma prova de que a
classificação das substâncias tidas como perigosas, não leva em conta
nenhum critério médico, os critérios na verdade são os interesses
políticos e econômicos das nações e grupos socialmente hegemônicos,
dentre os quais, os Estados Unidos ocupam o lugar central. Apesar da
convenção de 1971 não ter expandido vorazmente sua perseguição às
substâncias sintéticas, isso não impediu que a escalada global de
66
“guerra às drogas” ganhasse força nesse período, é claro que o alvo não
eram as drogas da indústria farmacêutica europeia e norte-americana,
mas continuou sendo as substâncias étnicas, que eram identificadas
com os povos do terceiro mundo. Com o governo Nixon, na década de
1970, as drogas foram consideradas o inimigo número 1 da sociedade
americana:
Nixon foi o primeiro presidente norte-americano a fazer um
esforço concentrado no sentido da internacionalização do
combate as drogas, com consequências indesejáveis para
muitos países e efeitos catastróficos para alguns, como a
Colômbia e o Afeganistão que já se encontravam divididos por
conflitos e possuíam governos brutais, porém débeis. A partir
da década de 1970, os esforços para coagir ou subornar outros
países para que aceitassem um regime global de controle de
drogas baseado nos Estados Unidos se intensificaram as
expensas do exame atento de modelos alternativos, como o
britânico, que já foi diferente e bem-sucedido (WOODIWISS,
2007, p. 23).
O governo Nixon empreendeu uma verdadeira campanha de
guerra contra as drogas. Essa campanha, que não se restringiu apenas
às suas fronteiras, mediante diplomacia, ameaças de embargos,
subornos e outras táticas, conseguiu com que a maioria dos países,
sobretudo no Ocidente, adotassem a mesma política em seus territórios.
A perseguição às drogas que desde a década de 1930 já era bastante
ampla, se recrudesceu e se expandiu para outros países no mundo, os
resultados dessa extrema proibição, e da criminalização de milhões de
pessoas, sejam usuários ou traficantes, não foi muito diferente dos
resultados da Lei Seca na década de 1920, ou seja, não conseguiu
acabar com o consumo, nem diminuiu a oferta, pelo contrário, todas as
pesquisas mostram que a partir da década de 1970, o acesso às drogas
se tornou muito mais fácil em qualquer grande cidade do Ocidente,
como aponta Woodiwiss (2007), e os únicos resultados realmente
concretos que atingiram foram a produção de uma massa imensa de
encarcerados, a elevação gigantesca dos índices de homicídios e de
outros tipos de crime que passaram a ser financiados pelo dinheiro do
tráfico:
As movimentações para a violência relacionada com o tráfico de
drogas
permaneceram
em
geral
idênticas
às
que
acompanharam a proibição de bebidas alcoólicas: proteção de
67
território ou mercadoria do alcance de rivais, desestímulo a
informantes ou roubo de dinheiro e drogas de outros
traficantes. A polícia avalia que mais de 100 dentre os 690
homicídios ocorridos em Detroit em 1971 estavam relacionados
com o tráfico de heroína. Em 1981, houve em Nova York 393
assassinatos ligados a drogas, inclusive 160 nos quais
vendedores de drogas foram mortos durante assaltos. A partir
de meados de 1970, a taxa de homicídio do sul da Florida
saltou mais de 400% em poucos anos, especialmente devido à
violência ligada ao tráfico. Em 1981, o médico legista de
município de Dade foi obrigado a alugar um caminhão
refrigerado para lidar com o aumento do número de cadáveres,
e já então Miami havia se tornado uma das cidades mais
perigosas do mundo. Nos últimos anos houve outro
recrudescimento da violência relacionada com o tráfico de
drogas (WOODIWISS, 2007, p. 21).
Foucault, em “Nascimento da Biopolítica”, elenca alguns dos
efeitos da política proibicionista das drogas:
Primeiro, isso aumentou o preço unitário da droga. Segundo,
beneficiou e fortaleceu a situação de monopólio ou de oligopólio
de certo número de vendedores, de grandes traficantes e de
grandes redes de refino e distribuição de droga acarretando,
como efeito de monopólio e oligopólio, um aumento nos preços,
na medida em que não se respeitavam as leis do mercado e da
concorrência. E, por fim, terceiro, outro fenômeno mais
importante no nível da criminalidade propriamente dita: o
consumo da droga, pelo menos no caso dos intoxicados graves
e de certo número de drogas, essa demanda de droga é
absolutamente inelástica, ou seja, qualquer que seja o preço o
drogado vai querer encontrar sua mercadoria e estará disposto
a pagar qualquer preço por ela. E é essa inelasticidade de toda
uma camada de demanda de droga que vai fazer a
criminalidade aumentar – claramente falando -, vai-se assaltar
alguém na rua para lhe tomar dez dólares, para comprar a
droga de que se necessita. De modo que, desse ponto de vista a
legislação, o estilo de legislação, ou antes, o estilo de enforço da
lei que havia sido desenvolvido no decorrer dos anos 1960
revelou-se um fracasso sensacional (FOUCAULT, 2008, p. 351352).
O
paradigma
proibicionista
não
vai
servir
apenas
como
prerrogativa política para a intervenção policial somente nos guetos
norte-americanos dominados pelas quadrilhas que se beneficiam com a
proibição, mas servirá também como discurso de legitimação para
intervenção militar em diversos locais do globo. Woodiwiss (2007)
aponta como a política proibicionista das drogas justificou intervenções
militares no sudeste asiático, em países como a Birmânia, Laos,
Camboja e Vietnã (ligados à produção de papoula e seus derivados
como heroína e morfina), e principalmente na América do Sul em países
68
como Peru, Bolívia e Colômbia (ligados historicamente à produção da
folha da Coca, matéria prima de produção da cocaína) da mesma forma
aconteceu na Nigéria (país encarado como mediador entre a produção
sul-americana de cocaína e sua exportação para Europa). Os Estados
Unidos, especialmente seus tentáculos armados e repressores: CIA, FBI
e forças armadas, estão ligados a operações militares em diversas
partes do mundo, não apenas para repressão da produção global de
drogas, mas para a própria administração dos negócios. Ainda, segundo
Woodiwiss (2007), os EUA comumente se associam a grupos de
traficantes para combaterem governos que não estejam alinhados com
seus
interesses,
foi
o
caso
da
aliança
da
CIA
com
grupos
anticomunistas do sudeste asiático, que se utilizavam do tráfico para
financiamento:
Armadas originalmente pela CIA e seus aliados os nacionalistas
chineses anticomunista do kuomintang (KMT), as operações de
Khun Sa [tido como um dos maiores traficantes de ópio do
mundo] foram protegidas tanto pelo governo da Birmânia
quanto da Tailândia, e se expandiram exponencialmente nas
décadas de 1970 e 1980. No final da década de 1980, ele
controlava muitas regiões de cultivo de ópio, assim como as
rotas comerciais internas da Birmânia e as refinarias que
convertiam a matéria-prima em heroína (WOODIWISS, 2007, p.
188).
Da mesma forma, Roio (1997) demonstra à associação da CIA com
traficantes latino-americanos, facilitando a circulação de drogas no
continente, a fim de levantar fundos, para combater governos que não
estivessem alinhados com os interesses de Washington:
Os que possuem boa memória se recordarão do processo
contra o coronel Oliver North, que terminou com sua
condenação. Os atos deste processo demonstraram com nomes
e fatos que por vários anos a CIA (Central Intelligence Agency) e
a DEA [Departamento Antinarcóticos Americano] estiveram em
contato com os chamados cartéis colombianos, protegendo a
entrada de drogas nos Estados Unidos. Tal operação servia
para encontrar fundos ilegais para financiar as forças
opositoras ao governo Sandinista da Nicarágua. Lembremos
também que estes fatos foram provados por uma comissão do
senado, presidida pelo já citado senador John Kerry. (ROIO,
1997, p. 120-121).
69
Tanto Roio (1997) como Woodiwiss (2007) demonstram também
que os fluxos dos capitais internacionais do tráfico são escoados para
bancos norte-americanos. Os EUA são o país que mais lucra com o
negócio mundial das drogas, tudo indica que sua posição mundial de
proibição diz respeito a uma ampla estratégia comercial para manter as
redes de oligopólio, já mencionadas por Foucault, sob seu controle.
Dessa
forma,
concluímos
que
dialeticamente
articulada
à
repressão interna, a política proibicionista como paradigma que aos
poucos se impôs para o mundo todo, funciona como braço das políticas
imperialistas dos EUA, como justificativa política para intervenções
militares em diversas partes do mundo, e como um lucrativo nicho
comercial
mantendo
o
monopólio
com
a
força
das
políticas
proibicionistas. A guerra às drogas, articulada para dentro e para fora
da nação, serve como discurso de legitimação para repressão dos
grupos internos socialmente marginalizados, e para intervenção externa
junto a nações a que se pretende manter sob a tutela imperial, dessa
maneira, não é absurdo dizer que, pelo menos em relação à geopolítica
mundial, a política de “guerra contra as drogas”, representou e ainda
representa o equivalente ao discurso de “guerra ao terror” promovido
pela maior potência militar do mundo contra os inimigos da sua política
nas partes mais distintas do globo.
A política proibicionista alinhada com os interesses norteamericanos continuou ao longo dos anos sendo referendada e difundida
pela ONU nas convenções de 1988, de 1998 e de 2009, ainda que,
contraditoriamente, em cada uma dessas convenções se constate que
praticamente nenhuma das metas estabelecidas pela conferência
anterior tenha sido alcançada. A política proibicionista e a guerra contra
as drogas nunca são postas em questão, isto é, de maneira quase
esquizofrênica, repete-se rigorosamente os mesmos métodos querendo
sempre chegar a resultados diferentes.
Segundo Carneiro (2013), a guerra às drogas é possivelmente a
guerra mais longa e com maior número de encarcerados da época
moderna. Os Estados Unidos são o país com o maior número de
70
encarcerados do mundo, chegando a possuir cerca de 25% de todos os
presos do planeta, cuja maioria são negros e hispânicos. Wacquant
(2008) afirma que a estratégia de encarceramento em massa está
articulada
com
o
avanço
das
políticas
neoliberais,
onde
sistematicamente há uma tendência de substituir o Estado de bem estar
social vigente nos trinta anos do pós-guerra por um estado penal, cujas
medidas policialescas, seriam as escolhidas por excelência para
mediação da totalidade dos conflitos sociais, de maneira que, isso se
traduziria para as camadas mais pobres da sociedade e socialmente
mais vulneráveis, em relação ao acesso a direitos fundamentais, como
uma política punitiva. A agenda neoliberal, dessa forma, é instituída em
larga escala articulada com a política de punição aos pobres e de
encarceramento em massa tendo como um dos vetores principais a
política de guerra às drogas.
Países periféricos como o Brasil importaram de maneira mais
enfática a política proibicionista, a partir de tratados assinados na
década de 1970, sob pressão norte americana e de sua política de War
on Drugs:
A partir de 1976, alinhando-se à orientação internacional da
War on Drugs, traduzida em tratados que assinou, o país
[Brasil] escolheu principalmente o caminho repressivista,
punindo com penas privativas de liberdade tanto usuário como
o comerciante de drogas, muito embora distinguindo a
extensão das penas entre essas duas categorias. Contribui
para essa política não apenas a influência dos organismos
internacionais – notadamente o compromisso norte-americano
de perseguir a qualquer custo a erradicação do crime [...] o
Brasil viu-se compelido a adotar o discurso proibicionista
(IVERSEN, 2012, p. 109).
Os resultados alcançados no Brasil não foram diferentes dos
alcançados pela maioria esmagadora dos países que adotaram essa
mesma postura, semelhantes aos resultados norte-americanos, que
apesar de seu “fracasso” visível, pelo menos em relação aos seus
objetivos declarados, continua buscando impor seu modelo repressivo a
nível mundial:
O resultado da política repressiva é visível. O Brasil, no final de
2011, ultrapassou a marca de meio milhão de presos,
situando-se entre os cinco países com maior taxa de
encarceramento do mundo. Cerca de 40 por cento desse
71
contingente não tem ensino fundamental completo, e nada
menos que 25 por cento de toda a população carcerária é
representada por indivíduos com ligação ao tráfico ou condutas
similares. E os números aumentam consideravelmente a cada
ano, em outro extremo, os Juizados Especiais Criminais,
competentes para o julgamento dos usuários, tem serviço de
sobra o que demonstra que é imponderável (mas certamente
muito alto) o índice de consumidores em todos os quadrantes
do país (IVERSEN, 2012, p. 112).
Da
mesma
forma
que
nos
Estados
Unidos,
as
políticas
proibicionistas são articuladas com a punição em larga escala de grupos
socialmente marginalizados. Em suma, segundo Soares (2000, p. 267),
as vítimas do tráfico no Brasil são “a maior parte, homens, jovens,
pobres e não-brancos”, sendo que, sobretudo, pela condição brasileira
de país capitalista periférico, a política proibicionista teve resultados
catastróficos nas últimas décadas principalmente para “aqueles que
moem no aspro” (ARANTES, 2004, p. 22).
O tráfico de drogas no Brasil ganhou grandes proporções, em
algumas cidades como no Rio de Janeiro e em São Paulo, cresceu de tal
forma a ganhar status de poder paralelo. Ainda segundo Soares (2000),
as quadrilhas que agem associadamente com autoridades policiais, com
autoridades políticas e com o sistema judiciário (nada diferente do que
vimos em relação ao exemplo da Lei Seca dos Estados Unidos, ou
mesmo das políticas proibicionistas das drogas), e possuem dinheiro o
suficiente para controlar militarmente territórios imensos nas principais
cidades brasileiras, sendo que o resultado da luta fratricida dessas
quadrilhas entre si e com as forças policiais, colocam o Brasil na
liderança de muitos rankings mórbidos mundiais. Soares (2000, p. 267)
afirma que em torno de 65% dos homicídios na cidade do Rio de Janeiro
estão ligados ao tráfico de drogas e cita pelo menos treze pontos que
colocariam o tráfico de drogas quando associado ao tráfico de armas
como a forma de crime mais dinâmica e perigosa que o Brasil conhece.
1.
Provocam um assustador número de mortes [...] 2.
Desorganizam a vida associativa e política das comunidades
[...] 3. Impõe um regime despótico as favelas e bairros
populares [...] 4. Recrutam forças de trabalho infantil e
adolescente para descarta-la pela via previsível mais
incontornável da morte prematura [...] 5. Disseminam valores
belicistas contrários ao universalismo democrático e cidadão
[...] 6. Destroem estruturas familiares [...] 7. Degradam a
72
lealdade comunitária tradicional [...] 8. Fortalecem e
disseminam o patriarcalismo, a homofobia [...] 9. Estimulam
relações que tendem a estigmatizar a pobreza e os pobres [...]
10. Promovem o entrelaçamento entre o chamado crime de
colarinho branco, praticados por membros das camadas
médias e das elites, e a criminalidade que prospera nas favelas
e nos bairros populares [...] 11. Atuam como fonte de muitas
outras atividades criminosas [...] 12. Induzem muitos policiais
à corrupção [...] 13. Penetram, pela via das drogas, em toda
sociedade e no Estado, como nenhuma outra modalidade
criminosa (SOARES, 2000, pp. 267-277).
Zaccone (2013) indica que a letalidade do sistema penal das
proibições das drogas no Brasil, demonstrando em seu estudo sobre os
autos de resistência no Rio de Janeiro, provando que há uma matança
patrocinada pelas forças estatais e justificada sob os auspícios da
legalidade, com aval do Ministério Público, Justiça e demais órgãos,
desde que se prove a ligação do executado com algum tipo de crime, em
especial com o tráfico de drogas, mesmo que esse sujeito tenha sido
baleado pelas costas. Com o apoio de todo aparelho judiciário, há o
arquivamento em massa de processos onde se anexam a ficha criminal
do sujeito assassinado pela polícia para justificar a sua eliminação. O
panorama traçado por Zaccone (2013) em relação ao patamar do
extermínio legalizado, em que a situação de guerra as drogas alcançou
no Brasil, ou pelo menos no Rio de Janeiro, é muito semelhante àquilo
que o filósofo Giorgio Agamben caracterizou como totalitarismo
moderno27:
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido,
como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma
guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos
adversários políticos, mas também de categorias inteiras de
cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis
ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um
estado de emergência permanente (ainda que eventualmente
não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas
essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos
chamados democráticos. [Grifos meus] (AGAMBEN, 2004, p.
13).
Ainda segundo Zaccone (2013), a política de guerra às drogas no
Brasil mata mais gente do que todos os países juntos onde existe a
pena de morte.
Para aprofundar a análise de totalitarismo e Estado de exceção à moda brasileira,
ver Arantes (2004; & 2007).
27
73
No entanto, não são apenas as grandes metrópoles do sudeste
brasileiro que são afetadas pelo problema do tráfico. Durante a década
de 1990 e principalmente na primeira década dos anos 2000 o
problema se alastrou por diversas regiões do país, e a região onde mais
cresceu o tráfico e a violência no país foi o Nordeste brasileiro. Nesse
período, as estatísticas que dizem respeito a homicídio passaram a ser
lideradas por capitais de estados nordestinos. Segundo o Núcleo de
Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEVUSP),
28
no
período que vai de 2000 a 2006, a região Nordeste teve um crescimento
de 57,09% no índice de homicídios, sendo a região do país que mais
cresceu nesse período. Das cinco capitais que mais cresceram o índice
de homicídios à mesma época, quatro delas se encontram no Nordeste e
São Luís é uma delas. A realidade do estado do Maranhão não é muito
diferente dos outros estados do Nordeste. Ainda segundo NEVUSP, a
taxa de homicídios cresceu em São Luís 80,32% nos anos de 2000 a
2006, sendo a quinta capital brasileira que mais cresceu em número de
homicídios. E teve um crescimento de 267,4% em relação a homicídio
por arma de fogo nos anos de 2000 a 2010. Em 2008, a Polícia Federal
estimou
que
o
estado
consumidores de merla
do
29
Maranhão
estava
entre
os
maiores
do país. Dias (2009) demonstra como o
consumo de merla é um dos motores de violência no bairro da
Liberdade, considerado um dos mais violentos da capital maranhense:
“Além das armas, a presença das drogas, especialmente da merla,
consegue de diversas formas contribuir para a desarticulação da
juventude desse bairro ao mesmo tempo que oxigena a guerra interna”
(DIAS, 2009, p. 129). Para Dias, a guerra interna no bairro da
Liberdade, isto é, a interminável matança mútua entre inimigos
residentes no mesmo bairro, é alimentada pelo tráfico de drogas e pelas
autoridades de segurança que estimulam a violência endógena nos
bairros de periferia propagando um discurso de que se trata de
Fonte: www.nevusp.org
Segundo Araújo (2012), a merla é um subproduto da cocaína, de consistência
pastosa. Consumida de forma semelhante ao crack, sendo fumada de forma pura ou
misturada com maconha ou tabaco.
28
29
74
bandidos exterminando-se uns aos outros. Isso tudo acaba submetendo
as populações desses bairros a um cotidiano com características
genocida onde as vidas de pessoas cada vez mais jovens são ceifadas,
seja mediante a guerra interna ou pelas mãos da própria polícia:
Membros de grupos rivais que são presos e jogados na mesma cela,
solturas inesperadas de jovens jurados de morte dentro do bairro, a
política de ‘lavar as mãos’ por parte da polícia diante dos conflitos da
‘guerra interna’ que envolve estes jovens, são alguns indícios que
apontam para a hipótese de que a ‘mão invisível’ do Estado, através
de seu ‘braço de ferro’ contribui para o acirramento desses conflitos
(DIAS, 2009, p. 83).
O Nordeste é a região onde há o maior número de adolescentes
consumidores de crack e similares (FIOCRUZ, 2012), surpreendendo as
expectativas dos pesquisadores que anteriormente acreditavam que era
o Sudeste que liderava esse ranking. Segundo a divulgação na imprensa
da Delegacia de Entorpecentes, em São Luís o volume de apreensão de
crack entre os anos de 2009 e de 2010 cresceu 540%30. As seguidas
rebeliões nos presídios maranhenses, nos anos de 2010 e sobretudo, a
crise que se instaurou no Complexo Penitenciário de Pedrinhas no ano
de 2013, demonstram o quanto se fortaleceram e o quanto cresceram as
quadrilhas que controlam o tráfico na capital e no estado do Maranhão.
Na primeira década dos anos 2000, houve alguns estudos nesse
campo que tentaram abordar a problemática da violência no Estado do
Maranhão.
No
entanto
esses
estudos
se
centraram
na
capital
maranhense. Além do já citado estudo de Dias (2009) sobre o bairro da
Liberdade e o trabalho de conclusão de curso do autor destas linhas
(SILVA, 2010), há o estudo de Marmanillo (2007) que versa sobre o
medo na imprensa ludovicense ligado a notícias sobre violência durante
o ano de 2004. E o estudo de Costa (2008) sobre atos de linchamentos e
representações da violência na imprensa de São Luís.
Desconhecemos a existência de estudos que tenham analisado a
problemática da droga e da violência nas pequenas cidades do interior
do Estado. Esse é um dos grandes desafios desse trabalho, onde além
da escassez de trabalhos semelhantes, contamos também com a
30
Notícia divulgada em v1.portalhoje.com. Acessada em janeiro de 2014.
75
inexistência de informações de cunho estatístico sobre as cidades do
interior, os órgãos de segurança divulgam quase que exclusivamente
apenas informações sobre a capital São Luís. A polícia civil no
Maranhão trabalha em tamanha precariedade que não existem sequer
delegados em 130 dos 217 munícipios maranhenses, muito menos
informações e estatísticas organizadas e disponíveis para analisarmos.
Mesmo em Pinheiro, que é um munícipio polo da região e possui um
delegado titular, se encontra numa situação precária, pois seu delegado
tem que atender demandas de toda a Baixada Maranhense, e assim é
em todas as Delegacias Regionais, o que torna caótica a situação da
polícia civil mesmo em munícipios polos. A segurança nas cidades do
interior maranhense fica a cabo quase que exclusivamente da Polícia
Militar, que, mesmo ela, possui um dos menores contingentes do país,
sobretudo quando nos referimos à relação de policiais por habitantes.
Até o trabalho investigativo é realizado pela PM, pelo chamado serviço
velado, prática inconstitucional, porém largamente praticada e aceita no
Maranhão.
Mesmo a ausência de estatísticas mais específicas sobre a cidade
de Pinheiro, não impede que constatemos que houve um aumento da
violência e do tráfico de drogas nos últimos anos. Segundo informações
do mapa da violência no Brasil de 2013, Pinheiro possuiu uma média
entre os anos 2008 e 2010 de 23,7 assassinatos por arma de fogo a
cada 100 mil habitantes, uma taxa não muito distante da média da
capital São Luís que nesse mesmo período alcançou 29,7. Tanto
Pinheiro como São Luís alcançaram uma média de homicídios superior
à cidade do Rio de Janeiro cuja taxa de assassinato por arma de fogo
em 2010 foi de 23,5 para cada 100 mil habitantes.31
Ao entrevistarmos as autoridades policiais em Pinheiro, todas são
unânimes em dizer que a violência e o tráfico tem crescido bastante nos
últimos anos na cidade. A rebelião na delegacia regional de Pinheiro no
ano de 2010, com 9 mortos sendo 6 deles decapitados, revela também a
situação de colapso no sistema penitenciário, não exclusiva a Pinheiro,
31
Informações disponíveis em: www.mapadaviolencia.org.
76
mas retrato de todo o estado do Maranhão. Para as autoridades
policiais de Pinheiro, as mesmas quadrilhas que dominam o sistema
carcerário em São Luís e se digladiam pelo controle do tráfico na capital
maranhense, possuem ramificações em Pinheiro e sua luta fratricida já
deixou suas vítimas pela cidade, com execuções e assassinatos por
encomenda nos bairros onde há grande incidência de tráfico. Para as
autoridades, a maior causa das ramificações dessas quadrilhas para as
cidades do interior é o sistema carcerário, porque a maioria dos presos
do interior cumprem pena na capital, e ao adentrar os presídios da
capital maranhense, entram em contato com as quadrilhas que
dominam o sistema penitenciário e nesse contexto de guerra deflagrada,
são praticamente obrigados a escolher um lado. Quando saem do
sistema penitenciário, seja por fuga ou de maneira legal, são obrigados
a manter as redes de relações que estabeleceram dentro das prisões.
Obedecendo a hierarquia das quadrilhas, passam a reproduzir do lado
de fora a hierarquia a qual foram introduzidos dentro do sistema
carcerário.
Não há dúvida que o tráfico de drogas apesar de não ser o único
tipo de crime cometido por essas quadrilhas, é a grande fonte de renda
que mantém essa grande rede criminal, que vai desde os pequenos
traficantes
da
cidade
de
Pinheiro,
passando
pelos
traficantes
encarcerados no sistema penitenciário, pelos traficantes maiores
importadores e exportadores que possuem “costas-quentes”, isto é, que
têm aliados e sócios não apenas na polícia, mas no judiciário e na
política e por isso raramente são presos, passando ainda pelas redes de
lavagem de dinheiro até chegarmos aos grandes bancos do sistema
financeiro norte-americano. Toda essa rede criminal das drogas que
movimenta mais dinheiro na totalidade do globo que qualquer outra
mercadoria, trata-se do negócio mais lucrativo do mundo, seguido pelo
comércio de armas, figurando o petróleo em terceiro lugar (ARAÚJO,
2012).
Se a política proibicionista das drogas, bem como a de proibição as
bebidas alcoólicas não trouxe nenhum resultado positivo para a
77
sociedade, e as autoridades continuam adotando-a como paradigma
global de gestão do problema, diante de todo quadro descrito até aqui
da situação do tráfico no Brasil e no mundo, nos resta afirmar, na
esteira da maioria dos principais estudiosos da temática, que as
políticas proibicionistas das drogas não se configuram como uma
política de defesa à saúde pública, mas uma política que visa manter o
status quo da sociedade, perpetuando as condições de dominação das
classes socialmente hegemônicas:
As análises dos mecanismos de poder envolvidos no discurso
de “combate às drogas” indicam formas de um processo
disciplinar referentes a um contexto autoritário, discriminatório
e repressivo. Seus textos contribuem com o trabalho político
(senão policial) de sujeição do cidadão a um determinado
ideário de (pseudo) harmonia social, ajudando a encobrir as
contradições inerentes às sociedades modernas e sustentando
relações de forças estabelecidas entre certos grupos sociais.
Esse processo contrasta em particular com a abordagem do
“problema de drogas” que o situa no âmbito da saúde pública,
como a ameaça não à “ordem social”, mas à saúde da
população no sentido amplo, visando primeiramente os danos
causados pelos abusos de álcool e de fumo (BUCHER, 1996, p.
40).
O discurso de punição às drogas é, portanto, uma tecnologia de
poder (FOUCAULT, 2009), que visa manter os interesses dos grupos
socialmente hegemônicos da sociedade, enquanto serve de instrumento
para
intervenção
punitiva
e
de
disciplinarização
dos
grupos
marginalizados. De tal maneira que, no Brasil, a política de guerras às
drogas tem se traduzido, ao longo dos anos, como política de
criminalização da pobreza.
O discurso em pauta não se constitui, portanto, como uma
concepção provisória e aprimorável, nem sequer como um
conhecimento objetivo e instrumentalizante ou uma idealidade
discursiva sobre drogas e seus inegáveis malefícios. Seus
condicionamentos insidioso, indubitavelmente eficaz pela
impregnação maciça da opinião pública que opera, atém-se à
meta de disciplinarização dos cidadãos, na medida em que as
ações preconizadas compactuam com normas de condutas
constitutivas de um amplo projeto regularizador das relações
sociais. Apontando a possibilidade e a ameaça de condutas
desviantes, justifica-se a prescrição normativa que desencadeia
o controle, a intervenção e a exclusão (BUCHER, 1996, pp. 4041).
A política proibicionista e de guerra contra as drogas que “revelam
igualmente desorientação na forma brutal como resolvem autorizar
78
determinadas formas de intoxicação, com exclusão dos restantes”
(XIBERRAS, 1989, p. 14), não pode ser de maneira tão simplista
considerada fracassada ou ineficaz; na verdade, ela é bastante eficaz de
acordo com seus interesses mais subterrâneos, que é manter um
mercado lucrativo e bilionário à margem da lei e, portanto, distante do
controle público. Um mercado onde a concorrência se resolve com
sangue e não há nenhum tipo de controle de qualidade da mercadoria a
ser vendida, de forma que, independente da relação oferta-demanda, a
proibição garante sempre preços bastante rentáveis para as redes de
monopólio. Isso se observarmos do ponto de vista econômico.
Analisando a partir dos desdobramentos políticos, vemos que o tráfico
constitui, na prática, uma justificativa política de intervenção cotidiana
da polícia junto às populações pobres no Brasil. Esta intervenção, que
podemos dizer que no seu epicentro estão as camadas mais jovens, são
vítimas de uma guerra declarada aos pobres disfarçada de uma guerra
às drogas.
Esse longo percurso que construímos até aqui serviu-nos como
indicativo para levantarmos questões centrais em torno do nosso objeto,
seria muita displicência para com a complexidade do objeto, se
quiséssemos abordar essa problemática e ignorar os problemas globais
e nacionais que a elas estão ligadas, “A droga é talvez o tema que
melhor traduz a sociedade contemporânea – abrangente, multifacetada,
lucida e cruel, cultural e infra-estrutural” (HECK, 1997, p. 16). Não
podemos investigar essa questão se ignorarmos por completo qualquer
um desses patamares de análises.
A contextualização nos serviu para entendermos que a proibição
não é uma política neutra, mas que foi pensada para fins específicos.
Entender como isso se dá em nosso campo de análise é o desafio que
tentaremos responder no próximo capítulo em que refletiremos sobre os
espaços da cidade que são ocupados por traficantes e sofrem
cotidianamente com a intervenção policial. Como é a sociabilidade
nessas localidades? Como é o cotidiano das pessoas que usam drogas
frequentemente? Como os policiais enxergam usuários e traficantes? Há
79
diferenças na visão dos repressores entre esses dois atores? Quais são
as particularidades do tráfico numa cidade de médio porte como
Pinheiro? Em suma, quais são os aspectos universais que discorremos
até aqui sobre o tráfico e a política proibicionista como elas se articulam
nesse microcosmo social para dar formas às particularidades do nosso
objeto de estudo?
80
4. DESDOBRAMENTO DA POLÍTICA PROIBICIONISTA: A “Rua da
Lama” e a territorialização do tráfico na cidade de Pinheiro
A cidade de Pinheiro, localizada na Baixada Maranhense32 às
margens do Rio Pericumã, conta com uma população de 78.147
habitantes.33 Dentre os 21 munícipios que compõe a região, Pinheiro é a
cidade que possui a maior população e estrutura urbana, concentrando
a maior parte dos órgãos públicos e serviços que atendem aos demais
munícipios.34 No entanto, o fato de Pinheiro ser a cidade polo da região
não
impede
que
seja
afetada
pelos
problemas
socioeconômicos
característicos da Baixada:
A Baixada Maranhense é uma região com diversas intervenções
antrópicas sem visão de sustentabilidade, alto índice de
pobreza e baixos indicadores de desenvolvimento humano
(IDH) e os piores índices sociais do Maranhão, mas percebe-se
ao mesmo tempo a riqueza em recursos naturais contrastando
com a falta de recursos básicos como postos de saúde, escolas,
moradia apropriada à situação de segurança e higiene
sanitária, estradas que trafeguem o ano todo, condições de
higiene, dentre outros aspectos (FARIAS FILHO et al., 2012, p.
36).
Dessa forma, a cidade de Pinheiro se localiza na região mais
pobre de um dos estados mais pobres do Brasil. A Baixada Maranhense
é carente de serviços e a maior parte de sua população não tem acesso
a direitos básicos, como educação pública de qualidade, saúde, e até
mesmo água potável. O fato de Pinheiro não ter grandes indústrias, e
nem um grande contingente populacional, pode soar estranho, à
primeira vista, a análise da problemática da droga e do tráfico nessa
cidade. Isto porque Pinheiro não parece ser um cenário típico das
abordagens mais comuns sobre essa problemática no Brasil, onde tem
32
“A Microrregião da Baixada Maranhense é formada por um conjunto de 21
munícipios [...] população total de 556.000” [...] “juntamente com outras cinco
microrregiões compõe a Mesorregião Norte Maranhense” (FARIAS FILHO, 2012, p. 19).
33 Fonte IBGE censo 2010.
34
Um exemplo disso é que se localiza em Pinheiro a Regional Estadual de Educação e
Saúde, órgãos responsáveis por administrar todas as respectivas unidades da região.
O que, infelizmente, não significa que tais serviços sejam oferecidos em quantidade e
qualidade que necessitam os cidadãos pinheirenses, ou demais cidadãos que a eles
recorrem. A mesma coisa pode-se aplicar aos outros órgãos importantes como a
Delegacia Regional, e o 10º Batalhão da Polícia Militar que atende toda a Baixada,
dentre outros órgãos públicos.
81
se voltado prioritariamente para esse fenômeno nas grandes metrópoles
brasileiras e suas periferias35. No entanto, a imagem idílica que poderia
nos despertar essas pequenas cidades do interior de outrora, que nos
remeteria à tranquilidade e vida pacata, trata-se de uma quimera que se
dissolveu no ar. Hoje as cidades do interior são cenários de problemas
globais, sobretudo, no caso de Pinheiro, onde estão presentes o tráfico
de drogas, violência, migração, urbanização e desemprego. Onde antes
se encontrava tranquilidade é o aumento da violência e do medo que se
constata hoje nessas cidades, conforme nos apontam os estudos ainda
incipientes da região36:
Em toda a extensão da Baixada a população vem aumentando
e, com isso, houve o aumento da violência e tal fato é relatado
por autoridades assim como os demais habitantes. Em Olinda
Nova do Maranhão que possui uma das menores sedes
municipais da Baixada, por exemplo, de acordo com a prefeita
Conceição de Maria Cutrim, ‘as pessoas tem medo de sair de
casa’. A referida realidade é comum aos demais munícipios da
Microrregião, especialmente nas maiores cidades como é o caso
de Pinheiro, Santa Helena, Viana e São Bento, houve nos
últimos anos um assustador crescimento no uso de drogas
ilícitas de assaltos e de assassinatos (FARIAS FILHO et al.,
2012, p. 37).
Lafontaine (2012, et al) argumentam que um dos fatores que
contribuiu para o aumento da violência em cidades da Baixada
Maranhense, como Pinheiro, foi a rápida urbanização sofrida nas
últimas décadas, resultado de uma migração de um contingente
populacional superior à oferta de empregos nessas cidades, o que faz
aumentar a pobreza e a violência. A migração aumentou devido à
construção da rodovia MA 014 na década de 1960, que liga boa parte
dos munícipios da Baixada à capital Maranhense, e se elevou bastante
Podemos citar os estudos de Alba Zaluar (1994; 1996; 1998) na cidade do Rio de
Janeiro, como sendo um dos clássicos sobre o tema. Podemos citar ainda o romance
Cidade de Deus de Paulo Lins, publicado em 1997 pela Companhia das Letras, que
retrata como o tráfico se desenvolveu em uma das maiores favelas do Rio de Janeiro.
36 Conforme problematizei no capítulo anterior, os estudos sobre violência urbana e
tráfico na região da Baixada são praticamente inexistentes. Esses estudos que citamos
sobre a Baixada Maranhense não tratam especificamente da questão do tráfico ou da
violência, são estudos de caráter geográfico, estudam questões relacionadas à
migração e urbanização e temas correlatos na Baixada Maranhense, a questão do
tráfico e da violência aparecem nesses estudos de maneira muito lateral.
35
82
na década de 1990, com o melhoramento das condições da rodovia37,
dessa forma:
A integração dos municípios da Baixada, por sua vez,
aumentou significativamente a população da região em função
do fluxo migratório de pessoas de outras cidades maranhenses
e, principalmente de outros estados nordestinos como Ceará.
Porém, a partir dos anos de 1990, o crescimento populacional
ficou restrito àqueles municípios cujas sedes foram cortadas
pela rodovia MA 014 ou que exerça alguma centralidade sobre
as cidades menores, a exemplo de Pinheiro, Viana, Arari, São
Bento e Santa Helena (maiores cidades da Baixada atualmente
em ordem crescentes) (LAFONTAINE; et al, 2012, p. 134).
O maior fluxo de pessoas e mercadorias trazidas pela construção
da rodovia MA 014 e, sobretudo, com seu posterior melhoramento,
trouxe consigo também o aumento da oferta de drogas ilícitas:
O aumento do tráfico e o uso de drogas tem relação direta com
o aumento do número de veículos circulando na região, mesmo
porque a MA 014, quando conservada, é um dos eixos de
acesso à Belém, e a outra cidade importante do Norte por onde
circulam muitos veículos e com eles traficantes de
entorpecentes, notoriamente do craque [sic] e merla
(LAFONTAINE; et al, 2012,2012, p. 137).
A rodovia MA 014, colocou a Baixada Maranhense, sobretudo
Pinheiro, na rota que liga São Luís a Belém. Por essa via circula um
grande número de pessoas e mercadorias, e, por conseguinte tornou-se
uma importante rota para o tráfico de drogas:
Pós-construção da MA 014 houve um aumento considerável do
consumo de drogas ilícitas pelas influências da rota do tráfico
de drogas entre São Luís e Belém e para cidades de médio
porte como Pinheiro e Viana (LAFONTAINE; et al, 2012, p. 141).
O tráfico de drogas, segundo Machado (2012b), se utiliza da
infraestrutura de transporte existente para circular sua mercadoria;
quando essa estrutura é inexistente ele busca meios alternativos.
Portanto, na maioria das vezes a droga chega ao seu destino usando as
mesmas vias de acesso da maioria das outras mercadorias. A
informação que Pinheiro faz parte da rota do tráfico que liga Belém a
São Luís é confirmada pelas autoridades policiais de Pinheiro, de
Ao longo do tempo foram feitas diversas melhorias na rodovia, por exemplo a
construção da ponte sobre o Rio Pericumã, que propiciou que esse trecho da rodovia
ficasse trafegável durante o ano inteiro, já que antes da construção da ponte, nos
períodos de inverno, a cheia do Rio Pericumã, alagava a rodovia. Ver em Anexos A e B,
imagens da ponte sobre o Rio Pericumã.
37
83
maneira que, segundo esses mesmos policiais, carros que circulam na
cidade com placas do Pará costumam ser abordados, e já foram
apreendidas drogas nesses veículos: “geralmente que tem carros com
placas de algumas cidades do Pará, e sempre que a gente vê esses
carros em atitude suspeita a gente faz a abordagem...” (Ramos, Soldado
da PM, 02/2014).
A construção de rodovias e o melhoramento do acesso à região e
sua situação de passagem entre a ligação de duas capitais (São Luís e
Belém), favoreceu o crescimento dessas cidades, sobretudo Pinheiro,
que é a maior cidade da região. No entanto, não há políticas públicas
que garantam melhores condições de vida dessas populações migrantes,
como acesso a emprego ou moradias adequadas:
O crescimento da população urbana, não foi acompanhado do
aumento na oferta de infraestrutura e dos serviços essenciais à
população. Assim, a população que chega às cidades ocupa a
periferia dos núcleos urbanos, construindo suas moradias
sobre as planícies fluviais inundáveis sobre aterros
(LAFONTAINE; MORAES; COSTA, 2012, p. 135-136).
A urbanização acelerada fez com que Pinheiro seja hoje a cidade
com maior população urbana da Baixada, que superou a população
rural já no final da década de 199038. Nesse cenário de pobreza e
urbanização acelerada na Baixada Maranhense, e especificamente na
cidade de Pinheiro, tem como consequência o surgimento e o
crescimento de bairros periféricos, sem infraestrutura adequada.
Bairros que surgem em locais desvalorizados pelo comércio imobiliário,
tais como às margens de rios e campos alagados, que passam a ser
sistematicamente ocupados por essa população pobre migrante. Isso faz
com que Pinheiro, uma cidade relativamente pequena, possua inúmeras
periferias ocupadas por pessoas de baixa renda. E é assim que surge a
Rua Agostinho Ramalho, localizada no bairro da Floresta, conhecida
posteriormente como “Rua da Lama”, pela sua ocupação próxima ao
campo alagado, e pela sua falta de infraestrutura adequada, tomada
38
Segundo (LAFONTAINE, et al, 2012), Pinheiro possuía 58.888 habitantes em 1991 e
saltou para 68.030 habitantes em 2000, sendo que em 2000 a população urbana era
de 38.186, enquanto a rural era de 32.032.
84
pela lama, sobretudo nos tempos de chuva. É uma das tantas ruas dos
bairros periféricos de Pinheiro, ponto nevrálgico da análise a seguir.
4.1 A “Rua da Lama”: Violência, repressão e tráfico no contexto
social de moradores, usuários e policiais.
Eu acredito que chamam Rua da Lama porque lá era cheio de
lama mesmo. Melhorou um pouco porque eles ajeitaram uma
parte, mas qualquer chuvinha ficava aquela coisa horrível, era
na beira do campo também, eles batizaram Rua da Lama
porque era muito nojento... (João, Morador do bairro Floresta,
Pinheiro, 02/2014).
Como vimos anteriormente, a maior parte da população pobre em
Pinheiro constrói suas casas em áreas ocupadas, aterrando os campos
e planícies alagadas, na beira do rio Pericumã e em outros lugares
igualmente impróprios. Como vemos nas imagens a seguir:
Figura 01: ocupações desordenadas a partir de aterramentos de
planície de inundação do rio Pericumã em Pinheiro
85
Figura 02: ocupações desordenadas a partir de aterramentos de
planície de inundação em Pinheiro
Esse
fenômeno
de
crescimento
de
moradias
precárias
e
irregulares, em terrenos perigosos para edificação não é muito diferente
de outras cidades do mundo onde acontece urbanização acelerada:
Os pobres urbanos, em todo lugar, são forçados a se assentar
sobre terrenos perigosos e não edificáveis – em barrancos,
margens de rios e alagados. Da mesma forma, invadem as
sombras das refinarias, indústrias químicas, lixões tóxicos, ou
as margens de ferrovias e rodovias. A pobreza, como resultado,
tem ‘construído’ desastres urbanos sem precedentes
(VALENÇA, 2005, p. 171).
A “Rua da Lama”, pertence a esse universo de construções
irregulares na beira do campo e de planícies inundáveis, observemos a
sua localização:
86
Figura 03: Localização da Rua Agostinho Ramalho, conhecida
como “Rua da Lama” no bairro Floresta na cidade de Pinheiro (Fonte:
www.ibge.org).
Observe na imagem que a Rua destacada em vermelho é a Rua
Agostinho Ramalho, conhecida como “Rua da Lama”, no entanto,
muitas pessoas em Pinheiro que não conhecem bem o bairro Floresta
utilizam a alcunha de “Rua da Lama” também para a Rua João Batista
Soares, transversal à Rua Agostinho Ramalho, não só pela proximidade
da “Rua da Lama”, mas por ser também uma Rua de grande ocorrência
de tráfico e por ter uma estrutura tão precária quanto à Rua Agostinho
Ramalho. No entanto, quando nos referimos nesse trabalho a “Rua da
Lama”, estamos seguindo o depoimento de policiais, usuários e exusuários de drogas, e principalmente de moradores do bairro Floresta,
de que essa alcunha é usada para caracterizar a Rua Agostinho
Ramalho.
Na imagem a área cercada pela linha verde designa os limites
convencionais do bairro Floresta, já que não há Lei municipal de
delimitação de bairros na cidade de Pinheiro conforme explicaremos
adiante. O número 1 em amarelo busca identificar uma área de planície
alagada, assim como o número 2, toda essa área sofre alagamento,
principalmente no período de chuvas, e é conhecida na cidade de
87
Pinheiro como campo39, um dos possíveis motivos para a origem da
alcunha “Rua da Lama”, já que ela foi construída entre ou em cima de
duas áreas alagadas. O número 3 identifica um braço do Rio Pericumã
que também contribui para o alagamento da área.
Observem as imagens da Rua Agostinho Ramalho e de sua falta
de infraestrutura urbana:
Figura 04: Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”), imagem de 2011
(Fonte: www.google.com.br/maps/).
Observem na imagem de número 04 que a chamada “Rua da
Lama”, não possui asfaltamento, e possui uma ponte improvisada de
madeira sobre um córrego, onde também foi edificada uma moradia
feita de tábuas de madeiras e compensado, e à esquerda a imagem de
uma casa de taipa (uma mistura de barro e água colocada sobre uma
estrutura de madeira) e coberta de palha. Ambas as moradias em
destaque demonstram a precariedade de alguns domicílios na Rua
Agostinho Ramalho.
39
Ver imagens do campo da cidade de Pinheiro nos anexos A, B e C.
88
Figura 05: Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”) em 2012 (Fonte:
www.google.com.br/maps/).
Na figura 05 é possível observar o esgoto correndo a céu aberto na
porta das casas da Rua Agostinho Ramalho e um caminhão fazendo
entrega de areia, material que será usado provavelmente para fazer
aterramento
na
planície
alagada
para
edificação
de
alguma
construção40.
As condições da Rua João Batista Soares também localizada no
bairro Floresta não são muito diferentes da Rua Agostinho Ramalho:
Figura 06: Esquina da Rua João Batista Soares com a Rua Agostinho
Ramalho (“Rua da Lama”) em 2012 (Fonte: www.google.com.br/maps/).
40
Ver Anexo D.
89
Figura 07: Rua João Batista Soares, Bairro Floresta, Pinheiro 2012
(Fonte: www.google.com.br/maps/).
Figura 08: Rua João Batista Soares, Bairro Floresta, Pinheiro 2012
(Fonte: www.google.com.br/maps/).
90
Não resta dúvida que não é apenas a proximidade entre as duas
ruas e o fato de ambas possuírem grande ocorrência de tráfico de
drogas que leva algumas pessoas a caracterizarem a Rua João Batista
Soares também de “Rua da Lama”, a precariedade, a falta de
asfaltamento, esgoto a céu aberto e outros problemas, também são
fatores que colaboram com a caracterização.
Da mesma forma que a extrema urbanização é um fenômeno
moderno, tal como a mundialização da economia capitalista, que hoje
alcança escala planetária. Marx (2003), nos seus escritos de juventude
já assegurava que o capitalismo e o fenômeno da industrialização tem
como resultado a vitória da cidade sobre o campo e, por conseguinte, a
subordinação da economia rural à economia urbana. Assim asseveram
os fundadores do materialismo histórico e dialético:
A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou cidades
enormes, aumentou prodigiosamente a população urbana em
comparação com a rural e, dessa forma, arrancou uma grande
parte da população do embrutecimento da vida do campo
(MARX & ENGELS, 2008, p. 15).
Na mesma esteira, em Pinheiro ocorreu um processo similar:
“anteriormente a população era ocupada eminentemente em atividades
agropecuárias e atualmente está mais voltada para o setor de serviços”
(LAFONTAINE, et al, 2012, p. 138). Engels, em seu clássico estudo
sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, apontava as
consequências da rápida urbanização do qual passaram as cidades
inglesas no século XIX, e, em consequência disso, as péssimas
condições de moradia às quais eram submetidas as populações
migrantes pobres que se instalavam nas cidades.
Todas as grandes cidades têm um ou vários ‘bairros de má
fama’ onde se concentra a classe operária. É certo ser
frequente a miséria abrigar-se em vielas escondidas, embora
próximas aos palácios dos ricos; mas, em geral, é-lhe
designada uma área à parte, na qual, longe do olhar das
classes mais afortunadas, deve safar-se, bem ou mal, sozinha
[...] As piores casas na parte mais feia da cidade [...]
habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são
sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou
canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos
(ENGELS, 2008, p. 70).
91
Os pobres de Pinheiro não têm opções de moradias muito
diferentes dos pobres de outras cidades do mundo, são empurrados
para longe dos setores da cidade que possuem melhor infraestrutura e
serviços. O preço dos alugueis dos imóveis varia sensivelmente de
acordo com a proximidade ou distância das avenidas principais da
cidade que concentram os principais bancos, bares, restaurantes e
demais empreendimentos; o preço varia também de acordo com a
estrutura urbana da localidade do imóvel; assim, alugar ou comprar,
uma casa numa rua asfaltada, tem um preço bem superior, do que
alugar ou comprar uma casa numa rua sem asfalto e distante do centro
comercial da cidade41.
É evidente que o surgimento de favelas em locais urbanos
periféricos que servem de moradia aos pobres hoje é reconhecidamente
um fenômeno global, presente, sobretudo no terceiro mundo, onde a
expansão das políticas neoliberais resultou nas favelas:
A partir da década de 1970 multiplicou exponencialmente [...]
constituem espantosos 78,2% dos habitantes urbanos dos
países menos desenvolvidos; isso corresponde a, pelo menos,
um terço da população urbana global (DAVIS, 2006, p. 34).
O que não significa que na maioria dos lugares, as moradias das
pessoas pobres sejam exatamente iguais. Porém, o caráter irregular de
ocupação dos espaços urbanos, isto é, muitas vezes não reconhecida e
não legitimada pelo Estado, bem como não assistida em serviços
essenciais, são algumas das características fundamentais da favela.
Definição clássica da favela, caracterizada por excesso de
população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado
a água potável, e condições sanitárias e insegurança da posse
da moradia. Essa definição operacional, adotada oficialmente
numa reunião da ONU em Nairóbi, em outubro de 2002, está
‘restritas as características físicas e legais do assentamento’ e
evita as ‘dimensões sociais’, mais difíceis de medir, embora
igualem-se na maioria das circunstâncias à marginalidade
econômica e social (DAVIS, 2006, p. 33).
Segundo nosso levantamento nos preços dos alugueis de imóveis em Pinheiro, uma
casa próximo ao centro comercial da cidade com três quartos pode chegar a um
salário mínimo e meio (aproximadamente R$ 1.000). Enquanto alugueis no bairro da
Floresta, sobretudo próximo à Rua da Lama, ou nos bairros mais distantes, como Vila
Filuca ou Vila Kiola, casas com características semelhantes, o aluguel dificilmente
passa de R$ 450.
41
92
Mesmo que essa definição da ONU, como aponta Davis, seja
restrita, por não incluir alguns aspectos, sobretudo os aspectos sociais,
que
por
vezes
desaparecem
nos
grandes
esquemas
analíticos
quantitativos, já caracteriza um cenário dramático em relação a
infraestrutura dessas localidades. Assim, como tematizam diversos
autores, os espaços urbanos precarizados e caracterizados como
favelas, são definidos na maioria das vezes não pelo que possuem de
peculiar, mas pelas ausências de condições básicas:
O que é uma favela? [...] O eixo paradigmático da representação
desse espaço popular é a noção de ausência. A favela é definida
pelo que ela não é, ou pelo que não tem. Nesse caso é
apreendida como um espaço destituído de infra-estrutura
urbana – água, luz, esgoto, coleta de lixo, sem arruamento,
globalmente miserável, sem ordem, sem lei, sem regras sem
moral, enfim, expressões do caos (SILVA, 2006, p. 213).
Cada um desses fenômenos são consequências de processos
globais e locais ao mesmo tempo, “as segregações que destroem
morfologicamente a cidade e que ameaçam a vida urbana não podem
ser tomadas por efeito nem de acasos nem de conjunturas locais”
(LEFEBVRE, 2001, p. 99). A favelização, assim como o tráfico de
drogas, não podem ser tomados como fenômenos locais, ainda que,
peculiaridades locais, influenciem no seu aspecto. Se entendermos que
“a
globalização
é,
de
certa
forma,
o
ápice
do
processo
de
internacionalização do mundo capitalista” (SANTOS, 2012, p. 23), o
capitalismo, ao transformar e organizar o espaço sobre a lógica do valor,
e portanto, do dinheiro, reserva aos despossuídos a única alternativa de
buscar lugares que sejam destituídos de grande valor monetário, ou
próximo a isso, restando assim, a alternativa de ocupar localidades
onde estejam presentes acidentes geográficos, como morros, encostas,
terrenos alagados, etc. e/ou distantes e desassistidos de qualquer
infraestrutura urbana.
Foi nesses enclaves de pobreza das cidades brasileiras que o
tráfico territorializado se desenvolveu no Brasil: “a pobreza é funcional
para o tráfico de drogas, o qual devora a mão de obra da juventude das
favelas como mão de obra barata e descartável” (SOUZA, 2012, p. 439),
o caso de Pinheiro, e da “Rua da Lama” especificamente, pelo que
93
podemos constatar, não é diferente. Segundo os levantamentos do
último censo do IBGE (2010), no bairro Floresta onde se localiza a Rua
Agostinho Ramalho, conhecida como “Rua da Lama”, moram 912
pessoas,42 das quais aproximadamente 25% delas, pouco mais de 220
pessoas, residem em domicílios cuja renda per capita mensal é inferior
a 70 reais por pessoa. O que demonstra uma situação de pobreza grave,
principalmente se levarmos em conta que o IBGE inclui na renda
mensal dessas famílias o auxílio em dinheiro de programas sociais,
como o Bolsa Família do Governo Federal. Sem o auxílio do Bolsa
Família e outros programas sociais, com certeza esse quadro
de
pobreza seria mais grave. Abordaremos a correlação entre bairros
pobres e a existência de tráfico territorializado no Brasil a seguir.
4.1.1 Tipologias do tráfico: o tráfico territorializado
O tráfico territorializado é uma modalidade bem específica de
tráfico de drogas e muito difundida no Brasil. Em outros países, o
tráfico nômade, feito por vendedores em diferentes lugares da cidade é
muito comum em países como os EUA, onde é bastante desenvolvida
também a modalidade delivery, isto é, onde o consumidor pede a droga
por telefone para o traficante e aguarda a entrega na sua residência,
semelhantes a outros serviços legais, como a entrega de pizza. Porém no
caso do Brasil, apesar de existir também as demais formas de tráfico, é
predominante o tráfico territorializado43.
Informações disponíveis em www.ibge.org. Como em Pinheiro não há Lei municipal
que delimite os limites dos bairros, o levantamento do IBGE é baseado em setor
censitário, os dados apresentados acima são do setor censitário de número:
210860305000004. Que ao observarmos no mapa disponibilizado pelo IBGE, coincide
com o que comumente as pessoas da cidade de Pinheiro e principalmente do bairro
Floresta identificam como sendo os limites desse bairro, ainda que, como dissemos
anteriormente não existam Leis municipais que delimitem especificamente onde
começam e terminam os bairros. Um problema não só da cidade de Pinheiro, segundo
o IBGE apenas duas cidades do Maranhão possuem esse tipo de Lei, apenas os
municípios de Timon e Matões. Nem mesmo a capital São Luís possui uma Lei que
delimite os bairros.
43 As tipologias variam também em relação à classe social do consumidor, a
modalidade delivery está mais comumente ligada a consumidores com alto poder
aquisitivo.
42
94
Desde os primeiros estudos sistemáticos sobre tráfico no Brasil
(ZALUAR, 1994), até os estudos mais recentes (SOARES, 2000; 2005 et
al; 2006 et al), (SOUZA, 1995; 2012) há consenso que é nas periferias,
favelas e nos bairros pobres em geral que o tráfico encontrou o cenário
propício para se desenvolver. Ao se estabelecer nas favelas e morros do
Rio de Janeiro, ocupando o vácuo deixado pela ausência do poder
público, o modelo foi difundido para demais cidades no Brasil.
O
tráfico
territorializado
consiste
na
apropriação
de
um
determinado espaço por partes de traficantes, que passam a exercer seu
controle econômico e geopolítico, controlando quem entra, quem sai,
etc. Modelando o espaço para a prática do comércio ilícito, que não se
trata apenas da implantação das tais “bocas de fumo”, como são
conhecidos os locais de venda de drogas ilícitas por parte de usuários,
traficantes, policiais e por consequência, pela própria população em
geral, há a mobilização de “olheiros” em pontos-chave para o aviso da
chegada da polícia:
Geralmente quando nós chegamos tem aquelas pessoas que
ficam nos cantos conversando, é o que nós chamamos de
olheiro, e as vezes vendedores também que estão com drogas
nas proximidades, sempre nos cantos tem alguém que tá
sentando, tá mexendo no celular, tá conversando com alguém,
são os informantes (Ramos, soldado PM, Pinheiro, 02/2014).
Para modelar esse espaço, muitas vezes há construções de
lombadas e de outras barreiras que atrapalham a entrada de viaturas
policiais em determinadas ruas, etc. Para Soares (2000; 2005 et. al), o
tráfico sedentário, territorializado, só é possível de existir com a ampla
conivência por parte do poder público, e com a corrupção sistemática de
policiais e demais agentes de segurança. Soares (2000; 2005 et. al)
argumenta que se os consumidores sabem onde conseguir comprar
drogas num local fixo, sedentário, é impossível que as autoridades
policiais, mais cedo ou mais tarde, não tomem conhecimento da
existência de tal localidade, portanto, para ele esse modelo só se
perdura pela ampla cooperação das autoridades policiais.
A conivência dos policiais não quer dizer que a repressão inexista
nessas localidades onde há tráfico territorializado. Paradoxalmente, a
95
repressão é bastante presente, como nos relata a moradora do bairro da
Floresta onde se localiza a “Rua da Lama”:
A polícia vai lá é direto, todo dia, toda hora, prende gente
direto, dá baculejo44 em neguinho direto, as vez levam 2 ou 3
preso, e é homens e mulheres, porque lá é homens e mulher
vende [...] quando eles encontram com bagulho eles bate
bastante... (Maria, Pinheiro, 02/2014).
As “batidas” policiais são frequentes nesses locais de tráfico
territorializado, por diversos motivos. Segundo as autoridades policiais
de Pinheiro, as batidas policiais na “Rua da Lama” têm como objetivo
“manter o controle sobre o tráfico”, bem como minimizar crimes nas
suas redondezas, como se quisessem garantir que o tráfico e os
criminosos não se espalhassem para o resto da cidade. Na visão da
polícia é preciso mantê-los reclusos nessas zonas já “contaminadas”,
mantê-los em “quarentena”. Por outro lado, Soares (et. al, 2006) afirma
que a fatia dos policiais no bolo do tráfico é tanto maior for a sua força
repressiva, como se houvesse um jogo entre policiais e traficantes, onde
os primeiros teriam que mostrar seu valor para os segundos, isto é, em
algum momento deveriam atrapalhar o andamento do tráfico, com
batidas policiais, prendendo suspeitos, afugentando os usuários, etc.,
para provar para os traficantes que sem a boa vontade dos policiais não
é possível o andamento do tráfico. Quanto maior for o poder de impedir
o andamento do tráfico, maior é a fatia dos policiais corruptos. Sem
contar que a repressão aos territórios sob domínio de traficantes estão
também ao sabor da pressão da mídia e da opinião pública. Quando é
preciso dar respostas imediatas a sociedade em situações de crise de
segurança pública, esses territórios são alvos de muita atividade
policial45. Pinheiro não conta com uma imprensa escrita de grande
Gíria que quer dizer revista ostensiva por parte da polícia, normalmente com uso de
violência.
45 Segundo o professor Ignácio Cano (2006, p. 141), as políticas de segurança pública
no Brasil, flutuam ao sabor das crises momentâneas e da pressão midiática: “Em
geral, as políticas estaduais de segurança – se é que podem receber este nome sem
planejamento, objetivos e avaliação – são basicamente reativas e baseadas na
repressão, mais do que na prevenção. Com freqüência, os governos reagem diante dos
casos com repercussão pública, particularmente os que se destacam na imprensa,
para dar uma resposta de curto prazo. Quando o caso perde visibilidade, as medidas
iniciais se desvanecem. A imprensa, neste sentido, desfruta de um grande poder para
44
96
circulação, com exceção de alguns poucos jornais, que circulam quase
que exclusivamente em tempos de eleição, ligados aos grupos políticos
que se digladiam pelo controle da prefeitura municipal. No entanto, a
cidade possui uma impressa televisiva bastante movimentada com
várias programações locais, como é o caso do programa “Balanço Geral”
e do “Tribuna Popular”, ambos programas da TV Pericumã, filiada a TV
Record, onde o tema da violência e do tráfico de drogas é comumente
abordado e autoridades policiais são chamadas a dar satisfações à
população em tempos de crise de segurança. Por tudo isso, se conclui
que conivência da polícia com o tráfico não significa ausência de
repressão.
O tráfico, em qualquer modalidade é uma atividade por si só
muito violenta, isso é definitivamente um dos efeitos mais graves do
proibicionismo tal como vimos no capítulo anterior. Os traficantes não
podem colocar os nomes dos seus compradores em débito no Serviço de
Proteção ao Crédito (SPC), não podem acionar a justiça ou protestar
dívidas em cartório. A ilegalidade engendra outro tipo de lógica nesse
comércio, os traficantes têm poucos recursos, além da força bruta, de
garantir os pagamentos em dia dos seus clientes. Dessa maneira, a lei
número um do tráfico, amplamente conhecida por usuários, é: quem
compra fiado e não paga, morre!46 Nas palavras de um ex-usuário por
nós entrevistado:
Conheci muita gente que morreu por causa de dívida, acontece
muito, gente que passou por aqui, até um conterrâneo meu
que passou por aqui, mataram ele na cadeia, por causa de
dívida, outro aqui em Pinheiro, Adriano, mataram por causa de
dívida também... (Rafael, ex-usuário, Pinheiro, 01/2014).
orientar as medidas dos órgãos públicos. As intervenções raramente são planejadas
com base em objetivos específicos”.
46 O médico Drauzio Varella uma vez perguntou aos presos da Casa de Detenção de
São Paulo, conhecida como Carandiru, por que não se acabava a venda por fiado no
tráfico já que ela gera tanta morte. A resposta dos presos foi mais do que convincente:
“eu não entendia porque eles mesmos não proibiam as vendas a fiado. Uma vez tentei
reunir alguns líderes da malandragem para lhes propor a adoção de tal medida. Fui
desanimado pelo Sarará, um negro loiro com muita passagem pela Casa: - Não tem
chance de dar certo, doutor. O viciado fica devendo 20 reais e entrega a televisão
por esse preço. Dá muito lucro. É o mesmo princípio que os bancos da rua, o
senhor fica devendo 20 mil e eles tomam a sua casa que vale 100 [mil]. Ninguém
acaba com um negócio desses” [grifos meus] (VARELLA, 1999, p. 139).
97
A violência está presente constantemente na relação usuáriotraficante na maior parte do tempo, segundo os usuários entrevistados.
Enquanto se tem o dinheiro para gastar com drogas você costuma ser
bem recebido, mas a partir do momento em que os traficantes te
reconhecem como um viciado, desprovido de recursos, os usuários
estão sujeitos a toda sorte de violências, mesmo quando exista uma
relação de amizade entre ambos anterior a relação entre traficante e
usuário. A lógica do tráfico organizada pelo dinheiro impõe uma postura
de violência que se sobrepõe às outras relações, é o que nos relatam os
usuários quando questionados como é a relação entre usuários e
traficantes:
Quando eu tinha dinheiro era bem recebido, ou quando tinha
alguma coisa de valor pra trocar, também era bem recebido,
quando não tinha, eles até me ameaçavam, às vezes eu
chegava com a metade do dinheiro, mas não queriam vender,
me humilhavam... (Rafael, Pinheiro, 01/2014).
A relação é sinistra, num momento com eles a gente tá
sorrindo, vai pensando que a gente tá construindo um amigo,
uma coisa, que na hora que a gente vai precisar dele ele pode
ajudar a gente, mas na hora é totalmente diferente... Pior que
são pessoas da nossa infância, né?! Pessoas que conviviam
com a gente, conhecia, jogava bola, brincava, banhava, ia pra
praia, pra uma curtição, de repente se transformaram. Acho
que é a ganância do dinheiro, eles foram pobre, são pobre, com
essa venda tão subindo um pouquinho, mas eles totalmente
mudaram, o mais fraco é sempre o mais fraco mesmo, ai eles
vão comprando revólver, essas coisas, vão se armando, eles
intimidam, se não pagar 50 centavos... Colega meu já morreu
por causa de 1 real, já, com tiro a queima roupa na cabeça
(Ismael, ex-usuário, Pinheiro, 01/2014).
Esses relatos nos fazem ter alguma dimensão da violência que
media a relação entre usuários e traficantes. Isso é uma das facetas
brutais do proibicionismo, onde usuários dependentes, necessitados de
assistência de toda ordem, são empurrados pelo proibicionismo a
manter relação com esses algozes sedentos por dinheiro. O resultado
dessa relação só pode ser a eliminação sistemática de dependentes que
ficam à mercê do tráfico. Contudo, o tráfico territorializado é um tipo de
tráfico ainda mais violento que as demais modalidades, pois exige do
traficante a proteção 24 horas do seu território, é preciso protegê-lo não
apenas da polícia, ou de outras quadrilhas rivais, mas também de
98
qualquer indivíduo que por alguma razão atrapalhe o andamento do
tráfico. Isso faz com que o tráfico de drogas e o tráfico de armas no
Brasil andem de mãos dadas, como nos apontou o entrevistado citado
anteriormente, os traficantes logo começam a se armar, mais do que em
qualquer outra parte do planeta onde não prevaleça a lógica do tráfico
territorializado. O ápice desse processo é o que acontece nas favelas do
Rio de Janeiro, onde é público e notório o amplo poderio bélico dos
traficantes que controlam militarmente territórios imensos da metrópole
carioca, poder bélico que pode ser comparado com o de exércitos em
guerra. Esse poder militar é cotidianamente utilizado para enfrentar a
polícia, ou para ser utilizado contra quadrilhas rivais47. O tráfico de
drogas no Rio de Janeiro é tão pesadamente militar que chegou a ser
considerado por Soares (2010), como irracional do ponto de vista
econômico, o que seria um dos motivos que o leva a estar sendo varrido
do mapa pelas milícias e sendo substituído por modalidades “nômades”
de tráfico48.
O abatimento, por parte de traficantes, de um helicóptero da polícia em 2009,
utilizando artilharia antiaérea é uma das inúmeras provas do poder de fogo das
quadrilhas que dominam o tráfico no Rio de Janeiro.
47
Ao contrário do que pensa boa parte da opinião pública, e o que é divulgado pelas
propagandas enganosas do governo do Rio de Janeiro, o tráfico de drogas
territorializado não estaria sendo “varrido do mapa” pelo projeto de segurança pública
conhecido como Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), que ocupam algumas
poucas dezenas de favelas cariocas. Até o presente momento são 38 comunidades
ocupadas pelas UPPs no Rio de Janeiro. O impacto desse projeto não seria o suficiente
para destruir o tráfico territorializado, se levarmos em conta que existem
aproximadamente 1.000 favelas no Estado do Rio de Janeiro, a maioria dominada pelo
tráfico nos últimos anos. O maior inimigo do tráfico são as milícias, não menos
violentas, porém com uma visão mercadológica mais ampla, como retratou muito bem
o filme: “Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro” e também Soares (2010). O projeto
das UPPs não tem o alcance suficiente para destruir o tráfico territorializado. Na
verdade, as UPPs pretendem ocupar as favelas próximas dos bairros de elite da Zona
Sul e proteger os grandes empreendimentos ligados aos grandes eventos que serão
realizados com a Copa do Mundo de Futebol e as Olímpiadas. Segundo afirma um
grande especialista no assunto, o deputado do PSOL-RJ Marcelo Freixo em entrevista
à Carta Capital, ao lhe perguntarem, “qual sua opinião sobre as UPPs?”: “É um projeto
de cidade. A UPP só pode ser pensada com a construção dos muros nas favelas, com
as barreiras acústicas que tenta fazer com quem sai do aeroporto e chega a zona sul
não veja as favelas e as remoções. O mapa das UPPs é revelador. É o corredor da zona
sul hoteleiro, é a zona portuária com o projeto “Porto Maravilha”, é o entorno do
Maracanã na avenida Tijuca, a Cidade de Deus em Jacarepaguá, que é a única área
em toda Jacarepaguá que não está na mão da milícia. [...] O mapa das UPPs mostra
que não é um projeto de segurança pública, é um projeto de cidade. Porque essas
áreas são para 2014 e 2016 e no mesmo Rio de Janeiro, com o mesmo governo, nós
48
99
Contudo, o tráfico territorializado da “Rua da Lama”, dentre
outras coisas, dada a sua dimensão, especialmente territorial, não
conta com um poderio bélico tão grandioso como o do modelo,
aparentemente em decadência, do Rio de Janeiro. O que não quer dizer
que não haja controle armado por parte dos traficantes, que sirva para
intimidar, moradores, usuários, polícia e traficantes rivais. Segundo as
autoridades policiais, há controle armado do território por traficantes
na “Rua da Lama”, e em algumas operações policiais, há troca de tiros
entre traficantes e policiais. Segundo os policiais, quando a polícia
invade a “Rua da Lama” e pega os traficantes desprevenidos, o tiroteio é
um dos recursos utilizados, para ganhar tempo, enquanto se livram do
“flagrante” da droga, escondendo-a na lama do campo alagado que
passa pelos quintais das casas:
O lugar de tráfico mais conhecido aqui nosso é a Rua da Lama.
A Rua da Lama que fica ali ao lado ou por detrás da Praça São
Benedito. Lá inclusive já foi feita várias operações, já foi
apreendida quantidades de droga na Rua da Lama, e já
melhorou muito, mas ainda existe drogas lá, na Rua da Lama.
Até mesmo porque o acesso é um pouco ruim, e por detrás das
casas, existe uma área cheia de lama, então quando eles olham
as viaturas a polícia chegando, eles correm pra essas áreas, as
vezes jogam a droga dentro da lama e a gente não consegue
localizar, fazer o flagrante... (Ramos, soldado PM, Pinheiro,
02/2014).
Segundo o policial militar por nós entrevistado, é preciso contar
com um bom contingente policial para fazer operações na “Rua da
Lama”: “Geralmente uma viatura e três motos para ir fazer as
abordagens, porque é arriscado ir só uma viatura, a gente vai com um
aparato bom” (Farias, soldado PM, Pinheiro, 03/2014).
O tráfico territorializado traz muitos sofrimentos às populações
dessas localidades, que além de toda a dificuldade de sua condição
socioeconômica, tem que conviver com a violência e a tirania dessas
quadrilhas.
temos a polícia matando três pessoas por dia. A polícia do Rio é a que mais mata e
morre no mundo. O Rio não está pacificado” Entrevista disponível em
<http://www.cartacapital.com.br/politica/um-deputado-no-olho-do-furacao>.
Acessado em Janeiro de 2014.
100
Figura 09: Terreno para vender na “Rua da Lama”, observe ao fundo o
campo e a lama que passa por trás das casas conforme relatou o policial
Ramos (Fonte: www.google.com.br/maps/).
O tráfico territorializado interfere nas formas de organização e
representação política dessas comunidades, as associações de bairros,
por exemplo, quando os traficantes permitem que estas existam,
colocam-na sob sua tutela.
Até mesmo em períodos de eleições nas localidades dominadas
por traficantes, são eles que decidem quem pode ou não fazer
campanha
nesses
locais.
Isso
são
exemplos
de
como
toda
a
sociabilidade49 nesses locais são afetadas pelo tráfico, até a polícia tem
receio de bater de frente com o domínio do tráfico nessas áreas:
Já botaram o trailer da polícia militar lá, na Rua da Lama, de
plantão lá, a gente entendeu que não tinha segurança pra
gente mesmo, até a própria polícia ficou receosa. Como vou
botar um trailer na porta de um traficante? Coisa boa não vai
dá, ele vai se sentir incomodado (Silva, soldado PM, Pinheiro,
03/2014).
Dessa maneira, as populações que moram nesses territórios do
tráfico, são oprimidas duplamente, de um lado, pelo Estado e sua força
repressiva em geral, e por outro, pelas quadrilhas de traficantes que
impõem seu poder e controle com violência nessas localidades. Assim
Mais precisamente “sociabilidade violenta”, como caracterizado por Silva (2004, p.
55): “um complexo de práticas associadas ao que é definido como crime comum
violento, interferindo radicalmente sobre a organização da vida cotidiana”.
49
101
sendo, esse tormento soma-se ao desemprego, falta de infraestrutura,
acesso a saúde, educação e a outros direitos básicos que tanto afligem
essas populações, como destacam os moradores do bairro Floresta:
Eu e outras gente lá próximo que eles conhece, eles não mexe,
mas não mexe assim se você passar lá cedo, mas se for fora de
hora, mais tarde, eles podem te atacar, porque já tão tudo
drogado... E é perigoso, porque gente lá perto, sempre tem
umas colegas nossas que diz que quando é tarde da noite eles
ficam se drogando, eles bate muito nas porta, esmurra, dão de
paulada, de pedrada, ai as pessoas ficam com muito medo, tem
que ficar ouvindo e ficar caladinho pra não perder a vida, mas
tem vontade de sair de lá, tem muitas pessoas que eu conheço,
que não meche com isso, trabalham pela feira, vende
besteirinha aqui outras ali... (Maria, Pinheiro, 03/2014).
Além de toda a violência imposta, o tráfico territorializado tende a
contribuir com o processo de criminalização dos moradores de periferia.
Na opinião dos próprios policiais entrevistados, a maioria das pessoas
que moram na “Rua da Lama” são traficantes ou tem algum tipo de
envolvimento com o tráfico. Os moradores do bairro, que conhecem as
pessoas que moram na “Rua da Lama”, tem uma visão diferente. Dizem
que há pessoas honestas que moram lá e que tem vontade de sair dessa
rua para morar num local melhor, porém são impedidos pelas suas
condições financeiras:
As pessoas que tem vontade de sair de lá, que com certeza não
mexe com esses tipo de coisa, só num consegue vender a casa
pra ninguém, porque ninguém quer, ai é difícil (José, Pinheiro,
03/2014).
Contudo
o
discurso
criminalizante é
homogeneizador
e
a
identidade do território se expande, quase que mecanicamente à
identidade das pessoas que ali residem:
O território não é apenas o resultado da superposição de um
conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de
coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a
população, isto é, uma identidade (SANTOS, 2012, p. 96).
Com essa extensão da identidade do território à identidade das
pessoas que nesse território habitam, nutre-se a lógica criminalizante,
pois se conclui automaticamente que, se o território é um local violento,
as pessoas que lá residem são violentas, e se o território é local de
tráfico, as pessoas que lá moram são traficantes, ou têm algum tipo de
envolvimento. E dessa maneira é que os moradores do bairro Floresta,
102
especialmente os residentes da “Rua da Lama”, se veem enredados num
conflito armado, onde as baixas são constantes:
Tem pessoas que a gente conhece que não deve falar que a
gente sabe que vende, por exemplo a Rua da Lama, é muito
próximo, lá é a boca do fumo mesmo, lá eles tanto vende como
eles se matam, já morreram várias pessoas lá. Agora, agora
mataram uma pequena lá, uma mulher vizinha lá, não tá com
15 dias, diz que foi acerto de conta, diz que ela pediu 10 reais
pra um maluco, ai os malucos mataram ela... (João, Pinheiro,
02/2014).
É nessa lógica perversa que a guerra às drogas vai se
transformando em guerra às pessoas que residem nesses territórios do
tráfico, isto é, aos poucos a guerra às drogas se transforma em guerra
aos pobres.
O território é a base do trabalho, da residência, das trocas
materiais e espirituais, e da vida, sobre os quais ele influi.
Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender
que se está falando em território usado, utilizado por uma
população. Um faz o outro (SANTOS, 2012, p. 96-97).
O tráfico territorializado se superpõe a outros processos que
culminam
com
neoliberalismo,
a
que
criminalização
com
a
da
pobreza
em
tempos
de
desregulamentação
do
mercado,
o
enxugamento da máquina pública com cortes em áreas sociais, e o
desemprego crescente, produz esse tipo de fenômeno, como nos mostra
Wacquant (2008, p. 11): “o projeto neoliberal de desregulamentação e
degradação do setor público” tem como consequência a “política de
criminalização da pobreza que é o complemento indispensável à
imposição de ofertas de trabalhos precárias e mal remuneradas”. O
tráfico territorializado, juntamente com a repressão do Estado cada vez
mais policial e penal e cada vez menos social, produz o achatamento da
vida nos bairros pobres e periféricos, que ora estão sob a tirania do
tráfico, ora estão sob a tirania da polícia, ou ambos simultaneamente.
4. 2 A dinâmica do tráfico em Pinheiro
A “Rua da Lama” não é o único local onde há venda de drogas
ilícitas em Pinheiro, apesar de ser o ponto mais conhecido. Segundo as
autoridades policiais, outros bairros apontados como sendo de tráfico
103
intenso, são: a Ilha de Leonor, a Quinta da Boa Vista, a Rua do Beco,
localizada próximo ao bairro do Antigo Aeroporto, o bairro da Bubalina,
a Vila Kiola e a Vila Dondona Soares. São todos bairros pobres e
periféricos. Esse tipo de configuração do tráfico, que se espalha nos
bairros periféricos da cidade é caracterizada como “territorialidade
descontínua (ou em rede) do tráfico” (SOUSA, 2012, p. 436).
No entanto, todos os policiais afirmam que a “Rua da Lama” é
com certeza o de incidência de tráfico mais antigo, de tal maneira que
os policiais mais novos, com cerca de sete anos de serviço, falam que
quando chegaram em Pinheiro para trabalhar50 já havia tráfico intenso
na “Rua da Lama”. Nenhum policial ou morador, por mais antigo que
seja, soube datar de fato quando começou o tráfico na “Rua da Lama”,
mas, segundo os depoimentos, seguramente remonta no mínimo a
meados da década de 1990: “Quando cheguei lá no bairro, há mais de
20 anos, já existia esse negócio de ‘Boca de Fumo’ lá...” (José, Pinheiro,
02/2014). Daí concluímos que, provavelmente por ser o mais antigo, se
deve a isso o motivo de ser o ponto de venda de drogas mais famoso da
cidade.
Ao longo desse período houve mudanças no contexto do tráfico
em Pinheiro. Uma das mudanças significativas foi o tipo de droga
comercializada.
Por muito tempo as drogas mais comercializadas em Pinheiro, e
provavelmente em todo Maranhão, foram a merla e a maconha. A
Revista Informe Federal (2008) uma revista publicada pelos servidores
da Polícia Federal do estado do Maranhão, em uma das suas edições,
traz na capa a seguinte manchete: “Maranhão na rota da merla”. A
reportagem colocava o Maranhão como um dos estados onde mais se
Algo bastante comum na cidade de Pinheiro é que os cargos provenientes de
concursos públicos, na maioria dos casos são ocupados por pessoas que vem de
outras cidades, principalmente da capital São Luís, ou de capitais próximas como
Teresina ou Belém. É o caso da maioria esmagadora dos policiais entrevistados. Isso
se deve, como já foi citado anteriormente, a falta de acesso à educação pública de
qualidade para a maioria da população pinheirense. Para termos uma ideia, Pinheiro
possui uma taxa de analfabetismo de 19% entre as pessoas maiores de cinco anos
segundo o IBGE.
50
104
consome merla no país, comparando-se a Brasília, principal centro
consumidor, segundo a reportagem. A merla é uma droga derivada do
processamento da cocaína, tem uma consistência pastosa e é
consumida normalmente adicionada a maconha ou com cigarro de
tabaco comum. No entanto, no final da primeira década do século XXI
isso mudou. Apesar das estatísticas sobre apreensões de droga que a
Secretária de Segurança Pública do Maranhão nos disponibilizaram não
serem claras quanto aos anos anteriores a 2010, é notável que houve
um grande crescimento das apreensões na quantidade de crack e uma
quase desaparição das apreensões de merla. O que mostra que a
hegemonia da merla foi desbancada pelo crack nos últimos anos no
Maranhão. Em 2010, as apreensões de crack (56,5 quilos) no Maranhão
chegaram a ser superiores as apreensões de maconha (8,5 quilos),
enquanto as apreensões de merla foram de 4,7 quilos. Em 2011, as
apreensões de maconha lideraram amplamente o número de apreensões
com 127,5 quilos, enquanto às apreensões de crack continuaram
volumosas:
15,6
quilos.
Já
as
apreensões
de
merla
quase
desapareceram com menos de 1 quilo apreendido. Em 2012, foram 65,9
quilos de maconha, 44,9 de crack, e novamente menos de 1 quilo de
merla
51.
É notório que, a partir de 2009, o crack foi substituindo a
hegemonia da merla sistematicamente em todo o Maranhão52. Ao
51
Informações levantadas junto a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão.
Não resta dúvida que a expansão do consumo do crack nos últimos anos é um
fenômeno nacional, como nos aponta o estudo da Fiocruz (2013). Mas não podemos
deixar de perceber que a chegada em massa do crack no Maranhão, a partir dos anos
de 2009, como apontam as apreensões, (segundo a Delegacia de Entorpecentes em
São Luís, o volume de apreensão de crack entre os anos de 2009 e de 2010 cresceram
540%) e os depoimentos de usuários, coincide com a volta de Roseana Sarney ao
comando do estado e, por conseguinte, a volta do deputado Raimundo Cutrim à
Secretaria de Segurança Pública. Segundo a supracitada revista da Polícia Federal, o
deputado Raimundo Cutrim é irmão de um dos maiores traficantes do Maranhão, o
ex-sargento do Corpo de Bombeiros Fernando de Jesus Soares Cutrim, conhecido
como Louro Bill, que respondia um processo disciplinar no Corpo de Bombeiros desde
2008, porém foi exonerado apenas em 17 de setembro de 2013, segundo o Diário
Oficial do Estado, “coincidentemente” na mesma época que Cutrim rompeu
politicamente com a Família Sarney. O que não é prova o suficiente para incriminar o
então secretário de qualquer coisa. Ainda que possamos responsabilizá-lo, bem como
a governadora, por serem as autoridades constituídas e, portanto, responsáveis de
impedir o crescimento do tráfico no Maranhão, tarefa que não cumpriram. O que não
nos surpreende, porque a batalha contra o tráfico tem sido perdida em todos os países
que elegeram o proibicionismo como modelo de combate às drogas. Se em países com
52
105
conversar com vários usuários e ex-usuários na Fazenda do Amor
Misericordioso em Pinheiro, pode-se notar esta significativa mudança.
Os usuários mais antigos, na sua imensa maioria, são usuários de
merla, assim como os usuários mais novos, na sua maioria, são
usuários de crack. Houve aqueles também que acompanharam a
tirânica oferta do mercado proibicionista, isto é, pararam de usar merla
assim que a droga passou a ficar escassa e passaram a usar crack.
Outros observando a potencialidade lesiva do crack, como superior à
merla, segundo seu próprio julgamento preferiram abandonar o mundo
das drogas:
Eu larguei a merla porque o crack apareceu né, ai vários colega
meu tava morrendo de bala, overdose, uns mais de 20 que eu
conhecia dizia que tinha conhecido uma droga mais pesada,
muito doida ela, que a gente fica locão, ai eu: ‘qual é?’, e eles “é
crack!”. Ai eu fui vendo eles emagrecendo sem apetite, eles
tinham uns apelidos de vira bicho, porque eles ficavam a noite
todinha. Às vezes eu ficava na porta da minha casa com uma
garrafa de cachaça e olhava eles a noite toda subindo e
descendo, eles paravam tomavam uma dose de cachaça e
perguntavam ‘Rapa, tu olhou vira bicho por ai?’ – ‘Quem é vira
bicho?’, zumbi também eles chamavam, porque o crack faz
isso, é nóia! Eu disse que eu não ia morrer com isso não...
(Ismael, ex-usuário, Pinheiro, 03/2014).
Segundo os próprios depoimentos dos usuários e ex-usuários da
Fazenda, a merla é uma droga hoje cada vez mais difícil de encontrar
para comprar, porque nos últimos anos ela foi substituída pelo crack. A
maconha por sua vez, continua sendo de fácil acesso, não tendo
alterado sua oferta, pelo que parece. Ao conversar com usuários de
merla residentes em outras cidades da Baixada Maranhense, relataram
que hoje em dia, em toda aquela região só se encontra merla em
Pinheiro. Dessa forma, usuários de cidades como Bequimão, Peri-
orçamentos bilionários de segurança, como os EUA, não conseguiram vencer o tráfico,
não seria no paupérrimo estado do Maranhão, que não superou desafios muito mais
simples, que se venceria. O que nos instiga é que, o tal traficante, apesar de ser
amplamente conhecido, continua solto até o presente momento, e ainda segundo a
Polícia Federal, o deputado nunca teria rompido relações com seu irmão, a despeito
dos inúmeros crimes de que ele é acusado. Outra “coincidência” que nos instiga é que,
a guerra entre quadrilhas rivais em Pedrinhas, acirrada em 2013, também coincide em
datas, com o rompimento de Cutrim com a Família Sarney e sua adesão à oposição.
Óbvio que tudo isso não são mais que conjecturas, baseadas nas simples
coincidências de datas, feitas por um historiador. Afinal, a quem mais interessaria tais
coincidências, de caráter temporal, senão a um historiador?
106
Mirim, até mesmo de Alcântara, saem de suas cidades para comprar
merla em Pinheiro, que mesmo assim, segundo eles, não é em toda
“boca” que se encontra.
Com isso, observamos que Pinheiro ocupa um lugar central
também no que se refere ao tráfico na Baixada. Drogas que são
dificilmente encontradas em outras cidades menores, podem ser
encontradas em Pinheiro:
Pinheiro é centralizado, né?! Se a gente pegar o mapa a gente
ver que Pinheiro é o centro de toda essa região, né?! De
Pinheiro pra Santa Helena, de Pinheiro pra São Bento, Pra
Presidente Sarney é a mesma distância praticamente. Pinheiro
é um centro comercial daqui da região com certeza vem muita
gente de fora pra cá, com droga... (Silva, soldado PM, Pinheiro,
03/2014).
Os traficantes, na sua maioria, simplesmente pararam de
comercializar merla e passaram a vender no seu lugar o crack, segundo
nos dizem os usuários e as próprias estatísticas de apreensão. Os
motivos pelos quais isso ocorreu são desconhecidos, mas o que
podemos conjecturar é que, devido o crack ser uma droga com maior
poder
de
causar
dependência,
os
traficantes
viram
nesse
fato
possivelmente uma maneira mais rápida de aferir maiores lucros.
Podemos apontar isso como mais um dos efeitos perniciosos do
proibicionismo. Não existe nenhum tipo de controle sobre a qualidade da
droga que se vende nesse mercado. E as redes de monopólio, garantida
a ferro e fogo pelas quadrilhas, impedem ou dificultam a concorrência,
de maneira a dar-lhes poder o suficiente para simplesmente substituir
ao bel prazer uma droga que era bastante comercializada há anos no
Maranhão por outra mais nociva.
Ao afirmar que o proibicionismo gera um comércio de drogas que
não respeita as leis de mercado, e que tende sistematicamente ao
monopólio, e não está sob nenhum tipo de controle público, não
queremos com isso fazer coro à tão propagada verborragia neoliberal da
autorregulação
do
mercado
e
suas
infinitas
superioridades
democráticas sobre o autoritarismo do dirigismo estatal. Queremos
problematizar o fato de que, se numa economia de mercado legal na
qual existem agências reguladoras de qualidade, onde vigoram leis
107
antitrustes e anti-cartéis, onde o consumidor pode tencionar lançando
mão de legislações irrisórias muitas vezes, mas ainda assim existentes,
contra abusos e a má qualidade dos produtos e serviços prestados pelas
empresas;
Se
em
todas
essas
situações
do
mercado
legal
os
consumidores ainda se veem de mãos atadas frente à tirania e o poderio
das grandes corporações que dominam o mercado, o que dizer de um
mercado que está totalmente abaixo da lei? Em relação a essas
questões, entendemos, na mesma esteira da maioria dos pesquisadores,
que o proibicionismo, por estreitar violentamente o universo dos
consumidores e por todas as outras questões apontadas, revela aqui
um outro desdobramento nefasto, que está na raiz de processos como a
substituição da merla pelo crack, isto é, a substituição de uma droga
por outra mais nociva, no submundo do tráfico no Maranhão em fins da
primeira década do século XXI.
Ainda analisando a questão do consumo, para os consumidores
que já se encontram dependentes, segundo a polícia e o depoimento dos
ex-usuários, o circuito se dá 24 horas por dia, sete dias por semana,
nem traficantes, nem viciados tiram folga, segundo os relatos. No
entanto, ao que parece, nem todos os usuários podem se encaixar nesse
perfil de viciados que se drogam 24 horas por dia, isto é, nem todos os
usuários são viciados, algo revelado também nos depoimentos, por
exemplo, de que há os horários e os dias de maior consumo, como é o
caso dos fins de semana, no qual o consumo cresce bastante,
sobretudo, por conta da folga do trabalho e porque é potencializado pelo
uso de outras drogas, como o álcool. O álcool é um elemento sempre
presente no depoimento dos ex-usuários: “no bar mesmo, as pessoas
chegam e diz essa bebida não tá batendo, bora aqui, vamo ficar mais
doidão, ficar mais loco” (Ismael, ex-usuário, Pinheiro, 03/2014). Como
já apontado no capítulo anterior, o álcool é uma droga muito difundida
entre os trabalhadores:
É principalmente nos sábados à noite, quando os salários são
pagos e o trabalho termina um pouco mais cedo, quando a
classe operária sai de seus bairros miseráveis e se lança às
ruas principais, que se pode constatar a embriaguez em toda a
sua crueza – nessas noites, raramente se sai em Manchester
108
sem encontrar uma multidão de bêbados cambaleantes ou
jazendo nas valetas; nos domingos embora em menor escala, a
cena se repete. E quando o dinheiro acaba os alcoólatras vão à
primeira casa de penhor que encontram [...] e deixam ali tudo
que lhes resta (ENGELS, 2008, p. 165).
Pelo que podemos constatar, o uso de álcool sempre, ou quase
sempre, acompanha o uso de outras drogas, como o tabaco, a maconha,
a cocaína, a merla ou o crack. Quando o indivíduo é viciado em alguma
droga,
o
uso
do
álcool,
segundo
os
relatos
orais,
desperta
imediatamente o desejo de usar tal droga. O álcool anda de mãos dadas
com as outras drogas. Isso é algo tão presente nos relatos dos exusuários, que nos leva a concluir que, se existe alguma droga que
funciona como porta de entrada para as outras, tal como o discurso
proibicionista acusa a maconha, podemos constatar que é o álcool que
desempenha tal função e está presente na maioria esmagadora dos
casos. Em seguida vem o tabaco: “Eu bebia normalmente, e usava
nicotina só quando bebia, maconha não, fui direto pro crack...”
(Jeremias, Pinheiro, 01/2014). Não ouvimos nenhum relato de alguém
que usou alguma droga ilegal sem antes terem usado álcool ou tabaco
durante bom tempo das suas vidas. Dessa forma, segundo os relatos
dos usuários, e segundo a própria polícia, bares e locais de festa,
lugares onde há grande consumo de álcool, são frequentados por
traficantes e “aviões”53 na busca de usuários. É notório como a
problemática do álcool, apesar de ser central em relação a questões
epidemiológicas e em relação à violência a ele associada, é tratada de
forma bastante branda no debate público. Uma prova disso é que houve
nos últimos anos a proibição da propaganda do tabaco no Brasil e em
O avião é uma figura conhecida no mundo do tráfico, também chamado de mula. É
um personagem que ocupa o baixo escalão na hierarquia do tráfico. Fica responsável
por transportar a droga, de um lugar para o outro, quando necessário, ou levar a
droga da “boca” até o cliente em troca de dinheiro e às vezes em troca de certa
quantidade de droga: “Há uma troca de favores, o que tem mais dinheiro o que tem
menos, para comprar drogas, para ir aos pontos acaba financiando os que tem menos
condições, de forma que essa droga eu diria até que acaba sendo socializada nesse
meio, os que tem mais dinheiro usam os que tem menos dinheiro como avião para ir
comprar para não se expor não correr o risco de serem pegos pela polícia, o próprio
risco que é de se ir até um ponto de venda de drogas, com aquela história de violência
de vingança e uns acabam financiando pros outros” (Josias, policial civil, Pinheiro,
03/ 2014).
53
109
relação ao álcool, isso não foi feito, a despeito do que apontam os
estudos do tema:
Estudos epidemiológicos apontam o álcool como tema
prioritário de saúde. Um estudo domiciliar realizados nas
maiores cidades brasileiras sugere que 12% da população entre
12 e 65 anos preenche critérios diagnósticos para dependência
do álcool. [...] Cerca de metade dos casos de homicídio e
violência familiar envolvem agressores embriagados. [...] Uma
parcela significativa de acidentes de trânsito e de trabalho
também está associada ao consumo indevido de álcool. [...] No
entanto, a frequência de matérias jornalísticas publicadas
sobre álcool no país, apesar de crescente, ainda tende a ser
menor do que o observado para as drogas ilegais, como
maconha, cocaína e crack (NOTO et al., 2013, p. 279-280).
As drogas ilícitas são mais comumente ligadas, pela mídia, aos
casos de violência do que o consumo do álcool, mesmo quando os
números das pesquisas apontam o contrário:
Para as drogas ilegais, ao contrário, a mídia tende ao exagero.
São frequentes as manchetes sensacionalistas e o uso de
termos pejorativos como viciados, drogados e maconheiros,
permeados de sérios equívocos de informação. Nos últimos
anos foram crescentes as matérias sobre caso de violência
associado ao crack e cocaína, com manchetes como ‘Menor
mata a avó com 70 facadas após usar cocaína/crack’ (Folha de
São Paulo). Porém, um estudo epidemiológico domiciliar
realizado em São Paulo, identificou que os casos de violência
física associado aos derivados de cocaína são cerca de cinco
vezes superados pelos casos associados ao álcool, os quais são
bem menos divulgados na imprensa (NOTO et al., 2013, p.
280).
Conforme vimos no capítulo anterior, a política proibicionista se
ancora,
dentre
outras
coisas,
nesses
alardes
sensacionalistas
desprovidos, na maioria esmagadora dos casos, de base científica.
Obviamente que quando se trata da questão das drogas ilícitas, tais
políticas, tão debilmente embasadas, visam atender interesses políticos,
sociais e econômicos específicos, bem distantes dos enfoques que são
mais urgentes e necessários à saúde e bem estar da população. O
descompasso que existe entre os resultados das inúmeras pesquisas
sobre o tema e o que a mídia e o poder público resolve focar, não é à
toa: “esses descompassos podem refletir em distorções na agenda das
políticas de saúde” (NOTO et al., 2013, p. 279) e estão longe de
representar algum tipo de avanço para as políticas públicas, pois
costumam encobrir os verdadeiros problemas presentes na sociedade:
110
Fenômeno similar foi anteriormente descrito em outros países.
Hartman & Golub (1999) analisando matérias da década de 90,
perceberam que a imprensa americana criou um pânico em
relação a uma possível epidemia de crack. Os autores
consideraram que essa visão equivocada ‘do problema’ teria
sido construída pelos meios de comunicação e, provavelmente
ajudou a desviar a atenção da população de problemas
estruturais persistentes, como desemprego, condições de saúde
geral, entre outros (NOTO et al., 2013, p. 280).
Na esteira da problemática do consumo, observamos que, além
dos fins de semana, os finais de tarde, durante os dias úteis da semana
são também horários de grande consumo. Segundo os relatos, este é o
horário que o indivíduo sai do trabalho, ou da escola, ou de outras
ocupações e vai até a “boca”, para “descolar”54 a droga. De maneira que,
segundo
os
dirigentes
e
coordenadores
da
Fazenda
do
Amor
Misericordioso, no final da tarde, por volta das 18h00 sempre é uma
hora bastante delicada, na qual a abstinência vem com mais força e é a
hora que os coordenadores da Fazenda tentam manter os internos mais
ocupados, executando inúmeras tarefas, ou se reunindo para fazer
orações. Nessa hora, nas palavras de coordenadores e usuários, não
pode haver ociosidade, senão corre o risco do indivíduo desistir do
tratamento e ser vencido pela abstinência.
Esse relato sobre a problemática do fim de tarde é bastante
significativa por vários aspectos. Primeiramente, podemos observar que
a
maioria
esmagadora
dos
usuários
não
são
desocupados
ou
vagabundos, como muitas vezes os discursos conservadores tendem a
apontar e como acredita a própria polícia pinheirense: “O cara ele é
viciado, não tem emprego, ele não trabalha na maioria das vezes, não
tem de onde tirar e o que acontece? Ele vai praticar crimes, vai praticar
furtos, pra manter o vício.” (Silva, soldado PM, Pinheiro, 03/2014). Os
usuários, na verdade, são, na sua maioria, trabalhadores, não são
diferentes da maioria das pessoas comuns e utilizam a droga após uma
jornada exaustiva de trabalho. Não se diferenciando em nada do sujeito
que após um dia longo de trabalho duro, senta numa mesa de bar para
tomar uma cerveja gelada e relaxar um pouco antes de ir para casa.
54
Comprar
111
Não resta dúvida que a rotina exaustiva de trabalho aos quais são
sujeitados inúmeros trabalhadores do Brasil e do mundo, acaba por
transformar as drogas em uma fuga, uma válvula de escape dessa
rotina sofrida. Engels, reconheceu isso, em meados do século XIX em
relação à expansão do consumo de álcool nos meios operários das
cidades industriais inglesas55. Ademais, como vimos anteriormente, o
cenário não é tão radicalmente diferente ao ponto de não podermos
fazer comparações com o que estamos analisando. É notório como essa
imagem que reconhece nos usuários de droga nada mais que pessoas
comuns, contrasta com a imagem do viciado, marginalizado e
mendicante, ou os chamados “zumbis” do crack, que tendem a
identificar somente os usuários em alto grau de dependência, como é
comum nas chamadas “cracolândias”56, retratadas na rede televisiva
que propagandeia que tais usuários são o consumidor por excelência
das drogas, sobretudo do crack:
A imprensa também representa um dos elementos que refletem
e reforçam um conjunto de crenças e valores negativo sobre o
uso de drogas, estimulando o estigma social e dificultando
algumas ações de saúde. A ANDI [Agência de Notícias dos
Direitos da Infância] conduziu análise de textos jornalísticos
sobre drogas, entre 2002 e 2003. Foi observado que 28% dos
textos associaram o tema drogas com algum tipo de violência
ou crime. Para os autores, esse tipo de matéria ajuda a
construir um estereotipo do usuário ligado diretamente a essas
práticas. Essa visão estimula o medo e dificulta o
estabelecimento de relação de cuidado entre profissionais de
“O fato de os operários se embebedarem não pode espantar a ninguém. O sheriff
Alison afirma que em Glasgow, todas as noites de domingo, 30 mil operários se
embriagam e, certamente, esse número não é exagerado; informa que nessa cidade em
1830, havia uma taberna para cada doze imóveis e, em 1840, uma para cada dez [...]
E quando pensamos que, além das consequências habituais do alcoolismo, homens e
mulheres de todas as idades, mesmo crianças, até mulheres com filhos pequenos nos
braços, encontram-se nas tabernas com as vítimas mais degradadas do regime
burguês, ladrões, escroques, prostitutas, quando pensamos que é comum as mães
darem álcool aos pequenos que ainda têm nos braços, não podemos deixar de
reconhecer que a frequência a esses locais favorece a degradação” (ENGELS, 2008, pp.
164-165).
56 As cracolândias são entendidas pelos estudiosos da seguinte maneira: “O processo
de cronificação territorial pode ser traduzido como procedimento de demarcação de
determinados espaços pela incapacidade de controle, devendo, portanto, ser
etiquetado e separado dos demais para não ser confundido. Trata-se de uma dinâmica
inerente a todas as sociedades, como zona portuária e a zona de prostituição, entre
outras. Nesse caso particular, trata-se do espaço do crack [...] se configura como
substância usada pela população ocupante ou formadora do lugar cronificado
denominado ‘cracolândia’” (MEDEIROS, 2010, p. 179).
55
112
saúde e pacientes dependentes (SILVEIRA et al., 2013, p. 282283).
Quando,
ao
conversarmos
com
os
usuários
em
Pinheiro,
percebemos, segundo seus relatos, que os usuários de droga são
indivíduos de todas as classes sociais e das mais diversas profissões,
muitos dependentes, que apesar de terem sofrido problemas com a
droga, reconhecem que existem muitas pessoas que utilizam drogas,
inclusive crack e levam uma vida relativamente normal. O que não
parece ser algo tão inconcebível, quando paramos para pensar no fato
de que um mercado global e bilionário não poderia ser sustentado
apenas por dependentes mendicantes. Os estudos nesse campo
corroboram com o que nos dizem alguns relatos:
No caso dos usuários de crack, não é apropriado afirmar que,
em sua totalidade, são sujeitos impossibilitados ou incapazes
de fazer escolhas, embora existam alguns que se incluem no rol
de indivíduos com idoneidade limitada, restrita, vivendo em um
contexto social deteriorado. Porém, existem outros que podem
usar temporariamente drogas lícitas ou ilícitas, inclusive crack,
e não atravancar suas relações no cotidiano. Existem aqueles
que fazem uso continuado da substância em um ritual ou
isolado, independentemente de ser por razões lúdicas ou por
questões psíquicas ou simplesmente pelo prazer, sem alterar
sua rotina de vida, e outros usam para aguçar as sensações e
para fazer com que os problemas sejam silenciados, e os
conflitos sejam minimizados ou para encontrar harmonia,
ainda que reconheçam os riscos a que estão expostos,
exatamente pela ilegalidade do ato (MEDEIROS, 2010, p. 178).
A partir dos relatos, ou mesmo segundo as profissões dos
próprios usuários que conhecemos durante a pesquisa, constatamos
que usuários de crack não são apenas os “zumbis” da “cracolândia”,
mas são advogados, professores, pedreiros, ajudantes de pedreiros,
mecânicos,
comerciantes,
donos
de
supermercados,
empresários,
políticos, bancários e professores universitários:
Tem um ditado que de onde a gente menos espera é que
surgem as coisas. Hoje tem gente da alta sociedade, de famílias
de renome na cidade que usam drogas. Todas as classes
sociais, tá mesclado, tá misturado, da mesma forma daqueles
que já andam mal vestido que já andam sujo, que andam com
aquele cabelo estilo moicano, entendeu? que não se cuida, usa!
Tem pessoa da alta sociedade, que tem bons empregos, que
tem uma aparência mesmo bem vistosa na sociedade, que
usam drogas, é difícil a gente distinguir um perfil dos usuários
de droga hoje. (Ramos, soldado PM, Pinheiro, 02/2014).
113
Muitos usuários levam uma vida relativamente normal sem
chegarem ao fundo do poço da mendicância. Gerentes de bancos que,
ao término do expediente estressante, procuram o traficante para
“cheirar uma carreira de pó” ou “pipar57 uma pedra de crack”, uma
gama muito grande de trabalhadores que são usuários esporádicos:
Da mesma forma as matérias jornalísticas tendem a ser
inespecíficas quanto aos padrões de consumo de substâncias,
generalizando conceitos e contribuindo para a desinformação
da sociedade sobre diversidade do uso de drogas. No estudo
realizado pela ANDI (2005) os principais termos encontrados
em matérias sobre drogas apontavam o usuário como bêbado,
dependente, viciado e drogado, colocando em um mesmo
patamar os usuários esporádicos e dependentes (SILVEIRA et
al., 2013,p. 283).
Aquilo que às vezes chamamos de submundo da droga, está
presente em tantos lugares insuspeitos que só nos resta concluir que
esse submundo é na verdade o próprio mundo que vivemos! Mesmo que
seja mais conveniente a uma sociedade que quer jogar para debaixo do
tapete os drogados que ela mesma produz, e, portanto, tende a relegar a
identidade de drogado apenas a viciados que se esgueiram nas sarjetas.
Existe uma interdição tão grande sobre esse fato, que, ao falarmos isso,
algumas pessoas podem interpretar que a posição que estamos
defendendo é: “usar crack não é tão ruim assim, vá lá e experimente
você também!”. O nosso ponto de vista está muito longe dessas
ingenuidades apologéticas, nossa visão sobre esse fenômeno é bem
mais complexa. Queremos chamar atenção que a estigmatização
sistemática, resultado da política proibicionista, que se faz de usuários
de drogas, especialmente de crack, muitas vezes não está de acordo com
a realidade:
Já foi identificada a existência do ‘uso controlado de crack’,
caracterizado como um consumo ao longo prazo não diário e
racional, em que o usuário, por meio de estratégias de
autocontrole, não tem permitido que a necessidade pela droga
governe sua vida (VIEIRA, 2010, p. 103-104).
Não somos ingênuos: usar crack é muito perigoso, já está provado
que causa inúmeros males à saúde, inclusive maior do que muitas
Gíria utilizada pelos usuários que significa fumar uma pedra de crack. Para
aprofundamento sobre a questão do léxico no consumo de drogas na cidade de São
Luís, ver: Silva (2013).
57
114
outras drogas, e causa dependência assim como o álcool ou o tabaco, o
que não quer dizer que todos os usuários de crack sejam viciados
mendicantes, assim como nem todo usuário de álcool é um alcóolatra
inveterado. Queremos apontar o fato muito simples, mesmo que pareça
bastante estranho aos ouvidos leigos que nem todo usuário de crack é
um viciado em crack. Não há uma coincidência de 100% entre o número
de usuários e de dependentes.
Vale ressaltar que a grande maioria de usuários de drogas não
são dependentes e o desenvolvimento de problemas relativo ao
uso de drogas se dá por meio de uma complexa interação de
diversos fatores biológicos, psicológicos e sociais, sendo
errôneo supor que o dependente é o único responsável sobre
sua condição. Essa tendência em não abrir espaço para a
discussão multidisciplinar destaca o dependente ou a própria
droga como ‘bode expiatório’ de um fenômeno que envolve
questões estruturais da sociedade, que muitas vezes não são
comodamente tratadas, mas que estão diretamente implicadas
no desenvolvimento da dependência, como por exemplo o
crescimento da desigualdade social (SILVEIRA et al., 2013,p.
283).
Nem mesmo no caso do tabaco, a totalidade dos seus usuários é
dependente, mesmo sendo apontada por muitos estudiosos como sendo
uma das drogas que mais dependência química provoca58. É muito
difícil romper com o senso comum quando tratamos de tabus tão
profundamente enraizados. Porém o pesquisador não pode renunciar a
esses desafios, como nos lembra Bourdieu (2007, p. 34):
Construir um objeto científico é, antes de mais e sobretudo,
romper com o senso comum, quer dizer, com representações
partilhadas por todos, quer se trate dos simples lugarescomuns da existência vulgar, quer se trate das representações
oficiais, frequentemente inscrita nas instituições.
Não temos dúvidas sobre isso: constatar alguns desses fatos
durante a nossa pesquisa foi uma surpresa para nós tão grande como
deve estar sendo para os leitores. Constatamos indivíduos das
profissões mais distintas e das mais distintas classes sociais, usando
vários tipos de droga. É bem verdade que há uma relação entre certo
O médico Drauzio Varella, um dos pioneiros no Brasil a tratar de detentos usuários
de droga e portanto grande autoridade no que se refere a tratamento de dependentes
químicos afirma que era mais fácil os dependentes deixarem de usar crack do que
deixarem de usar o tabaco: “Conseguiam se livrar do crack, mas poucos deixavam de
usar o cigarro. Tantos foram os casos que acabei convencido de que a nicotina é a
substância que mais dependência química provoca” (VARELLA, 1999, p. 137).
58
115
tipo de droga e a classe social que o usuário pertence e pode pagar. Mas
esses critérios não são tão rígidos.
A cocaína, por exemplo, é utilizada por usuários que tem um
poder aquisitivo maior, não apenas por se tratar de uma droga cara,
mas pela “conveniência” do tipo de uso que ela engendra.
Quem tem dinheiro gosta mais da cocaína, né?! Pouco usa o
crack, gosta mais da cocaína, por que a cocaína, assim... eu
acho pra eles é mais fácil, é mais fácil deles possuir, de
carregar... e de usar, eles num preciso tá quebrando,
mesclando, fazendo fumaça, muito simples de usar... não
precisa se esconder, não deixa cheiro... (Rafael, Pinheiro,
01/2014).
A cocaína não deixa “rastro”, não deixa mau cheiro, ou olhos
vermelhos, etc. Nas palavras dos usuários, “a pessoa não precisa se
‘intocar’ [esconder] pra usar cocaína”, uma rápida ida ao banheiro, em
menos de um minuto a droga pode ser consumida, sem deixar mau
cheiro ou mudar o semblante da pessoa, como é o caso da maconha e
do crack. Uma droga “perfeita”, para quem frequenta a alta sociedade,
uma droga higiênica, sem vestígio aparente. A cocaína, por suas
características estimulantes também é bastante utilizada em festas,
ativa o sistema nervoso, retirando o sono e deixa o usuário “pilhado”,
isto é, em estado de excitação. Também é bastante utilizada junto com o
álcool. Seus efeitos estimulantes já foram largamente registrados na
arte e na literatura:
Cocaína é como eletricidade correndo pelo cérebro, sua fissura
é puramente cerebral, uma fissura desprovida de corpo e
emoção, o cérebro ativado pela cocaína é uma máquina de
pinbal enlouquecida, piscando luzes azuis e cor-de-rosa no
auge do seu orgasmo elétrico. O prazer da cocaína poderia ser
experimentado por um computador como se se tratasse dos
primeiros movimentos de uma forma de vida repugnante e
invertebrada. O desejo pela cocaína não dura mais que
algumas horas, apenas enquanto os circuitos da cocaína
permanecem estimulados. Não tenho dúvidas que o efeito da
cocaína poderia ser facilmente reproduzido por uma corrente
elétrica que ativasse os circuitos da droga no cérebro...
(BURROUGHS, 2005b, p. 33).
Todos os usuários de cocaína que tivemos contato em Pinheiro,
tinham padrão de vida elevado, e associavam o uso da cocaína com
festas e noites de diversão. É interessante perceber que essas pessoas
estão livres de serem taxadas de zumbis ou congênere, os usuários de
116
cocaína estão menos sujeitos a estigmas vexatórios quando comparados
aos usuários de crack. O recorte classista do estigma nessa situação é
muito claro59. O que não está tão claro é: se a cocaína é uma droga de
preferência dos ricos por conta de não ter estigmas tão pesados sobre ela
ou não existem estigmas pesados sobre ela por que ela é uma droga de
ricos? É difícil chegar a uma opinião conclusiva que não admita
minimamente que há uma lógica que se retroalimenta entre as duas
possibilidades.
Dessa forma, observamos que o estigma que tende a identificar o
usuário como dependente é o mesmo estigma que o identifica como um
potencial criminoso. Por isso, problematizar e relativizar essa questão
da diferenciação entre usuários esporádicos e usuários dependentes é
atacar o âmago da estigmatização que, conforme as pesquisas na área,
não possuem base real.
Em relação aos outros aspectos da dinâmica do tráfico em
Pinheiro, segundo policiais e usuários, um dos “aviões” frequentes que
transporta a droga até o usuário ou o usuário até a droga, são taxistas
e principalmente moto-taxistas:
Geralmente são moto-taxistas, que as vezes leva alguém pra lá,
pra comprar alguma coisa, normalmente quando a gente
percebe que tá indo pra lá um moto-taxista ou um taxi pra lá,
pra Rua da Lama, ou tá vindo duma Boca dessa que a gente já
sabe, conhece, a gente já chega, já vai abordando (Silva,
soldado PM, Pinheiro, 03/2014).
Segundo os policiais, ver moto-taxista rondando a “Rua da Lama”
é atividade altamente suspeita, sujeito a abordagem e, caso exista
alguma irregularidade, encaminhamento para a delegacia:
Na maioria das vezes os usuários pegam o moto taxi, inclusive
tem pessoas que tem colete de moto-taxi, que trabalha de
moto-taxi pra fazer esse serviço, chega lá, diz que quer comprar
droga e ele indica a casa que tem, quando eles não tem logo ali,
normalmente eles indicam a casa que tem a pessoa vai e
compra, assim que se dá o comércio. Os policiais da
inteligência que são infiltrados eles vão também como
compradores, pra fazer o levantamento, fazer o mapeamento
(Ramos, soldado PM, Pinheiro 02/2014).
“Aqui só é humilhado o pobre que usa droga/ Nunca o boy dono da plantação de
coca/ A lente não faz foco em condutor de Maranello/ Com personal trainer e endereço
em Campo Belo... (Letra da música “Aperte o gatilho por favor,”, da banda paulista de
rap Facção Central).
59
117
Óbvio que a própria polícia reconhece que é uma minoria entre
os moto-taxistas que fazem esse tipo de serviço, mas é muito difícil
diferenciar uns dos outros. Para os policiais, o simples fato de aceitar
uma corrida para a “Rua da Lama” já é um indício de que o taxista ou o
moto-taxista colabora com o tráfico:
O motorista diz que não tem nada, o cara diz que sobe no carro
dele ou no moto taxi, e pede pra fazer uma corrida pra lá, o
motorista diz que não sabe de nada. Ai eu discordo com ele,
meu irmão tu sabe! Um cara que chega aqui te pede uma
corrida pra tu levar ele lá na Rua da Lama tu sabe o que vai
fazer! tu conhece! (Silva, soldado PM, 03/2014).
Um lugar onde há bastante consumo de drogas, muito presente
nos relatos de usuários, são os motéis. Quem não pode utilizar sua
própria casa, por conta da família se opor ao consumo de drogas
ilícitas, por exemplo, e dispõe de recursos financeiros para tanto,
recorre muitas vezes aos motéis, segundo os usuários, porque é um
lugar privado onde se desfruta de tranquilidade o suficiente para
utilizar a droga, longe da polícia e de outros olhares inconvenientes. O
motel é um espaço chave também porque o uso de drogas se vincula às
relações sexuais. Muitos vêem na droga um estimulante sexual. O uso
de drogas na cidade de Pinheiro algumas vezes também está associado
à prostituição. É muito presente relatos de ocasiões no qual aparecem
mulheres dispostas a prestar serviços sexuais em troca de drogas.
Os policiais afirmam que a repressão ao tráfico em Pinheiro é
muito difícil de fazer, quando eles acirram a repressão numa localidade
os traficantes fogem para outras, e mais tarde quando a polícia
abandona essa localidade, os traficantes retornam:
Lá na Rua da Lama, traficante já foi preso, já foi feito
emboscada, tanta quantidade de droga que já foi tirada de lá,
que já foi presa, mas não acaba [...] Hoje em Pinheiro quando
tu fecha uma boca, abre duas em outro lugar, se tu fecha uma
aqui, abre duas ali. Aqui toda hora, por semana a gente
quebra60, duas, três bocas, a gente fecha prende por tráfico [...]
mas quando a gente fecha ali, já tem a denúncia que já abriu
outra em outro lugar. Todo tempo é isso ai, todo tempo! A gente
sai daqui, e vai pra outro lugar. É muito difícil, nunca tinha
60
“Quebrar uma boca” ou “estourar uma boca” são os termos que os policiais utilizam
quando querem se referir as operações policiais feitas nas bocas de fumo com intuito
de prender traficantes e apreender drogas.
118
visto uma coisa tão complicada como isso (Silva, soldado PM,
03/2014).
Os próprios policiais reconhecem que a pobreza e a falta de
oportunidades em Pinheiro é um dos vetores que contribui para que
nunca falte mão de obra para o tráfico. Mesmo aumentando o número
dos traficantes presos e o volume de apreensões, o tráfico, segundo os
policiais, nunca dá sintomas de que está recuando, não importa o
quanto a repressão aumente. É bem verdade que a repressão ao tráfico
em Pinheiro seja basicamente a repressão ao varejo do tráfico, os
grandes traficantes atacadistas ou a lavagem de dinheiro dificilmente
são alvos de alguma operação policial:
Infelizmente os que são presos são os pequenos, os peixes
pequenos que a gente fala, na verdade mesmo, os grandes
traficantes que manda droga pra cá, a gente não consegue
pegar. A gente tá pegando aqui só o receptor (Silva, Soldado
PM, Pinheiro, 03/2014).
Assim, a guerra ao tráfico em Pinheiro, como na maior parte do
Brasil e do mundo, se resume ao combate ao pequeno traficante que se
instala nas regiões pobres das cidades e contribuindo para que a vida
das populações que moram nessas regiões pobres seja ainda mais
difícil.
Apesar da dificuldade de combater o tráfico, e um cenário
descreditado
frente
à
possibilidade
de
vencê-lo,
ainda
assim,
paradoxalmente, todos os policiais militares entrevistados, sem exceção,
são contrários à legalização das drogas. Para eles, a despeito do que
dizem os pesquisadores e especialistas no assunto, a legalização
beneficiaria o tráfico e pioraria o problema, pois aumentaria o consumo
e, na visão dos policiais, todo usuário é um criminoso em potencial,
pois mais cedo ou mais tarde, ele ficará sem dinheiro para comprar
drogas e para sustentar seu vício (porque todo usuário é também
viciado, na visão deles), vai praticar crimes, como roubos, assaltos,
assassinatos, etc. Apenas uma autoridade policial se posicionou
favoravelmente à legalização, contudo, condicionando tal legalização
apenas se anteriormente forem superados outros problemas como a
119
questão da desigualdade econômica e social e da falta de acesso a
educação de qualidade.
3.2.1 Diferenciação entre traficantes e usuários por parte da polícia
Como nos lembrou o delegado regional de Pinheiro, não existe
legislação no Brasil que estabeleça uma determinada quantidade de
droga para caracterizar se trata de usuário ou de traficante aquele que
for pego em posse de drogas. Como não é a quantidade que determina a
diferenciação entre ambos, fica a cargo da interpretação por parte das
autoridades diferenciar traficante de usuário. Segundo as palavras do
delegado;
A lei não diz quem é traficante quem é usuário, as
circunstâncias da prisão dessa pessoa, a partir de uma análise
das circunstâncias que o delegado vai ter que dá um despacho
fundamentando, levando-se em consideração a quantidade e as
circunstâncias de apreensão dessa droga (delegado titular da
Delegacia Regional de Pinheiro, 03/2014).
Dessa forma, fica a critério de interpretação das autoridades
policiais a diferenciação entre traficantes e usuários, haja vista que nem
sempre a quantidade é um fator determinante. O delegado cita alguns
exemplos para ilustrar:
Por exemplo, o cidadão que é pego com 10 cigarros de maconha
ou com 20 cigarros de maconha ele não tem como justificar
que aqueles 20 cigarros eram destinados ao consumo porque
ninguém vai consumir 20 cigarros de maconha, isso deve dá
umas 50 gramas. Mas aquela pessoa, por exemplo, que é pego
com uma lata de leite ninho, cheia até na metade de maconha
com uma quantidade que chega a ser o dobro desses 20
cigarros, mas ela pode chegar e dizer na polícia que aquela
droga ela comprou pra ela pro consumo mensal porque não
queria ir todos os dias a denominada boca de fumo pra não
correr o risco de ser pego pela polícia, ora, esse argumento é
um argumento plausível pra que a polícia a considere
consumidora, embora a quantidade tenha sido bem maior do
que aquele primeiro exemplo que dei anteriormente do cidadão
que foi pego 20 cigarros (delegado titular da Delegacia Regional
de Pinheiro, 03/2014).
Outras questões podem ser levadas em conta na hora de
diferenciar traficantes de usuário, como a presença de balanças ou
material para embalagem:
120
Então que vai definir pra polícia se o cidadão se adequa ao
caso de consumidor ou de traficante são as circunstância. Por
exemplo, se ele é pego com três cigarros de maconha mais
material para embalar droga, mais balança de precisão, a
autoridade policial vai concluir que aquele cidadão trata-se de
um traficante. Então não existe uma quantidade específica. As
circunstâncias é que vão definir se o cidadão é traficante ou
consumidor de drogas, né?! (delegado titular da Delegacia
Regional de Pinheiro, 03/2014).
Como podemos ver, a diferenciação entre traficantes e usuários é
cheia de nuances. Nas palavras do delegado, não existe uma aritmética
exata, para diferenciar um do outro, é levado em conta diversas
circunstâncias, além dos antecedentes criminais do indivíduo em
questão. Isso tudo se deve porque a lei brasileira prevê penas
diferenciadas a usuários e traficantes, pelo crime de tráfico o individuo
pode pegar de 05 a 15 anos de reclusão, enquanto para os usuários as
penas são mais brandas, porém não inexistentes como muitos pensam,
o consumo de drogas ilícitas ainda é crime no Brasil, como nos revela o
delegado Regional de Pinheiro:
Ao contrário do que muita gente pensa, pela nossa legislação, o
consumo de substância entorpecentes ainda é considerado
crime, não vai se impor mais é prisão em flagrante, mas o juiz
pode dentre de muitas outras impor pena de multa e
tratamento pra aquela pessoa que tem o caráter de pena se ela
se torna obrigatório. Então muitas pessoas pensam que
consumir substâncias entorpecentes não é mais crime, ainda
continua sendo crime só que não se impõe mais prisão em
flagrante. Ele é conduzido à delegacia, é formalizado o
procedimento e é encaminhado ao poder judiciário, ele vai
responder a processo... (delegado titular da Delegacia Regional
de Pinheiro, 03/2014).
Para muitos estudiosos, como Zaccone (2013), é exatamente a
ausência de critérios claros que diferenciem traficantes de usuários, um
dos fatores que abre margem para um problema muito grande na
questão penal em relação ao tráfico no Brasil, que tem como resultado a
punição sistemática de quase que exclusivamente os mais pobres,
sobretudo, aqueles que ocupam a baixa hierarquia do tráfico, ou até
mesmo usuários pobres, que não contam com poder financeiro para
pagar uma assistência jurídica de qualidade, enquanto aqueles que
possuem recursos conseguem se livrar das penas mais duras. Dessa
forma o sistema judiciário tende a reproduzir as relações de classes
121
reinantes na sociedade. Aos mais pobres são destinados as penas mais
duras, e aos mais ricos penas mais brandas.
É sobre isso que trata o texto “Meu nome não é Tuchinha”,
publicado no jornal O Globo61 pelo desembargador do Rio de Janeiro
Siro Darlan. Com esse título irônico o desembargador quer relacionar
dois casos, um deles, amplamente conhecido a partir do Filme “Meu
nome não é Johnny” da diretora Mariza Leão, baseado em fatos reais,
que conta a história de um dos maiores vendedores de droga do Rio de
Janeiro que no fim acabou cumprindo uma pena de usuário e
provavelmente por isso, por ter recebido uma pena mais branda,
acabou se regenerando, como destaca o desembargador:
João Estrella não é um traficante, e sim um comerciante de
drogas. Traficantes só são assim chamados os de origem
humilde que moram nas favelas e comunidades. Contou com
um bom advogado que garantiu uma rápida passagem pelo
coletivo do Manicômio, logo ascendendo para um trabalho
burocrático que ajudou o tempo a passar mais rápido e
permitiu alguns privilégios comprados graças a seu poder
econômico, como a visita íntima, comida e cigarros (DARLAN,
07/02/08, Jornal O Globo).
O outro caso diferente tragicamente, mas da mesma época, revela
uma trajetória bem diferente por parte de outro traficante:
Francisco Paulo Testas Monteiro, o "Tuchinha", na mesma
época em que João vendia drogas no Brasil e no exterior,
exercia a mesma atividade no Morro da Mangueira. Foi
condenado a 43 anos de prisão e após cumprir mais de um
terço da pena com bom comportamento carcerário foi colocado
pelo juiz da Vara de Execuções Penais em liberdade
condicional, como manda a lei (DARLAN, 07/02/08, Jornal O
Globo).
No entanto, a vida fora da prisão para “Tuchinha” foi bem mais
complicada do que para João Estrela:
"Tuchinha" voltou para sua comunidade na Mangueira e tentou
mudar de vida. Dedicou-se à música e à poesia, tendo vencido
dois concorridos festivais de samba na própria Mangueira e na
Lins Imperial. Assumiu seu nome artístico de Francisco do
Pagode como uma forma de afastar-se de sua antiga
personalidade ligada ao crime, assim como João abominou seu
nome de comerciante de drogas que deu título ao filme "Meu
nome não é Johnny". Mas ninguém o deixou em paz um só
minuto. Foi vigiado, escutado, criticado e sua resistência sendo
minada porque a ele e a tantos outros não é dado o direito de
Publicado do dia 07/02/08, disponível em: http://oglobo.globo.com/in/meu-nomenao-tuchinha-3976356 . Acessado em Novembro de 2013.
61
122
mudar de vida. Uma vez traficante marca-se sua vida, seu
corpo, como uma tatuagem da qual eles não se podem ver
livres, ainda que queiram (DARLAN, 07/02/08, Jornal O
Globo).
Essa comparação muito bem ilustrada pelo desembargador que
possui larga experiência na área serve para ilustrar um dos inúmeros
casos da diferenciação de classe feita pela justiça e pelo seu aparato
penal, que reforça nosso argumento central sustentado ao longo de todo
esse trabalho, que as maiores vítimas do processo de criminalização das
drogas são as populações mais pobres. A diferenciação classista, que
tende a dar penas mais brandas a uns e mais duras a outros, mesmo se
tratando do mesmo crime é mais um fato que se soma a todos os
anteriormente apontados que sustenta nosso argumento central de que
a “guerra às drogas” significa na prática “guerra aos pobres”, a despeito
do que argumentam seus ideólogos e as supostas intenções declaradas
dessa guerra.
123
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao
examinarmos
criticamente
o
paradigma
proibicionista,
dialogando com a literatura do tema, sustentamos o argumento de que,
além de ser uma política que se alinha aos interesses globais do
imperialismo norte-americano, atende a interesses internos das nações
que elegeram o caminho da repressão, pois serve como instrumento de
disciplinamento e de vigilância permanente de grupos socialmente
marginalizados. Trata-se de uma política que recrudesce o Estado penal
vigente nos países que desde meados da década de 1970, com a falência
do Estado de bem estar social, elegeram o modelo neoliberal que
desregulamenta o mercado, privatiza os serviços públicos, precariza as
condições de trabalho e aumenta as desigualdades sociais, conforme
aponta Wacquant (2008). A “guerra às drogas” tem a mesma lógica do
neoliberalismo que é a de encarceramento em massa, em que uma
política complementa a outra, pois, conforme demonstramos, na
prática, não existe uma criminalização de substâncias químicas, mas
sim a criminalização de sujeitos sociais bem específicos e de povos que
de alguma maneira estejam associados a essas substâncias.
Se levarmos em conta apenas os objetivos declarados do
proibicionismo, que seria o combate à produção, à distribuição, à
circulação e o consumo de determinadas substâncias químicas, não
restaria dúvidas de que constataríamos um fracasso retumbante. Pois o
consumo de drogas só aumentou durante os anos em que o
proibicionismo se impôs como paradigma global, e todos os usuários e
ex-usuários de drogas que entrevistamos foram unânimes em dizer que
o acesso às drogas ilícitas é muito fácil, a própria polícia reconhece isso.
E em relação ao cenário internacional não vemos algo diferente, pois o
consumo e o comércio de drogas ilícitas têm aumentado em todo o
mundo, apesar dos bilhões de dólares jogados pelo ralo da repressão,
dinheiro que poderia estar servindo para o combate de outros
problemas sociais graves. No entanto, apesar de fracassar em seus
objetivos declarados, o proibicionismo é bastante eficaz no que se refere
124
à sua instrumentalização como ferramenta de controle social e de
opressão de grupos sociais não hegemônicos.
No entanto, o tráfico territorializado no Brasil, e especificamente
no caso da Rua Agostinho Ramalho, “Rua da Lama” na cidade de
Pinheiro, tem aspectos ainda mais graves por trazer esse problema ao
interior de bairros onde reside uma população empobrecida. Dessa
forma, o tráfico territorializado contribui enormemente para o aumento
dos
problemas
em
condições
sociais
já
deterioradas.
Conforme
analisamos a partir dos relatos de policiais, usuários e ex-usuários de
drogas e moradores do bairro Floresta, a presença do tráfico contribui
para o aumento da violência nessas regiões. É preciso diferenciar a
presença do tráfico, da presença das drogas. De acordo com o exposto,
não resta dúvida que as drogas, quaisquer que sejam elas, lícitas ou
ilícitas, contribuem para o aumento de problemas, sobretudo de
violência, infelizmente bastante presente nos bairros pobres. Porém,
concluímos que a presença do tráfico é muito mais nefasta do que a
simples presença do consumo de substâncias químicas. Como vimos, o
tráfico territorializado tem uma lógica mais violenta do que outras
modalidades de tráfico e impõe um controle armado sobre um território
e sobre a população que ali reside. Com um monopólio garantido pela
violência sobre um mercado bilionário (a nível mundial), as quadrilhas
possuem dinheiro suficiente para se armar e corromper agentes estatais
e de maneira covarde utilizam a população pobre desses bairros onde se
infiltram como escudo humano e como fonte de mão de obra barata e
descartável.
O tráfico territorializado muito mais que o simples consumo das
drogas alimenta um contexto social de medo, violência e de tirania por
parte dessas quadrilhas aos cidadãos em geral que não possuem
recursos financeiros para buscar alternativas melhores de moradia,
produzindo dessa maneira uma situação de guerra aos pobres,
encoberta pelo véu de guerra às drogas. A repressão ao tráfico por parte
da polícia centra-se quase que exclusivamente nas “bocas de fumo”, que
se localizam nesses bairros, apesar de serem apenas a “ponta do
125
iceberg”, de uma rede complexa de relações comerciais. O que alimenta
uma lógica de criminalização da pobreza e de estigmatização dos bairros
onde se localizam essas bocas de fumo. O fato é que o proibicionismo e a
guerra às drogas causam mais problemas do que as drogas em si.
A presença do tráfico também impede qualquer controle de
qualidade sobre as drogas comercializadas. A substituição da merla pelo
crack no Maranhão dentro do período que analisamos de 2005 a 2011,
significou na prática a imposição por parte dos traficantes de uma
droga mais nefasta, com maior poder de causar dependência,
aumentando assim suas vendas à custa da saúde dos usuários.
Por essa e outras razões, a legalização de todas as drogas é
apontada pelos estudiosos críticos do proibicionismo que discutimos ao
longo do trabalho, como única saída para vencer o tráfico em todas as
suas modalidades. Não porque entendem ingenuamente que o consumo
de drogas é algo inofensivo, mas porque compreendem que a legalização
quebraria a espinha dorsal do tráfico, que é o monopólio sobre uma
mercadoria valiosa e bastante procurada, que serve a essas quadrilhas
como principal fonte de renda para o financiamento de inúmeros outros
crimes. Ao mesmo tempo em que traria o problema para o seu devido
lugar que é a questão da saúde pública, principalmente no caso dos
usuários dependentes que necessitam de ajudas médicas, tirando assim
o problema do campo da segurança pública onde há uma tendência de
criminalizar pessoas doentes que necessitam de tratamento, ou mesmo
pessoas comuns que utilizam a droga como uma forma de recreação,
fonte de prazer, ou para demais pessoas que as utilizam em rituais de
natureza terapêutica ou religiosa.
O tema da legalização, apesar de ser um debate bastante
avançado entre os estudiosos e mais difundido em outros países, ainda
é um tabu na sociedade brasileira. Basta dizer que praticamente todas
as pessoas que entrevistamos, moradores, autoridades policiais e exusuários, disseram ser contra a legalização das drogas. Um dos motivos
mais alegados nos depoimentos, principalmente por parte da polícia, é a
extensão da identidade de delinquente e de viciado a todos os usuários
126
de droga. Dessa forma, quando colocamos sob exame crítico essa
identificação, constatamos que nem todo usuário, mesmo de drogas
nefastas como é o caso do crack, é um dependente químico, ou viciado
como aparece em alguns depoimentos.
Há inúmeras propostas de legalização e praticamente todas elas
incluem também proibições e restrições, afinal, não há modelos que se
sustentem com o mínimo de seriedade sem impor determinados limites.
Não era proposito desse trabalho delinear as características de cada
modelo de legalização. Contudo, entendemos que a única forma
democrática de enfrentar esse grave problema global, é difundir e
debater as mais diversas propostas à exaustão, garantido de maneira
democrática alternativas no horizonte de expectativas que estejam além
do monolitismo do proibicionismo.
127
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133
APÊNDICES
134
APÊNDICE A – Roteiro de entrevistas para policiais militares e delegado
Idade:____________ Gênero: _______________
Escolaridade:___________
Onde nasceu:_______________________________________________________
Patente: ________________________________________________________
Tempo de serviço:_________________________________________________
Bairro onde mora:__________________________________________________
1)
Como se dá a repressão ao tráfico de drogas numa cidade como
Pinheiro?
2)
De onde vem a droga que circula em Pinheiro?
3)
É um crime muito frequente? Na sua opinião o tráfico está entre
os crimes mais graves dessa cidade?
4)
Quais são as outras localidades onde há presença de traficantes
em Pinheiro?
5)
Numa área que é conhecida por ter bastante presença de
traficantes e usuários, como é o caso da Rua da Lama, como é a
abordagem nesses locais?
6)
Quando começou o tráfico na Rua da Lama?
7)
Como você diferencia traficantes e usuários?
8)
Existe luta entre quadrilhas rivais pelo controle do tráfico em
Pinheiro? Tem alguma ligação com as quadrilhas que atuam em
Pedrinhas?
9)
Quem são os usuários de droga?
10) Você é a favor ou contra a legalização das drogas? O que
mudaria?
135
APÊNDICE B - Roteiro de entrevista para usuários e ex-usuários
Idade:____________ Gênero: _______________ Escolaridade:____________
Onde nasceu:________________________________________________________
Substância mais utilizada: ___________________________________________
Quanto tempo de uso: _______________________________________________
1)
Quando a droga começou a afetar outras coisas que você fazia,
por exemplo: trabalho?
2)
É difícil conseguir drogas para comprar? Como você fazia para
comprar?
3)
Como era a relação com quem vendia droga?
4)
Como era a sua relação com a polícia?
5)
Como era a relação com outros usuários?
6)
Quem são os usuários de droga que você conheceu? A que classe
social eles pertencem? Quais são suas profissões?
7)
(Para ex-usuários) O que você vê de diferente hoje na sua vida
quando não faz mais uso das drogas?
8)
Qual é a sua opinião sobre a legalização das drogas? O que você
acha que mudaria?
136
APÊNDICE C - Roteiro de entrevista para moradores
Idade:____________ Gênero: _______________
Escolaridade:___________
Onde nasceu: _______________________________________________________
Local onde mora: ____________________________________________________
1)
Quanto tempo faz que você mora nesse bairro?
2)
Você gosta do seu bairro ou da sua rua?
3)
Como é o cotidiano no seu bairro ou na sua Rua?
4)
Você considera seu bairro ou sua rua um local violento?
5)
Já presenciou ou ouviu falar de algum episódio de violência no
seu bairro ou na sua rua?
6)
Muitas pessoas falam que seu bairro é um local onde existe muito
tráfico e que é um local muito perigoso, o que você pensa sobre isso?
7)
A polícia costuma ir na sua rua ou abordar as pessoas que ali
moram?
8)
Já ouviu falar de algum caso de violência?
9)
Você já foi vítima de algum tipo de violência?
10) O que você acha da legalização das drogas? O que você acha que
mudaria?
137
ANEXOS
138
ANEXO A – FIGURA 10: Ponte sobre o rio Pericumã (Fonte:
www.google.com.br/maps/).
ANEXO B – FIGURA 11 – Ponte sobre o rio Pericumã e o campo alagado
(Fonte: www.google.com.br/maps/).
139
ANEXO C – FIGURA 12
www.google.com.br/maps/).
–
Planície
alagada
(campo)
(Fonte:
ANEXO D – FIGURA 13 – Extração de material no Outeiro do Finca,
Pinheiro, para atendimento da demanda de aterramentos.
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Dissertação - Mestrado de História