UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL LUIZ EDUARDO LOPES SILVA PARA UMA CRÍTICA DO PROIBICIONISMO: A “Rua da Lama” e o tráfico territorializado na cidade de Pinheiro São Luís 2014 LUIZ EDUARDO LOPES SILVA PARA UMA CRÍTICA DO PROIBICIONISMO: a “Rua da Lama” e o tráfico territorializado na cidade de Pinheiro Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, da Universidade Federal do Maranhão para a obtenção do título de Mestre em História. Aprovada em: ______/______/______ BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________ Profª. Drª. Isabel Ibarra Cabrera (Orientadora) Universidade Federal do Maranhão - UFMA _____________________________________________________ Prof. Dr. Samarone Carvalho Marinho (membro externo) Universidade Federal do Maranhão - UFMA _____________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Guida Navarro (membro interno) Universidade Federal do Maranhão – UFMA Silva, Luiz Eduardo Lopes PARA UMA CRÍTICA DO PROIBICIONISMO: A “Rua da Lama” e o tráfico territorializado na cidade de Pinheiro/Luiz Eduardo Lopes Silva. – São Luís, 2014. 139 f. Orientadora: Isabel Ibarra Cabrera. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de PósGraduação em História Social, 2014. 1. Drogas – Paradigma Proibicionista – Aspectos históricos 2. Tráfico territorializado 3. Pinheiro – MA. I Título CDU 930.85: 613.83 Aos meus pais, meus irmãos e todos àqueles que zelaram pelo meu sono no momento em que mais precisei. Especialmente meu tio Carlinho e meus primos Wener e Thiago. Mesmo as noites mais sombrias têm seu alvorecer. AGRADECIMENTOS No ano de 2004 quando tinha apenas 16 anos fui alvejado por uma bala perdida numa briga entre traficantes rivais no bairro do Maiobão, onde nasci e fui criado, juntamente com a maior parte da minha grande família. Depois de quase um mês na UTI e meses no hospital, por alguma razão eu sobrevivi e justamente quando completa 10 anos do acontecido: 2014, consigo alcançar, com grande satisfação, algumas conquistas importantes na minha vida, dentre elas, concluir minha dissertação de mestrado. Gostaria de agradecer aqui a algumas pessoas que me ajudaram nessa tarefa titânica. Primeiramente à minha família nuclear: meu pai Inácio, minha mãe Áurea, e meus irmãos Danilo e Dayane, pela ajuda, carinho e paciência imensuráveis durante toda a minha trajetória. Sem o cuidado de vocês eu viveria numa escuridão de solidão e chatice que me é peculiar, como vocês sabem melhor do que ninguém. Agradeço também a grande família Lopes, meus tios, minhas tias, primos e primas, mas especialmente ao meu avô Benedito Lopes (Seu Nhô Bom) e minha vó Maria Raimunda (Dona Diquinha), que apesar das dificuldades saíram do seu interior onde a vida era farta para se aventurar na mesquinhez da cidade grande com a finalidade de colocar seus filhos para estudar, tarefa difícil que, agora, na terceira geração da família (netos), seu ato de coragem dá frutos destacados, dos quais agora me somo a sua neta Marcelle, minha prima, primeira e até então única pessoa da família a conseguir o título de Mestre. Prima querida que para mim sempre foi fonte de inspiração e orgulho e com quem eu guardo várias afinidades, pois ambos escolhemos os descaminhos da História! À professora Isabel Ibarra, minha orientadora que me auxiliou nessa difícil caminhada, construindo um ambiente de liberdade onde é possível debater e fazer florescer o conhecimento. Ao seu esposo Rickley Marques pelo incansável incentivo. Tive a sorte de encontrá-los na caminhada tortuosa da minha vida. Agradeço aos professores Dr. Samarone Marinho e Dr. Alexandre Navarro, pela acessibilidade e por terem aceitado o convite para compor a banca. Quero agradecer também aos meus amigos queridos: Vinícius, Saulo, Thiago, Rodolfo, Glauber, Arnaldo, Acrísio, Hugo e Adriano. Com quem eu guardo além de um imenso carinho recíproco, uma confiança teórica, política e poética que ajuda a tornar os ares dessa sociedade desigual e tacanha menos irrespirável! Minha dívida intelectual com vocês é imensa! Vocês são as minhas bússolas teóricas nesse mundo de incertezas! As linhas que se seguem são compostas por inúmeros pequeninos pedaços de seus espíritos. Aos meus camaradas do GEMMARX, grupo 04, Acrísio, Marcelo, Simon, Glaucia, Tauan, Talita, Davi, Márcia, Lucas Fontelles e a Nádia pela arte da capa, bem como aos outros que de maneira mais intermitente se arriscam na difícil tarefa de desvendar a obra do nosso querido Velho Barbudo. Aos meus amigos e minhas eternas paixões, com quem comungo verdades existenciais desde a adolescência, fase mais feliz de minha vida: Letícia, Marcella, Thiago, Rodolfo e Thaís. No entardecer de nossa caminhada já vai ai alguns anos, “é chato chegar a um objetivo num instante”. Aos meus colegas de mestrado, especialmente Felipe Ucijara e Patrícia Kauffmann, amigos que vieram para ficar, com quem desfrutei os melhores momentos desses últimos dois anos. A todos aqueles que aceitaram, gentilmente, participar desta pesquisa. Ao meu tio Gilson, ao meu primo Osvaldinho, ao meu primo Adeílson, todos assassinados barbaramente no ano de 2011, e a todas as famílias que perderam entes queridos, vítimas da guerra civil brasileira que acumula 50 mil cadáveres a cada ano. Seis litros de sangue derramados por corpo, 300 mil litros anuais formam o nosso mar morto! Que evapora, condensa e vira chuva ácida e no solo germina raiva incurável pra antirrábica. Cresceu um pântano em reação desse desastre não-natural, e do casulo surgiu uma espécie, em meio ao lamaçal... (Letra da banda de Rap Facção Central). Todos os excessos perniciosos, inclusive os abstinência (Voltaire). são da RESUMO O trabalho que aqui apresento se propõe a fazer um exame crítico daquilo que, a partir da leitura dos estudiosos do tema, conceituamos de paradigma proibicionista das drogas. Que se caracteriza em tratar o consumo, a produção, a distribuição e a circulação de determinadas substâncias psicoativas como um crime, passível de ser punido severamente. Essa política foi impulsionada em nível global pelos Estados Unidos da América, nação que exportou seu modelo repressivo às demais nações mundo afora. Contudo, em nossa análise, o paradigma proibicionista, não é uma medida que visa proteger a saúde pública dos efeitos perniciosos das drogas, pois na mesma medida em que pune severamente algumas substâncias, demonstra tolerância excessiva com outras. Assim, concluímos que o paradigma proibicionista visa criminalizar grupos sociais e povos que estejam (ou pareçam estar) associados ao consumo de determinadas substâncias proibidas. Assim, ao mesmo tempo em que produz uma série de foras da lei, produz também um mercado lucrativo e violento, ao qual analisamos um de seus tipos mais nefastos – o tráfico territorializado -, com auxílio de depoimentos orais de usuários, policiais e moradores do bairro Floresta, na chamada “Rua da Lama” na cidade de Pinheiro, Baixada Maranhense. Palavras-chave: Paradigma proibicionista. Tráfico territorializado. “Rua da Lama”. Pinheiro. ABSTRACT The work we present here proposes to make a critical examination of what, from the reading of the scholars of the topic, we conceptualize as the prohibitionist paradigm of the drugs. Characterized by treat the consumption, production, distribution and circulation of certain psychoactive substances as a crime that shall be punished severely. This policy was driven globally by the United States of America, the nation that exported its repressive model to other nations around the world. However, in our analysis, the prohibitionist paradigm is not a measure to protect the public health from the harmful effects of drugs, because at the same time that severely punishes some substances, shows excessive tolerances, with others. Thus we conclude that, the prohibitionist paradigm, aims to criminalize social groups and people who are (or appear to be) associated with the consumption of certain prohibited substances. Therefore, while it produces a number of outlaws, also produces a lucrative and violent market, which we analyze one of their more nefarious types, aided by oral testimony from users, policemen and residents of the neighborhood where exists the territorialized trafficking on the street called "Rua da Lama" in the city of Pinheiro in Baixada Maranhense. Keywords: Prohibitionist paradigm, territorialized trafficking, "Rua da Lama" street, Pinheiro. RESUMÉ Le travail qu’ici on présente se donne à faire un examen critique de ce que, a parti de la lecture des specialistes du thème, nous conceptuons de paradigme intervencionniste des drogues. Qui se caracterise en traiter la consommation, la production, le distribution et la circulation de determinées substancies psicoatives comme un crime, passible de être punible sévèrement. Cette politique a été impulsioné au niveau global par les États-Unis de l’Amerique, nation qui a exporté son modèle repressif au plus autres nations au monde entier. Pourtant, à nos analyse le paradigme intervencionniste, n’est pas une action que vise la protection de la santé publique des effets pernicieux des drogues, donc le même effets qui sont puni sévèrement quelques substancies, remarquent des tolérances excessives avec d’autres. Ainsi nous conclusion que, le paradigme intervencionniste vise criminalizer des groupes sociaux et peuples qui étaient (ou qui se semblaient) associés à consommation de determinées substancies interdites. Ainsi, au même temps ce que le produit une serie de dehors de la loi, produit aussi un marché lucratif et violent, auquel nous analisons un de ses type plus dangereux, avec aide des depoiments oral de personnes que l’utilise, policiers et des personnes qui habitent proche au quartier où il y a des tráffic au champs dans l’appellé « Rua da Lama » à la ville de Pinheiro, dans la provence Maranhense. Mots-clé : Paradigme intervencionniste. Tráffic au champs. « Rua da lama ». Pinheiro LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – ocupações desordenadas a partir de aterramentos de planície de inundação do rio Pericumã em Pinheiro ...........................84 FIGURA 2 – ocupações desordenadas a partir de aterramentos de planície de inundação em Pinheiro.....................................................85 FIGURA 3 – Localização da Rua Agostinho Ramalho, conhecida como “Rua da Lama” no bairro da Floresta..................................................86 FIGURA 4 – Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”)........................87 FIGURA 5 – Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”) em 2012 .........88 FIGURA 6 – Esquina da Rua João Batista Soares com a Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”) em 2012.....................................................88 FIGURA 7 – Rua João Batista Soares, Bairro Floresta.........................89 FIGURA 8 – Rua João Batista Soares, Bairro Floresta.........................89 FIGURA 9 - Terreno para vender na “Rua da Lama”..........................100 FIGURA 10 - Ponte sobre o rio Pericumã...........................................138 FIGURA 11 – Ponte sobre o rio Pericumã e o campo alagado.............138 FIGURA 12 – Planície alagada (campo)..............................................139 FIGURA 13 – Extração de material no Outeiro do Finca, Pinheiro, para atendimento da demanda de aterramentos.......................................139 SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS ..........................................................................12 1. INTRODUÇÃO ...............................................................................14 2. NOTAS METODOLÓGICAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE FONTES ORAIS: história do presente, história oral e situações de violência.......................................................................................20 2.1 A consolidação da história como ciência e a consagração do passado e do documento escrito.................................................20 2.2 A história do tempo presente................................................21 2.3 Diferentes usos da História Oral...........................................22 2.4 Desafios metodológicos para história oral: o testemunho sobre situações de violência........................................................27 3. O CONSUMO DE PSICOATIVOS: dos usos históricos à consolidação da política proibicionista ...........................................38 3.1 3.2 Psicoativos: dos diferentes usos a proibição ................46 A Política proibicionista das drogas: um paradigma no século XX........................................................................56 4. DESDOBRAMENTO DA POLÍTICA PROIBICIONISTA: A “Rua da Lama” e a territorialização do tráfico na cidade de Pinheiro..........80 4.1 A “Rua da Lama”: Violência, repressão e tráfico no contexto social de moradores, usuários e policiais ...............84 4.1.1 Tipologias do tráfico: O tráfico territorializado ..................93 4.2 A dinâmica do tráfico em Pinheiro ...............................102 4.2.1 Diferenciação entre traficantes e usuários por parte da polícia ....................................................................................119 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................123 REFERÊNCIAS ................................................................................127 APÊNDICES ....................................................................................133 ANEXOS...........................................................................................137 14 1 INTRODUÇÃO O trabalho que aqui apresentamos intitulado “Para uma crítica do Proibicionismo: A ‘Rua da Lama’ e o tráfico territorializado na cidade de Pinheiro” é resultado de um percurso de investigação de temas relacionados à violência urbana desde a época da graduação no curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Maranhão, quando tive oportunidade de abordar no trabalho monográfico o discurso midiático em torno dessa problemática na capital maranhense, com o trabalho intitulado: “Do Crime ao Escárnio: o circo dos horrores levanta a tenda em São Luís”, onde analisei como o discurso midiático, presente em alguns jornais impressos, influencia as políticas de segurança e tendem a criminalizar determinados sujeitos sociais e determinados bairros da capital do nosso estado. Na esteira dessa empreitada o trabalho que aqui se apresenta visa abordar um aspecto ainda mais complexo dentro do amplo debate da violência urbana, que é a questão do tráfico de drogas, hoje encarado de maneira multidisciplinar em todo Brasil. Este trabalho pretende investigar os efeitos da política proibicionista das drogas e sua relação com a violência e com tráfico territorializado no contexto social de usuários e de agentes da repressão (especialmente policiais da Polícia Militar do Maranhão), na cidade de Pinheiro. Por proibicionismo ou política proibicionista1, entendemos que: Antes de ser uma doutrina legal para tratar a ‘questão das drogas’ o proibicionismo é uma prática moral e política que defende que o Estado deve, por meio de leis próprias, proibir determinadas substâncias e reprimir seu consumo e sua comercialização (RODRIGUES, 2008, p. 91). Para levarmos a cabo tal análise, dividimos o trabalho em alguns momentos de análise que estão interligados. Logo após a introdução, no ponto dois discutiremos as especificidades das nossas fontes e do nosso recorte temporal e das características específicas da nossa abordagem Com o mesmo significado destes conceitos, utilizamos também ao longo do trabalho os termos paradigma proibicionista, ou políticas proibitivas. 1 15 no campo da história do tempo presente e da História oral. No ponto três nos preocupamos com a contextualização histórica da emergência dessa política, isto é, as características dos consumos históricos de psicoativos que a partir do século XX passa a ser alvo de várias políticas proibitivas a níveis globais, encabeçadas pelos EUA, que impõe aquilo que caracterizamos de paradigma proibicionista das drogas. Para delinear os principais pontos dessa problemática, nos embasamos na leitura de autores como: Xiberras (1989); Araújo (2012); Rodrigues (2008); Escohotado (1996; 1997); Carneiro (1994; 2005); Iversen (2012); Bucher (1996); Ribeiro; Seibel (1997), dentre outros, que serviram de subsídio teórico para a elaboração da crítica ao paradigma proibicionista que empreendemos no ponto três. A partir desse amplo debate, entendemos que um dos argumentos centrais do proibicionismo é encarar o uso de psicoativos como uma epidemia moderna. No intuito de problematizar essa argumentação e demonstrar que ela é carente de fundamentos históricos, inicialmente discorremos de maneira breve, como várias substâncias que hoje são proibidas, são consumidas pela humanidade há milênios, como é o caso da maconha, do álcool (que foi proibido durante quase duas décadas nos EUA), do ópio e da folha da coca (que não é exatamente proibida, mas seu plantio sofre repressão e vigilância principalmente por parte dos EUA). A intenção não é fazer uma análise exaustiva devido à grandiosidade desse processo, cujo recorte temporal seria próximo de 10 mil anos, tampouco naturalizar os usos dos psicoativos, pois entendemos que os diferentes significados de seus usos são de caráter histórico e, portanto, cada época traz consigo inúmeras especificidades, bem como algumas das próprias substâncias mudam ao longo do tempo com o avanço do conhecimento no campo da química e de outras áreas. Ao identificar o uso histórico de determinadas substâncias queremos apontar que as mesmas também são identificadas com alguns povos que culturalmente desenvolveram o hábito de utilizá-las, como o cultivo da folha da coca nos países andinos, que serve de matéria-prima para a fabricação da cocaína, e por isso é alvo das ações 16 globais do imperialismo norte-americano. O mesmo acontece com o ópio no sudeste asiático. Se ignorarmos o fato de determinadas substâncias estarem historicamente ligadas a alguns povos e culturas, ignoraremos também o fato de que a tal “guerra às drogas” não se trava contra uma coisa inerte como são substâncias químicas, mas contra pessoas de carne e osso que na maioria das vezes, tem uma identidade cultural bem específica. Além dos grupos que historicamente estão ligados ao consumo de determinadas substâncias, existem ainda aqueles que, ao fazerem usos moderados de algumas substâncias, passam a ser identificados com elas de maneira estigmatizante e passam a ser representados como grupos perigosos, degenerados física e moralmente: Desse modo, era recorrente, nas primeiras décadas XX, entre grupos proibicionistas, na mídia e nos governamentais nos Estados Unidos, a associação negros à cocaína, hispânicos à maconha, irlandeses chineses ao ópio (RODRIGUES, 2008, p. 95). do século discursos direta de ao álcool, Deste modo, tentamos demonstrar a natureza política do proibicionismo, que longe de ser uma política de defesa à saúde pública, “revelam igualmente desorientação na forma brutal como resolvem autorizar determinadas formas de intoxicação, com exclusão dos restantes” (XIBERRAS, 1989, p. 14), se caracterizando, portanto como uma política de opressão de classe e de criminalização de povos: Proibicionismo é uma estratégia plena de potencialidades em termos de controle social e criminalização de parcelas da população que já deveriam ser (e eram) controladas pelo ‘bem comum’ e em nome ‘da paz civil’. Em outras palavras, o Proibicionismo, desde seus primeiros momentos iniciais, entre as décadas de 1910 e 1930, foi um ‘fracasso’ se levarmos em conta seus objetivos declarados, mas nem por isso deixou de ser expandido (RODRIGUES, 2008, p. 94-95). Por fim, buscamos entender como essa política é incorporada pela maioria dos países, principalmente pelo Brasil, analisando os efeitos perversos causados por essa “guerra às drogas”, como é o caso do aumento da violência e do encarceramento em massa, lógica que o Maranhão, infelizmente, não ficou de fora. Entender como se consolidou o paradigma proibicionista nos serve para pensar como surgiu o tráfico de drogas, já que: “o proibicionismo estabelece um novo crime e um novo mercado; as 17 normas proibicionistas, antes de banir as drogas visadas, acabam por inventar o narcotráfico” (RODRIGUES, 2008, p. 94). Isto posto, partimos a outro momento da análise. No ponto quatro, o foco central é o tráfico territorializado na “Rua da Lama” (localizada no Bairro da Floresta, na cidade de Pinheiro, Baixada Maranhense), cujo nome oficial é Rua Agostinho Ramalho, que ganhou essa alcunha por sua infraestrutura precária e por ser uma localidade onde a criminalidade, sobretudo o tráfico de drogas, segundo as autoridades policiais2, é muito grande. Um espaço da cidade de baixa renda e de outros problemas sociais, onde, o próprio léxico já tratou de demarcar fronteiras materiais e simbólicas bem claras. Dessa forma, buscamos demonstrar brevemente que a “Rua da Lama” é resultado de um processo de urbanização capitalista caótico, num contexto onde inexistem políticas públicas para atender a grande massa da população migrante que busca nas cidades maiores da região da Baixada Maranhense, como é o caso de Pinheiro, melhores condições de vida. Ao se instalarem nessas cidades essa população pobre migrante tende, pelo seu baixo poder aquisitivo, a ocupar áreas onde é ausente qualquer infraestrutura urbana, ocupando assim as margens do Rio Pericumã e dos seus campos alagados. É nesse contexto de pobreza e de precariedade que o tráfico territorializado se desenvolveu. Para analisar a questão do tráfico territorializado, utilizamos a noção de territorialidade em rede ou descontínua do tráfico de Souza (1995; 2012). Em relação as especificidades desse tipo de tráfico também dialogamos com as pesquisas de Soares (2000; 2005 et. al; 2006 et. al; 2010). Sobre a polêmica em torno do consumo de crack, utilizamos principalmente os estudos multidisciplinares de pesquisadores da PUC de Minas Gerais, organizado por Medeiros e Sapori (2010) e o estudo da Universidade Federal de Juiz de Fora, organizado por Ronzani (2013). 2Informações levantadas junto ao 10° Batalhão da Polícia Militar do Maranhão localizado na cidade de Pinheiro. 18 Dessa forma, nossa investigação centra-se na questão da política proibicionista das drogas e como ela funciona como produtora 3 de violência em relação a todos aqueles que de alguma maneira estão ligados ao universo das drogas ilícitas: usuários, traficantes, policiais e moradores dessas localidades onde o comércio e o consumo de drogas ilícitas se fazem presentes no cotidiano, uma vez que o tráfico territorializado, conforme veremos, é uma modalidade de tráfico ainda mais violenta, pois se caracteriza, pela apropriação de determinados espaços por parte dos traficantes, onde passam a exercer um controle sobre este espaço que eles se apropriaram e das pessoas que ali residem e que por ali transitam. No ponto quatro, ao trazermos à baila a visão de usuários, moradores e policiais, queremos trazer a tona as diferentes visões e contradições existentes sobre o processo. O que nos enseja a problematizar os diferentes tipos de estigmas sociais direcionados a usuários de drogas, que, conforme veremos, para polícia pinheirense os usuários são sempre vistos como um criminoso em potencial, e o estigma direcionado a pessoas que moram nesses bairros onde há tráfico territorializado, que tendem a ser identificados como potenciais traficantes ou colaboradores do tráfico. Todo esse amálgama de representações presentes nos relatos será analisado mais detidamente no último capítulo. Como a maioria das nossas fontes orais se remetem ao período entre 2005 e 2011 (sobretudo os usuários e ex-usuários de drogas), período que compreende também, um fenômeno importante para a nossa pesquisa que é a transição da merla para o crack como uma das drogas ilícitas mais consumidas no Maranhão e em Pinheiro, ponto importante da nossa análise no ponto quatro. Bem como as estatísticas sobre violência como índices de homicídios por arma de fogo e volume de apreensões de drogas disponíveis para analisarmos se concentram a 3A nossa principal referência teórica para entender esse processo de produção da violência e da delinquência é Foucault (2009; 2012), segundo a precisa assertiva de que as relações de poder não simplesmente dizem “não”, não apenas reprimem, mas produzem: “De fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de verdade” (MACHADO, 2012, p. 20). 19 maioria nesse período, no que se refere a realidade maranhense ou especificamente da cidade de Pinheiro. Esse é o recorte temporal central da nossa pesquisa. Ainda que possamos ora ou outra nos remeter a outros períodos, sobretudo a períodos mais antigos, isso se deve porque o tráfico territorializado na “Rua da Lama”, apesar de não ter sido possível precisá-lo remonta pelo menos ao início dos anos 1990. Para analisarmos esse período lançamos mãos, como procedimento metodológicos, de entrevistas realizadas com policiais da cidade de Pinheiro (sobretudo PMs, mas não exclusivamente), usuários e ex-usuários de drogas ilícitas, e moradores do bairro Floresta, portanto, pelo recorte temporal e pelo caráter das fontes, a nossa pesquisa se insere no campo da história oral e da história do tempo presente, cujos especificidades teórico-metodológicas serão tratadas no ponto seguinte. 20 2 NOTAS METODOLÓGICAS SOBRE A UTILIZAÇÃO DE FONTES ORAIS: história do presente, história oral e situações de violência 2.1 A consolidação da história como ciência e a consagração do passado e do documento escrito A utilização de fontes orais no campo da historiografia é um expediente que aqueles que trabalham com a pesquisa histórica lançam mão desde a antiguidade, no entanto, com a profissionalização e especialização ocorrida no séc. XIX, os historiadores no afã de se imporem como uma casta de especialistas que gozam de estatuto científico relegaram o trabalho de pesquisa com as fontes orais e juntamente com ele a pesquisa sobre a história de acontecimentos recentes a um lugar marginalizado: O desprezo dos historiadores universitários pela história recente explica também o porquê da desqualificação dos testemunhos diretos. Esse campo dos estudos históricos acabou se transformando em monopólio dos historiadores amadores. A explicação para essa situação deve-se ao fato de que o período recente não exigia uma farta cultura clássica, nem o controle dos procedimentos eruditos do método histórico. Os que se interessavam pelo contemporâneo na verdade concebiam a pesquisa histórica como um meio de ação política (FERREIRA, 2002, p. 316). Com o intuito de se diferenciarem dos “amadores” não eruditos que empreendiam pesquisas sobre a história do tempo presente, os historiadores elegeram a fonte escrita o documento por excelência que poderia levar o historiador a um conhecimento confiável sobre o passado que ele busca entender. Com isso, fincaram-se dois pilares da pesquisa historiográfica moderna, o primeiro que identifica o objeto do historiador com o passado, portanto, concebeu-se que estudar a história é estudar o passado, de tal maneira que somente em meados do século XX os historiadores especialistas começaram a debater seriamente a possibilidade da pesquisa histórica voltada para o presente. Nesse processo de valorização das fontes orais e da retomada dos estudos dos tempos recentes pelos historiadores, observamos dois marcos importantes, um foi a fundação do “Columbia Oral History Office, organismo que serviu de modelo para outros centros criados nos 21 anos 50 em bibliotecas e arquivos no Texas, Berkeley e Los Angeles” (FERREIRA 2002 p. 322) o outro em 1980 com a fundação do “Institut d’Histoire du Temp Present” na França. O segundo pilar da historiografia moderna é o que elege o documento escrito como fonte legítima da história, de tal maneira que apenas muito recentemente discutiu-se entre os historiadores, a possibilidade de encarar seriamente pesquisas históricas que utilizassem fontes não escritas, sejam elas orais, iconográficas ou quaisquer outras. Podemos afirmar, com poucas chances de errar, que somente com a crise paradigmática da década de 70 e, sobretudo 80 que atingiu em cheio os grandes modelos metodológicos das ciências sociais, que o estudo da história do presente e, juntamente com ela a utilização das fontes orais, conseguiram ganhar espaço, ainda que relativo e tenso, no seio da pesquisa histórica. 2.2 A história do tempo presente A história do tempo presente começou a ganhar destaque com a fundação do Institut d’Histoire du Temp Present (IHTP)4 em 1980 na França, tendo como diretor o historiador François Bédarida. Anteriormente à década de 80 a história do tempo presente tinha dificuldades em se firmar como campo de interesse aos historiadores: O paradigma estruturalista dominante na história nos anos 6070 também via com desconfiança o estudo dos períodos recentes. Ancorada em princípios que sustentavam a necessidade do distanciamento temporal do pesquisador frente ao seu objeto, ou seja, da visão retrospectiva sobre os processos históricos cujo desfecho já se conhece (AMADO; FERREIRA, 2006, p. 23). No entanto, a partir dos anos 80 começou a ser questionado com mais ênfase a tese angular da historiografia moderna que identificava o objeto de estudo da história ao passado, abrindo assim a possibilidade do estudo do tempo presente. Anteriormente, esse impedimento ao estudo do presente era baseado na ideia de que os historiadores 4 Instituto de História do Tempo Presente. 22 correriam riscos de serem parciais por terem perdido o distanciamento temporal necessário, tendo, portanto, sua objetividade afetada. Essa tese passou a ser questionada, e os aspectos positivos dessa “falta de distancia temporal” passou a ser encarada de outro modo: Na história do presente a falta de distância temporal entre o pesquisador e seu objeto, não é um inconveniente, na prática pode se revelar como um aspecto importante para melhor entendimento da realidade estudada (CHARTIER, 2006 p. 216217). Dessa forma, à medida que se colocava em xeque a questão da objetividade e da imparcialidade do pesquisador frente seu objeto no conjunto das ciências sociais, a história do presente foi se consolidando no campo da historiografia e aos poucos sendo reconhecida a potencialidade e contribuição de suas análises: A história do tempo presente contribui particularmente para o entendimento das relações entre a ação voluntária, a consciência dos homens e os constrangimentos desconhecidos que a encerram e a limitam (AMADO & FERREIRA, 2006, p. 24). Paralelamente ao processo de consolidação da história do tempo presente como campo de pesquisa da historiografia, ocorreu o processo de valorização dos testemunhos diretos sobre os fatos históricos que se investiga. Em meio à “superabundância de fontes” (CHARTIER, 2006, p. 216) a qual se depara o historiador de tempo presente, há também o diálogo profundo entre história do presente e história oral. A utilização de fontes orais é um debate que está estreitamente ligado com a questão da história do presente e essa relação diz respeito a nossa pesquisa, questão que será tratada a seguir. 2.3 Diferentes usos da História Oral Não faz muitos anos, o ‘relato’, denominado agora ‘história oral’, fez seu reaparecimento entre as técnicas de coleta de material empregadas pelos cientistas sociais com tanto sucesso que, por muitos deles, foi encarado como ‘a’ técnica por excelência, e até mesmo a única válida para se contrapor às quantitativas. Enquanto estas últimas – reduzindo a realidade social à aridez dos números – pareciam amputá-la dos seus significados, a primeira encerrava as vivacidades dos sonhos, a opulência dos detalhes, a quase totalidade dos ângulos que apresentam todo fato social (QUEIROZ, 1988, p 14). 23 O debate sobre a utilização das fontes orais quando surgem no campo da pesquisa historiográfica moderna aparece entrelaçado com outras questões. Primeiramente a história oral foi vista em oposição à história oficial baseada nos documentos escritos, essa história oficial representaria a história vista do ângulo dos grupos dominantes, e, por isso, muitos historiadores pioneiros na pesquisa com história oral viamse com uma missão política a cumprir, qual seja, dar voz aqueles que foram silenciados pelo autoritarismo excludentes da história baseados nos documentos escritos produzidos pelas classes dominantes. Esses historiadores estavam fortemente influenciados pelo contexto das lutas políticas da década de 1960: As lutas pelos direitos civis, travadas pelas minorias de negros, mulheres, imigrantes etc., seriam agora as principais responsáveis pela afirmação da história oral, que procurava dar voz aos excluídos, recuperar as trajetórias dos grupos dominados, tirar do esquecimento o que a história oficial sufocara durante tanto tempo. A história oral se afirmava, assim, como instrumento de construção de identidade de grupos e de transformação social — uma história oral militante (FERREIRA, 2002, p. 322). Somente a história oral, na visão desses pesquisadores, seria capaz de investigar os acontecimentos a partir do ponto de vista dos oprimidos. Visto que, os documentos escritos, em sua quase totalidade, são produzidos por instituições que visam promover a dominação permanente das classes hegemônicas, e por outro lado, somente uma parcela minoritária de letrados são os que produzem tais documentos, a massa de analfabetos, portanto, aparece sempre como agente passivo, coadjuvante nessa história dominada pelos documentos escritos5. No entanto, esse papel militante da história oral foi duramente criticado no meio acadêmico, sobretudo entre os próprios historiadores. Outros pesquisadores contestaram o fato da história oral ser utilizada somente como meio de pesquisa dos excluídos e passaram à utilizarem inclusive para o estudo das elites. Para o debate sobre a relação entre história oral e analfabetismo ver: Vilanova (1994). 5 24 Para além desse debate sobre uma história oral militante, debate esse que é um dos que inauguram a entrada da história oral no universo da pesquisa historiográfica moderna, outras questões se fizeram presentes com o desenrolar das pesquisas com história oral, é o caso do debate que coloca as fontes orais como modelo de pesquisa qualitativa que visa investigar as lacunas deixadas por pesquisas baseadas em grandes modelos quantitativos. Esses modelos quantitativos foram um dos obstáculos que dificultou com que a história oral se firmasse entre os métodos usuais de pesquisa histórica até a década de 70, tais paradigmas de pesquisa, baseados em métodos quantitativos, com ênfase nos grandes recortes temporais, fortemente influenciados pelo estruturalismo, onde as ações dos indivíduos eram vistos como algo acidental, e o que realmente importava era observar o comportamento da coletividade, das estruturas sociais. A predominância dos modelos matemáticos vigorou na historiografia de meados do século XX: O grande desenvolvimento das técnicas estatísticas, em fins dos anos 40, relegou para a penumbra relatos orais e histórias de vida, que pareciam demasiadamente ligadas às influências da psique individual. A técnica de amostragem com a aplicação de questionário surgia agora como a maneira mais adequada de se obter dados inquestionavelmente objetivos (QUEIROZ, 1988, p. 15). A história oral era vista como demasiadamente subjetivista, os historiadores tradicionais questionavam qual era a importância da captura de uma visão idiossincrática e como uma visão parcial de um individuo fenômenos isolado poderia históricos? ajudar Somente o com historiador a a compreender guinada metodológica inaugurada na década de 70 e 80 a história passou a dar mais peso para as ações dos indivíduos e com este, a importância de suas respectivas visões de mundo: Entretanto, a partir da década de 1980, registraram-se transformações importantes nos diferentes campos da pesquisa histórica. Revalorizou-se a análise qualitativa e resgatou-se a importância das experiências individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as situações singulares (FERREIRA, 2002, p. 319). 25 A partir dessas mudanças paradigmáticas, em muitas ocasiões tornou-se necessário lançar mão de um método de pesquisa que pudesse aferir as angústias, sentimentos, e questões do imaginário que somente com uma abordagem qualitativa era possível perscrutar. Passou-se pouco a pouco se perceber, no entanto, que valores e emoções permaneciam escondidos nos próprios dados estatísticos, já que as definições das finalidades da pesquisa e a formulação das perguntas estavam profundamente ligadas à maneira de pensar e de sentir do pesquisador, o qual transpunha assim para os dados, de maneira perigosa porque invisível, sua própria percepção e seus preconceitos (QUEIROZ, 1988, p. 15). Mesmo com essa virada metodológica os modelos quantitativos não foram totalmente postos de lados, e, muito menos, significa que o trabalho com as fontes orais excluem o trabalho com fontes quantitativas. Vilanova (1994), por exemplo, propõem uma metodologia que alia análise estatística com utilização de fontes orais: Mas, para mim, o melhor da estatística, o imprescindível, é encontrar a pergunta relevante (p. 46). [...] A porcentagem nos assegura aquilo que é majoritário. Somente a porcentagem. E a porcentagem da porcentagem nos aproxima de uma estatística qualitativa fina que estabelece, finalmente, as perguntas interessantes, porque abarcam o majoritário (VILANOVA, 1994, p. 52). Dessa forma, utiliza-se a estatística como técnica auxiliar da pesquisa com fontes orais. Essa aliança entre estatísticas e fonte orais, foi um dos procedimentos metodológicos que escolhemos nessa pesquisa, conforme veremos adiante. Para Villanova (1994), a análise quantitativa serve para definir qual a pergunta relevante que o historiador deve fazer aos seus entrevistados, não adianta o historiador querer empreender uma pesquisa qualitativa com ênfase na visão dos indivíduos se ele não sabe o que realmente deseja aferir, por isso, a historiadora afirma que, a análise quantitativa ajuda a delinear os pontos específicos que somente a investigação qualitativa pode decifrar. Com isso observamos que é perfeitamente possível aliar a história oral com outros expedientes de análises. A história oral por si só, bem como os documentos escritos, não esgotam as possibilidades de investigação, pelo contrário, é cada dia mais comum que os historiadores trabalhem 26 com história oral complementares. No e ao mesmo tempo ponto quatro, aliamos com as outras fontes estatísticas de apreensões de drogas, com os relatos orais de usuários e ex-usuários para entendermos o fenômeno de mudança da merla para o crack como sendo uma das drogas mais consumidas no Maranhão. Ainda sobre os diferentes usos metodológicos das fontes orais, Ferreira (2002) argumenta que tem-se usado comumente as fontes orais a partir de dois enfoques diferentes, um que trabalha com história oral para cobrir as lacunas de fontes escritas, nesse caso trabalhando com fontes complementares tal como explicamos acima, e também para o estudo de grupos cujo outros tipos de fontes são quase inexistentes: Uma avaliação mais detida do campo do que tem sido chamado de história oral nos permite detectar duas linhas de trabalho que, embora não excludentes e entrecruzadas em muitos casos, revelam abordagens distintas. A primeira delas utiliza a denominação história oral e trabalha prioritariamente com os depoimentos orais como instrumentos para preencher as lacunas deixadas pelas fontes escritas. Essa abordagem tem-se voltado tanto para os estudos das elites, das políticas públicas implementadas pelo Estado, como para a recuperação da trajetória dos grupos excluídos, cujas fontes são especialmente precárias (FERREIRA, 2002, p. 327). No caso da pesquisa no campo da violência urbana e especificamente sobre tráfico de drogas no Maranhão, as fontes oficiais são escassas e problemáticas como demonstraremos no final do ponto três, por isso os depoimentos diretos dos agentes envolvidos nessa área se fazem imprescindíveis. Outra abordagem relevante no campo da história oral diz respeito ao estudo das representações e com a relação entre história e memória: Uma segunda abordagem no campo da história oral é aquela que privilegia o estudo das representações e atribui um papel central às relações entre memória e história, buscando realizar uma discussão mais refinada dos usos políticos do passado. Nessa vertente a subjetividade e as deformações do depoimento oral não são vistas como elementos negativos para o uso da história oral. Conseqüentemente, a elaboração dos roteiros e a realização das entrevistas não estão essencialmente voltadas para a checagem das informações e para a apresentação de elementos que possam se constituir em contraprova, de maneira a confirmar ou contestar os depoimentos obtidos. As distorções da memória podem se revelar mais um recurso do que um problema, já que a veracidade dos depoimentos não é a preocupação central (FERREIRA, 2002, p. 328). 27 Esses são alguns delineamentos possíveis de como são utilizados os métodos da história oral. A seguir, faremos uma análise mais detida de como a história oral e com o foco mais voltado para a abordagem feita especificamente na nossa pesquisa que trabalha com testemunhos de pessoas que viveram situações de violência. Por isso, em seguida, abordaremos questões que diz respeito a sobreviventes de situações extremas, como guerra, terrorismo de estado, campos de concentração e violência urbana, dentre outras. A indagação central é: como lhe dar com testemunhos de vítimas de situações tão delicadas? 2.4 Desafios metodológicos para história oral: o testemunho sobre situações de violência Devido ao fato das fontes trabalhadas em nossa pesquisa, sejam elas orais ou estatísticas, se remeterem ao período entre 2005 e 2011 (sobretudo os usuários e ex-usuários de drogas), período que compreende também, conforme veremos, a transição da merla para o crack como uma das drogas ilícitas mais consumidas no Maranhão e em Pinheiro, ponto importante da nossa análise no ponto quatro. Os levantamentos estatísticos em relação aos índices de violência, como homicídios por arma de fogo e volume de apreensões de drogas disponíveis para analisarmos se concentram também a maioria nesse período, no que se refere a realidade maranhense ou especificamente da cidade de Pinheiro. Esse é o recorte temporal central da nossa pesquisa. Ainda que, algumas vezes nos remeteremos a outros períodos, porque o tráfico territorializado na “Rua da Lama” remonta pelo menos a década de 1990, apesar de não ter sido possível especificar cronologicamente sua origem. A nossa pesquisa se insere no campo da história do tempo presente, pois “não é uma busca desesperada de almas mortas, mas um encontro com seres de carne e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra às vidas” (CHARTIER, 2006, p. 215). A história do tempo presente é um campo de investigação da historiografia que se consolidou desde a fundação do Instituto de 28 História do Tempo Presente na França (IHTP), nos finais da década de 1970, conforme vimos anteriormente, tendo a sua frente o historiador François Bédarida, que problematizou questões como a relação da história com a verdade e a objetividade, argumentando que essas problemáticas acompanham o historiador independente do recorte temporal sobre o qual este se ocupe. No entanto, é inegável que a história do tempo presente possui peculiaridades, pois: “se volta para uma temporalidade próxima, quente, por vezes efervescente, em sociedades que se modificam rapidamente, premidas pela aceleração do presente” (BÉDARIDA, 2006, p. 225). Ainda que no Brasil haja historiadores resistentes a história do tempo presente sua legitimidade cada dia é mais difundida no cenário da historiografia como nos lembra Hobsbawm (1998). Para analisarmos a dinâmica do tráfico de drogas territorializado na “Rua da Lama”, que diz respeito à parte mais empírica da nossa investigação, nos utilizamos dos procedimentos metodológicos da história oral, onde, a partir de relatos orais de usuários, policiais e moradores,6 formamos uma massa documental sobre a qual empreendemos nossa análise: A história oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho – tais como os diversos tipos de entrevistas e as implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre seu trabalho -, funcionando como ponte entre teoria e prática (FERREIRA; AMADO, 2006, p.16). É desse modo que, a partir de entrevistas estruturadas e semiestruturadas7, com usuários de drogas na cidade de Pinheiro, com agentes da repressão (sobretudo, policiais da Polícia Militar do Maranhão), e com moradores do bairro da Floresta onde se localiza a Demais agentes importantes na questão do tráfico, como é o caso dos traficantes, não foram entrevistados, aparecem apenas indiretamente a partir das falas dos usuários, policiais e moradores do bairro da Floresta onde se localiza a Rua da Lama. 7 Ver os roteiros das entrevistas no apêndice. Lembrando que os roteiros de entrevistas em história oral tem a metodologia diferenciada de questionários fechados. O roteiro para a história oral serve apenas como uma espécie de guia, com uma lista de temas a serem abordados. Dessa maneira a entrevista, em alguns casos, pode extrapolar os limites do roteiro. 6 29 “Rua da Lama”, respondemos algumas das indagações que são centrais na nossa investigação, que tomaram formas mais amadurecidas a partir de questionamentos levantados na contextualização do nosso objeto no ponto três, a saber: como é a sociabilidade nas localidades onde se localizam os principais pontos de venda da droga que, no caso do nosso objeto específico, se trata da conhecida “Rua da Lama”? Qual o contexto social das pessoas que usam drogas frequentemente? Como os policiais enxergam usuários e traficantes? Há diferenças na visão dos repressores entre esses dois agentes? Quais são as particularidades do tráfico numa cidade como Pinheiro? Em suma, quais dos aspectos universais que iremos discorrer ao longo do ponto três, sobre o tráfico e a política proibicionista, e como elas se articulam para dar forma às particularidades do nosso objeto de estudo? Essas são as indagações centrais de nossa investigação. Podemos afirmar que colher o material para empreender tal análise foi algo bastante difícil, devido ao tema que é tão delicado e cheio de nuances. Abordar qualquer problemática ligada à questão da violência sempre é um grande desafio, do qual, como pesquisador, já tinha experimentado desde a época da monografia, como já mencionado anteriormente. Não é em qualquer lugar que achamos, por exemplo, usuários ou ex-usuários de drogas que estejam dispostos a relatar suas experiências, sobretudo na frente de uma pessoa desconhecida com um gravador na mão. As entrevistas com os ex-usuários de droga se fizeram possíveis ao entrarmos em contato com a Fazenda do Amor Misericordioso localizada na cidade de Pinheiro, instituição não governamental, dirigida pelo Padre João Mansino que não dispõem de recursos públicos e que abriga e oferece tratamento a dependentes químicos. Ao fazermos inúmeras visitas desde meados de 2013 ao início de 2014, podemos entrar em contato com usuários e ex-usuários de várias localidades, mas principalmente de toda Baixada Maranhense, de Pinheiro e de São Luís. A Fazenda, conta com mais de 55 internos, dos quais eu conversei com a quase totalidade deles, no entanto, 30 infelizmente, poucos quiseram se ‘expor’ na frente de um gravador. Ademais, a direção da Fazenda também não via com bons olhos a gravação das entrevistas, pois, segundo o próprio Padre João Mansino, uma das estratégias para não afugentar quem quer tratamento é não indagar pelo seu passado. Ainda assim, as inúmeras conversas não gravadas foram de valor incomensurável para a compreensão da problemática da droga e do tráfico não só em Pinheiro como na Baixada Maranhense. Dos 55 internos, 8 eram da cidade de Pinheiro, aos quais foi dada atenção especial. Além dos internos existem também os coordenadores que são ex-internos que depois do tratamento se ofereceram para auxiliar e/ou coordenar os trabalhos na Fazenda. São inúmeros, que hora ou outra aparecem por lá para contribuírem com as atividades desenvolvidas. São chamados “filhos da casa”, e além desses há 4 coordenadores que moram e trabalham na Fazenda, que também são “filhos da casa”. Alguns destes coordenadores, devido suas longas experiências na área, ficaram mais a vontade diante de um gravador e permitiram que os relatos de sua vivência como usuário fossem gravados. Uma instituição como a Fazenda do Amor Misericordioso por si só seria um belo objeto de estudo, dada sua complexidade enquanto instituição e a riqueza da experiência daqueles que por ali passam, no entanto, não é interesse desse estudo, entender a dinâmica desse tipo de instituição, a qual demandaria outro aparato teórico-metodológico e uma abordagem diferente da empreendida nesse trabalho. Por conta disso, não vamos nos prender aqui, por exemplo, em relação à rígida hierarquia e disciplina que a Fazenda, dirigida por um padre ex-capelão do exército, mantém junto aos seus internos como forma de tratamento; Nem ao discurso religioso que orienta suas ações; muito menos ao fato de que não existe tratamento com remédios na Fazenda, pois o tratamento para os dependentes químicos tem um enfoque bastante espiritual, dentre outras coisas. Tudo isso são questões que nos instigam bastante e que, contudo, deixamos de lado aqui. O que nos interessa no momento, são os relatos dos ex-usuários, internos e 31 coordenadores, que nos retratam a dinâmica do tráfico, sobretudo na cidade de Pinheiro. As entrevistas com policiais do 10º Batalhão foi tarefa, na maioria das vezes, mais simples do que as entrevistas com ex-usuários, desde a concepção do projeto de pesquisa para o mestrado em 2011. Nas primeiras visitas ao Batalhão, os policiais foram bastante receptivos; tanto os oficiais quanto os praças, foram bastante solícitos em relação às entrevistas, e falaram sobre diversos temas. A profundidade do entendimento de alguns policiais sobre a problemática também me surpreendeu. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, existem muitos policiais que tem bastante noção dos problemas sociais que influenciam na questão do tráfico e da violência, o que não quer dizer que eles também não reproduzam preconceitos recorrentes, como demonstrarei no ponto quatro, que os policiais tendem a ter uma visão do usuário de drogas como um potencial delinquente. A existência de muitos policiais universitários, mesmo entre os praças foi algo que me ajudou a abrir algumas portas, porque compreendiam, ou pareciam compreender com certa facilidade, a importância da pesquisa. Obvio que, infelizmente, o tema a ser abordado nos leva muitas vezes a ter muito cuidado sobre os tipos de perguntas que podemos fazer e até onde podemos ir com os questionamentos. Sobre a problemática desse tipo de relato, voltaremos adiante. As entrevistas com os moradores foram, sem dúvida, as mais difíceis, poucas pessoas moradoras do bairro Floresta que tivemos acesso quiseram gravar entrevistas e infelizmente, nenhuma pessoa moradora da Rua Agostinho Ramalho conhecida como “Rua da Lama” permitiu ser entrevistada; o medo, não injustificado, por parte delas, infelizmente foi uma barreira que não conseguimos transpor, e dessa forma, demonstra, conforme iremos expor adiante, o terror a qual são submetidas essas populações que habitam nesses locais de tráfico territorializado. Pelo fato de todas as entrevistas abordarem temas delicados, como violência e tráfico de drogas, os nomes dos entrevistados foram 32 substituídos por nomes fictícios. A única exceção é em relação ao último tópico do ponto quatro sobre a diferenciação entre usuários e traficantes por parte das autoridades policiais, onde o delegado regional de Pinheiro nos deu uma explicação minuciosa sobre aspectos relevantes para a construção do inquérito policial e como a autoridade policial faz essa diferenciação. Pela importância do lugar institucional dessa fala, nós identificamos o entrevistado, porém apenas como delegado regional de Pinheiro, preservando seu nome. Como nossa pesquisa lança mão dos procedimentos da história oral e das problemáticas desta com a história do tempo presente, parecenos pertinente uma reflexão bastante cara desse campo de análise desde seu nascedouro, visto que todos aqueles que nós entrevistamos de alguma maneira passaram por experiências onde a violência estava presente o que nos levou muitas vezes a lembrar do famosíssimo ensaio de Walter Benjamin: “O Narrador”, onde afirma que “No final da Guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável” (BENJAMIN, 1994, p. 198). Essa afirmação de Benjamin, muito polêmica, inaugura um debate que ainda hoje é muito vivo, em torno da possibilidade daqueles indivíduos que passaram por situações de violência, como no caso da guerra, serem capazes de narrar suas experiências. Não há dúvida que, caso a tese de Benjamin esteja correta, trata-se de um grande desafio para a história oral e para a história do tempo presente investigar fenômenos ligados a esse tipo de experiência incomunicável. Não foram poucas vezes que nos deparamos com “silêncios” durante as entrevistas que pareciam esconder algo, por exemplo, quando questionávamos para um ex-usuário se ele já tinha sofrido violência policial, muitas vezes eles preferiam silenciar ou mudar de assunto; o mesmo se tratava quando indagávamos se por conta do uso de drogas ele teve algum problema com a polícia; eram sempre presentes também o medo de represália, por exemplo, ao falar de violência policial e de outros assuntos delicados. Podemos apontar também que o silêncio dos moradores da “Rua da Lama”, que não deixa 33 de ser também revelador. É esse desafio de trabalhar com fontes orais com pessoas que viveram experiências traumáticas que é um dos pontos da reflexão empreendida pela historiadora Beatriz Sarlo. O núcleo da argumentação de Sarlo gira em torno da questão: como Benjamin pode apontar o esgotamento da experiência transmissível, numa era onde o testemunho direto dos atores sociais vive o seu apogeu? Nas palavras da própria autora: O apogeu do testemunho é, em si mesmo, uma refutação daquilo que, nas primeiras décadas do século XX, alguns consideraram seu fim definitivo. Walter Benjamin, diante das consequências da Primeira Guerra Mundial, expôs o esgotamento do relato devido ao esgotamento da experiência que lhe dava origem. Das trincheiras, ou das frentes de batalha da guerra, ele afirmou, os homens voltaram emudecidos. É inegável que Benjamin se equivocava quanto à escassez de testemunhos, justamente porque ‘a guerra de 1914-8 marca o começo de testemunho de massas’. É interessante, porém, analisar o núcleo teórico do argumento benjaminiano (SARLO, 2007, p. 25). Mesmo duvidando da eficácia da tese benjaminiana, Sarlo não a descarta e vai a fundo à sua análise. A autora se debruça sobre o núcleo da argumentação benjaminiana. Segundo Benjamin, as rápidas transformações trazidas pela modernidade capitalista teriam causado um impacto tamanho na vida das pessoas que a capacidade destas de assimilarem essas transformações e poderem transmitir isso em forma de experiência para as pessoas mais jovens era quase impossível. Ao passo que aquilo que aprendeu “a geração que ainda fora à escola num bonde puxados por cavalos” (BENJAMIN, 1994, p. 194) pouco tinha a ensinar para aqueles que nasceram num mundo dominado pela técnica, a guerra, ou pelo menos a nova guerra altamente tecnizada, portanto, seria a experiência limite do choque que essa nova sociabilidade inaugurada pela modernidade impunha aos indivíduos. “Essa guerra é uma revolta da técnica que cobra em material humano aquilo que lhe foi negado pela sociedade” (BENJAMIN, 1994b, p. 196). Tal guerra atravessaria a subjetividade humana como um raio nunca antes visto, causando um trauma impossível de se relatar. Beatriz Sarlo em certa altura do texto afirma: “Benjamin captou algo próprio da modernidade capitalista em seu sentido mais específico. Ela teria afetado as 34 subjetividades até emudecê-las” (2007 p. 29). Esse emudecimento da subjetividade imputado pela modernidade capitalista ao “frágil e minúsculo corpo humano”, não nos parece: O choque teria liquidado a experiência transmissível e, por conseguinte, a experiência em si mesma: o que se viveu como choque era forte demais para ‘o minúsculo e frágil corpo humano’. Os homens, mudos, não teriam encontrado uma forma para o relato do que tinham vivido, e a passagem da guerra só conservava as nuvens. Benjamin assinala com precisão: ‘as nuvens’, porque sobre todo resto voará o furacão de uma mudança, imprevisível, quando as primeiras colunas de soldados se encaminharam para os campos das primeiras batalhas (SARLO, 2007, p. 25). O argumento de Benjamin de tamanha sensibilidade se torna ainda mais incrível quando paramos para pensar que seu autor não viu os horrores dos campos de concentração e nem da guerra nuclear. É o que questiona Beatriz Sarlo: se a Primeira Guerra Mundial causou tamanho estrago na subjetividade daqueles que nela viveu o que é possível pensar sobre outros eventos tão traumáticos ou mesmo piores que aconteceram no século XX e de alguma maneira ainda acontecem? Se esta [a Grande Guerra] rompeu a trama de experiência e discurso, que rupturas não produziram o holocausto e, depois, os crimes em massa do século XX, o Gulag, as guerras de limpeza étnica, terrorismo de Estado? (SARLO, 2007, p. 28). Todos esses acontecimentos, cujo eco escabroso ainda nos perturba, sobretudo quando sua lembrança nos alerta que não estamos livres do risco de voltarmos a vivê-los, o que a escavação de eventos tão sombrios teria a nos dizer? Há considerações sobre essas questões que é preciso atentar, é o caso do que é tratado pela análise de Primo Levi, em seu livro “É isto um homem?”, onde o autor dá seu testemunho como sobrevivente de um campo de concentração nazista e afirma que o que deseja é que seu testemunho sirva para os leitores como a “matériaprima da indignação”, Sarlo analisa o depoimento de Levi e faz algumas ponderações: Os testemunhos dos que se salvaram é a ‘matéria-prima’ de seus leitores ou ouvintes, que devem fazer algo com que lhes é comunicado e que, justamente porque conseguiu ser comunicado, é só uma versão incompleta. Os que se salvaram ‘não podem senão lembrar’ (escreve Agamben), e, no entanto, não podem lembrar o decisivo, não podem testemunhar sobre o campo na medida em que não foram vítimas totais, como foi o 35 ‘mulçumano’ que se entregou e parou de lutar, e se separou daqueles restos desagregados de sociedade que ficaram no campo. Levi os chama ‘não-vivos’, isto é: não-sujeitos, que perderam a noção de qualquer limite ético, para começar, perderam a palavra em vida (SARLO, 2007, p. 35). O testemunho dos sobreviventes desses crimes de Estado são perpassados de polêmicas e paradoxos, um desses aspectos paradoxais é apontado por acima Agamben, portanto sua análise e instrumentalização para qualquer tipo de pesquisa não é de modo nenhum tarefa simples: De modo radical, não se pode representar os ausentes, e dessa impossibilidade se alimenta o paradoxo do testemunho: quem sobrevive a um campo de concentração, sobrevive para testemunhar e assume a primeira pessoa dos que seriam os verdadeiros testemunhos, os mortos. Um caso-limite, terrível, de prosopopeia (SARLO, 2007, p. 35). A verdade sobre o campo de contração é a morte! Portanto, de alguma maneira, aqueles que sobreviveram ao campo não são provas incontestáveis dessa verdade, pelo simples fato de que se ainda vivem contradizem essa verdade. Eles porém, só podem falar em nome de outros, daquelas que experimentaram radicalmente a verdade do campo, cujo testemunho é impossível. Mas há outros casos, onde esses testemunhos tem implicações “extra-teóricas” de natureza muito mais preocupante, pois entram em contradições com outras fontes, e além do mais, podem servir de base jurídica para responsabilização criminal dos envolvidos. Nesses casos, o desafio do pesquisador se torna ainda maior: como agir quando as fontes orais entrarem em contradição com outras fontes? Quais são os limites éticos dos questionamentos que pretendem colocar em xeque o testemunho dessas vítimas? O historiador que pretende caminhar pela investigação desses fenômenos, muitas vezes relacionados a crimes que um Estado impõe a uma população inteira, se ver embaraçado com questões éticas e políticas das quais não pode fugir. Quando nos referimos a situações limites como essas, sempre há aqueles que defendem que a superação de tais situações se dá pelo esquecimento desta, advogam uma “virada de página” completa, outros pensam o exato inverso, que somente quando depois que for debatido incansavelmente, esses eventos podem ser 36 superados. Esse é um debate muito importante para a historiografia contemporânea, por exemplo, toca o âmago das memórias das vítimas da ditadura militar da América Latina: É evidente que o campo da memória é um campo de conflitos entre os que mantém a lembrança dos crimes de Estado e os que propõem passar a outra etapa, encerrando o caso mais monstruoso de nossa história. Mas também é um campo de conflitos para os que afirmam ser o terrorismo de Estado um capítulo que deve permanecer juridicamente aberto, e que o que aconteceu durante a ditadura militar deve ser ensinado, divulgado, discutido, a começar pela escola. É um campo de conflitos também para os que sustentam que o ‘nunca mais’ não é uma conclusão que deixa para trás o passado, mas uma decisão de evitar, relembrando-as, as repetições (SARLO, 2007, p. 20). Nesses casos a tarefa da abordagem de fontes orais é uma tarefa primordial, pelo fato de a maior parte das fontes oficiais serem duvidosas quanto à veracidade de seu conteúdo, os autores Fournier e Herrera ao abordar um tema polêmico como é o caso do massacre da Praça das Três Culturas no México em 1968, sugerem que “a compilação dos testemunhos” (2008 p. 107) é tarefa prioritária de investigação da questão, visto a descarada manipulação das fontes oficias e jornalísticas sobre o evento. Muitas vezes nesse tipo de situação, o levantamento de fontes orais é uma tarefa espinhosa, e se torna, em casos de denúncias de crimes ou violência, fontes imprescindíveis. Isso acontece “quando testemunho é a única fonte (porque não existem outras ou porque se considera que ele é mais confiável)” (SARLO, 2007, p. 21). Parece-nos claro, que mesmo se tratando de uma tarefa árdua, o trabalho com fontes orais é uma tarefa indispensável, não porque acreditamos que a fonte oral seja depositária de uma verdade que esteja acima de qualquer outra fonte, mas porque entendemos que o simples fato do depoimento de diversos agentes poderem ser ouvidos, expõe as contradições de processos que tendem, quando sujeitos ao monólogo laudatório das fontes oficiais, a apresentarem uma versão extremamente monolítica e, portanto, limitada. Desde antes das tradições democráticas, mais acentuadamente a partir delas, a reconstituição dessas situações de 37 violência por testemunhas é uma dimensão teórica indispensável à democracia. Parece-nos, ao chegar a esse ponto da análise, que é mais viva do que nunca a antiga argumentação, da qual tratamos no inicio, de que a história do tempo presente era desprezada pelos historiadores profissionais do séc. XIX pelo seu forte conteúdo político, observamos quase dois séculos mais tarde a história do presente não tem menos implicações políticas e, talvez por isso, ainda não é campo preferencial de pesquisa para a maioria dos historiadores. No entanto, hoje já sabemos que toda produção intelectual, seja ela em relação ao passado, presente ou futuro, tem em si alguma implicação política e a tal da imparcialidade é uma quimera há muito refutada, “se o historiador deve manter um distanciamento crítico em relação ao seu objeto de estudo e proceder com discernimento e rigor, nem por isso ele consegue ser neutro” (BÉDARIDA, 2006, p. 227). É obvio que, em relação à história do presente, quando os acontecimentos ainda estão quentes e os interesses dos atores históricos são candentes, esse ponto de vista político do pesquisador se torna algo ainda mais problemático. No que diz respeito aos testemunhos de vítimas de situações de violência em geral, fica cada dia mais claro que, mesmo que os historiadores no passado terem afastado qualquer vocação militante da história oral, hoje nos parece inegável que existe sim um papel político muito importante a cumprir pela história oral em relação questões dessa natureza. O papel desse trabalho com o testemunho sobre acontecimentos recentes de tamanha relevância numa sociedade que cada vez mais só quem possui memória é a polícia (DEBORD, 1997), e onde apenas “a justiça não se esquece de nada” (KAFKA 2001 p. 185), é uma tarefa espinhosa para aqueles que nela se arriscam, mas sua relevância acadêmica e, sobretudo social, com seu vasto campo de reflexão e ação, parece recompensar aquelas que nela se ocupam. 38 3 O CONSUMO DE PSICOATIVOS: DOS USOS HISTÓRICOS À CONSOLIDAÇÃO DA POLÍTICA PROIBICIONISTA A palavra droga traz consigo uma carga valorativa muito grande, e sua definição é objeto de contenda, pois seu conceito e caracterização não dependem apenas da simples discussão científica em torno de sua natureza química. O conceito de droga está demasiadamente envolto em uma discussão ideológica e política de tal maneira que, segundo os estudiosos não seria possível delinear um conceito de droga puramente químico, isto é, que não sofresse implicações culturais, históricas e sociais: A droga como um objeto claro e definido nunca existiu. Sob a sombra desse conceito polimorfo esconde-se, na verdade, uma diversidade de substâncias e de usos distintos. O denominador comum que centraliza essa noção ambivalente é o discurso normatizador proferido pelas instâncias oficiais de ordem cultural. (...) A droga sempre foi um conceito antes de tudo moral. Os costumes e os hábitos é que determinaram o que é e o que foi essa noção, cujo sentido contemporâneo é carregado de um conceito ilícito e mesmo criminal (CARNEIRO, 1994, p. 157). O conceito de droga, portanto deve ser proveniente de uma abordagem multidisciplinar da questão, onde os aspectos puramente farmacológicos não seriam levados em conta de maneira isolada, como ressalta MacRae: Uma abordagem exclusivamente farmacológica da questão da droga não é suficiente, e que os efeitos tanto individuais e subjetivos, quanto os sociais do uso de substâncias psicoativas só podem ser entendidos a partir de uma perspectiva biopsicossocial (MACRAE, 2010, p. 1). E complementa com uma assertiva categórica surpreendente de que “não existe droga a priori”: Não existe droga a priori, uma vez que são a atividade simbólica e o conjunto das motivações no consumidor que transformam uma substância psicotrópica em droga, levando à sua integração de maneira estável na estrutura motivacional do consumidor (MACRAE, 2010, p. 1). Tal afirmação, que pode soar estranha aos ouvidos não iniciados na problemática da droga, é compartilhada por demais pesquisadores da área que ressaltam a natureza relacional da questão, isto é, o 39 contexto social, histórico e cultural onde são consumidas determinadas substâncias químicas: O conceito de droga é relativo às configurações e significados socioculturais de um contexto histórico, ou seja, ele é construído socialmente, de acordo com processos sociais e históricos de cada sociedade (ALBUQUERQUE, 2010, p. 15). Neste sentido, o conceito de droga é multifacetado, uma substância num dado contexto pode ser encarada como um simples alimento e noutro como fonte de puro prazer ou mesmo como componente de rituais religiosos ou terapêuticos: O conceito de droga é extremamente polissêmico. Seus significados abrangem tudo o que se ingere e que não constitui alimento, embora alguns alimentos também possam ser designados como drogas: bebidas alcoólicas, especiarias, tabaco, açúcar, chá, café, chocolate, mate, guaraná, ópio, quina, ipecacuanha assim como inúmeras outras plantas e remédios (CARNEIRO, 2005, p. 5). Nessa concepção as drogas tomam um sentido bem amplo, muito maior do que as pretensões que este trabalho busca abarcar: As drogas sejam consideradas como uma categoria complexa e polissêmica que recobre e reúne, por vezes de modo marcadamente ambíguo, como também isola e separa, tantas vezes de modo instável, matérias moleculares as mais variadas. Ela também propõe que essas matérias moleculares constituem objetos sócio-técnicos que, embora sempre possam ser distinguidos conforme as modalidades de uso (matar, tratar, alimentar, por exemplo), não comportam diferenças intrínsecas absolutas ou essenciais, mas sempre e somente diferenças relacionais. Pois sucede às drogas (e aos medicamentos e alimentos) o mesmo que às armas (e às ferramentas): tais objetos sócio-técnicos permanecem integralmente indeterminados até que sejam reportados aos agenciamentos que os constituem enquanto tais (Deleuze; Guattari, 1997, p. 72). Desta perspectiva, as drogas não dizem respeito apenas àquelas substâncias que produzem algum tipo de alteração psíquica ou corporal e cujo uso, em sociedades como a nossa, é objeto de controle ou de repressão por parte do Estado, mas também àquelas que Mintz (1986) chamara de “alimentosdroga” – como o açúcar, o café, o chá e o chocolate, por exemplo – bem como àquelas que correntemente nomeamos medicamentos ou fármacos. Esta perspectiva se contrapõe àquela outra, mais restritiva e assimétrica, além de historicamente posterior, que toma como dada ou estabilizada a partilha moral (médico-legal) entre usos lícitos e ilícitos de drogas, ou entre drogas (ou tóxicos, ou entorpecentes, ou venenos...) e medicamentos, alimentos, condimentos, cosméticos, etc. Ainda que essa partilha seja operativa entre leigos e doutos, usuários e analistas, propõe-se mostrar aqui que ela não é auto-evidente, mas o efeito alterado do encontro/passagem de ondas de mobilização sócio-técnica 40 cujos rastros as notas deste trabalho se propõem registrar (VARGAS, 2008, p. 41-42). Segundo Vargas (2008), a origem etimológica da palavra droga é bastante controversa, com possibilidades de ter se originado do latim drogia, do irânico daruk, do árabe durâwa e do celta druko, porém “a hipótese holandesa me parece a mais verossímil” (VARGAS, 2008, p. 42), é o que sustenta também Carneiro: Provavelmente deriva do termo Holandês droog, que significa produtos secos e servia para designar, do século XVI ao XVIII, um conjunto de substâncias naturais utilizadas, sobretudo, na alimentação e na medicina. Mas o termo foi usado na tinturaria ou como substância que poderia ser consumida por mero prazer (CARNEIRO, 2005, p. 11). Pelo fato de contemporaneamente ter ganhado um conteúdo criminoso, alguns estudiosos preferem utilizar a expressão psicoativos no lugar da palavra droga: Prefere-se o termo “substâncias psicoativas” à palavra “droga”, de uso mais comum, por esta trazer uma conotação demasiadamente negativa e preconceituosa. Lembramos que estas substâncias são utilizadas não somente por adictos ou dependentes mas por todo tipo de pessoas. O termo substância psicoativa também tem a vantagem de aludir à psique, escapando de um determinismo exclusivamente farmacológico. Isso é importante pois remete à idéia que os efeitos resultantes do uso dessas substâncias são resultado da complexa interação de variáveis de natureza biológica, psíquica e ambiental (MACRAE, 2010, p. 2). Portanto, para o primeiro momento da nossa análise onde delinearemos o amplo espectro da questão da droga e alguns de seus diferentes usos na história da humanidade, optaremos, na maioria das vezes, pelo termo: psicoativos. No entanto, no ponto quatro, onde nos deteremos mais pormenorizadamente em relação às substâncias ilícitas, portanto ao seu significado criminal como ressaltou anteriormente Carneiro (1994), utilizaremos com mais frequência o termo droga, já que é assim que ela aparece nas falas de usuários e policiais e demais sujeitos que participam do universo das drogas ilícitas por nós analisado, ainda que ambos os conceitos: drogas e psicoativos - sejam utilizados como sinônimos pelos pesquisadores que aqui tomamos como referência. 41 As substâncias psicoativas (lícitas ou ilícitas) foram e são compreendidas a partir de uma plêiade de códigos culturais e dizeres próprios. Uma das formas de se referir a essas substâncias é o conceito de “droga” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 14). Uma problemática de tamanha complexidade como é a questão dos usos dos psicoativos não pode ser analisada profundamente sem que antes levantemos indagações pertinentes sobre a maneira de abordá-la. E uma dessas indagações dizem respeito à problemática da origem levantada por Foucault (2012). Em um texto famoso intitulado “Nietzsche, a genealogia e a história”, Foucault (2012) alerta os historiadores sobre o perigo da busca das origens das coisas, não porque não precisemos mais entender os processos históricos pelos quais os fenômenos sociais se desenrolam, mas pelo fato de que muitas vezes essa busca da origem está metafisicamente orientada. O que exatamente isso quer dizer? A busca da origem pode estar guiada pela vã intenção de encontrar lá, onde exatamente tudo teria começado, o verdadeiro sentido da coisa, isto é, a coisa mesma em seu sentido primeiro, originário, em sua essência de pureza quase metafísica, porquanto ainda não estaria “encharcada” de história. Dessa forma, Foucault, na esteira de Nietzsche, assevera: Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)? Porque, primeiramente, a pesquisa nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exata das coisas, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior o que é eterno, acidental, sucessivo (2012, p. 58). Essa armadilha da origem é bastante perigosa para um historiador do tempo presente que vai debruçar-se sobre um fenômeno que, ainda que possua fortes traços contemporâneos, no entanto, é quase tão antigo quanto o hábito de se alimentar. Dessa maneira, a assertiva foucaultiana se revela ainda mais salutar. É preciso que não guardemos nenhum tipo de ilusão metafísica da origem do uso de substâncias psicoativas ao longo da história da humanidade. Mesmo que os estudos tenham revelado que o consumo de psicoativos remonta aos tempos mais remotos da humanidade, onde as plantas e ervas colhidas nas 42 florestas potencializavam diversas capacidades humanas, não quer dizer que ali se encerra o sentido primeiro e essencial (e por isso tolerável) do uso de substâncias psicoativas. Ser enganado por esse mito da origem seria olhar para o consumidor de chá de papoula do paleolítico com olhos de quem enxerga o bom selvagem rousseauniano desprovido de maldades, que apenas faz uso de um direito quase natural, que é o de usufruir daquilo que o meio ambiente o oferece. E olhar para os consumidores de crack 8 modernos como aqueles que representam um tipo de uso degenerado e passível de ser socialmente perseguido. Óbvio que ambos participam de universos históricos, simbólicos e materiais totalmente distintos. Mas não podemos deixar de observar o quão mais facilmente um parece ser untado de legitimidade histórica, enquanto o outro seria, no mínimo, digno do olhar desconfiado de muitos9. Por que cargas morais e valorativas são despertadas de maneiras tão diferentes, dependendo de qual imagem nos remetamos, se do bebedor de chá do paleolítico (natural, essencial, e, portanto positiva) em “sua mais pura possibilidade” (FOUCAULT, 2012, p. 58), ou do fumador de ‘pedra’ do nosso tempo (artificial, dispensável, negativa)? Em que momento da história essa ruptura aconteceu? Em que momento da história o uso de substâncias psicoativas deixou de ser potencializadora de um tipo de espiritualidade humana, e por isso está, dentre outras coisas, intimamente ligado ao surgimento de muitas O crack é uma droga de coloração branca, que obteve essa denominação devido ao som gerado no momento em que o produto entra em contato com o fogo [...] As formas mais comuns de uso do crack são a queima da substância juntamente com cinzas de cigarro ou mesmo com maconha. Normalmente, essa droga é fumada em cachimbos de vidros, ou pipas improvisadas com latas, PVC ou papel alumínio [...] O crack é uma substância psicoativa sintética, elaborada a partir de pisoteio de folhas de coca (ALBUQUERQUE, 2010, p. 20). 9 “Não se nega a potencialidade lesiva do crack, mas também não se pode deixar de reconhecer a existência de um enorme contingente de usuários recreativos, isto é, que se utilizam de outras substâncias etiquetadas como ilícitas e, por essa via, apresentada como drogas (maconha, cocaína, etc.), sem maiores problemas” (TORON, 1997, p. 21). 8 43 religiões10, para ser quase que totalmente rechaçada pela maioria (para não dizer a totalidade) das grandes religiões modernas?11 Por que o uso de algumas substâncias psicoativas deixou de ser socialmente aceito, ou melhor, desejado, para ser tido como socialmente perigoso e até mesmo passando a ser perseguido com afinco?12 Óbvio que é necessário dizer que hoje em dia há substâncias psicoativas que gozam de uma tolerância bastante ampla e são até mesmo socialmente desejadas muito mais que outras, o caso do álcool no Ocidente é um claro exemplo. Mas quais foram os mecanismos históricos e culturais acionados para haver tal distinção? Essa indagação nos inquieta. Distinção por vezes tão clara entre determinadas substâncias, onde algumas são socialmente aceitas, enquanto outras são brutalmente execradas, uma diferenciação que existe inclusive entre substâncias que, do ponto de vista puramente médico, não haveria quaisquer motivos para serem execradas umas, enquanto outras seriam tão amplamente tolerada. Do ponto de vista dos riscos envolvidos, o álcool é imensamente mais perigoso, sem dúvida alguma. Enquanto a maconha13 não mata, não importa a dose, o álcool tem uma margem pequena entre a dose necessária para causar o efeito desejável e a dose suficiente para colocar em risco funções vitais do corpo (BURGIERMAN, 2011, p. 232). Sobre essa relação entre psicoativos e religiões primitivas, Escohotado (1996, p. 10) afirma: “Las culturas de cazadores-recolectores- sin duda las más antiguas del planeta – tienen en común una pluralidad abierta o interminable de dioses. Hoy sabemos que en una alta proporción de esas sociedades los sujetos aprenden y reafirman su identidad cultural atravesando experiencias con alguna droga psicoactiva”. 11 Ainda hoje existem religiões que se utilizam de substâncias psicoativas como parte fundamental de seus rituais, porém constantemente esses grupos estão sob o alvo da criminalização. Por exemplo, sobre a estigmatização de grupos ayahuasqueiros, ver: Goulart (2008). 12 Trataremos mais detidamente dessas questões quando discutirmos a consolidação da política proibicionista no século XX. 13 “O cânhamo (também conhecido como maconha) é a droga recreativa ilegal mais amplamente utilizada” (IVERSEN, 2012, p. 93). “Maconha é o nome popular de um grupo de plantas arbustivas de origem asiática (talvez nativas da Índia), cujo nome científico é Cannabis [...] A maconha tem sido usada ao longo da história nos mais diversos tipos de cultura, para mudar o humor, a percepção e a consciência [...] Seus efeitos psicotrópicos variam do aumento da capacidade imaginativa e da criatividade, das experiências místicas, passando pelo aumento da sociabilidade e da capacidade afetiva e intelectual” (COHEN, 1988, p. 13-21). 10 44 Temos plena consciência que todas essas são questões que ultrapassam - e muito - os limites imanentes deste trabalho. Mas pretendemos com elas despertar a atenção para duas coisas que neste momento identificamos como sendo de alta importância para sua caracterização. A primeira é demonstrar que historicamente o uso de psicoativos, inclusive em larga escala, é algo que, como veremos adiante, remonta aos tempos mais longínquos da humanidade. O que quer dizer que não se trata de uma epidemia moderna como, às vezes, nos fazem pensar setores da mídia jornalística, destaca Noto (2013 et al.), demonstrando como estes, em muitos casos, tratam de contribuir para a propagação de mitos em torno da questão do uso de substâncias psicoativas: “para as drogas ilegais [...] a mídia tende ao exagero” (NOTO, 2013 et al., p. 280). Embora seja óbvio que nossa sociedade moderna passe por um processo agudo de crescimento de consumo, não apenas de psicoativos, mas de praticamente todos os bens necessários (e por vezes até mesmo os desnecessários) à vida humana. Algo típico do capitalismo moderno, que para se reproduzir precisa produzir mais-valor 14 em escala cada vez mais ampliada e com isso empurra para o cotidiano das pessoas o uso desmedido e descartável de infinitas banalidades, enquanto, ao mesmo tempo, pela sua natureza desigual e contraditória, condena outros milhares à pauperização crescente, impedindo o acesso inclusive aos bens mais primordiais da vida social. Portanto, se quisermos enxergar apenas do ponto de vista do consumo, não são apenas os psicoativos que são consumidos em larga escala, mas sim a tendência geral das mercadorias produzidas pelo capitalismo contemporâneo. Queremos apontar com isso, desde já, que, mesmo em razão do crescimento do consumo, isto não justifica por princípio essa intolerância com determinadas substâncias, tendo em vista, para citarmos um breve exemplo apontado por alguns estudiosos, o consumo de álcool e tabaco Deu-se preferência pelo termo mais-valor em detrimento da clássica tradução maisvalia, porque estamos tomando como referência a tradução dos cadernos preparatórios d’O Capital no Brasil, levando em conta toda a problematização e caracterização que nessa edição o tradutor Mario Duayer faz em torno desse conceito. Cf. Marx (2011). 14 45 são responsáveis pelo maior dano à saúde pública mundial no século XX, e continuam sendo legais na maioria dos países do Ocidente, enquanto a maconha continua sendo proibida apesar de ter uma potencialidade lesiva muito menor15. Mas nem por isso temos políticas em escala mundial de perseguição à produção e ao consumo de álcool e tabaco, pelo contrário, toleram-se amplamente campanhas publicitárias (com exceção do tabaco, onde a propaganda é proibida no Brasil), que incentivam inclusive jovens a continuarem se intoxicando com o uso contínuo desse produto. Isto é, abordaremos não apenas como o uso de substâncias psicoativas foi historicamente desenvolvido, e como determinadas culturas se adaptaram profundamente a seus efeitos, até mesmo os efeitos indesejados, enquanto em determinados momentos criaram-se estigmas sociais sobre outras tantas. Com isso chegamos à segunda: como, em um espaço relativamente curto de tempo, várias dessas substâncias que têm uma larga tradição de consumo passam a ser perseguidas e proibidas em escala cada vez mais global? Tal política, caracterizada pelos estudiosos de política proibicionista das drogas,16 é hoje o paradigma global de gestão de substâncias psicoativas tidas como perigosas ou potencialmente perigosas em todo mundo. Como e por que essa política ganhou força? Quais são os efeitos sociais que ela tem produzido nesses quase cem anos de vigência? Essa é uma das principais indagações que nos impulsionaram nesse capítulo. “Os dados oficiais da OMS demonstram que o maior dano à saúde pública mundial no século XX foi causado pelo tabaco, seguido do álcool. O tabaco sozinho seria o maior vilão da história da humanidade, tendo matado mais do que todas as guerras, numa cifra de cinco milhões de mortos por ano, totalizaria meio bilhão em todo o século!” (CARNEIRO, 2005 p. 2). 16 “Proibicionismo é uma forma simplificada de classificar o paradigma que rege a atuação dos Estados em relação a determinado conjunto de substâncias. Seus desdobramentos, entretanto, vão muito além das convenções e legislações nacionais. O proibicionismo modulou o entendimento contemporâneo de substâncias psicoativas quando estabeleceu os limites arbitrários para usos de drogas legais/positivas e ilegais/negativas. Entre outras consequências, a própria produção científica terminou entrincheirada, na maior parte das vezes do lado “certo” da batalha, ou seja, na luta contra as drogas. O proibicionismo não esgota o fenômeno contemporâneo das drogas, mas o marca decisivamente” (FIORE, 2012, p. 09). Sobre o debate em torno do proibicionismo ver também: ESCOHOTADO (1997), WOODIWISS (2007) e RODRIGUES (2008). 15 46 3.1 Psicoativos: dos diferentes usos à proibição Por onde começar, então? Pelo vinho, pela cerveja ou por outras bebidas alcoólicas fermentadas? Pelos cogumelos alucinógenos? Pela maconha? Pelo ópio? Mas tudo isso nos levaria longe demais: se não à noite dos tempos, ao neolítico, pelo menos. Além disso, por que essas substâncias e não outras? (VARGAS, 2008, p. 42). Sem qualquer pretensão de busca da origem e também sem ilusões de que esgotaremos aqui a análise dos usos de diferentes psicoativos em diversas culturas e civilizações ao longo da história, que não caberia nos limites desta modesta abordagem, além de ser uma ambiciosa, estafante e interminável tarefa, como nos lembra Martine Xiberras, precisaríamos de um conhecimento e de uma investigação interdisciplinar devido a transversalidade e riqueza do objeto: A transversalidade deste objeto remete para o conhecimento de diversas culturas tradicionais e para história das civilizações, uma vez que as experiências com produtos tóxicos desconhecem praticamente todo tipo de fronteiras temporais e espaciais estipuladas pelos especialistas (XIBERRAS, 1989, p. 14). Isso se deve, entre outras coisas, pelo fato da história do uso de substâncias psicoativas, apesar de cada época trazer consigo suas características específicas, muitas vezes se confunde profundamente com a história de outras atividades humanas, como a alimentação, a medicina e algumas práticas religiosas. Além, é claro, de exigir um aprofundamento sobre características específicas sobre vários recortes temporais que variam do paleolítico até os dias de hoje, isto é, variações cronológicas que estão para além do alcance das especializações da historiografia moderna. Portanto, o nosso interesse aqui é bem mais restrito. Mesmo entendendo que o consumo de psicoativos nos tempos modernos tem características bem particulares e que estão intimamente ligadas a outros fenômenos modernos, como é o caso da urbanização, da industrialização e demais avanços no campo da produção, conforme apontaremos adiante. No entanto, pretendemos apenas traçar um panorama geral sobre o consumo histórico de psicoativos, buscando desmistificar assim um dos principais argumentos do proibicionismo 47 que identifica o consumo dos mais diversos psicoativos como sendo uma epidemia moderna e, desta forma, entender que “as drogas contemporâneas não surgiram como um deus ex machina” (XIBERRAS, 1989, p. 57), ou seja, não se trata de um acontecimento recente e abrupto, que não teria vestígio nem linhagem semelhante. Conforme aponta Noto (2013 et al), nos tempos atuais há em voga um determinado discurso que, com traços sensacionalistas, pretende perder de vista que o contato humano com substâncias psicoativas não se trata de uma invenção moderna, ademais, sentencia Xiberras: Pelo contrário, a epopeia dos psicotrópicos foi se desenvolvendo aos poucos, de continente em continente, seguindo os ritmos das trocas comerciais e culturais, ao mesmo tempo que a variedade dos produtos e das utilizações se iam adaptando aos contactos entre os diferentes sistemas sociais (1989, p. 58). Dessa maneira, alguns estudos já apontaram que a prática de uso de substâncias psicoativas remonta às épocas mais remotas da existência humana. Os primeiros humanos eram caçadores-coletores; tinham que aprender quais dentre as diversas plantas em seu ambiente eram boas para comer e quais eram venenosas. Por tentativa e erro, eles também acumularam gradualmente conhecimento sobre quais plantas ou outros materiais naturais podiam ajudar a aliviar a dor ou tratar os sintomas de doenças (IVERSEN, 2012, p. 07). Para muitos pode soar mais que uma novidade a ser contada em mesa de bar ou uma notícia a ser brindada na companhia de amigos, mas a receita mais antiga da humanidade, um documento histórico escrito em Sumério, ensina a fazer cerveja! Ela foi escrita pelos sumérios, povo que se estabeleceu na Mesopotâmia perto de 8000 a. C. e é considerado o exemplo mais antigo de civilização humana. A bebida que eles produziam não era muito diferente da de hoje e seus hábitos em relação a ela parecem bem familiares. O ingrediente principal era o malte de cevada – cereal da maioria das cervejas contemporâneas e, curiosamente, o primeiro a ser cultivado pelo homem. A maior diferença estava no aromatizante: mel, em vez de lúpulo. As pessoas se reuniam para beber em festas, banquetes ou tavernas (ARAÚJO, 2012, p. 25). O que indica que o consumo do álcool engendra tipos de sociabilidades entre os seres humanos há milênios. Percebemos que o uso dessa e de outras substâncias se dava num contexto também para 48 além do religioso e medicinal, o uso puramente recreativo que, segundo as fontes, era amplamente difundido: O uso recreativo de drogas parece fazer parte do comportamento humano há milhares de anos. É provável que o álcool tenha sido a primeira dessas drogas – é facilmente obtido por meio de frutas e leveduras silvestres comuns na maioria dos lugares em todo o mundo. Foi necessário um pequeno passo para descobrir como controlar o processo de fermentação para produzir vinhos e cervejas [...] (IVERSEN, 2012, p. 17). No Ocidente, o consumo do álcool tem sido amplamente tolerado e até mesmo desejado em círculos bastante amplos, presente inclusive na ritualística cristã. São famosos os trechos da Bíblia que citam o consumo do vinho, o primeiro milagre de Jesus, narrado no evangelho de João (2: 3-11), descreve a transformação de cerca de 600 litros de água em 600 litros de vinho. O mais interessante desta fonte histórica sobre o consumo de um psicoativo tão importante como é o álcool para civilização ocidental, é que essa transformação se deu também para o uso recreativo, ainda que se tratasse de um casamento, ritual sem dúvida com contornos religiosos claros, o ato de tomar vinho entre os convidados configura plenamente uma festa, isto é, Jesus assim como os outros que participavam da festa de casamento tomavam vinho para se divertir. O ritual da última ceia descrito no evangelho de Mateus (26: 26-28) é também muito famoso, onde a representação do vinho simboliza o próprio sangue de Cristo, enquanto o pão simbolizaria a carne. Tal ritual, da transformação do vinho em sangue sacrossanto, é lembrado em todas as missas da Igreja Católica até hoje, bem como por outras congregações cristãs. Outras substâncias gozaram por séculos de status semelhantes em outras culturas, é o caso do cânhamo, ou maconha, como é mais popularmente conhecido: Esa actitud básicamente favorable al alcohol tiene su exacto opuesto en la religión de la India desde sus primeros himnos. Sura, el nombre de las bebidas alcohólicas en sánscrito, simboliza ‘falsedad, miseria, tinieblas’ (Satapatha Brahmana, V. 1.2.10) y seguirá simbolizándolo en el brahmanismo posvédico. Tampoco serán gratas las bebidas al budismo, aunque por diferentes razones; el santón budista prefiere el cáñamo [maconha] como vehículo de ebriedad, mientras el brahmán guarda una sociedad rigorosamente cerrada, donde desinhibidores tan poderosos como las bebidas alcohólicas amenazan el principio de incomunicación absoluta entre castas (ESCOHOTADO, 1996, p. 21). 49 Da mesma maneira que o álcool e o cânhamo foram amplamente aceitos em determinadas culturas, também o uso de ópio e derivados, consumido e produzido amplamente na antiguidade, regiões da Suméria e do Egito, se difundiu de tal maneira, através de rotas comerciais, que foi no extremo Oriente, sobretudo na China, onde teve provavelmente a sua mais ampla recepção, (ESCOHOTADO, 1996). Na Antiguidade Clássica, segundo Araújo (2012), o uso e conhecimento sobre plantas psicoativas era bastante amplo, a exemplo do famoso trecho da obra “História das plantas”, escrita por Teofrasto, contemporâneo de Aristóteles, sobre uso da Datura metel, administrada segundo o princípio grego de que nenhuma droga é boa ou má em si, depende da sensatez com a qual os indivíduos estabelecem a relação com ela: Administra-se um dracma (unidade de medida grega) se o paciente deve apenas ficar bem disposto; o dobro dessa dose se ele deve delirar e ter alucinações; o triplo se deve ficar permanentemente louco; o quádruplo se ele deve morrer (ARAÚJO, 2012, p. 30). O autor faz referência ainda ao consumo de vinho e outros psicoativos ligados ao culto do deus Dionísio. E a tradição dos Pharmakón, discípulos de Hipócrates (tido como o pai da medicina), de onde também permaneceria uma larga linhagem do conhecimento e do uso de plantas e de substâncias com efeitos psicoativos e medicinais. Ao longo da Idade Média, ainda para Araújo (2012), são as bruxas e os alquimistas, ambos envolvendo conhecimentos efetivos sobre os psicoativos mesclados com rituais místicos e ambos também largamente perseguidos pelo cristianismo, tidos como feiticeiros e potencialmente perigosos para a moral cristã, visto que boa parte da receita das bruxas (que nada mais eram que mulheres que possuíam conhecimentos tradicionais sobre plantas psicoativas e medicinais) serviam também como afrodisíacos potencializadores dos apetites sexuais. Com as grandes navegações dos séculos XV e XVI, a circulação mundial de psicoativos cresceu bastante. Araújo destaca: “Drogas estavam entre os principais produtos do mercado global inaugurado na 50 era dos descobrimentos” (2012, p. 41) e Escohotado (1996, p. 67) afirma: “Que los tesoros americanos fuesen básicamente botánicos sorprendió al conquistador”. Com a invasão da América pelos europeus, pela primeira vez na história determinadas culturas puderam ter acesso a substâncias que já eram consumidas há séculos por outras. Da mesma forma que a América exportava a coca e o tabaco, chegavam à América, drogas do mundo todo, como a maconha, o chá e o ópio: A era das grandes navegações não proporcionou o descobrimento do tabaco, apenas. Pela primeira vez na história, drogas de todos os continentes circulavam pelo mundo. Povos do mundo inteiro entraram num intercambio inédito de remédios e sensações. A América era o principal fornecedor desse escambo sensorial. Além do tabaco, ela apresentou a coca, a erva-mate, o guaraná e uma coleção enorme de substâncias alucinógenas e visionárias. No convés de espanhóis e portugueses elas iam não apenas para a Europa, mas para a África e o Oriente. Na contramão o Novo Mundo também receberia drogas conhecidas havia muito tempo no resto do mundo como o café, o chá, a maconha e o ópio. Nenhuma droga daquele período, no entanto, tornou-se tão popular em tão pouco tempo como o tabaco. Essa popularidade repentina criou um mercado poderoso, que, por sua vez, motivou as primeiras políticas de drogas da era moderna. (ARAÚJO, 2012, pp. 42-43). O crescimento do consumo e da circulação de drogas desconhecidas para um número bastante significativo de povos e culturas levou a um primeiro ciclo de proibicionismo da era moderna, muitos povos não acostumados a lidar com os efeitos negativos do tabaco, proibiram sua produção, distribuição, circulação e consumo, uma medida que não podia se sustentar por muito tempo, por motivos econômicos e políticos. Politicamente, devido ao grande número de consumidores, essa medida se tornou amplamente impopular. Economicamente, por outro lado, os países que ficaram de fora desse comércio tão lucrativo, começaram a perder dividendos importantes para países concorrentes, algo bastante relevante na época que as relações de produção capitalistas começavam a se impor: O rei da Inglaterra James I, um dos primeiros antitabagistas da história, decretou em 1604 um imposto de 4.000% sobre o valor do tabaco importado para o país. Em 1611, a Espanha também criaria um imposto sobre a importação de tabaco de suas colônias em Cuba e em Santo Domingo. Como a produção e as vendas não paravam de subir os dois reinos logo instituíram monopólios estatais sobre aquele comércio. Além 51 das políticas fiscais, países do mundo inteiro começaram a criar leis para controlar o consumo desenfreado daquela nova droga. Japão (em 1607), Império Otomano (em 1611), Suécia e Dinamarca (1632), Rússia (1634), Nápoles (1637), Sicília (1640), China (1642), Império Mongol (1671) foram alguns dos Estados que proibiram seu consumo no século 17. (ARAÚJO, 2012, p.43). Mesmo com a adesão de tantos países à política proibicionista, com o empenho de governos e a promulgação de diversas leis e outros esforços para combater o consumo do tabaco é muito difícil controlar o que milhões de pessoas desejam fazer com seu próprio corpo. Se atualmente em nossa sociedade, com inúmeros mecanismos de vigilância proporcionados pela ciência moderna e instrumentalizados pelo poder 17, é difícil impor um controle sob a vida íntima das pessoas e fiscalizar o que elas fazem com seu próprio corpo, além, é claro, pelos motivos políticos e econômicos anteriormente citados, essa empreitada no século XVII fracassou desastrosamente. As proibições não duraram muito, porém. Primeiro, porque, apesar das penas duríssimas os fumantes continuavam a se multiplicar. Nenhum governo poderia sustentar por tanto tempo leis tão impopulares. Depois, porque países como Inglaterra, Espanha, Portugal e Holanda começaram a fazer fortunas com a venda e a coleta de impostos sobre o tabaco – exemplo seguido daqueles tempos até o dia de hoje. No final do século 17, os interesses econômicos já tinham se sobrepostos aos morais e religiosos, e o uso da droga parou de ser perseguido – pelo menos por enquanto (ARAÚJO, 2012, p. 44). Quando se trata do uso histórico de psicoativos, é preciso entender, obviamente, que o tipo de consumo de substâncias psicoativas na modernidade tem nuances bem diferenciadas que o uso feito por sociedades tradicionais ao longo de séculos. Sobre isso Xiberras (1989) elabora um corte analítico buscando distinguir o uso moderno de psicoativos da análise de etnólogos sobre seu uso em determinadas culturas tradicionais: Outra forma de abordar o mundo da droga é a liberdade estilística a que Castaneda recorre ao descrever os ensinamentos de um feiticeiro Yaqui acerca da utilização dos 17 Usa-se este conceito de acordo com a caracterização feita por Michel Foucault onde entende que as relações de poder não são algo que se baseia apenas na repressão, mas na produção e gestão de diversos âmbitos da vida social: “quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir” (FOUCAULT, 2012, p. 215). Essa acepção será posteriormente retomada na análise. 52 alucinógenos. O seu relato revela de imediato o acesso a um universo mágico cuja descrição só se pode fazer através do simbolismo e da mitologia que caracteriza uma determinada cultura. Com efeito este jovem etnólogo, formado nas universidades californianas da década de sessenta, debruça-se sobre uma forma de intoxicação perfeitamente codificada e circunscrita pelas representações de uma cultura tradicional. O mesmo não sucede com o fenômeno das toxicomanias modernas, que se afigura à primeira vista algo ainda inacabado, e que se insere antes no elenco das mutações ou das revoluções sociais (XIBERRAS, 1989, pp. 15-16). Temos em mente que todas essas diferentes substâncias e os distintos usos em épocas várias, possuem particularidades que, conforme já deixamos claro anteriormente, estão além do nosso interesse explicar em seus pormenores. No entanto, o nosso objetivo é demonstrar que, desde a chamada “Pré-história”, passando pela antiguidade, período medieval, e também pelo processo de invasão e conquista da América, temos presente o uso, a produção e o comércio em escala bastante ampla de substâncias psicoativas. Passados séculos de produção, distribuição, circulação e consumo de psicoativos, boa parte do seu uso ligado a usos medicinais ou religiosos, ou puramente recreativos, queremos agora nos debruçar sobre os usos modernos das drogas. Decerto, há semelhanças com os usos tradicionais e, sobretudo os usos recreativos das drogas até aqui apontados. No entanto, nos parece que a modernidade inaugura rupturas e diferentes práticas de usos de psicoativos: “Por otra parte, sólo el tiempo irá deslindando fiesta, medicina, magia y religión” (ESCOHOTADO, 1996, p. 11). Dessa forma, no alvorecer da modernidade, observamos o nascimento de outras tradições que encaravam o uso dessas substâncias de maneira diferenciada18. A 18 Se quisermos questionar simplesmente os sujeitos modernos: Por que eles usam drogas? “Com efeito, para os sujeitos sociais que se drogam a resposta não encerra qualquer mistério. Fazem-no com intuito de obter certos efeitos que procuram nos produtos psicotrópicos” (XIBERRAS, 1989, p. 16). No entanto, ao investigarmos sobre os diferentes usos modernos das drogas queremos com isso: “descrever o universo da droga como espaço real, um sistema social ou cultural, com seus modos de representação e actuação específicos” (XIBERRAS, 1989, p. 15). Isto é, os diferentes usos, em diferentes contextos históricos, criam representações sociais e, conforme veremos adiante, estigmas sociais, independente se os efeitos puramente químicos destas substâncias permaneceram os mesmos ao longo do tempo, é sobre as distintas representações sociais e culturais, sobre os diferentes tipos de uso (ou tradições toxicômanas), que aqui nos interessamos. 53 tradição moderna dos toxicômanos é bem diferente da “utilização mística dos produtos tóxicos” (XIBERRAS, 1989, p. 17). Em relação a isso, convém notar que uma das tradições de força do uso de psicoativos na modernidade e pretende desenvolver potencialidades criativas e aumentar a sensibilidade artística, chama-se de uso estético das toxicomanias: “Um primeiro movimento começa a esboçar-se no século XIX, durante o qual a apetência pelos novos produtos reside fundamentalmente na busca estética” (XIBERRAS, 1989, p. 17). Nessa tradição, os usuários são distintos e o fim buscado é algo bastante específico: Os adeptos são recrutados nos meios artísticos e a personagem típica desta forma de sensibilidade e de utilização pode ser representada por Baudelaire e pelo simbolismo dos anjos pecadores ou dos poetas malditos [...] A utilização dos psicotrópicos para fins estritamente criativos encontra no Ocidente um eco tão profundo que é possível entrever nessas práticas o nascimento de uma nova tradição da droga. Este tipo de práticas repercutir-se-ia até os nossos dias, tendo como chefes de fila, na literatura, nomes como, Artaud, Cocteau e Michaux (na tendência francesa), e Huxley, Kerouac e Burroughs, enquanto representantes do movimento alématlântico (XIBERRAS, 1989, p. 17). A partir dessa fase vemos o despertar de uma longa tradição de inspiração toxicômana que se desenrola fortemente até os escritores da década de 50 e 60 do século XX, como William Burroughs e Jack Kerouac. Ainda que, segundo nosso entendimento, os escritores da chamada Geração Beat19 a qual pertencem os dois literatos supracitados, estes participam de um contexto social muito mais convulsionado e o uso das drogas se configura como um uso libertário e radical do próprio corpo, de tal maneira que, outros temas polêmicos em relação ao uso livre do próprio corpo são tratados pela Geração Beat, além do consumo extravagante de psicoativos, podemos ver abundantemente a abordagem do tema da homossexualidade, da Willer (2010, p. 10), citando o texto The Beat Book do poeta Ginsberg, afirma que o movimento da Geração Beat “se refere a um grupo de amigos que trabalharam juntos em poesia, prosa e consciência cultural desde meados da década de 1940 até que o termo [beat] se tornasse nacionalmente popular no final dos anos 1950” [...] “O grupo consitia em Kerouac, Neal Cassady, William Burroughs, Herbert Huncke, John Clellon Holmes e eu [Ginsberg]”, posteriomente se juntaram a eles “Carl Solomon e Philip Lamantia, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti e Peter Orlovsky”. 19 54 recusa ao trabalho, da prática de pequenos furtos, da liberdade sexual, dentre outros. O desregramento, historicamente, nada apresenta de novo. Marcou a vida de artistas e escritores. A destruição dos limites entre pornografia e alta literatura já havia sido promovida por D. H. Lawrence, James Joyce e Henry Miller, cada qual a seu modo (todos pagando o preço da censura a suas obras). Mas nunca antes foi tão coletivo. A intricada rede de relações corresponde a um grau de sexualização inédito no âmbito de um grupo ou movimento literário. Isso permite falar em revolução sexual (WILLER, 2010, p. 73). Desta feita, a Geração Beat, não está de “fora” dessa tradição “estética” do uso de psicoativos. Queríamos apenas salientar que a interligação desse aspecto com outros temas para nós significa que a Geração Beat está num espaço de transição entre duas tradições modernas de intoxicação voluntária, entre a tradição estética e a tradição política: Um segundo período de intrusão marca o século XX, caracterizando-se por uma nova orientação na utilização das drogas. Outros produtos psicotrópicos encontram nos círculos da juventude ocidental um movimento de revolta que sabem aproveitar. Durante a década de 60, o consumo de droga é reivindicado como um dos veículos de luta contra a ideologia liberal e capitalista (XIBERRAS, 1989, p. 18). De alguma maneira, a Geração Beat faz a ponte geracional entre essas duas tradições de uso de psicoativos, ela representa a transição entre a tradição estética e a tradição política Hoobler (1988, p.18) também reconhece a influência da Geração Beat sobre a juventude na década de 1950 e anos seguintes, em relação ao consumo subversivo das drogas, de forma que “participando nas insurreições que se desenrolam no mundo ocidental, a droga e as práticas que a acompanham passam a revestir um significado marcadamente político” (XIBERRAS, 1989, p. 18). A década de 1960 significou um período de levantes da juventude20, e de movimentos, como os beatnicks, os “Em várias partes do mundo o movimento de 1968 se fez presente, no entanto, em cada país teve motivações distintas, ainda que em certa medida a crítica ao capitalismo apareça em todos: na França onde a Universidade de Sorbonne é fechada e logo em seguida ocupada pelos estudantes, questionava-se a sociedade capitalista assim como a sociedade industrial e de consumo. Nos Estados Unidos a revolta estudantil se volta à recusa a Guerra do Vietnã e ao ambiente vendido pela ideologia oficial. Na Checoslováquia as reformas políticas da Primavera de Praga davam prenúncio à crise do socialismo burocrático de Estado. No Brasil, estudantes lutavam 20 55 hippies, dentre outros, e onde o uso de substâncias psicoativas teve uma conotação amplamente política, onde usar drogas era visto como um ato libertário, que visava expandir a mente e o corpo para além dos limites impostos pela ordem vigente. Passado esse período de rebelião, mas ainda em parte sobre o seu efeito, é a partir da década de 1970 que boa parte do uso das substâncias psicoativas tomam um novo caminho, não por acaso, como analisaremos adiante, este decênio também é um marco no recrudescimento da política proibicionista das drogas. Finalmente, a partir dos anos setenta e do fracasso destas micro-revoluções, a droga, tal como os movimentos que a transportaram, deslocar-se-ão para o centro das grandes metrópoles ocidentais, onde darão origem, cada um à sua maneira, a uma espécie de resistência subterrânea. É durante este período que a droga passa a revestir esse rosto de morte que começa realmente a perturbar a mentalidade e a boa consciência do homem ocidental (XIBERRAS, 1989, p. 18). É sob essa máscara da morte com a qual vestiram determinadas substâncias psicoativas, que convivemos até hoje. Essa máscara da morte, nascida nos escombros de pobreza das grandes metrópoles capitalistas, cuja política proibicionista é, em parte, produto e produtora desde os anos 1970, quando iniciou uma ofensiva que apenas agora, mais de 40 anos depois, começa a dar os primeiros sinais de arrefecimento, com a liberação ainda parca do consumo e da produção de substâncias mundialmente perseguidas, como a maconha. A liberação do consumo de maconha, em alguns poucos lugares do Ocidente, ainda é um passo muito tímido, outras substâncias que foram e são historicamente consumidas por várias culturas, ainda são alvos de políticas globais de proibição. O consumo histórico e cultural de determinadas substâncias mesmo tendo características particulares em cada povo e cultura não as impediu de serem vítimas de política de proibição global. Em relação a substâncias tradicionalmente utilizadas, Zackon (1988) aponta, por exemplo, que o uso do ópio no extremo Oriente, especialmente na China, foi durante certo tempo, quase tão contra a ditadura militar, contra a reforma educacional, que iria mais tarde resultar no fechamento do Congresso e na decretação do Ato Institucional nº 5” (MARTINS FILHO, 1996). 56 tradicional quanto o uso do álcool no Ocidente (que também já foi alvo de políticas proibitivas), ainda podemos citar outros casos como o da folha da coca pelas civilizações andinas, e assim há outros exemplos, como o uso da Cannabis (ou cânhamo) pela civilização indiana. Inmemorial es también el empleo del cáñamo en India […] La tradición brahmánica cree que agiliza la mente, otorgando larga vida y deseos sexuales potenciados. También las principales ramas del budismo celebraron sus virtudes para la meditación. En usos médicos, la planta formaba parte de tratamientos para oftalmia, fiebre, insomnio, tos seca y disentería (ESCOHOTADO, 1996, p. 16). De tal modo que, cada cultura ao longo de processos históricos de séculos (até mesmo milênios), selecionou e soube lhe dar com determinados psicoativos, ainda que estas substâncias, por motivos que aqui analisaremos, hoje tenham sido tornadas ilegais. Dessa forma, entendemos que as políticas que tornaram ilegais a níveis globais a produção, distribuição, circulação e consumo de determinados psicoativos, atingiram diretamente povos e grupos sociais específicos. Isto é, é uma ilusão considerar que políticas de repressão são postas em prática contra algo inerte que é uma determinada substância química, o que se criminaliza, no final das contas, são milhares de pessoas, são as práticas culturais seculares de povos inteiros. É preciso ter em mente que a chamada “guerra contra as drogas” não é uma guerra contra substâncias químicas, mas sim uma guerra contra sujeitos sociais e históricos concretos. Nesse ponto, nos deteremos mais pormenorizadamente adiante. 3.2 A Política proibicionista das drogas: um paradigma no século XX O século XX foi um século de expansão do consumo de substâncias psicoativas, conforme já verificamos anteriormente, acomodou em si, de maneira recalcitrante, diversas tradições de intoxicações voluntárias, passando pela tradição estética até chegarmos à tradição política na década de 1960. E o tipo de uso sombrio marcado pela morte e por seu conteúdo criminal, a partir da década de 1970, 57 predominante até hoje. Assim como outras tradições de uso21. Essa politização e esse conteúdo criminal do uso de substâncias psicoativas se deram, dentre outras coisas, pela crescente proibição destas ao longo do século. O primeiro grande passo vitorioso da política proibicionista no século XX foi a implantação da Lei Seca nos Estados Unidos da América que durou de 1920 a 1933: “Em 1920, o movimento pela temperança finalmente conquistou o seu grande objetivo e conseguiu colocar na ilegalidade a produção e comércio de bebidas alcoólicas” (ARAÚJO, 2012, p. 61). Segundo Carneiro (2013), a grande pretensão da Lei Seca, resultado da pressão de grupos de industriais como Henry Ford aliados a setores puritanos da sociedade, era aumentar a disciplina entre os operários fabris, onde o álcool era visto pelos patrões como um vetor de desordem e desobediência nas fábricas, devido ao seu uso muito difundido entre a classe trabalhadora22. Em relação ao consumo de álcool por operários fabris, é bem conhecida a análise de Engels (2008) em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, onde aponta que o aumento do consumo de álcool se deu juntamente com o processo de industrialização. O álcool, segundo Engels, era um instrumento de alívio para os operários escaparem da dura realidade e sobreviverem, não apenas às rotinas estafantes de trabalho, mas também para aguentar as condições de uma vida miserável nos seus mais diversos aspectos. Iversen também salienta: “O uso excessivo do álcool e o risco de dependência destacaram-se especialmente nas cidades pobres do período industrial dos séculos XIX e XX” (2012, pp.17 -18). Dias (2012, p. 14) aponta pelo menos outras duas tradições do uso da droga vigentes no século XX: uma que busca a satisfação individualista através do ato de consumo e a outra, também enquanto perspectiva de entretenimento, em que os indivíduos tendem a “drogar-se para experimentar um grande ‘barato’, passar o tempo ou anestesiar o tédio” (DIAS, 2012, p. 24). 22 “a influência de um forte movimento puritano de temperança foi capaz de impor uma emenda à constituição norte-americana proibindo o comércio de álcool. Antonio Gramsci, em “Americanismo e Fordismo”, analisou a Lei Seca nos Estados Unidos como uma das manifestações dos mecanismos tayloristas de aumento da produtividade através de um controle estrito não só da linha de produção como também da vida cotidiana operária, especialmente de sua vida sexual e das formas de diversão, onde o álcool passou a ser visto como o pior risco para a perda do autocontrole”(CARNEIRO, 2005, p. 05). 21 58 Desta maneira, a Lei Seca Norte-Americana é o exemplo muito claro do que Foucault caracterizou como a tentativa das formas do poder disciplinar de dominar os mais diversos âmbitos da vida social, em vista de produzir uma individualidade dócil e útil, pois “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2009, p. 118), isto é, perfeitamente adequado aos fins políticos do crescimento da economia capitalista. O crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar, cujas fórmulas gerais, cujos processos de submissão das forças e dos corpos, cuja ‘anatomia política’, em uma palavra, podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições muito diversas (FOUCAULT, 2009, p. 209). Da mesma maneira como os Estados Unidos foram os primeiros a criarem e exportarem o modelo de produção fordista-taylorista, também foram os primeiros a exportar no século XX a política proibicionista das drogas. Antes mesmo da Lei Seca, segundo Araújo (2012, pp. 59-60), o Congresso de Haia realizado em 1911, é tido como um dos marcos da tentativa de implantação da política de proibição, ainda que, em 1902, os EUA já estivessem esboçado sua vontade de proibir o comércio do ópio no congresso em Xangai, onde os objetivos da política proibicionista fracassaram. No entanto, em 1911, em Haia, esse contexto começou a mudar e a política proibicionista começa a se impor em nível internacional: O novo acordo também não satisfez o objetivo americano. Em vez de ‘proibir’ o ópio, os 12 países presentes no primeiro encontro, iniciado em 1911, concordaram apenas em ‘controlar’ sua produção – apenas a exportação seria proibida. A convenção também incluiu a morfina a heroína e a cocaína entre as substâncias controladas. Ainda seria necessários dois encontros (em 1913 e 1914) para conseguir a adesão de 44 países. Ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a convenção foi incluída como um detalhe do acordo de paz consagrado no Tratado de Versalhes, forçando sua adesão por mais alguns países (ARAÚJO, 2012, p. 60). As ideias norte-americanas defendidas em Haia, não possuíam nenhum embasamento científico, sua base argumentativa era moralista, e seu principal ideólogo, tido como o grande idealizador da 59 política proibicionista no século XX, é o Bispo Charles Brent, para quem “sociólogos americanos denominam como um dos pioneiros ‘empreendedores morais’ da ‘cruzada contra as drogas’” (ARAÚJO, 2012, p. 58). A base moralista não se deve pelo fato de se tratar de um religioso, algo que não o impediria de ser um especialista no tema, mas trata-se de fato da ausência de argumentos cientificamente embasados: O mesmo Bispo Charles Brent seria o chefe da delegação americana e presidente da comissão em Xangai e sua linha ideológica seria preservada em toda a sucessão de encontros internacionais para controle de drogas, que aconteceria no século 20, lideradas inequivocamente pelos EUA, que desde aquele momento já eram uma potencia econômica, diplomática e militar. A composição da delegação americana em Xangai – formada pelo Bispo, um missionário cristão e um advogado – já deixava bem claro que a questão era mais religiosa e política do que cientifica, propriamente. A inclusão do estimulante cocaína no conjunto de narcóticos (remédios que dão sono) a ser controlados a partir do segundo encontro, em Haia (1911), é outro indício de que a ciência não influenciava muito naquelas decisões (ARAÚJO, 2012, pp. 58-59). Escohotado (1997) também destaca a ausência quase completa de argumentos científicos que justifiquem a política proibicionista, inclusive em relação ao conceito de “estupefacientes”, espécie de conceito guarda-chuva e pejorativo que os ideólogos norte-americanos do proibicionismo desejavam englobar, nesta única caracterização, substâncias tão distintas como a maconha, a cocaína, a heroína e a morfina, e outras tantas. De tal forma que nos anos 60 o conceito de “estupefacientes” é considerado a-científico pela própria Organização Mundial de Saúde (ESCOHOTADO, 1997, p. 30). No entanto, os acordos em Haia (1911) visavam apenas o controle de parte do comércio, mais especificamente as exportações de algumas substâncias, diferentemente da Lei Seca que previa penas severas àqueles que se dispusessem a produzir em larga escala e comercializar o álcool: Não havia, porém, uma criminalização do uso. Ninguém poderia ser preso por beber ou por portar bebidas alcoólicas, mesmo que elas fossem obtidas com contrabandistas. Na verdade era permitido inclusive fermentar e destilar sua própria bebida, desde que ela não fosse comercializada de forma alguma. Ou seja, a situação legal do álcool nos EUA durante a Lei Seca era semelhante à dos países que, a partir do fim do século 20, descriminalizaram a maconha. O foco da 60 repressão seriam os traficantes – e eles não tardaram a aparecer (ARAÚJO, 2012, p. 61). Em um tempo relativamente curto, milhares de bares foram fechados nos EUA, se impôs rapidamente uma repressão forte ao comércio, o que não impediu de maneira alguma que o número de traficantes e contrabandistas de álcool crescesse rapidamente, e junto com eles uma explosão nos índices de criminalidade, que cresciam na mesma medida em que a guerra pelo controle de territórios e rotas comerciais entre as quadrilhas de contrabandistas aumentava. O que fez disparar os índices de homicídios na maioria das grandes cidades americanas, as quadrilhas com os cofres cada vez mais cheios de dólares graças à mina de ouro que a Lei Seca representava para suas finanças, de tal maneira, que se tornou muito fácil o financiamento de outros tipos de crime, como o jogo, a exploração da prostituição e a extorsão que expandiam suas influências, e também sua ação no mercado legal, para lavagem de dinheiro junto a bancos e empresas de fachadas.23 Com o negócio do álcool cada vez mais lucrativo, visto que a proibição elevava os preços, livra os empreendedores de impostos e outros encargos legais como os direitos trabalhistas de empregados, sobra dinheiro para a corrupção de policiais, políticos, juízes e outras autoridades, ou seja, a proibição foi o paraíso financeiro para a máfia,24 que desde então passou a ser uma força presente em diversos âmbitos da sociedade capitalista. Como argumenta Debord. A Lei Seca norte-americana – grande exemplo das pretensões dos Estados deste século ao controle autoritário de tudo, e dos 23 Qualquer semelhança entre a espiral de violência e corrupção gerada pela Lei Seca norte-americana e os efeitos devastadores causados pela política proibicionista das drogas hoje, não é mera coincidência para a maioria esmagadora dos pesquisadores do tema: “A ‘Lei seca’ norte-americana (Volstead act, de 1919), revogada vinte anos mais tarde, depois de haver alimentado a máfia, gerado uma pavorosa corrupção na polícia na administração da justiça, seria um bom parâmetro para se pensar em torno dos malefícios que a incriminação dos usos de drogas representa” (TORON, 1997, p. 23). 24 O mafioso mais conhecido dessa época foi Al Capone, que lucrou milhões de dólares com a proibição do comércio do álcool, que virou um personagem imortalizado pela literatura e pelo cinema. Até hoje ostenta o título de ter sido o homem a estocar a maior quantidade de álcool já vista, cerca de 50 mil litros guardados de maneira ilegal. Quando foi acusado por uma série de crimes, proferiu uma brilhante frase relembrada por escritores e cineastas até hoje: “Não entendo como alguns escolhem o crime, quando há tantas maneiras legais de ser desonesto”. 61 resultados que disso decorrem – deixou ao crime organizado, durante mais de uma década, a gestão do comércio das bebidas alcoólicas. A máfia, a partir de então rica e experiente, ligou-se à política eleitoral, ao mundo dos negócios, ao desenvolvimento do mercado dos assassinos profissionais, a certos aspectos da política internacional. Durante a Segunda Guerra Mundial, ela foi favorecida pelo governo de Washington em troca de sua ajuda na invasão da Sicília. Ao retornar à legalidade, o álcool foi substituído pelas drogas, que passaram a ser a mercadoria-vedete do consumo ilegal. Depois, a máfia assumiu grande importância no setor imobiliário, nos bancos, na alta política e nos grandes negócios de Estado [...] (DEBORD, 1997, p. 219). No início da década de 1930, a Lei Seca começou a ser bastante contestada, por um lado, em razão do fracasso da política proibicionista que só conseguiu aumentar tremendamente o nível de violência nos anos em que esteve vigorando, por outro lado, porque vários setores da sociedade começavam a se organizar para lutar pelo direito de poder consumir, produzir, distribuir e comercializar livremente o álcool. Segundo Carneiro (2013), iniciou-se uma imensa mobilização popular em prol da liberação do álcool, com passeatas que chegaram a contar com cerca de 50 mil operários nas ruas.25 Por seu turno, a crise de 1929 teria representado um verdadeiro colapso para as contas do governo norte-americano e muitos grupos políticos começaram a defender a ideia de que a liberação do álcool e sua consequente tributação poderiam ajudar a retirar as contas estatais do vermelho. Dessa forma, as eleições presidenciais de 1932 contribuíram para dar um desfecho rápido ao processo: Na eleição presidencial de 1932, o candidato Franklin Roosevelt incluiu a luta contra a proibição entre suas promessas de campanha. Eleito, ele a cumpriu. Com seis meses de mandato, a proibição foi extinta, em 5 de dezembro de 1933. ‘Eu confio no bom senso do povo americano de que ele não trará pra si o infortúnio do uso excessivo de bebidas alcoólicas, para o prejuízo da saúde, moral e da integridade social’, declarou o presidente em um pronunciamento de rádio naquele mesmo dia. Os impostos arrecadados dali em diante com a volta da droga o ajudariam a pagar a conta do New Deal, programa de desenvolvimento que ele lançou para recuperar a economia do país, falida desde a queda da bolsa em 1929. 25 “As atitudes antialcoólicas, apesar do seu triunfo momentâneo no início do século XX, perderam influência no mundo ocidental, onde outras drogas ilícitas (maconha, cocaína e opiáceos), a partir especialmente do fim da Lei Seca, nos anos 30, tomaram o seu lugar como bodes expiatórios farmacológicos e produtos de um rendoso e hipertrofiado comércio clandestino” (CARNEIRO, 2005, p. 6-7). 62 Derrubar a proibição, afinal, foi muito mais simples do que a levantar. Afinal, as pessoas não precisavam imaginar ou especular como seria o mundo sem a lei seca. Elas podiam simplesmente lembrar (ARAÚJO, 2012, pp. 63-64). Se de um lado, o fim da Lei Seca na década de 1930 representou uma grande derrota para os grupos que defendiam as políticas proibicionistas, de outro, em 1936, esses mesmos grupos obtiveram uma grande vitória na convenção de Genebra, que pela primeira vez previa pena para usuários e traficantes de substâncias como maconha, cocaína e heroína: Em 1936, os países, enfim, concordaram em ‘punir severamente, particularmente com prisão’, a produção, a compra, a venda e a posse das substâncias citadas na Convenção – que desde o primeiro dos três encontros passou a incluir a Maconha, então chamada de Indian Hemp. Curiosamente, os EUA não assinaram a convenção desse ano, por considerá-la branda. Apesar de esses tratados não terem sido seguidos com muito afinco pela maioria dos países, as convenções de Genebra foram um divisor de águas na política internacional de drogas, ao prever, pela primeira vez, penas de prisão tanto para traficantes como para usuários (ARAÚJO, 2012, p. 60). Os Estados Unidos não assinaram os termos da convenção por considerá-la branda demais, o que não os impediram de internamente iniciar políticas cada vez mais severas aos usuários e comerciantes daquelas substâncias. O critério para a escolha da criminalização dessas substâncias, como já mencionado anteriormente, não possuía nada de científico. O critério de escolha foi político. Segundo Rodrigues (2008), proibiram-se nos EUA substâncias que estavam ligadas diretamente a grupos étnicos que eram marginalizados na sociedade estadunidense, ou seja, a maconha comumente pelos negros e e a cocaína consumida mais mexicanos e por outros migrantes hispânicos, e o ópio consumido pelos migrantes chineses. Segundo Hoobler (1988, p. 13) os imigrantes chineses teriam introduzido o ópio nos EUA desde meados do século XIX. Já a maconha nas décadas de 20 e 30 “fez sua aparição no cenário norte americano. Inicialmente foi levada em grandes quantidades por imigrantes mexicanos que iam para os EUA à procura de emprego” (HOOBLER, 1988, p. 16). Isto é, a “guerra às drogas” não é travada contra substâncias químicas, mas 63 contra sujeitos sociais concretos, e nesse caso, trata-se de sujeitos sociais bem específicos. Juntamente com a criminalização dessas substâncias, criminalizaram-se povos, classes, grupos sociais inteiros. A proibição das drogas é até hoje nos EUA, o dispositivo de poder acionado sempre que se pretende intervir repressivamente junto a esses grupos. As formas de vigilância e de punição, como analisa Foucault, são bastante criteriosas nas diferentes maneiras de classificar, enquadrar e produzir os diferentes grupos de delinquentes que as relações de poder pretendem construir: A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não ‘reprimiria’ pura e simplesmente as ilegalidades; ela as ‘diferenciaria’, faria sua ‘economia’ geral (FOUCAULT, 2009, p. 258). O escritor William Burroughs, pertencente à já mencionada Geração Beat, na introdução de um dos seus livros mais conhecidos “Junky”, publicado em 1955, escreve sobre o recrudescimento das leis contra as drogas nos Estados Unidos, período que diz respeito às décadas de 1950 e 1960, onde o discurso de que seria necessário um combate ostensivo e repressor às drogas, que incluía a punição dos traficantes e usuários de maneira quase indistinta, foi alimentado pela mídia jornalística, por autoridades policiais e pelos ideólogos26 da política proibicionista: Qualquer lei antinarcótico é tida pelo público em geral como uma coisa boa. Por esse motivo, o campo da legislação dos narcóticos tornou-se um laboratório de testes para uma espécie de lei nova dos EUA, mais comum em ditaduras. Nos estados 26 Podemos citar como um dos grandes ideólogos da política proibicionista das drogas o chefe do Bureau Federal de Narcóticos, criado nos Estados Unidos em 1932 com a finalidade de combater a produção, a circulação e o consumo de drogas, “Harry Anslinger foi o chefe do Bureau desde sua fundação até a década de 50. Ele teve grande influência na formação da opinião pública sobre a maconha no período compreendido nessas duas décadas. Anslinger liderou uma eficiente campanha contra a ‘erva daninha assassina’, cujo uso, segundo ele, levava ao comportamento criminoso e a experimentar drogas mais perigosas. Por sua recomendação em 1937, foi aprovada uma lei contra a maconha. Anslinger também combateu todas as tentativas de classificar os viciados em drogas como doentes. Ele era categoricamente contra a legalização do uso de drogas sob supervisão médica. A única concessão do Bureau feita para os usuários de drogas foi a instalação de um hospital em Lexington, Kentucky, onde os viciados podiam se internar para serem desintoxicados” (HOOBLER, 1988, pp. 16-17). 64 da Louisiana e do Kentucky, ser viciado é crime punível com prisão (na Louisiana, de dois a cinco anos; no Kentucky, um ano). Trata-se de legislação ditatorial, que condena um jeito de ser. Na lei da Louisiana, não são especificados os locais nem as circunstâncias comprometedoras, tampouco é definido o termo ‘viciado’ (BURROUGHS, 2005, p. 251). A distinção entre traficantes e usuários praticamente inexistia, “As autoridades dos Estados Unidos fazem a menor distinção, e as penas por tráfico e por porte são praticamente idênticas” (BURROUGHS, 2005, p. 250). Até mesmo o ato de tentar tratar um drogado era algo perseguido pelas autoridades policiais, “vinte mil médicos foram processados por tentarem tratar drogados, milhares foram multados e presos, entre 1935-1953, no que a associação médica de Nova York chamou de ‘guerra aos médicos’” (GINSBERG, 2005, p. 270) até mesmo o fato de apenas conversar sobre drogas dentro do ônibus ou no metrô, quem o fizesse corria o risco de ser preso, o que o próprio Ginsberg (2005) chamou de “paranoia ditatorial das Agências de Narcóticos” (p. 269). O significado dessa política, para Ginsberg, que não apenas refletia sobre o assunto, mas era sua vítima direta, afirma: A verdade básica e simples é que mancomunada com o crime organizado, a Agência de Narcóticos estava envolvida no tráfico feito por debaixo do pano; portanto, criara mitos reforçando a ‘criminalização’ dos viciados, em vez de proporcionar-lhes tratamento médico. O motivo era puro e simples: a ganância por dinheiro, por salários e pelo lucro da chantagem e das ilegalidades, à custa de um grupo de cidadãos classificados pela imprensa e pela polícia de ‘viciados’ (GINSBERG, 2005, p. 270). A produção de párias sociais na sociedade americana foi o resultado dessa política proibicionista, como afirma Carneiro (2013). Essa política foi exportada para centenas de países e nos lugares onde se instaurou tem produzido sistematicamente efeitos semelhantes. Dessa maneira, observamos sob a ótica foucaultiana, que o fenômeno do poder disciplinar na sociedade capitalista, expresso nos diferentes tipos de punição e vigilância, não tem apenas a função de dizer “não”, mas de produzir e de moldar a realidade, obedecendo suas finalidades estratégicas, “de fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de verdade” (MACHADO, 2012, p. 20). Assim como, “o poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção do 65 poder e do saber” (MACHADO, 2012, p. 24). Deste modo, gestou-se nos EUA uma “nova economia do poder de castigar” (FOUCAULT, 2009, p. 68), em relação a usuários e comerciantes de distintas substâncias, que a partir de então classificada pelo rótulo simples e negativo de drogas. Porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação. Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global das ilegalidades (FOUCAULT, 2009, p. 258). Nos anos do pós-guerra, a ONU recém-criada, serviu como mediadora para a imposição da política proibicionista para o mundo todo a partir de suas convenções organizadas nos anos de 1961, 1971 e 1988. Em 1961, as resoluções tomadas nesse congresso foram no sentido de tentar reprimir a produção global de algumas substâncias, especialmente a oferta: “a convenção também criou, pela primeira vez, uma escala para enquadrar as substâncias em diferentes níveis de controle (com a maconha e a folha de coca entre as mais perigosas)” (ARAÚJO, 2012, p. 70). Já no congresso de 1971, quando se tratou de incluir novas substâncias nas listas das tidas como perigosas, as resoluções do congresso foram bem mais brandas, não existe mistério nenhum em relação a essa mudança de postura sensível. No congresso de 1971, a principal discussão foi em torno das drogas sintéticas, isto é, das drogas fabricadas pelos grandes laboratórios farmacêuticos, (estimulantes, anfetamínicos, sedativos), que tiveram uma larga popularização na década de 1960: Como o alvo dessa convenção eram drogas produzidas por indústrias importantes para a economia de países desenvolvidos (e politicamente influentes na ONU), os controles impostos pelo documento são muito mais brandos do que da convenção de 1961 (ARAÚJO, 2012, p. 77). Novamente, temos diante de nós mais uma prova de que a classificação das substâncias tidas como perigosas, não leva em conta nenhum critério médico, os critérios na verdade são os interesses políticos e econômicos das nações e grupos socialmente hegemônicos, dentre os quais, os Estados Unidos ocupam o lugar central. Apesar da convenção de 1971 não ter expandido vorazmente sua perseguição às substâncias sintéticas, isso não impediu que a escalada global de 66 “guerra às drogas” ganhasse força nesse período, é claro que o alvo não eram as drogas da indústria farmacêutica europeia e norte-americana, mas continuou sendo as substâncias étnicas, que eram identificadas com os povos do terceiro mundo. Com o governo Nixon, na década de 1970, as drogas foram consideradas o inimigo número 1 da sociedade americana: Nixon foi o primeiro presidente norte-americano a fazer um esforço concentrado no sentido da internacionalização do combate as drogas, com consequências indesejáveis para muitos países e efeitos catastróficos para alguns, como a Colômbia e o Afeganistão que já se encontravam divididos por conflitos e possuíam governos brutais, porém débeis. A partir da década de 1970, os esforços para coagir ou subornar outros países para que aceitassem um regime global de controle de drogas baseado nos Estados Unidos se intensificaram as expensas do exame atento de modelos alternativos, como o britânico, que já foi diferente e bem-sucedido (WOODIWISS, 2007, p. 23). O governo Nixon empreendeu uma verdadeira campanha de guerra contra as drogas. Essa campanha, que não se restringiu apenas às suas fronteiras, mediante diplomacia, ameaças de embargos, subornos e outras táticas, conseguiu com que a maioria dos países, sobretudo no Ocidente, adotassem a mesma política em seus territórios. A perseguição às drogas que desde a década de 1930 já era bastante ampla, se recrudesceu e se expandiu para outros países no mundo, os resultados dessa extrema proibição, e da criminalização de milhões de pessoas, sejam usuários ou traficantes, não foi muito diferente dos resultados da Lei Seca na década de 1920, ou seja, não conseguiu acabar com o consumo, nem diminuiu a oferta, pelo contrário, todas as pesquisas mostram que a partir da década de 1970, o acesso às drogas se tornou muito mais fácil em qualquer grande cidade do Ocidente, como aponta Woodiwiss (2007), e os únicos resultados realmente concretos que atingiram foram a produção de uma massa imensa de encarcerados, a elevação gigantesca dos índices de homicídios e de outros tipos de crime que passaram a ser financiados pelo dinheiro do tráfico: As movimentações para a violência relacionada com o tráfico de drogas permaneceram em geral idênticas às que acompanharam a proibição de bebidas alcoólicas: proteção de 67 território ou mercadoria do alcance de rivais, desestímulo a informantes ou roubo de dinheiro e drogas de outros traficantes. A polícia avalia que mais de 100 dentre os 690 homicídios ocorridos em Detroit em 1971 estavam relacionados com o tráfico de heroína. Em 1981, houve em Nova York 393 assassinatos ligados a drogas, inclusive 160 nos quais vendedores de drogas foram mortos durante assaltos. A partir de meados de 1970, a taxa de homicídio do sul da Florida saltou mais de 400% em poucos anos, especialmente devido à violência ligada ao tráfico. Em 1981, o médico legista de município de Dade foi obrigado a alugar um caminhão refrigerado para lidar com o aumento do número de cadáveres, e já então Miami havia se tornado uma das cidades mais perigosas do mundo. Nos últimos anos houve outro recrudescimento da violência relacionada com o tráfico de drogas (WOODIWISS, 2007, p. 21). Foucault, em “Nascimento da Biopolítica”, elenca alguns dos efeitos da política proibicionista das drogas: Primeiro, isso aumentou o preço unitário da droga. Segundo, beneficiou e fortaleceu a situação de monopólio ou de oligopólio de certo número de vendedores, de grandes traficantes e de grandes redes de refino e distribuição de droga acarretando, como efeito de monopólio e oligopólio, um aumento nos preços, na medida em que não se respeitavam as leis do mercado e da concorrência. E, por fim, terceiro, outro fenômeno mais importante no nível da criminalidade propriamente dita: o consumo da droga, pelo menos no caso dos intoxicados graves e de certo número de drogas, essa demanda de droga é absolutamente inelástica, ou seja, qualquer que seja o preço o drogado vai querer encontrar sua mercadoria e estará disposto a pagar qualquer preço por ela. E é essa inelasticidade de toda uma camada de demanda de droga que vai fazer a criminalidade aumentar – claramente falando -, vai-se assaltar alguém na rua para lhe tomar dez dólares, para comprar a droga de que se necessita. De modo que, desse ponto de vista a legislação, o estilo de legislação, ou antes, o estilo de enforço da lei que havia sido desenvolvido no decorrer dos anos 1960 revelou-se um fracasso sensacional (FOUCAULT, 2008, p. 351352). O paradigma proibicionista não vai servir apenas como prerrogativa política para a intervenção policial somente nos guetos norte-americanos dominados pelas quadrilhas que se beneficiam com a proibição, mas servirá também como discurso de legitimação para intervenção militar em diversos locais do globo. Woodiwiss (2007) aponta como a política proibicionista das drogas justificou intervenções militares no sudeste asiático, em países como a Birmânia, Laos, Camboja e Vietnã (ligados à produção de papoula e seus derivados como heroína e morfina), e principalmente na América do Sul em países 68 como Peru, Bolívia e Colômbia (ligados historicamente à produção da folha da Coca, matéria prima de produção da cocaína) da mesma forma aconteceu na Nigéria (país encarado como mediador entre a produção sul-americana de cocaína e sua exportação para Europa). Os Estados Unidos, especialmente seus tentáculos armados e repressores: CIA, FBI e forças armadas, estão ligados a operações militares em diversas partes do mundo, não apenas para repressão da produção global de drogas, mas para a própria administração dos negócios. Ainda, segundo Woodiwiss (2007), os EUA comumente se associam a grupos de traficantes para combaterem governos que não estejam alinhados com seus interesses, foi o caso da aliança da CIA com grupos anticomunistas do sudeste asiático, que se utilizavam do tráfico para financiamento: Armadas originalmente pela CIA e seus aliados os nacionalistas chineses anticomunista do kuomintang (KMT), as operações de Khun Sa [tido como um dos maiores traficantes de ópio do mundo] foram protegidas tanto pelo governo da Birmânia quanto da Tailândia, e se expandiram exponencialmente nas décadas de 1970 e 1980. No final da década de 1980, ele controlava muitas regiões de cultivo de ópio, assim como as rotas comerciais internas da Birmânia e as refinarias que convertiam a matéria-prima em heroína (WOODIWISS, 2007, p. 188). Da mesma forma, Roio (1997) demonstra à associação da CIA com traficantes latino-americanos, facilitando a circulação de drogas no continente, a fim de levantar fundos, para combater governos que não estivessem alinhados com os interesses de Washington: Os que possuem boa memória se recordarão do processo contra o coronel Oliver North, que terminou com sua condenação. Os atos deste processo demonstraram com nomes e fatos que por vários anos a CIA (Central Intelligence Agency) e a DEA [Departamento Antinarcóticos Americano] estiveram em contato com os chamados cartéis colombianos, protegendo a entrada de drogas nos Estados Unidos. Tal operação servia para encontrar fundos ilegais para financiar as forças opositoras ao governo Sandinista da Nicarágua. Lembremos também que estes fatos foram provados por uma comissão do senado, presidida pelo já citado senador John Kerry. (ROIO, 1997, p. 120-121). 69 Tanto Roio (1997) como Woodiwiss (2007) demonstram também que os fluxos dos capitais internacionais do tráfico são escoados para bancos norte-americanos. Os EUA são o país que mais lucra com o negócio mundial das drogas, tudo indica que sua posição mundial de proibição diz respeito a uma ampla estratégia comercial para manter as redes de oligopólio, já mencionadas por Foucault, sob seu controle. Dessa forma, concluímos que dialeticamente articulada à repressão interna, a política proibicionista como paradigma que aos poucos se impôs para o mundo todo, funciona como braço das políticas imperialistas dos EUA, como justificativa política para intervenções militares em diversas partes do mundo, e como um lucrativo nicho comercial mantendo o monopólio com a força das políticas proibicionistas. A guerra às drogas, articulada para dentro e para fora da nação, serve como discurso de legitimação para repressão dos grupos internos socialmente marginalizados, e para intervenção externa junto a nações a que se pretende manter sob a tutela imperial, dessa maneira, não é absurdo dizer que, pelo menos em relação à geopolítica mundial, a política de “guerra contra as drogas”, representou e ainda representa o equivalente ao discurso de “guerra ao terror” promovido pela maior potência militar do mundo contra os inimigos da sua política nas partes mais distintas do globo. A política proibicionista alinhada com os interesses norteamericanos continuou ao longo dos anos sendo referendada e difundida pela ONU nas convenções de 1988, de 1998 e de 2009, ainda que, contraditoriamente, em cada uma dessas convenções se constate que praticamente nenhuma das metas estabelecidas pela conferência anterior tenha sido alcançada. A política proibicionista e a guerra contra as drogas nunca são postas em questão, isto é, de maneira quase esquizofrênica, repete-se rigorosamente os mesmos métodos querendo sempre chegar a resultados diferentes. Segundo Carneiro (2013), a guerra às drogas é possivelmente a guerra mais longa e com maior número de encarcerados da época moderna. Os Estados Unidos são o país com o maior número de 70 encarcerados do mundo, chegando a possuir cerca de 25% de todos os presos do planeta, cuja maioria são negros e hispânicos. Wacquant (2008) afirma que a estratégia de encarceramento em massa está articulada com o avanço das políticas neoliberais, onde sistematicamente há uma tendência de substituir o Estado de bem estar social vigente nos trinta anos do pós-guerra por um estado penal, cujas medidas policialescas, seriam as escolhidas por excelência para mediação da totalidade dos conflitos sociais, de maneira que, isso se traduziria para as camadas mais pobres da sociedade e socialmente mais vulneráveis, em relação ao acesso a direitos fundamentais, como uma política punitiva. A agenda neoliberal, dessa forma, é instituída em larga escala articulada com a política de punição aos pobres e de encarceramento em massa tendo como um dos vetores principais a política de guerra às drogas. Países periféricos como o Brasil importaram de maneira mais enfática a política proibicionista, a partir de tratados assinados na década de 1970, sob pressão norte americana e de sua política de War on Drugs: A partir de 1976, alinhando-se à orientação internacional da War on Drugs, traduzida em tratados que assinou, o país [Brasil] escolheu principalmente o caminho repressivista, punindo com penas privativas de liberdade tanto usuário como o comerciante de drogas, muito embora distinguindo a extensão das penas entre essas duas categorias. Contribui para essa política não apenas a influência dos organismos internacionais – notadamente o compromisso norte-americano de perseguir a qualquer custo a erradicação do crime [...] o Brasil viu-se compelido a adotar o discurso proibicionista (IVERSEN, 2012, p. 109). Os resultados alcançados no Brasil não foram diferentes dos alcançados pela maioria esmagadora dos países que adotaram essa mesma postura, semelhantes aos resultados norte-americanos, que apesar de seu “fracasso” visível, pelo menos em relação aos seus objetivos declarados, continua buscando impor seu modelo repressivo a nível mundial: O resultado da política repressiva é visível. O Brasil, no final de 2011, ultrapassou a marca de meio milhão de presos, situando-se entre os cinco países com maior taxa de encarceramento do mundo. Cerca de 40 por cento desse 71 contingente não tem ensino fundamental completo, e nada menos que 25 por cento de toda a população carcerária é representada por indivíduos com ligação ao tráfico ou condutas similares. E os números aumentam consideravelmente a cada ano, em outro extremo, os Juizados Especiais Criminais, competentes para o julgamento dos usuários, tem serviço de sobra o que demonstra que é imponderável (mas certamente muito alto) o índice de consumidores em todos os quadrantes do país (IVERSEN, 2012, p. 112). Da mesma forma que nos Estados Unidos, as políticas proibicionistas são articuladas com a punição em larga escala de grupos socialmente marginalizados. Em suma, segundo Soares (2000, p. 267), as vítimas do tráfico no Brasil são “a maior parte, homens, jovens, pobres e não-brancos”, sendo que, sobretudo, pela condição brasileira de país capitalista periférico, a política proibicionista teve resultados catastróficos nas últimas décadas principalmente para “aqueles que moem no aspro” (ARANTES, 2004, p. 22). O tráfico de drogas no Brasil ganhou grandes proporções, em algumas cidades como no Rio de Janeiro e em São Paulo, cresceu de tal forma a ganhar status de poder paralelo. Ainda segundo Soares (2000), as quadrilhas que agem associadamente com autoridades policiais, com autoridades políticas e com o sistema judiciário (nada diferente do que vimos em relação ao exemplo da Lei Seca dos Estados Unidos, ou mesmo das políticas proibicionistas das drogas), e possuem dinheiro o suficiente para controlar militarmente territórios imensos nas principais cidades brasileiras, sendo que o resultado da luta fratricida dessas quadrilhas entre si e com as forças policiais, colocam o Brasil na liderança de muitos rankings mórbidos mundiais. Soares (2000, p. 267) afirma que em torno de 65% dos homicídios na cidade do Rio de Janeiro estão ligados ao tráfico de drogas e cita pelo menos treze pontos que colocariam o tráfico de drogas quando associado ao tráfico de armas como a forma de crime mais dinâmica e perigosa que o Brasil conhece. 1. Provocam um assustador número de mortes [...] 2. Desorganizam a vida associativa e política das comunidades [...] 3. Impõe um regime despótico as favelas e bairros populares [...] 4. Recrutam forças de trabalho infantil e adolescente para descarta-la pela via previsível mais incontornável da morte prematura [...] 5. Disseminam valores belicistas contrários ao universalismo democrático e cidadão [...] 6. Destroem estruturas familiares [...] 7. Degradam a 72 lealdade comunitária tradicional [...] 8. Fortalecem e disseminam o patriarcalismo, a homofobia [...] 9. Estimulam relações que tendem a estigmatizar a pobreza e os pobres [...] 10. Promovem o entrelaçamento entre o chamado crime de colarinho branco, praticados por membros das camadas médias e das elites, e a criminalidade que prospera nas favelas e nos bairros populares [...] 11. Atuam como fonte de muitas outras atividades criminosas [...] 12. Induzem muitos policiais à corrupção [...] 13. Penetram, pela via das drogas, em toda sociedade e no Estado, como nenhuma outra modalidade criminosa (SOARES, 2000, pp. 267-277). Zaccone (2013) indica que a letalidade do sistema penal das proibições das drogas no Brasil, demonstrando em seu estudo sobre os autos de resistência no Rio de Janeiro, provando que há uma matança patrocinada pelas forças estatais e justificada sob os auspícios da legalidade, com aval do Ministério Público, Justiça e demais órgãos, desde que se prove a ligação do executado com algum tipo de crime, em especial com o tráfico de drogas, mesmo que esse sujeito tenha sido baleado pelas costas. Com o apoio de todo aparelho judiciário, há o arquivamento em massa de processos onde se anexam a ficha criminal do sujeito assassinado pela polícia para justificar a sua eliminação. O panorama traçado por Zaccone (2013) em relação ao patamar do extermínio legalizado, em que a situação de guerra as drogas alcançou no Brasil, ou pelo menos no Rio de Janeiro, é muito semelhante àquilo que o filósofo Giorgio Agamben caracterizou como totalitarismo moderno27: O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que eventualmente não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. [Grifos meus] (AGAMBEN, 2004, p. 13). Ainda segundo Zaccone (2013), a política de guerra às drogas no Brasil mata mais gente do que todos os países juntos onde existe a pena de morte. Para aprofundar a análise de totalitarismo e Estado de exceção à moda brasileira, ver Arantes (2004; & 2007). 27 73 No entanto, não são apenas as grandes metrópoles do sudeste brasileiro que são afetadas pelo problema do tráfico. Durante a década de 1990 e principalmente na primeira década dos anos 2000 o problema se alastrou por diversas regiões do país, e a região onde mais cresceu o tráfico e a violência no país foi o Nordeste brasileiro. Nesse período, as estatísticas que dizem respeito a homicídio passaram a ser lideradas por capitais de estados nordestinos. Segundo o Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEVUSP), 28 no período que vai de 2000 a 2006, a região Nordeste teve um crescimento de 57,09% no índice de homicídios, sendo a região do país que mais cresceu nesse período. Das cinco capitais que mais cresceram o índice de homicídios à mesma época, quatro delas se encontram no Nordeste e São Luís é uma delas. A realidade do estado do Maranhão não é muito diferente dos outros estados do Nordeste. Ainda segundo NEVUSP, a taxa de homicídios cresceu em São Luís 80,32% nos anos de 2000 a 2006, sendo a quinta capital brasileira que mais cresceu em número de homicídios. E teve um crescimento de 267,4% em relação a homicídio por arma de fogo nos anos de 2000 a 2010. Em 2008, a Polícia Federal estimou que o estado consumidores de merla do 29 Maranhão estava entre os maiores do país. Dias (2009) demonstra como o consumo de merla é um dos motores de violência no bairro da Liberdade, considerado um dos mais violentos da capital maranhense: “Além das armas, a presença das drogas, especialmente da merla, consegue de diversas formas contribuir para a desarticulação da juventude desse bairro ao mesmo tempo que oxigena a guerra interna” (DIAS, 2009, p. 129). Para Dias, a guerra interna no bairro da Liberdade, isto é, a interminável matança mútua entre inimigos residentes no mesmo bairro, é alimentada pelo tráfico de drogas e pelas autoridades de segurança que estimulam a violência endógena nos bairros de periferia propagando um discurso de que se trata de Fonte: www.nevusp.org Segundo Araújo (2012), a merla é um subproduto da cocaína, de consistência pastosa. Consumida de forma semelhante ao crack, sendo fumada de forma pura ou misturada com maconha ou tabaco. 28 29 74 bandidos exterminando-se uns aos outros. Isso tudo acaba submetendo as populações desses bairros a um cotidiano com características genocida onde as vidas de pessoas cada vez mais jovens são ceifadas, seja mediante a guerra interna ou pelas mãos da própria polícia: Membros de grupos rivais que são presos e jogados na mesma cela, solturas inesperadas de jovens jurados de morte dentro do bairro, a política de ‘lavar as mãos’ por parte da polícia diante dos conflitos da ‘guerra interna’ que envolve estes jovens, são alguns indícios que apontam para a hipótese de que a ‘mão invisível’ do Estado, através de seu ‘braço de ferro’ contribui para o acirramento desses conflitos (DIAS, 2009, p. 83). O Nordeste é a região onde há o maior número de adolescentes consumidores de crack e similares (FIOCRUZ, 2012), surpreendendo as expectativas dos pesquisadores que anteriormente acreditavam que era o Sudeste que liderava esse ranking. Segundo a divulgação na imprensa da Delegacia de Entorpecentes, em São Luís o volume de apreensão de crack entre os anos de 2009 e de 2010 cresceu 540%30. As seguidas rebeliões nos presídios maranhenses, nos anos de 2010 e sobretudo, a crise que se instaurou no Complexo Penitenciário de Pedrinhas no ano de 2013, demonstram o quanto se fortaleceram e o quanto cresceram as quadrilhas que controlam o tráfico na capital e no estado do Maranhão. Na primeira década dos anos 2000, houve alguns estudos nesse campo que tentaram abordar a problemática da violência no Estado do Maranhão. No entanto esses estudos se centraram na capital maranhense. Além do já citado estudo de Dias (2009) sobre o bairro da Liberdade e o trabalho de conclusão de curso do autor destas linhas (SILVA, 2010), há o estudo de Marmanillo (2007) que versa sobre o medo na imprensa ludovicense ligado a notícias sobre violência durante o ano de 2004. E o estudo de Costa (2008) sobre atos de linchamentos e representações da violência na imprensa de São Luís. Desconhecemos a existência de estudos que tenham analisado a problemática da droga e da violência nas pequenas cidades do interior do Estado. Esse é um dos grandes desafios desse trabalho, onde além da escassez de trabalhos semelhantes, contamos também com a 30 Notícia divulgada em v1.portalhoje.com. Acessada em janeiro de 2014. 75 inexistência de informações de cunho estatístico sobre as cidades do interior, os órgãos de segurança divulgam quase que exclusivamente apenas informações sobre a capital São Luís. A polícia civil no Maranhão trabalha em tamanha precariedade que não existem sequer delegados em 130 dos 217 munícipios maranhenses, muito menos informações e estatísticas organizadas e disponíveis para analisarmos. Mesmo em Pinheiro, que é um munícipio polo da região e possui um delegado titular, se encontra numa situação precária, pois seu delegado tem que atender demandas de toda a Baixada Maranhense, e assim é em todas as Delegacias Regionais, o que torna caótica a situação da polícia civil mesmo em munícipios polos. A segurança nas cidades do interior maranhense fica a cabo quase que exclusivamente da Polícia Militar, que, mesmo ela, possui um dos menores contingentes do país, sobretudo quando nos referimos à relação de policiais por habitantes. Até o trabalho investigativo é realizado pela PM, pelo chamado serviço velado, prática inconstitucional, porém largamente praticada e aceita no Maranhão. Mesmo a ausência de estatísticas mais específicas sobre a cidade de Pinheiro, não impede que constatemos que houve um aumento da violência e do tráfico de drogas nos últimos anos. Segundo informações do mapa da violência no Brasil de 2013, Pinheiro possuiu uma média entre os anos 2008 e 2010 de 23,7 assassinatos por arma de fogo a cada 100 mil habitantes, uma taxa não muito distante da média da capital São Luís que nesse mesmo período alcançou 29,7. Tanto Pinheiro como São Luís alcançaram uma média de homicídios superior à cidade do Rio de Janeiro cuja taxa de assassinato por arma de fogo em 2010 foi de 23,5 para cada 100 mil habitantes.31 Ao entrevistarmos as autoridades policiais em Pinheiro, todas são unânimes em dizer que a violência e o tráfico tem crescido bastante nos últimos anos na cidade. A rebelião na delegacia regional de Pinheiro no ano de 2010, com 9 mortos sendo 6 deles decapitados, revela também a situação de colapso no sistema penitenciário, não exclusiva a Pinheiro, 31 Informações disponíveis em: www.mapadaviolencia.org. 76 mas retrato de todo o estado do Maranhão. Para as autoridades policiais de Pinheiro, as mesmas quadrilhas que dominam o sistema carcerário em São Luís e se digladiam pelo controle do tráfico na capital maranhense, possuem ramificações em Pinheiro e sua luta fratricida já deixou suas vítimas pela cidade, com execuções e assassinatos por encomenda nos bairros onde há grande incidência de tráfico. Para as autoridades, a maior causa das ramificações dessas quadrilhas para as cidades do interior é o sistema carcerário, porque a maioria dos presos do interior cumprem pena na capital, e ao adentrar os presídios da capital maranhense, entram em contato com as quadrilhas que dominam o sistema penitenciário e nesse contexto de guerra deflagrada, são praticamente obrigados a escolher um lado. Quando saem do sistema penitenciário, seja por fuga ou de maneira legal, são obrigados a manter as redes de relações que estabeleceram dentro das prisões. Obedecendo a hierarquia das quadrilhas, passam a reproduzir do lado de fora a hierarquia a qual foram introduzidos dentro do sistema carcerário. Não há dúvida que o tráfico de drogas apesar de não ser o único tipo de crime cometido por essas quadrilhas, é a grande fonte de renda que mantém essa grande rede criminal, que vai desde os pequenos traficantes da cidade de Pinheiro, passando pelos traficantes encarcerados no sistema penitenciário, pelos traficantes maiores importadores e exportadores que possuem “costas-quentes”, isto é, que têm aliados e sócios não apenas na polícia, mas no judiciário e na política e por isso raramente são presos, passando ainda pelas redes de lavagem de dinheiro até chegarmos aos grandes bancos do sistema financeiro norte-americano. Toda essa rede criminal das drogas que movimenta mais dinheiro na totalidade do globo que qualquer outra mercadoria, trata-se do negócio mais lucrativo do mundo, seguido pelo comércio de armas, figurando o petróleo em terceiro lugar (ARAÚJO, 2012). Se a política proibicionista das drogas, bem como a de proibição as bebidas alcoólicas não trouxe nenhum resultado positivo para a 77 sociedade, e as autoridades continuam adotando-a como paradigma global de gestão do problema, diante de todo quadro descrito até aqui da situação do tráfico no Brasil e no mundo, nos resta afirmar, na esteira da maioria dos principais estudiosos da temática, que as políticas proibicionistas das drogas não se configuram como uma política de defesa à saúde pública, mas uma política que visa manter o status quo da sociedade, perpetuando as condições de dominação das classes socialmente hegemônicas: As análises dos mecanismos de poder envolvidos no discurso de “combate às drogas” indicam formas de um processo disciplinar referentes a um contexto autoritário, discriminatório e repressivo. Seus textos contribuem com o trabalho político (senão policial) de sujeição do cidadão a um determinado ideário de (pseudo) harmonia social, ajudando a encobrir as contradições inerentes às sociedades modernas e sustentando relações de forças estabelecidas entre certos grupos sociais. Esse processo contrasta em particular com a abordagem do “problema de drogas” que o situa no âmbito da saúde pública, como a ameaça não à “ordem social”, mas à saúde da população no sentido amplo, visando primeiramente os danos causados pelos abusos de álcool e de fumo (BUCHER, 1996, p. 40). O discurso de punição às drogas é, portanto, uma tecnologia de poder (FOUCAULT, 2009), que visa manter os interesses dos grupos socialmente hegemônicos da sociedade, enquanto serve de instrumento para intervenção punitiva e de disciplinarização dos grupos marginalizados. De tal maneira que, no Brasil, a política de guerras às drogas tem se traduzido, ao longo dos anos, como política de criminalização da pobreza. O discurso em pauta não se constitui, portanto, como uma concepção provisória e aprimorável, nem sequer como um conhecimento objetivo e instrumentalizante ou uma idealidade discursiva sobre drogas e seus inegáveis malefícios. Seus condicionamentos insidioso, indubitavelmente eficaz pela impregnação maciça da opinião pública que opera, atém-se à meta de disciplinarização dos cidadãos, na medida em que as ações preconizadas compactuam com normas de condutas constitutivas de um amplo projeto regularizador das relações sociais. Apontando a possibilidade e a ameaça de condutas desviantes, justifica-se a prescrição normativa que desencadeia o controle, a intervenção e a exclusão (BUCHER, 1996, pp. 4041). A política proibicionista e de guerra contra as drogas que “revelam igualmente desorientação na forma brutal como resolvem autorizar 78 determinadas formas de intoxicação, com exclusão dos restantes” (XIBERRAS, 1989, p. 14), não pode ser de maneira tão simplista considerada fracassada ou ineficaz; na verdade, ela é bastante eficaz de acordo com seus interesses mais subterrâneos, que é manter um mercado lucrativo e bilionário à margem da lei e, portanto, distante do controle público. Um mercado onde a concorrência se resolve com sangue e não há nenhum tipo de controle de qualidade da mercadoria a ser vendida, de forma que, independente da relação oferta-demanda, a proibição garante sempre preços bastante rentáveis para as redes de monopólio. Isso se observarmos do ponto de vista econômico. Analisando a partir dos desdobramentos políticos, vemos que o tráfico constitui, na prática, uma justificativa política de intervenção cotidiana da polícia junto às populações pobres no Brasil. Esta intervenção, que podemos dizer que no seu epicentro estão as camadas mais jovens, são vítimas de uma guerra declarada aos pobres disfarçada de uma guerra às drogas. Esse longo percurso que construímos até aqui serviu-nos como indicativo para levantarmos questões centrais em torno do nosso objeto, seria muita displicência para com a complexidade do objeto, se quiséssemos abordar essa problemática e ignorar os problemas globais e nacionais que a elas estão ligadas, “A droga é talvez o tema que melhor traduz a sociedade contemporânea – abrangente, multifacetada, lucida e cruel, cultural e infra-estrutural” (HECK, 1997, p. 16). Não podemos investigar essa questão se ignorarmos por completo qualquer um desses patamares de análises. A contextualização nos serviu para entendermos que a proibição não é uma política neutra, mas que foi pensada para fins específicos. Entender como isso se dá em nosso campo de análise é o desafio que tentaremos responder no próximo capítulo em que refletiremos sobre os espaços da cidade que são ocupados por traficantes e sofrem cotidianamente com a intervenção policial. Como é a sociabilidade nessas localidades? Como é o cotidiano das pessoas que usam drogas frequentemente? Como os policiais enxergam usuários e traficantes? Há 79 diferenças na visão dos repressores entre esses dois atores? Quais são as particularidades do tráfico numa cidade de médio porte como Pinheiro? Em suma, quais são os aspectos universais que discorremos até aqui sobre o tráfico e a política proibicionista como elas se articulam nesse microcosmo social para dar formas às particularidades do nosso objeto de estudo? 80 4. DESDOBRAMENTO DA POLÍTICA PROIBICIONISTA: A “Rua da Lama” e a territorialização do tráfico na cidade de Pinheiro A cidade de Pinheiro, localizada na Baixada Maranhense32 às margens do Rio Pericumã, conta com uma população de 78.147 habitantes.33 Dentre os 21 munícipios que compõe a região, Pinheiro é a cidade que possui a maior população e estrutura urbana, concentrando a maior parte dos órgãos públicos e serviços que atendem aos demais munícipios.34 No entanto, o fato de Pinheiro ser a cidade polo da região não impede que seja afetada pelos problemas socioeconômicos característicos da Baixada: A Baixada Maranhense é uma região com diversas intervenções antrópicas sem visão de sustentabilidade, alto índice de pobreza e baixos indicadores de desenvolvimento humano (IDH) e os piores índices sociais do Maranhão, mas percebe-se ao mesmo tempo a riqueza em recursos naturais contrastando com a falta de recursos básicos como postos de saúde, escolas, moradia apropriada à situação de segurança e higiene sanitária, estradas que trafeguem o ano todo, condições de higiene, dentre outros aspectos (FARIAS FILHO et al., 2012, p. 36). Dessa forma, a cidade de Pinheiro se localiza na região mais pobre de um dos estados mais pobres do Brasil. A Baixada Maranhense é carente de serviços e a maior parte de sua população não tem acesso a direitos básicos, como educação pública de qualidade, saúde, e até mesmo água potável. O fato de Pinheiro não ter grandes indústrias, e nem um grande contingente populacional, pode soar estranho, à primeira vista, a análise da problemática da droga e do tráfico nessa cidade. Isto porque Pinheiro não parece ser um cenário típico das abordagens mais comuns sobre essa problemática no Brasil, onde tem 32 “A Microrregião da Baixada Maranhense é formada por um conjunto de 21 munícipios [...] população total de 556.000” [...] “juntamente com outras cinco microrregiões compõe a Mesorregião Norte Maranhense” (FARIAS FILHO, 2012, p. 19). 33 Fonte IBGE censo 2010. 34 Um exemplo disso é que se localiza em Pinheiro a Regional Estadual de Educação e Saúde, órgãos responsáveis por administrar todas as respectivas unidades da região. O que, infelizmente, não significa que tais serviços sejam oferecidos em quantidade e qualidade que necessitam os cidadãos pinheirenses, ou demais cidadãos que a eles recorrem. A mesma coisa pode-se aplicar aos outros órgãos importantes como a Delegacia Regional, e o 10º Batalhão da Polícia Militar que atende toda a Baixada, dentre outros órgãos públicos. 81 se voltado prioritariamente para esse fenômeno nas grandes metrópoles brasileiras e suas periferias35. No entanto, a imagem idílica que poderia nos despertar essas pequenas cidades do interior de outrora, que nos remeteria à tranquilidade e vida pacata, trata-se de uma quimera que se dissolveu no ar. Hoje as cidades do interior são cenários de problemas globais, sobretudo, no caso de Pinheiro, onde estão presentes o tráfico de drogas, violência, migração, urbanização e desemprego. Onde antes se encontrava tranquilidade é o aumento da violência e do medo que se constata hoje nessas cidades, conforme nos apontam os estudos ainda incipientes da região36: Em toda a extensão da Baixada a população vem aumentando e, com isso, houve o aumento da violência e tal fato é relatado por autoridades assim como os demais habitantes. Em Olinda Nova do Maranhão que possui uma das menores sedes municipais da Baixada, por exemplo, de acordo com a prefeita Conceição de Maria Cutrim, ‘as pessoas tem medo de sair de casa’. A referida realidade é comum aos demais munícipios da Microrregião, especialmente nas maiores cidades como é o caso de Pinheiro, Santa Helena, Viana e São Bento, houve nos últimos anos um assustador crescimento no uso de drogas ilícitas de assaltos e de assassinatos (FARIAS FILHO et al., 2012, p. 37). Lafontaine (2012, et al) argumentam que um dos fatores que contribuiu para o aumento da violência em cidades da Baixada Maranhense, como Pinheiro, foi a rápida urbanização sofrida nas últimas décadas, resultado de uma migração de um contingente populacional superior à oferta de empregos nessas cidades, o que faz aumentar a pobreza e a violência. A migração aumentou devido à construção da rodovia MA 014 na década de 1960, que liga boa parte dos munícipios da Baixada à capital Maranhense, e se elevou bastante Podemos citar os estudos de Alba Zaluar (1994; 1996; 1998) na cidade do Rio de Janeiro, como sendo um dos clássicos sobre o tema. Podemos citar ainda o romance Cidade de Deus de Paulo Lins, publicado em 1997 pela Companhia das Letras, que retrata como o tráfico se desenvolveu em uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. 36 Conforme problematizei no capítulo anterior, os estudos sobre violência urbana e tráfico na região da Baixada são praticamente inexistentes. Esses estudos que citamos sobre a Baixada Maranhense não tratam especificamente da questão do tráfico ou da violência, são estudos de caráter geográfico, estudam questões relacionadas à migração e urbanização e temas correlatos na Baixada Maranhense, a questão do tráfico e da violência aparecem nesses estudos de maneira muito lateral. 35 82 na década de 1990, com o melhoramento das condições da rodovia37, dessa forma: A integração dos municípios da Baixada, por sua vez, aumentou significativamente a população da região em função do fluxo migratório de pessoas de outras cidades maranhenses e, principalmente de outros estados nordestinos como Ceará. Porém, a partir dos anos de 1990, o crescimento populacional ficou restrito àqueles municípios cujas sedes foram cortadas pela rodovia MA 014 ou que exerça alguma centralidade sobre as cidades menores, a exemplo de Pinheiro, Viana, Arari, São Bento e Santa Helena (maiores cidades da Baixada atualmente em ordem crescentes) (LAFONTAINE; et al, 2012, p. 134). O maior fluxo de pessoas e mercadorias trazidas pela construção da rodovia MA 014 e, sobretudo, com seu posterior melhoramento, trouxe consigo também o aumento da oferta de drogas ilícitas: O aumento do tráfico e o uso de drogas tem relação direta com o aumento do número de veículos circulando na região, mesmo porque a MA 014, quando conservada, é um dos eixos de acesso à Belém, e a outra cidade importante do Norte por onde circulam muitos veículos e com eles traficantes de entorpecentes, notoriamente do craque [sic] e merla (LAFONTAINE; et al, 2012,2012, p. 137). A rodovia MA 014, colocou a Baixada Maranhense, sobretudo Pinheiro, na rota que liga São Luís a Belém. Por essa via circula um grande número de pessoas e mercadorias, e, por conseguinte tornou-se uma importante rota para o tráfico de drogas: Pós-construção da MA 014 houve um aumento considerável do consumo de drogas ilícitas pelas influências da rota do tráfico de drogas entre São Luís e Belém e para cidades de médio porte como Pinheiro e Viana (LAFONTAINE; et al, 2012, p. 141). O tráfico de drogas, segundo Machado (2012b), se utiliza da infraestrutura de transporte existente para circular sua mercadoria; quando essa estrutura é inexistente ele busca meios alternativos. Portanto, na maioria das vezes a droga chega ao seu destino usando as mesmas vias de acesso da maioria das outras mercadorias. A informação que Pinheiro faz parte da rota do tráfico que liga Belém a São Luís é confirmada pelas autoridades policiais de Pinheiro, de Ao longo do tempo foram feitas diversas melhorias na rodovia, por exemplo a construção da ponte sobre o Rio Pericumã, que propiciou que esse trecho da rodovia ficasse trafegável durante o ano inteiro, já que antes da construção da ponte, nos períodos de inverno, a cheia do Rio Pericumã, alagava a rodovia. Ver em Anexos A e B, imagens da ponte sobre o Rio Pericumã. 37 83 maneira que, segundo esses mesmos policiais, carros que circulam na cidade com placas do Pará costumam ser abordados, e já foram apreendidas drogas nesses veículos: “geralmente que tem carros com placas de algumas cidades do Pará, e sempre que a gente vê esses carros em atitude suspeita a gente faz a abordagem...” (Ramos, Soldado da PM, 02/2014). A construção de rodovias e o melhoramento do acesso à região e sua situação de passagem entre a ligação de duas capitais (São Luís e Belém), favoreceu o crescimento dessas cidades, sobretudo Pinheiro, que é a maior cidade da região. No entanto, não há políticas públicas que garantam melhores condições de vida dessas populações migrantes, como acesso a emprego ou moradias adequadas: O crescimento da população urbana, não foi acompanhado do aumento na oferta de infraestrutura e dos serviços essenciais à população. Assim, a população que chega às cidades ocupa a periferia dos núcleos urbanos, construindo suas moradias sobre as planícies fluviais inundáveis sobre aterros (LAFONTAINE; MORAES; COSTA, 2012, p. 135-136). A urbanização acelerada fez com que Pinheiro seja hoje a cidade com maior população urbana da Baixada, que superou a população rural já no final da década de 199038. Nesse cenário de pobreza e urbanização acelerada na Baixada Maranhense, e especificamente na cidade de Pinheiro, tem como consequência o surgimento e o crescimento de bairros periféricos, sem infraestrutura adequada. Bairros que surgem em locais desvalorizados pelo comércio imobiliário, tais como às margens de rios e campos alagados, que passam a ser sistematicamente ocupados por essa população pobre migrante. Isso faz com que Pinheiro, uma cidade relativamente pequena, possua inúmeras periferias ocupadas por pessoas de baixa renda. E é assim que surge a Rua Agostinho Ramalho, localizada no bairro da Floresta, conhecida posteriormente como “Rua da Lama”, pela sua ocupação próxima ao campo alagado, e pela sua falta de infraestrutura adequada, tomada 38 Segundo (LAFONTAINE, et al, 2012), Pinheiro possuía 58.888 habitantes em 1991 e saltou para 68.030 habitantes em 2000, sendo que em 2000 a população urbana era de 38.186, enquanto a rural era de 32.032. 84 pela lama, sobretudo nos tempos de chuva. É uma das tantas ruas dos bairros periféricos de Pinheiro, ponto nevrálgico da análise a seguir. 4.1 A “Rua da Lama”: Violência, repressão e tráfico no contexto social de moradores, usuários e policiais. Eu acredito que chamam Rua da Lama porque lá era cheio de lama mesmo. Melhorou um pouco porque eles ajeitaram uma parte, mas qualquer chuvinha ficava aquela coisa horrível, era na beira do campo também, eles batizaram Rua da Lama porque era muito nojento... (João, Morador do bairro Floresta, Pinheiro, 02/2014). Como vimos anteriormente, a maior parte da população pobre em Pinheiro constrói suas casas em áreas ocupadas, aterrando os campos e planícies alagadas, na beira do rio Pericumã e em outros lugares igualmente impróprios. Como vemos nas imagens a seguir: Figura 01: ocupações desordenadas a partir de aterramentos de planície de inundação do rio Pericumã em Pinheiro 85 Figura 02: ocupações desordenadas a partir de aterramentos de planície de inundação em Pinheiro Esse fenômeno de crescimento de moradias precárias e irregulares, em terrenos perigosos para edificação não é muito diferente de outras cidades do mundo onde acontece urbanização acelerada: Os pobres urbanos, em todo lugar, são forçados a se assentar sobre terrenos perigosos e não edificáveis – em barrancos, margens de rios e alagados. Da mesma forma, invadem as sombras das refinarias, indústrias químicas, lixões tóxicos, ou as margens de ferrovias e rodovias. A pobreza, como resultado, tem ‘construído’ desastres urbanos sem precedentes (VALENÇA, 2005, p. 171). A “Rua da Lama”, pertence a esse universo de construções irregulares na beira do campo e de planícies inundáveis, observemos a sua localização: 86 Figura 03: Localização da Rua Agostinho Ramalho, conhecida como “Rua da Lama” no bairro Floresta na cidade de Pinheiro (Fonte: www.ibge.org). Observe na imagem que a Rua destacada em vermelho é a Rua Agostinho Ramalho, conhecida como “Rua da Lama”, no entanto, muitas pessoas em Pinheiro que não conhecem bem o bairro Floresta utilizam a alcunha de “Rua da Lama” também para a Rua João Batista Soares, transversal à Rua Agostinho Ramalho, não só pela proximidade da “Rua da Lama”, mas por ser também uma Rua de grande ocorrência de tráfico e por ter uma estrutura tão precária quanto à Rua Agostinho Ramalho. No entanto, quando nos referimos nesse trabalho a “Rua da Lama”, estamos seguindo o depoimento de policiais, usuários e exusuários de drogas, e principalmente de moradores do bairro Floresta, de que essa alcunha é usada para caracterizar a Rua Agostinho Ramalho. Na imagem a área cercada pela linha verde designa os limites convencionais do bairro Floresta, já que não há Lei municipal de delimitação de bairros na cidade de Pinheiro conforme explicaremos adiante. O número 1 em amarelo busca identificar uma área de planície alagada, assim como o número 2, toda essa área sofre alagamento, principalmente no período de chuvas, e é conhecida na cidade de 87 Pinheiro como campo39, um dos possíveis motivos para a origem da alcunha “Rua da Lama”, já que ela foi construída entre ou em cima de duas áreas alagadas. O número 3 identifica um braço do Rio Pericumã que também contribui para o alagamento da área. Observem as imagens da Rua Agostinho Ramalho e de sua falta de infraestrutura urbana: Figura 04: Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”), imagem de 2011 (Fonte: www.google.com.br/maps/). Observem na imagem de número 04 que a chamada “Rua da Lama”, não possui asfaltamento, e possui uma ponte improvisada de madeira sobre um córrego, onde também foi edificada uma moradia feita de tábuas de madeiras e compensado, e à esquerda a imagem de uma casa de taipa (uma mistura de barro e água colocada sobre uma estrutura de madeira) e coberta de palha. Ambas as moradias em destaque demonstram a precariedade de alguns domicílios na Rua Agostinho Ramalho. 39 Ver imagens do campo da cidade de Pinheiro nos anexos A, B e C. 88 Figura 05: Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”) em 2012 (Fonte: www.google.com.br/maps/). Na figura 05 é possível observar o esgoto correndo a céu aberto na porta das casas da Rua Agostinho Ramalho e um caminhão fazendo entrega de areia, material que será usado provavelmente para fazer aterramento na planície alagada para edificação de alguma construção40. As condições da Rua João Batista Soares também localizada no bairro Floresta não são muito diferentes da Rua Agostinho Ramalho: Figura 06: Esquina da Rua João Batista Soares com a Rua Agostinho Ramalho (“Rua da Lama”) em 2012 (Fonte: www.google.com.br/maps/). 40 Ver Anexo D. 89 Figura 07: Rua João Batista Soares, Bairro Floresta, Pinheiro 2012 (Fonte: www.google.com.br/maps/). Figura 08: Rua João Batista Soares, Bairro Floresta, Pinheiro 2012 (Fonte: www.google.com.br/maps/). 90 Não resta dúvida que não é apenas a proximidade entre as duas ruas e o fato de ambas possuírem grande ocorrência de tráfico de drogas que leva algumas pessoas a caracterizarem a Rua João Batista Soares também de “Rua da Lama”, a precariedade, a falta de asfaltamento, esgoto a céu aberto e outros problemas, também são fatores que colaboram com a caracterização. Da mesma forma que a extrema urbanização é um fenômeno moderno, tal como a mundialização da economia capitalista, que hoje alcança escala planetária. Marx (2003), nos seus escritos de juventude já assegurava que o capitalismo e o fenômeno da industrialização tem como resultado a vitória da cidade sobre o campo e, por conseguinte, a subordinação da economia rural à economia urbana. Assim asseveram os fundadores do materialismo histórico e dialético: A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou cidades enormes, aumentou prodigiosamente a população urbana em comparação com a rural e, dessa forma, arrancou uma grande parte da população do embrutecimento da vida do campo (MARX & ENGELS, 2008, p. 15). Na mesma esteira, em Pinheiro ocorreu um processo similar: “anteriormente a população era ocupada eminentemente em atividades agropecuárias e atualmente está mais voltada para o setor de serviços” (LAFONTAINE, et al, 2012, p. 138). Engels, em seu clássico estudo sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, apontava as consequências da rápida urbanização do qual passaram as cidades inglesas no século XIX, e, em consequência disso, as péssimas condições de moradia às quais eram submetidas as populações migrantes pobres que se instalavam nas cidades. Todas as grandes cidades têm um ou vários ‘bairros de má fama’ onde se concentra a classe operária. É certo ser frequente a miséria abrigar-se em vielas escondidas, embora próximas aos palácios dos ricos; mas, em geral, é-lhe designada uma área à parte, na qual, longe do olhar das classes mais afortunadas, deve safar-se, bem ou mal, sozinha [...] As piores casas na parte mais feia da cidade [...] habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos (ENGELS, 2008, p. 70). 91 Os pobres de Pinheiro não têm opções de moradias muito diferentes dos pobres de outras cidades do mundo, são empurrados para longe dos setores da cidade que possuem melhor infraestrutura e serviços. O preço dos alugueis dos imóveis varia sensivelmente de acordo com a proximidade ou distância das avenidas principais da cidade que concentram os principais bancos, bares, restaurantes e demais empreendimentos; o preço varia também de acordo com a estrutura urbana da localidade do imóvel; assim, alugar ou comprar, uma casa numa rua asfaltada, tem um preço bem superior, do que alugar ou comprar uma casa numa rua sem asfalto e distante do centro comercial da cidade41. É evidente que o surgimento de favelas em locais urbanos periféricos que servem de moradia aos pobres hoje é reconhecidamente um fenômeno global, presente, sobretudo no terceiro mundo, onde a expansão das políticas neoliberais resultou nas favelas: A partir da década de 1970 multiplicou exponencialmente [...] constituem espantosos 78,2% dos habitantes urbanos dos países menos desenvolvidos; isso corresponde a, pelo menos, um terço da população urbana global (DAVIS, 2006, p. 34). O que não significa que na maioria dos lugares, as moradias das pessoas pobres sejam exatamente iguais. Porém, o caráter irregular de ocupação dos espaços urbanos, isto é, muitas vezes não reconhecida e não legitimada pelo Estado, bem como não assistida em serviços essenciais, são algumas das características fundamentais da favela. Definição clássica da favela, caracterizada por excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado a água potável, e condições sanitárias e insegurança da posse da moradia. Essa definição operacional, adotada oficialmente numa reunião da ONU em Nairóbi, em outubro de 2002, está ‘restritas as características físicas e legais do assentamento’ e evita as ‘dimensões sociais’, mais difíceis de medir, embora igualem-se na maioria das circunstâncias à marginalidade econômica e social (DAVIS, 2006, p. 33). Segundo nosso levantamento nos preços dos alugueis de imóveis em Pinheiro, uma casa próximo ao centro comercial da cidade com três quartos pode chegar a um salário mínimo e meio (aproximadamente R$ 1.000). Enquanto alugueis no bairro da Floresta, sobretudo próximo à Rua da Lama, ou nos bairros mais distantes, como Vila Filuca ou Vila Kiola, casas com características semelhantes, o aluguel dificilmente passa de R$ 450. 41 92 Mesmo que essa definição da ONU, como aponta Davis, seja restrita, por não incluir alguns aspectos, sobretudo os aspectos sociais, que por vezes desaparecem nos grandes esquemas analíticos quantitativos, já caracteriza um cenário dramático em relação a infraestrutura dessas localidades. Assim, como tematizam diversos autores, os espaços urbanos precarizados e caracterizados como favelas, são definidos na maioria das vezes não pelo que possuem de peculiar, mas pelas ausências de condições básicas: O que é uma favela? [...] O eixo paradigmático da representação desse espaço popular é a noção de ausência. A favela é definida pelo que ela não é, ou pelo que não tem. Nesse caso é apreendida como um espaço destituído de infra-estrutura urbana – água, luz, esgoto, coleta de lixo, sem arruamento, globalmente miserável, sem ordem, sem lei, sem regras sem moral, enfim, expressões do caos (SILVA, 2006, p. 213). Cada um desses fenômenos são consequências de processos globais e locais ao mesmo tempo, “as segregações que destroem morfologicamente a cidade e que ameaçam a vida urbana não podem ser tomadas por efeito nem de acasos nem de conjunturas locais” (LEFEBVRE, 2001, p. 99). A favelização, assim como o tráfico de drogas, não podem ser tomados como fenômenos locais, ainda que, peculiaridades locais, influenciem no seu aspecto. Se entendermos que “a globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista” (SANTOS, 2012, p. 23), o capitalismo, ao transformar e organizar o espaço sobre a lógica do valor, e portanto, do dinheiro, reserva aos despossuídos a única alternativa de buscar lugares que sejam destituídos de grande valor monetário, ou próximo a isso, restando assim, a alternativa de ocupar localidades onde estejam presentes acidentes geográficos, como morros, encostas, terrenos alagados, etc. e/ou distantes e desassistidos de qualquer infraestrutura urbana. Foi nesses enclaves de pobreza das cidades brasileiras que o tráfico territorializado se desenvolveu no Brasil: “a pobreza é funcional para o tráfico de drogas, o qual devora a mão de obra da juventude das favelas como mão de obra barata e descartável” (SOUZA, 2012, p. 439), o caso de Pinheiro, e da “Rua da Lama” especificamente, pelo que 93 podemos constatar, não é diferente. Segundo os levantamentos do último censo do IBGE (2010), no bairro Floresta onde se localiza a Rua Agostinho Ramalho, conhecida como “Rua da Lama”, moram 912 pessoas,42 das quais aproximadamente 25% delas, pouco mais de 220 pessoas, residem em domicílios cuja renda per capita mensal é inferior a 70 reais por pessoa. O que demonstra uma situação de pobreza grave, principalmente se levarmos em conta que o IBGE inclui na renda mensal dessas famílias o auxílio em dinheiro de programas sociais, como o Bolsa Família do Governo Federal. Sem o auxílio do Bolsa Família e outros programas sociais, com certeza esse quadro de pobreza seria mais grave. Abordaremos a correlação entre bairros pobres e a existência de tráfico territorializado no Brasil a seguir. 4.1.1 Tipologias do tráfico: o tráfico territorializado O tráfico territorializado é uma modalidade bem específica de tráfico de drogas e muito difundida no Brasil. Em outros países, o tráfico nômade, feito por vendedores em diferentes lugares da cidade é muito comum em países como os EUA, onde é bastante desenvolvida também a modalidade delivery, isto é, onde o consumidor pede a droga por telefone para o traficante e aguarda a entrega na sua residência, semelhantes a outros serviços legais, como a entrega de pizza. Porém no caso do Brasil, apesar de existir também as demais formas de tráfico, é predominante o tráfico territorializado43. Informações disponíveis em www.ibge.org. Como em Pinheiro não há Lei municipal que delimite os limites dos bairros, o levantamento do IBGE é baseado em setor censitário, os dados apresentados acima são do setor censitário de número: 210860305000004. Que ao observarmos no mapa disponibilizado pelo IBGE, coincide com o que comumente as pessoas da cidade de Pinheiro e principalmente do bairro Floresta identificam como sendo os limites desse bairro, ainda que, como dissemos anteriormente não existam Leis municipais que delimitem especificamente onde começam e terminam os bairros. Um problema não só da cidade de Pinheiro, segundo o IBGE apenas duas cidades do Maranhão possuem esse tipo de Lei, apenas os municípios de Timon e Matões. Nem mesmo a capital São Luís possui uma Lei que delimite os bairros. 43 As tipologias variam também em relação à classe social do consumidor, a modalidade delivery está mais comumente ligada a consumidores com alto poder aquisitivo. 42 94 Desde os primeiros estudos sistemáticos sobre tráfico no Brasil (ZALUAR, 1994), até os estudos mais recentes (SOARES, 2000; 2005 et al; 2006 et al), (SOUZA, 1995; 2012) há consenso que é nas periferias, favelas e nos bairros pobres em geral que o tráfico encontrou o cenário propício para se desenvolver. Ao se estabelecer nas favelas e morros do Rio de Janeiro, ocupando o vácuo deixado pela ausência do poder público, o modelo foi difundido para demais cidades no Brasil. O tráfico territorializado consiste na apropriação de um determinado espaço por partes de traficantes, que passam a exercer seu controle econômico e geopolítico, controlando quem entra, quem sai, etc. Modelando o espaço para a prática do comércio ilícito, que não se trata apenas da implantação das tais “bocas de fumo”, como são conhecidos os locais de venda de drogas ilícitas por parte de usuários, traficantes, policiais e por consequência, pela própria população em geral, há a mobilização de “olheiros” em pontos-chave para o aviso da chegada da polícia: Geralmente quando nós chegamos tem aquelas pessoas que ficam nos cantos conversando, é o que nós chamamos de olheiro, e as vezes vendedores também que estão com drogas nas proximidades, sempre nos cantos tem alguém que tá sentando, tá mexendo no celular, tá conversando com alguém, são os informantes (Ramos, soldado PM, Pinheiro, 02/2014). Para modelar esse espaço, muitas vezes há construções de lombadas e de outras barreiras que atrapalham a entrada de viaturas policiais em determinadas ruas, etc. Para Soares (2000; 2005 et. al), o tráfico sedentário, territorializado, só é possível de existir com a ampla conivência por parte do poder público, e com a corrupção sistemática de policiais e demais agentes de segurança. Soares (2000; 2005 et. al) argumenta que se os consumidores sabem onde conseguir comprar drogas num local fixo, sedentário, é impossível que as autoridades policiais, mais cedo ou mais tarde, não tomem conhecimento da existência de tal localidade, portanto, para ele esse modelo só se perdura pela ampla cooperação das autoridades policiais. A conivência dos policiais não quer dizer que a repressão inexista nessas localidades onde há tráfico territorializado. Paradoxalmente, a 95 repressão é bastante presente, como nos relata a moradora do bairro da Floresta onde se localiza a “Rua da Lama”: A polícia vai lá é direto, todo dia, toda hora, prende gente direto, dá baculejo44 em neguinho direto, as vez levam 2 ou 3 preso, e é homens e mulheres, porque lá é homens e mulher vende [...] quando eles encontram com bagulho eles bate bastante... (Maria, Pinheiro, 02/2014). As “batidas” policiais são frequentes nesses locais de tráfico territorializado, por diversos motivos. Segundo as autoridades policiais de Pinheiro, as batidas policiais na “Rua da Lama” têm como objetivo “manter o controle sobre o tráfico”, bem como minimizar crimes nas suas redondezas, como se quisessem garantir que o tráfico e os criminosos não se espalhassem para o resto da cidade. Na visão da polícia é preciso mantê-los reclusos nessas zonas já “contaminadas”, mantê-los em “quarentena”. Por outro lado, Soares (et. al, 2006) afirma que a fatia dos policiais no bolo do tráfico é tanto maior for a sua força repressiva, como se houvesse um jogo entre policiais e traficantes, onde os primeiros teriam que mostrar seu valor para os segundos, isto é, em algum momento deveriam atrapalhar o andamento do tráfico, com batidas policiais, prendendo suspeitos, afugentando os usuários, etc., para provar para os traficantes que sem a boa vontade dos policiais não é possível o andamento do tráfico. Quanto maior for o poder de impedir o andamento do tráfico, maior é a fatia dos policiais corruptos. Sem contar que a repressão aos territórios sob domínio de traficantes estão também ao sabor da pressão da mídia e da opinião pública. Quando é preciso dar respostas imediatas a sociedade em situações de crise de segurança pública, esses territórios são alvos de muita atividade policial45. Pinheiro não conta com uma imprensa escrita de grande Gíria que quer dizer revista ostensiva por parte da polícia, normalmente com uso de violência. 45 Segundo o professor Ignácio Cano (2006, p. 141), as políticas de segurança pública no Brasil, flutuam ao sabor das crises momentâneas e da pressão midiática: “Em geral, as políticas estaduais de segurança – se é que podem receber este nome sem planejamento, objetivos e avaliação – são basicamente reativas e baseadas na repressão, mais do que na prevenção. Com freqüência, os governos reagem diante dos casos com repercussão pública, particularmente os que se destacam na imprensa, para dar uma resposta de curto prazo. Quando o caso perde visibilidade, as medidas iniciais se desvanecem. A imprensa, neste sentido, desfruta de um grande poder para 44 96 circulação, com exceção de alguns poucos jornais, que circulam quase que exclusivamente em tempos de eleição, ligados aos grupos políticos que se digladiam pelo controle da prefeitura municipal. No entanto, a cidade possui uma impressa televisiva bastante movimentada com várias programações locais, como é o caso do programa “Balanço Geral” e do “Tribuna Popular”, ambos programas da TV Pericumã, filiada a TV Record, onde o tema da violência e do tráfico de drogas é comumente abordado e autoridades policiais são chamadas a dar satisfações à população em tempos de crise de segurança. Por tudo isso, se conclui que conivência da polícia com o tráfico não significa ausência de repressão. O tráfico, em qualquer modalidade é uma atividade por si só muito violenta, isso é definitivamente um dos efeitos mais graves do proibicionismo tal como vimos no capítulo anterior. Os traficantes não podem colocar os nomes dos seus compradores em débito no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), não podem acionar a justiça ou protestar dívidas em cartório. A ilegalidade engendra outro tipo de lógica nesse comércio, os traficantes têm poucos recursos, além da força bruta, de garantir os pagamentos em dia dos seus clientes. Dessa maneira, a lei número um do tráfico, amplamente conhecida por usuários, é: quem compra fiado e não paga, morre!46 Nas palavras de um ex-usuário por nós entrevistado: Conheci muita gente que morreu por causa de dívida, acontece muito, gente que passou por aqui, até um conterrâneo meu que passou por aqui, mataram ele na cadeia, por causa de dívida, outro aqui em Pinheiro, Adriano, mataram por causa de dívida também... (Rafael, ex-usuário, Pinheiro, 01/2014). orientar as medidas dos órgãos públicos. As intervenções raramente são planejadas com base em objetivos específicos”. 46 O médico Drauzio Varella uma vez perguntou aos presos da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, por que não se acabava a venda por fiado no tráfico já que ela gera tanta morte. A resposta dos presos foi mais do que convincente: “eu não entendia porque eles mesmos não proibiam as vendas a fiado. Uma vez tentei reunir alguns líderes da malandragem para lhes propor a adoção de tal medida. Fui desanimado pelo Sarará, um negro loiro com muita passagem pela Casa: - Não tem chance de dar certo, doutor. O viciado fica devendo 20 reais e entrega a televisão por esse preço. Dá muito lucro. É o mesmo princípio que os bancos da rua, o senhor fica devendo 20 mil e eles tomam a sua casa que vale 100 [mil]. Ninguém acaba com um negócio desses” [grifos meus] (VARELLA, 1999, p. 139). 97 A violência está presente constantemente na relação usuáriotraficante na maior parte do tempo, segundo os usuários entrevistados. Enquanto se tem o dinheiro para gastar com drogas você costuma ser bem recebido, mas a partir do momento em que os traficantes te reconhecem como um viciado, desprovido de recursos, os usuários estão sujeitos a toda sorte de violências, mesmo quando exista uma relação de amizade entre ambos anterior a relação entre traficante e usuário. A lógica do tráfico organizada pelo dinheiro impõe uma postura de violência que se sobrepõe às outras relações, é o que nos relatam os usuários quando questionados como é a relação entre usuários e traficantes: Quando eu tinha dinheiro era bem recebido, ou quando tinha alguma coisa de valor pra trocar, também era bem recebido, quando não tinha, eles até me ameaçavam, às vezes eu chegava com a metade do dinheiro, mas não queriam vender, me humilhavam... (Rafael, Pinheiro, 01/2014). A relação é sinistra, num momento com eles a gente tá sorrindo, vai pensando que a gente tá construindo um amigo, uma coisa, que na hora que a gente vai precisar dele ele pode ajudar a gente, mas na hora é totalmente diferente... Pior que são pessoas da nossa infância, né?! Pessoas que conviviam com a gente, conhecia, jogava bola, brincava, banhava, ia pra praia, pra uma curtição, de repente se transformaram. Acho que é a ganância do dinheiro, eles foram pobre, são pobre, com essa venda tão subindo um pouquinho, mas eles totalmente mudaram, o mais fraco é sempre o mais fraco mesmo, ai eles vão comprando revólver, essas coisas, vão se armando, eles intimidam, se não pagar 50 centavos... Colega meu já morreu por causa de 1 real, já, com tiro a queima roupa na cabeça (Ismael, ex-usuário, Pinheiro, 01/2014). Esses relatos nos fazem ter alguma dimensão da violência que media a relação entre usuários e traficantes. Isso é uma das facetas brutais do proibicionismo, onde usuários dependentes, necessitados de assistência de toda ordem, são empurrados pelo proibicionismo a manter relação com esses algozes sedentos por dinheiro. O resultado dessa relação só pode ser a eliminação sistemática de dependentes que ficam à mercê do tráfico. Contudo, o tráfico territorializado é um tipo de tráfico ainda mais violento que as demais modalidades, pois exige do traficante a proteção 24 horas do seu território, é preciso protegê-lo não apenas da polícia, ou de outras quadrilhas rivais, mas também de 98 qualquer indivíduo que por alguma razão atrapalhe o andamento do tráfico. Isso faz com que o tráfico de drogas e o tráfico de armas no Brasil andem de mãos dadas, como nos apontou o entrevistado citado anteriormente, os traficantes logo começam a se armar, mais do que em qualquer outra parte do planeta onde não prevaleça a lógica do tráfico territorializado. O ápice desse processo é o que acontece nas favelas do Rio de Janeiro, onde é público e notório o amplo poderio bélico dos traficantes que controlam militarmente territórios imensos da metrópole carioca, poder bélico que pode ser comparado com o de exércitos em guerra. Esse poder militar é cotidianamente utilizado para enfrentar a polícia, ou para ser utilizado contra quadrilhas rivais47. O tráfico de drogas no Rio de Janeiro é tão pesadamente militar que chegou a ser considerado por Soares (2010), como irracional do ponto de vista econômico, o que seria um dos motivos que o leva a estar sendo varrido do mapa pelas milícias e sendo substituído por modalidades “nômades” de tráfico48. O abatimento, por parte de traficantes, de um helicóptero da polícia em 2009, utilizando artilharia antiaérea é uma das inúmeras provas do poder de fogo das quadrilhas que dominam o tráfico no Rio de Janeiro. 47 Ao contrário do que pensa boa parte da opinião pública, e o que é divulgado pelas propagandas enganosas do governo do Rio de Janeiro, o tráfico de drogas territorializado não estaria sendo “varrido do mapa” pelo projeto de segurança pública conhecido como Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), que ocupam algumas poucas dezenas de favelas cariocas. Até o presente momento são 38 comunidades ocupadas pelas UPPs no Rio de Janeiro. O impacto desse projeto não seria o suficiente para destruir o tráfico territorializado, se levarmos em conta que existem aproximadamente 1.000 favelas no Estado do Rio de Janeiro, a maioria dominada pelo tráfico nos últimos anos. O maior inimigo do tráfico são as milícias, não menos violentas, porém com uma visão mercadológica mais ampla, como retratou muito bem o filme: “Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro” e também Soares (2010). O projeto das UPPs não tem o alcance suficiente para destruir o tráfico territorializado. Na verdade, as UPPs pretendem ocupar as favelas próximas dos bairros de elite da Zona Sul e proteger os grandes empreendimentos ligados aos grandes eventos que serão realizados com a Copa do Mundo de Futebol e as Olímpiadas. Segundo afirma um grande especialista no assunto, o deputado do PSOL-RJ Marcelo Freixo em entrevista à Carta Capital, ao lhe perguntarem, “qual sua opinião sobre as UPPs?”: “É um projeto de cidade. A UPP só pode ser pensada com a construção dos muros nas favelas, com as barreiras acústicas que tenta fazer com quem sai do aeroporto e chega a zona sul não veja as favelas e as remoções. O mapa das UPPs é revelador. É o corredor da zona sul hoteleiro, é a zona portuária com o projeto “Porto Maravilha”, é o entorno do Maracanã na avenida Tijuca, a Cidade de Deus em Jacarepaguá, que é a única área em toda Jacarepaguá que não está na mão da milícia. [...] O mapa das UPPs mostra que não é um projeto de segurança pública, é um projeto de cidade. Porque essas áreas são para 2014 e 2016 e no mesmo Rio de Janeiro, com o mesmo governo, nós 48 99 Contudo, o tráfico territorializado da “Rua da Lama”, dentre outras coisas, dada a sua dimensão, especialmente territorial, não conta com um poderio bélico tão grandioso como o do modelo, aparentemente em decadência, do Rio de Janeiro. O que não quer dizer que não haja controle armado por parte dos traficantes, que sirva para intimidar, moradores, usuários, polícia e traficantes rivais. Segundo as autoridades policiais, há controle armado do território por traficantes na “Rua da Lama”, e em algumas operações policiais, há troca de tiros entre traficantes e policiais. Segundo os policiais, quando a polícia invade a “Rua da Lama” e pega os traficantes desprevenidos, o tiroteio é um dos recursos utilizados, para ganhar tempo, enquanto se livram do “flagrante” da droga, escondendo-a na lama do campo alagado que passa pelos quintais das casas: O lugar de tráfico mais conhecido aqui nosso é a Rua da Lama. A Rua da Lama que fica ali ao lado ou por detrás da Praça São Benedito. Lá inclusive já foi feita várias operações, já foi apreendida quantidades de droga na Rua da Lama, e já melhorou muito, mas ainda existe drogas lá, na Rua da Lama. Até mesmo porque o acesso é um pouco ruim, e por detrás das casas, existe uma área cheia de lama, então quando eles olham as viaturas a polícia chegando, eles correm pra essas áreas, as vezes jogam a droga dentro da lama e a gente não consegue localizar, fazer o flagrante... (Ramos, soldado PM, Pinheiro, 02/2014). Segundo o policial militar por nós entrevistado, é preciso contar com um bom contingente policial para fazer operações na “Rua da Lama”: “Geralmente uma viatura e três motos para ir fazer as abordagens, porque é arriscado ir só uma viatura, a gente vai com um aparato bom” (Farias, soldado PM, Pinheiro, 03/2014). O tráfico territorializado traz muitos sofrimentos às populações dessas localidades, que além de toda a dificuldade de sua condição socioeconômica, tem que conviver com a violência e a tirania dessas quadrilhas. temos a polícia matando três pessoas por dia. A polícia do Rio é a que mais mata e morre no mundo. O Rio não está pacificado” Entrevista disponível em <http://www.cartacapital.com.br/politica/um-deputado-no-olho-do-furacao>. Acessado em Janeiro de 2014. 100 Figura 09: Terreno para vender na “Rua da Lama”, observe ao fundo o campo e a lama que passa por trás das casas conforme relatou o policial Ramos (Fonte: www.google.com.br/maps/). O tráfico territorializado interfere nas formas de organização e representação política dessas comunidades, as associações de bairros, por exemplo, quando os traficantes permitem que estas existam, colocam-na sob sua tutela. Até mesmo em períodos de eleições nas localidades dominadas por traficantes, são eles que decidem quem pode ou não fazer campanha nesses locais. Isso são exemplos de como toda a sociabilidade49 nesses locais são afetadas pelo tráfico, até a polícia tem receio de bater de frente com o domínio do tráfico nessas áreas: Já botaram o trailer da polícia militar lá, na Rua da Lama, de plantão lá, a gente entendeu que não tinha segurança pra gente mesmo, até a própria polícia ficou receosa. Como vou botar um trailer na porta de um traficante? Coisa boa não vai dá, ele vai se sentir incomodado (Silva, soldado PM, Pinheiro, 03/2014). Dessa maneira, as populações que moram nesses territórios do tráfico, são oprimidas duplamente, de um lado, pelo Estado e sua força repressiva em geral, e por outro, pelas quadrilhas de traficantes que impõem seu poder e controle com violência nessas localidades. Assim Mais precisamente “sociabilidade violenta”, como caracterizado por Silva (2004, p. 55): “um complexo de práticas associadas ao que é definido como crime comum violento, interferindo radicalmente sobre a organização da vida cotidiana”. 49 101 sendo, esse tormento soma-se ao desemprego, falta de infraestrutura, acesso a saúde, educação e a outros direitos básicos que tanto afligem essas populações, como destacam os moradores do bairro Floresta: Eu e outras gente lá próximo que eles conhece, eles não mexe, mas não mexe assim se você passar lá cedo, mas se for fora de hora, mais tarde, eles podem te atacar, porque já tão tudo drogado... E é perigoso, porque gente lá perto, sempre tem umas colegas nossas que diz que quando é tarde da noite eles ficam se drogando, eles bate muito nas porta, esmurra, dão de paulada, de pedrada, ai as pessoas ficam com muito medo, tem que ficar ouvindo e ficar caladinho pra não perder a vida, mas tem vontade de sair de lá, tem muitas pessoas que eu conheço, que não meche com isso, trabalham pela feira, vende besteirinha aqui outras ali... (Maria, Pinheiro, 03/2014). Além de toda a violência imposta, o tráfico territorializado tende a contribuir com o processo de criminalização dos moradores de periferia. Na opinião dos próprios policiais entrevistados, a maioria das pessoas que moram na “Rua da Lama” são traficantes ou tem algum tipo de envolvimento com o tráfico. Os moradores do bairro, que conhecem as pessoas que moram na “Rua da Lama”, tem uma visão diferente. Dizem que há pessoas honestas que moram lá e que tem vontade de sair dessa rua para morar num local melhor, porém são impedidos pelas suas condições financeiras: As pessoas que tem vontade de sair de lá, que com certeza não mexe com esses tipo de coisa, só num consegue vender a casa pra ninguém, porque ninguém quer, ai é difícil (José, Pinheiro, 03/2014). Contudo o discurso criminalizante é homogeneizador e a identidade do território se expande, quase que mecanicamente à identidade das pessoas que ali residem: O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade (SANTOS, 2012, p. 96). Com essa extensão da identidade do território à identidade das pessoas que nesse território habitam, nutre-se a lógica criminalizante, pois se conclui automaticamente que, se o território é um local violento, as pessoas que lá residem são violentas, e se o território é local de tráfico, as pessoas que lá moram são traficantes, ou têm algum tipo de envolvimento. E dessa maneira é que os moradores do bairro Floresta, 102 especialmente os residentes da “Rua da Lama”, se veem enredados num conflito armado, onde as baixas são constantes: Tem pessoas que a gente conhece que não deve falar que a gente sabe que vende, por exemplo a Rua da Lama, é muito próximo, lá é a boca do fumo mesmo, lá eles tanto vende como eles se matam, já morreram várias pessoas lá. Agora, agora mataram uma pequena lá, uma mulher vizinha lá, não tá com 15 dias, diz que foi acerto de conta, diz que ela pediu 10 reais pra um maluco, ai os malucos mataram ela... (João, Pinheiro, 02/2014). É nessa lógica perversa que a guerra às drogas vai se transformando em guerra às pessoas que residem nesses territórios do tráfico, isto é, aos poucos a guerra às drogas se transforma em guerra aos pobres. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais, e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por uma população. Um faz o outro (SANTOS, 2012, p. 96-97). O tráfico territorializado se superpõe a outros processos que culminam com neoliberalismo, a que criminalização com a da pobreza em tempos de desregulamentação do mercado, o enxugamento da máquina pública com cortes em áreas sociais, e o desemprego crescente, produz esse tipo de fenômeno, como nos mostra Wacquant (2008, p. 11): “o projeto neoliberal de desregulamentação e degradação do setor público” tem como consequência a “política de criminalização da pobreza que é o complemento indispensável à imposição de ofertas de trabalhos precárias e mal remuneradas”. O tráfico territorializado, juntamente com a repressão do Estado cada vez mais policial e penal e cada vez menos social, produz o achatamento da vida nos bairros pobres e periféricos, que ora estão sob a tirania do tráfico, ora estão sob a tirania da polícia, ou ambos simultaneamente. 4. 2 A dinâmica do tráfico em Pinheiro A “Rua da Lama” não é o único local onde há venda de drogas ilícitas em Pinheiro, apesar de ser o ponto mais conhecido. Segundo as autoridades policiais, outros bairros apontados como sendo de tráfico 103 intenso, são: a Ilha de Leonor, a Quinta da Boa Vista, a Rua do Beco, localizada próximo ao bairro do Antigo Aeroporto, o bairro da Bubalina, a Vila Kiola e a Vila Dondona Soares. São todos bairros pobres e periféricos. Esse tipo de configuração do tráfico, que se espalha nos bairros periféricos da cidade é caracterizada como “territorialidade descontínua (ou em rede) do tráfico” (SOUSA, 2012, p. 436). No entanto, todos os policiais afirmam que a “Rua da Lama” é com certeza o de incidência de tráfico mais antigo, de tal maneira que os policiais mais novos, com cerca de sete anos de serviço, falam que quando chegaram em Pinheiro para trabalhar50 já havia tráfico intenso na “Rua da Lama”. Nenhum policial ou morador, por mais antigo que seja, soube datar de fato quando começou o tráfico na “Rua da Lama”, mas, segundo os depoimentos, seguramente remonta no mínimo a meados da década de 1990: “Quando cheguei lá no bairro, há mais de 20 anos, já existia esse negócio de ‘Boca de Fumo’ lá...” (José, Pinheiro, 02/2014). Daí concluímos que, provavelmente por ser o mais antigo, se deve a isso o motivo de ser o ponto de venda de drogas mais famoso da cidade. Ao longo desse período houve mudanças no contexto do tráfico em Pinheiro. Uma das mudanças significativas foi o tipo de droga comercializada. Por muito tempo as drogas mais comercializadas em Pinheiro, e provavelmente em todo Maranhão, foram a merla e a maconha. A Revista Informe Federal (2008) uma revista publicada pelos servidores da Polícia Federal do estado do Maranhão, em uma das suas edições, traz na capa a seguinte manchete: “Maranhão na rota da merla”. A reportagem colocava o Maranhão como um dos estados onde mais se Algo bastante comum na cidade de Pinheiro é que os cargos provenientes de concursos públicos, na maioria dos casos são ocupados por pessoas que vem de outras cidades, principalmente da capital São Luís, ou de capitais próximas como Teresina ou Belém. É o caso da maioria esmagadora dos policiais entrevistados. Isso se deve, como já foi citado anteriormente, a falta de acesso à educação pública de qualidade para a maioria da população pinheirense. Para termos uma ideia, Pinheiro possui uma taxa de analfabetismo de 19% entre as pessoas maiores de cinco anos segundo o IBGE. 50 104 consome merla no país, comparando-se a Brasília, principal centro consumidor, segundo a reportagem. A merla é uma droga derivada do processamento da cocaína, tem uma consistência pastosa e é consumida normalmente adicionada a maconha ou com cigarro de tabaco comum. No entanto, no final da primeira década do século XXI isso mudou. Apesar das estatísticas sobre apreensões de droga que a Secretária de Segurança Pública do Maranhão nos disponibilizaram não serem claras quanto aos anos anteriores a 2010, é notável que houve um grande crescimento das apreensões na quantidade de crack e uma quase desaparição das apreensões de merla. O que mostra que a hegemonia da merla foi desbancada pelo crack nos últimos anos no Maranhão. Em 2010, as apreensões de crack (56,5 quilos) no Maranhão chegaram a ser superiores as apreensões de maconha (8,5 quilos), enquanto as apreensões de merla foram de 4,7 quilos. Em 2011, as apreensões de maconha lideraram amplamente o número de apreensões com 127,5 quilos, enquanto às apreensões de crack continuaram volumosas: 15,6 quilos. Já as apreensões de merla quase desapareceram com menos de 1 quilo apreendido. Em 2012, foram 65,9 quilos de maconha, 44,9 de crack, e novamente menos de 1 quilo de merla 51. É notório que, a partir de 2009, o crack foi substituindo a hegemonia da merla sistematicamente em todo o Maranhão52. Ao 51 Informações levantadas junto a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão. Não resta dúvida que a expansão do consumo do crack nos últimos anos é um fenômeno nacional, como nos aponta o estudo da Fiocruz (2013). Mas não podemos deixar de perceber que a chegada em massa do crack no Maranhão, a partir dos anos de 2009, como apontam as apreensões, (segundo a Delegacia de Entorpecentes em São Luís, o volume de apreensão de crack entre os anos de 2009 e de 2010 cresceram 540%) e os depoimentos de usuários, coincide com a volta de Roseana Sarney ao comando do estado e, por conseguinte, a volta do deputado Raimundo Cutrim à Secretaria de Segurança Pública. Segundo a supracitada revista da Polícia Federal, o deputado Raimundo Cutrim é irmão de um dos maiores traficantes do Maranhão, o ex-sargento do Corpo de Bombeiros Fernando de Jesus Soares Cutrim, conhecido como Louro Bill, que respondia um processo disciplinar no Corpo de Bombeiros desde 2008, porém foi exonerado apenas em 17 de setembro de 2013, segundo o Diário Oficial do Estado, “coincidentemente” na mesma época que Cutrim rompeu politicamente com a Família Sarney. O que não é prova o suficiente para incriminar o então secretário de qualquer coisa. Ainda que possamos responsabilizá-lo, bem como a governadora, por serem as autoridades constituídas e, portanto, responsáveis de impedir o crescimento do tráfico no Maranhão, tarefa que não cumpriram. O que não nos surpreende, porque a batalha contra o tráfico tem sido perdida em todos os países que elegeram o proibicionismo como modelo de combate às drogas. Se em países com 52 105 conversar com vários usuários e ex-usuários na Fazenda do Amor Misericordioso em Pinheiro, pode-se notar esta significativa mudança. Os usuários mais antigos, na sua imensa maioria, são usuários de merla, assim como os usuários mais novos, na sua maioria, são usuários de crack. Houve aqueles também que acompanharam a tirânica oferta do mercado proibicionista, isto é, pararam de usar merla assim que a droga passou a ficar escassa e passaram a usar crack. Outros observando a potencialidade lesiva do crack, como superior à merla, segundo seu próprio julgamento preferiram abandonar o mundo das drogas: Eu larguei a merla porque o crack apareceu né, ai vários colega meu tava morrendo de bala, overdose, uns mais de 20 que eu conhecia dizia que tinha conhecido uma droga mais pesada, muito doida ela, que a gente fica locão, ai eu: ‘qual é?’, e eles “é crack!”. Ai eu fui vendo eles emagrecendo sem apetite, eles tinham uns apelidos de vira bicho, porque eles ficavam a noite todinha. Às vezes eu ficava na porta da minha casa com uma garrafa de cachaça e olhava eles a noite toda subindo e descendo, eles paravam tomavam uma dose de cachaça e perguntavam ‘Rapa, tu olhou vira bicho por ai?’ – ‘Quem é vira bicho?’, zumbi também eles chamavam, porque o crack faz isso, é nóia! Eu disse que eu não ia morrer com isso não... (Ismael, ex-usuário, Pinheiro, 03/2014). Segundo os próprios depoimentos dos usuários e ex-usuários da Fazenda, a merla é uma droga hoje cada vez mais difícil de encontrar para comprar, porque nos últimos anos ela foi substituída pelo crack. A maconha por sua vez, continua sendo de fácil acesso, não tendo alterado sua oferta, pelo que parece. Ao conversar com usuários de merla residentes em outras cidades da Baixada Maranhense, relataram que hoje em dia, em toda aquela região só se encontra merla em Pinheiro. Dessa forma, usuários de cidades como Bequimão, Peri- orçamentos bilionários de segurança, como os EUA, não conseguiram vencer o tráfico, não seria no paupérrimo estado do Maranhão, que não superou desafios muito mais simples, que se venceria. O que nos instiga é que, o tal traficante, apesar de ser amplamente conhecido, continua solto até o presente momento, e ainda segundo a Polícia Federal, o deputado nunca teria rompido relações com seu irmão, a despeito dos inúmeros crimes de que ele é acusado. Outra “coincidência” que nos instiga é que, a guerra entre quadrilhas rivais em Pedrinhas, acirrada em 2013, também coincide em datas, com o rompimento de Cutrim com a Família Sarney e sua adesão à oposição. Óbvio que tudo isso não são mais que conjecturas, baseadas nas simples coincidências de datas, feitas por um historiador. Afinal, a quem mais interessaria tais coincidências, de caráter temporal, senão a um historiador? 106 Mirim, até mesmo de Alcântara, saem de suas cidades para comprar merla em Pinheiro, que mesmo assim, segundo eles, não é em toda “boca” que se encontra. Com isso, observamos que Pinheiro ocupa um lugar central também no que se refere ao tráfico na Baixada. Drogas que são dificilmente encontradas em outras cidades menores, podem ser encontradas em Pinheiro: Pinheiro é centralizado, né?! Se a gente pegar o mapa a gente ver que Pinheiro é o centro de toda essa região, né?! De Pinheiro pra Santa Helena, de Pinheiro pra São Bento, Pra Presidente Sarney é a mesma distância praticamente. Pinheiro é um centro comercial daqui da região com certeza vem muita gente de fora pra cá, com droga... (Silva, soldado PM, Pinheiro, 03/2014). Os traficantes, na sua maioria, simplesmente pararam de comercializar merla e passaram a vender no seu lugar o crack, segundo nos dizem os usuários e as próprias estatísticas de apreensão. Os motivos pelos quais isso ocorreu são desconhecidos, mas o que podemos conjecturar é que, devido o crack ser uma droga com maior poder de causar dependência, os traficantes viram nesse fato possivelmente uma maneira mais rápida de aferir maiores lucros. Podemos apontar isso como mais um dos efeitos perniciosos do proibicionismo. Não existe nenhum tipo de controle sobre a qualidade da droga que se vende nesse mercado. E as redes de monopólio, garantida a ferro e fogo pelas quadrilhas, impedem ou dificultam a concorrência, de maneira a dar-lhes poder o suficiente para simplesmente substituir ao bel prazer uma droga que era bastante comercializada há anos no Maranhão por outra mais nociva. Ao afirmar que o proibicionismo gera um comércio de drogas que não respeita as leis de mercado, e que tende sistematicamente ao monopólio, e não está sob nenhum tipo de controle público, não queremos com isso fazer coro à tão propagada verborragia neoliberal da autorregulação do mercado e suas infinitas superioridades democráticas sobre o autoritarismo do dirigismo estatal. Queremos problematizar o fato de que, se numa economia de mercado legal na qual existem agências reguladoras de qualidade, onde vigoram leis 107 antitrustes e anti-cartéis, onde o consumidor pode tencionar lançando mão de legislações irrisórias muitas vezes, mas ainda assim existentes, contra abusos e a má qualidade dos produtos e serviços prestados pelas empresas; Se em todas essas situações do mercado legal os consumidores ainda se veem de mãos atadas frente à tirania e o poderio das grandes corporações que dominam o mercado, o que dizer de um mercado que está totalmente abaixo da lei? Em relação a essas questões, entendemos, na mesma esteira da maioria dos pesquisadores, que o proibicionismo, por estreitar violentamente o universo dos consumidores e por todas as outras questões apontadas, revela aqui um outro desdobramento nefasto, que está na raiz de processos como a substituição da merla pelo crack, isto é, a substituição de uma droga por outra mais nociva, no submundo do tráfico no Maranhão em fins da primeira década do século XXI. Ainda analisando a questão do consumo, para os consumidores que já se encontram dependentes, segundo a polícia e o depoimento dos ex-usuários, o circuito se dá 24 horas por dia, sete dias por semana, nem traficantes, nem viciados tiram folga, segundo os relatos. No entanto, ao que parece, nem todos os usuários podem se encaixar nesse perfil de viciados que se drogam 24 horas por dia, isto é, nem todos os usuários são viciados, algo revelado também nos depoimentos, por exemplo, de que há os horários e os dias de maior consumo, como é o caso dos fins de semana, no qual o consumo cresce bastante, sobretudo, por conta da folga do trabalho e porque é potencializado pelo uso de outras drogas, como o álcool. O álcool é um elemento sempre presente no depoimento dos ex-usuários: “no bar mesmo, as pessoas chegam e diz essa bebida não tá batendo, bora aqui, vamo ficar mais doidão, ficar mais loco” (Ismael, ex-usuário, Pinheiro, 03/2014). Como já apontado no capítulo anterior, o álcool é uma droga muito difundida entre os trabalhadores: É principalmente nos sábados à noite, quando os salários são pagos e o trabalho termina um pouco mais cedo, quando a classe operária sai de seus bairros miseráveis e se lança às ruas principais, que se pode constatar a embriaguez em toda a sua crueza – nessas noites, raramente se sai em Manchester 108 sem encontrar uma multidão de bêbados cambaleantes ou jazendo nas valetas; nos domingos embora em menor escala, a cena se repete. E quando o dinheiro acaba os alcoólatras vão à primeira casa de penhor que encontram [...] e deixam ali tudo que lhes resta (ENGELS, 2008, p. 165). Pelo que podemos constatar, o uso de álcool sempre, ou quase sempre, acompanha o uso de outras drogas, como o tabaco, a maconha, a cocaína, a merla ou o crack. Quando o indivíduo é viciado em alguma droga, o uso do álcool, segundo os relatos orais, desperta imediatamente o desejo de usar tal droga. O álcool anda de mãos dadas com as outras drogas. Isso é algo tão presente nos relatos dos exusuários, que nos leva a concluir que, se existe alguma droga que funciona como porta de entrada para as outras, tal como o discurso proibicionista acusa a maconha, podemos constatar que é o álcool que desempenha tal função e está presente na maioria esmagadora dos casos. Em seguida vem o tabaco: “Eu bebia normalmente, e usava nicotina só quando bebia, maconha não, fui direto pro crack...” (Jeremias, Pinheiro, 01/2014). Não ouvimos nenhum relato de alguém que usou alguma droga ilegal sem antes terem usado álcool ou tabaco durante bom tempo das suas vidas. Dessa forma, segundo os relatos dos usuários, e segundo a própria polícia, bares e locais de festa, lugares onde há grande consumo de álcool, são frequentados por traficantes e “aviões”53 na busca de usuários. É notório como a problemática do álcool, apesar de ser central em relação a questões epidemiológicas e em relação à violência a ele associada, é tratada de forma bastante branda no debate público. Uma prova disso é que houve nos últimos anos a proibição da propaganda do tabaco no Brasil e em O avião é uma figura conhecida no mundo do tráfico, também chamado de mula. É um personagem que ocupa o baixo escalão na hierarquia do tráfico. Fica responsável por transportar a droga, de um lugar para o outro, quando necessário, ou levar a droga da “boca” até o cliente em troca de dinheiro e às vezes em troca de certa quantidade de droga: “Há uma troca de favores, o que tem mais dinheiro o que tem menos, para comprar drogas, para ir aos pontos acaba financiando os que tem menos condições, de forma que essa droga eu diria até que acaba sendo socializada nesse meio, os que tem mais dinheiro usam os que tem menos dinheiro como avião para ir comprar para não se expor não correr o risco de serem pegos pela polícia, o próprio risco que é de se ir até um ponto de venda de drogas, com aquela história de violência de vingança e uns acabam financiando pros outros” (Josias, policial civil, Pinheiro, 03/ 2014). 53 109 relação ao álcool, isso não foi feito, a despeito do que apontam os estudos do tema: Estudos epidemiológicos apontam o álcool como tema prioritário de saúde. Um estudo domiciliar realizados nas maiores cidades brasileiras sugere que 12% da população entre 12 e 65 anos preenche critérios diagnósticos para dependência do álcool. [...] Cerca de metade dos casos de homicídio e violência familiar envolvem agressores embriagados. [...] Uma parcela significativa de acidentes de trânsito e de trabalho também está associada ao consumo indevido de álcool. [...] No entanto, a frequência de matérias jornalísticas publicadas sobre álcool no país, apesar de crescente, ainda tende a ser menor do que o observado para as drogas ilegais, como maconha, cocaína e crack (NOTO et al., 2013, p. 279-280). As drogas ilícitas são mais comumente ligadas, pela mídia, aos casos de violência do que o consumo do álcool, mesmo quando os números das pesquisas apontam o contrário: Para as drogas ilegais, ao contrário, a mídia tende ao exagero. São frequentes as manchetes sensacionalistas e o uso de termos pejorativos como viciados, drogados e maconheiros, permeados de sérios equívocos de informação. Nos últimos anos foram crescentes as matérias sobre caso de violência associado ao crack e cocaína, com manchetes como ‘Menor mata a avó com 70 facadas após usar cocaína/crack’ (Folha de São Paulo). Porém, um estudo epidemiológico domiciliar realizado em São Paulo, identificou que os casos de violência física associado aos derivados de cocaína são cerca de cinco vezes superados pelos casos associados ao álcool, os quais são bem menos divulgados na imprensa (NOTO et al., 2013, p. 280). Conforme vimos no capítulo anterior, a política proibicionista se ancora, dentre outras coisas, nesses alardes sensacionalistas desprovidos, na maioria esmagadora dos casos, de base científica. Obviamente que quando se trata da questão das drogas ilícitas, tais políticas, tão debilmente embasadas, visam atender interesses políticos, sociais e econômicos específicos, bem distantes dos enfoques que são mais urgentes e necessários à saúde e bem estar da população. O descompasso que existe entre os resultados das inúmeras pesquisas sobre o tema e o que a mídia e o poder público resolve focar, não é à toa: “esses descompassos podem refletir em distorções na agenda das políticas de saúde” (NOTO et al., 2013, p. 279) e estão longe de representar algum tipo de avanço para as políticas públicas, pois costumam encobrir os verdadeiros problemas presentes na sociedade: 110 Fenômeno similar foi anteriormente descrito em outros países. Hartman & Golub (1999) analisando matérias da década de 90, perceberam que a imprensa americana criou um pânico em relação a uma possível epidemia de crack. Os autores consideraram que essa visão equivocada ‘do problema’ teria sido construída pelos meios de comunicação e, provavelmente ajudou a desviar a atenção da população de problemas estruturais persistentes, como desemprego, condições de saúde geral, entre outros (NOTO et al., 2013, p. 280). Na esteira da problemática do consumo, observamos que, além dos fins de semana, os finais de tarde, durante os dias úteis da semana são também horários de grande consumo. Segundo os relatos, este é o horário que o indivíduo sai do trabalho, ou da escola, ou de outras ocupações e vai até a “boca”, para “descolar”54 a droga. De maneira que, segundo os dirigentes e coordenadores da Fazenda do Amor Misericordioso, no final da tarde, por volta das 18h00 sempre é uma hora bastante delicada, na qual a abstinência vem com mais força e é a hora que os coordenadores da Fazenda tentam manter os internos mais ocupados, executando inúmeras tarefas, ou se reunindo para fazer orações. Nessa hora, nas palavras de coordenadores e usuários, não pode haver ociosidade, senão corre o risco do indivíduo desistir do tratamento e ser vencido pela abstinência. Esse relato sobre a problemática do fim de tarde é bastante significativa por vários aspectos. Primeiramente, podemos observar que a maioria esmagadora dos usuários não são desocupados ou vagabundos, como muitas vezes os discursos conservadores tendem a apontar e como acredita a própria polícia pinheirense: “O cara ele é viciado, não tem emprego, ele não trabalha na maioria das vezes, não tem de onde tirar e o que acontece? Ele vai praticar crimes, vai praticar furtos, pra manter o vício.” (Silva, soldado PM, Pinheiro, 03/2014). Os usuários, na verdade, são, na sua maioria, trabalhadores, não são diferentes da maioria das pessoas comuns e utilizam a droga após uma jornada exaustiva de trabalho. Não se diferenciando em nada do sujeito que após um dia longo de trabalho duro, senta numa mesa de bar para tomar uma cerveja gelada e relaxar um pouco antes de ir para casa. 54 Comprar 111 Não resta dúvida que a rotina exaustiva de trabalho aos quais são sujeitados inúmeros trabalhadores do Brasil e do mundo, acaba por transformar as drogas em uma fuga, uma válvula de escape dessa rotina sofrida. Engels, reconheceu isso, em meados do século XIX em relação à expansão do consumo de álcool nos meios operários das cidades industriais inglesas55. Ademais, como vimos anteriormente, o cenário não é tão radicalmente diferente ao ponto de não podermos fazer comparações com o que estamos analisando. É notório como essa imagem que reconhece nos usuários de droga nada mais que pessoas comuns, contrasta com a imagem do viciado, marginalizado e mendicante, ou os chamados “zumbis” do crack, que tendem a identificar somente os usuários em alto grau de dependência, como é comum nas chamadas “cracolândias”56, retratadas na rede televisiva que propagandeia que tais usuários são o consumidor por excelência das drogas, sobretudo do crack: A imprensa também representa um dos elementos que refletem e reforçam um conjunto de crenças e valores negativo sobre o uso de drogas, estimulando o estigma social e dificultando algumas ações de saúde. A ANDI [Agência de Notícias dos Direitos da Infância] conduziu análise de textos jornalísticos sobre drogas, entre 2002 e 2003. Foi observado que 28% dos textos associaram o tema drogas com algum tipo de violência ou crime. Para os autores, esse tipo de matéria ajuda a construir um estereotipo do usuário ligado diretamente a essas práticas. Essa visão estimula o medo e dificulta o estabelecimento de relação de cuidado entre profissionais de “O fato de os operários se embebedarem não pode espantar a ninguém. O sheriff Alison afirma que em Glasgow, todas as noites de domingo, 30 mil operários se embriagam e, certamente, esse número não é exagerado; informa que nessa cidade em 1830, havia uma taberna para cada doze imóveis e, em 1840, uma para cada dez [...] E quando pensamos que, além das consequências habituais do alcoolismo, homens e mulheres de todas as idades, mesmo crianças, até mulheres com filhos pequenos nos braços, encontram-se nas tabernas com as vítimas mais degradadas do regime burguês, ladrões, escroques, prostitutas, quando pensamos que é comum as mães darem álcool aos pequenos que ainda têm nos braços, não podemos deixar de reconhecer que a frequência a esses locais favorece a degradação” (ENGELS, 2008, pp. 164-165). 56 As cracolândias são entendidas pelos estudiosos da seguinte maneira: “O processo de cronificação territorial pode ser traduzido como procedimento de demarcação de determinados espaços pela incapacidade de controle, devendo, portanto, ser etiquetado e separado dos demais para não ser confundido. Trata-se de uma dinâmica inerente a todas as sociedades, como zona portuária e a zona de prostituição, entre outras. Nesse caso particular, trata-se do espaço do crack [...] se configura como substância usada pela população ocupante ou formadora do lugar cronificado denominado ‘cracolândia’” (MEDEIROS, 2010, p. 179). 55 112 saúde e pacientes dependentes (SILVEIRA et al., 2013, p. 282283). Quando, ao conversarmos com os usuários em Pinheiro, percebemos, segundo seus relatos, que os usuários de droga são indivíduos de todas as classes sociais e das mais diversas profissões, muitos dependentes, que apesar de terem sofrido problemas com a droga, reconhecem que existem muitas pessoas que utilizam drogas, inclusive crack e levam uma vida relativamente normal. O que não parece ser algo tão inconcebível, quando paramos para pensar no fato de que um mercado global e bilionário não poderia ser sustentado apenas por dependentes mendicantes. Os estudos nesse campo corroboram com o que nos dizem alguns relatos: No caso dos usuários de crack, não é apropriado afirmar que, em sua totalidade, são sujeitos impossibilitados ou incapazes de fazer escolhas, embora existam alguns que se incluem no rol de indivíduos com idoneidade limitada, restrita, vivendo em um contexto social deteriorado. Porém, existem outros que podem usar temporariamente drogas lícitas ou ilícitas, inclusive crack, e não atravancar suas relações no cotidiano. Existem aqueles que fazem uso continuado da substância em um ritual ou isolado, independentemente de ser por razões lúdicas ou por questões psíquicas ou simplesmente pelo prazer, sem alterar sua rotina de vida, e outros usam para aguçar as sensações e para fazer com que os problemas sejam silenciados, e os conflitos sejam minimizados ou para encontrar harmonia, ainda que reconheçam os riscos a que estão expostos, exatamente pela ilegalidade do ato (MEDEIROS, 2010, p. 178). A partir dos relatos, ou mesmo segundo as profissões dos próprios usuários que conhecemos durante a pesquisa, constatamos que usuários de crack não são apenas os “zumbis” da “cracolândia”, mas são advogados, professores, pedreiros, ajudantes de pedreiros, mecânicos, comerciantes, donos de supermercados, empresários, políticos, bancários e professores universitários: Tem um ditado que de onde a gente menos espera é que surgem as coisas. Hoje tem gente da alta sociedade, de famílias de renome na cidade que usam drogas. Todas as classes sociais, tá mesclado, tá misturado, da mesma forma daqueles que já andam mal vestido que já andam sujo, que andam com aquele cabelo estilo moicano, entendeu? que não se cuida, usa! Tem pessoa da alta sociedade, que tem bons empregos, que tem uma aparência mesmo bem vistosa na sociedade, que usam drogas, é difícil a gente distinguir um perfil dos usuários de droga hoje. (Ramos, soldado PM, Pinheiro, 02/2014). 113 Muitos usuários levam uma vida relativamente normal sem chegarem ao fundo do poço da mendicância. Gerentes de bancos que, ao término do expediente estressante, procuram o traficante para “cheirar uma carreira de pó” ou “pipar57 uma pedra de crack”, uma gama muito grande de trabalhadores que são usuários esporádicos: Da mesma forma as matérias jornalísticas tendem a ser inespecíficas quanto aos padrões de consumo de substâncias, generalizando conceitos e contribuindo para a desinformação da sociedade sobre diversidade do uso de drogas. No estudo realizado pela ANDI (2005) os principais termos encontrados em matérias sobre drogas apontavam o usuário como bêbado, dependente, viciado e drogado, colocando em um mesmo patamar os usuários esporádicos e dependentes (SILVEIRA et al., 2013,p. 283). Aquilo que às vezes chamamos de submundo da droga, está presente em tantos lugares insuspeitos que só nos resta concluir que esse submundo é na verdade o próprio mundo que vivemos! Mesmo que seja mais conveniente a uma sociedade que quer jogar para debaixo do tapete os drogados que ela mesma produz, e, portanto, tende a relegar a identidade de drogado apenas a viciados que se esgueiram nas sarjetas. Existe uma interdição tão grande sobre esse fato, que, ao falarmos isso, algumas pessoas podem interpretar que a posição que estamos defendendo é: “usar crack não é tão ruim assim, vá lá e experimente você também!”. O nosso ponto de vista está muito longe dessas ingenuidades apologéticas, nossa visão sobre esse fenômeno é bem mais complexa. Queremos chamar atenção que a estigmatização sistemática, resultado da política proibicionista, que se faz de usuários de drogas, especialmente de crack, muitas vezes não está de acordo com a realidade: Já foi identificada a existência do ‘uso controlado de crack’, caracterizado como um consumo ao longo prazo não diário e racional, em que o usuário, por meio de estratégias de autocontrole, não tem permitido que a necessidade pela droga governe sua vida (VIEIRA, 2010, p. 103-104). Não somos ingênuos: usar crack é muito perigoso, já está provado que causa inúmeros males à saúde, inclusive maior do que muitas Gíria utilizada pelos usuários que significa fumar uma pedra de crack. Para aprofundamento sobre a questão do léxico no consumo de drogas na cidade de São Luís, ver: Silva (2013). 57 114 outras drogas, e causa dependência assim como o álcool ou o tabaco, o que não quer dizer que todos os usuários de crack sejam viciados mendicantes, assim como nem todo usuário de álcool é um alcóolatra inveterado. Queremos apontar o fato muito simples, mesmo que pareça bastante estranho aos ouvidos leigos que nem todo usuário de crack é um viciado em crack. Não há uma coincidência de 100% entre o número de usuários e de dependentes. Vale ressaltar que a grande maioria de usuários de drogas não são dependentes e o desenvolvimento de problemas relativo ao uso de drogas se dá por meio de uma complexa interação de diversos fatores biológicos, psicológicos e sociais, sendo errôneo supor que o dependente é o único responsável sobre sua condição. Essa tendência em não abrir espaço para a discussão multidisciplinar destaca o dependente ou a própria droga como ‘bode expiatório’ de um fenômeno que envolve questões estruturais da sociedade, que muitas vezes não são comodamente tratadas, mas que estão diretamente implicadas no desenvolvimento da dependência, como por exemplo o crescimento da desigualdade social (SILVEIRA et al., 2013,p. 283). Nem mesmo no caso do tabaco, a totalidade dos seus usuários é dependente, mesmo sendo apontada por muitos estudiosos como sendo uma das drogas que mais dependência química provoca58. É muito difícil romper com o senso comum quando tratamos de tabus tão profundamente enraizados. Porém o pesquisador não pode renunciar a esses desafios, como nos lembra Bourdieu (2007, p. 34): Construir um objeto científico é, antes de mais e sobretudo, romper com o senso comum, quer dizer, com representações partilhadas por todos, quer se trate dos simples lugarescomuns da existência vulgar, quer se trate das representações oficiais, frequentemente inscrita nas instituições. Não temos dúvidas sobre isso: constatar alguns desses fatos durante a nossa pesquisa foi uma surpresa para nós tão grande como deve estar sendo para os leitores. Constatamos indivíduos das profissões mais distintas e das mais distintas classes sociais, usando vários tipos de droga. É bem verdade que há uma relação entre certo O médico Drauzio Varella, um dos pioneiros no Brasil a tratar de detentos usuários de droga e portanto grande autoridade no que se refere a tratamento de dependentes químicos afirma que era mais fácil os dependentes deixarem de usar crack do que deixarem de usar o tabaco: “Conseguiam se livrar do crack, mas poucos deixavam de usar o cigarro. Tantos foram os casos que acabei convencido de que a nicotina é a substância que mais dependência química provoca” (VARELLA, 1999, p. 137). 58 115 tipo de droga e a classe social que o usuário pertence e pode pagar. Mas esses critérios não são tão rígidos. A cocaína, por exemplo, é utilizada por usuários que tem um poder aquisitivo maior, não apenas por se tratar de uma droga cara, mas pela “conveniência” do tipo de uso que ela engendra. Quem tem dinheiro gosta mais da cocaína, né?! Pouco usa o crack, gosta mais da cocaína, por que a cocaína, assim... eu acho pra eles é mais fácil, é mais fácil deles possuir, de carregar... e de usar, eles num preciso tá quebrando, mesclando, fazendo fumaça, muito simples de usar... não precisa se esconder, não deixa cheiro... (Rafael, Pinheiro, 01/2014). A cocaína não deixa “rastro”, não deixa mau cheiro, ou olhos vermelhos, etc. Nas palavras dos usuários, “a pessoa não precisa se ‘intocar’ [esconder] pra usar cocaína”, uma rápida ida ao banheiro, em menos de um minuto a droga pode ser consumida, sem deixar mau cheiro ou mudar o semblante da pessoa, como é o caso da maconha e do crack. Uma droga “perfeita”, para quem frequenta a alta sociedade, uma droga higiênica, sem vestígio aparente. A cocaína, por suas características estimulantes também é bastante utilizada em festas, ativa o sistema nervoso, retirando o sono e deixa o usuário “pilhado”, isto é, em estado de excitação. Também é bastante utilizada junto com o álcool. Seus efeitos estimulantes já foram largamente registrados na arte e na literatura: Cocaína é como eletricidade correndo pelo cérebro, sua fissura é puramente cerebral, uma fissura desprovida de corpo e emoção, o cérebro ativado pela cocaína é uma máquina de pinbal enlouquecida, piscando luzes azuis e cor-de-rosa no auge do seu orgasmo elétrico. O prazer da cocaína poderia ser experimentado por um computador como se se tratasse dos primeiros movimentos de uma forma de vida repugnante e invertebrada. O desejo pela cocaína não dura mais que algumas horas, apenas enquanto os circuitos da cocaína permanecem estimulados. Não tenho dúvidas que o efeito da cocaína poderia ser facilmente reproduzido por uma corrente elétrica que ativasse os circuitos da droga no cérebro... (BURROUGHS, 2005b, p. 33). Todos os usuários de cocaína que tivemos contato em Pinheiro, tinham padrão de vida elevado, e associavam o uso da cocaína com festas e noites de diversão. É interessante perceber que essas pessoas estão livres de serem taxadas de zumbis ou congênere, os usuários de 116 cocaína estão menos sujeitos a estigmas vexatórios quando comparados aos usuários de crack. O recorte classista do estigma nessa situação é muito claro59. O que não está tão claro é: se a cocaína é uma droga de preferência dos ricos por conta de não ter estigmas tão pesados sobre ela ou não existem estigmas pesados sobre ela por que ela é uma droga de ricos? É difícil chegar a uma opinião conclusiva que não admita minimamente que há uma lógica que se retroalimenta entre as duas possibilidades. Dessa forma, observamos que o estigma que tende a identificar o usuário como dependente é o mesmo estigma que o identifica como um potencial criminoso. Por isso, problematizar e relativizar essa questão da diferenciação entre usuários esporádicos e usuários dependentes é atacar o âmago da estigmatização que, conforme as pesquisas na área, não possuem base real. Em relação aos outros aspectos da dinâmica do tráfico em Pinheiro, segundo policiais e usuários, um dos “aviões” frequentes que transporta a droga até o usuário ou o usuário até a droga, são taxistas e principalmente moto-taxistas: Geralmente são moto-taxistas, que as vezes leva alguém pra lá, pra comprar alguma coisa, normalmente quando a gente percebe que tá indo pra lá um moto-taxista ou um taxi pra lá, pra Rua da Lama, ou tá vindo duma Boca dessa que a gente já sabe, conhece, a gente já chega, já vai abordando (Silva, soldado PM, Pinheiro, 03/2014). Segundo os policiais, ver moto-taxista rondando a “Rua da Lama” é atividade altamente suspeita, sujeito a abordagem e, caso exista alguma irregularidade, encaminhamento para a delegacia: Na maioria das vezes os usuários pegam o moto taxi, inclusive tem pessoas que tem colete de moto-taxi, que trabalha de moto-taxi pra fazer esse serviço, chega lá, diz que quer comprar droga e ele indica a casa que tem, quando eles não tem logo ali, normalmente eles indicam a casa que tem a pessoa vai e compra, assim que se dá o comércio. Os policiais da inteligência que são infiltrados eles vão também como compradores, pra fazer o levantamento, fazer o mapeamento (Ramos, soldado PM, Pinheiro 02/2014). “Aqui só é humilhado o pobre que usa droga/ Nunca o boy dono da plantação de coca/ A lente não faz foco em condutor de Maranello/ Com personal trainer e endereço em Campo Belo... (Letra da música “Aperte o gatilho por favor,”, da banda paulista de rap Facção Central). 59 117 Óbvio que a própria polícia reconhece que é uma minoria entre os moto-taxistas que fazem esse tipo de serviço, mas é muito difícil diferenciar uns dos outros. Para os policiais, o simples fato de aceitar uma corrida para a “Rua da Lama” já é um indício de que o taxista ou o moto-taxista colabora com o tráfico: O motorista diz que não tem nada, o cara diz que sobe no carro dele ou no moto taxi, e pede pra fazer uma corrida pra lá, o motorista diz que não sabe de nada. Ai eu discordo com ele, meu irmão tu sabe! Um cara que chega aqui te pede uma corrida pra tu levar ele lá na Rua da Lama tu sabe o que vai fazer! tu conhece! (Silva, soldado PM, 03/2014). Um lugar onde há bastante consumo de drogas, muito presente nos relatos de usuários, são os motéis. Quem não pode utilizar sua própria casa, por conta da família se opor ao consumo de drogas ilícitas, por exemplo, e dispõe de recursos financeiros para tanto, recorre muitas vezes aos motéis, segundo os usuários, porque é um lugar privado onde se desfruta de tranquilidade o suficiente para utilizar a droga, longe da polícia e de outros olhares inconvenientes. O motel é um espaço chave também porque o uso de drogas se vincula às relações sexuais. Muitos vêem na droga um estimulante sexual. O uso de drogas na cidade de Pinheiro algumas vezes também está associado à prostituição. É muito presente relatos de ocasiões no qual aparecem mulheres dispostas a prestar serviços sexuais em troca de drogas. Os policiais afirmam que a repressão ao tráfico em Pinheiro é muito difícil de fazer, quando eles acirram a repressão numa localidade os traficantes fogem para outras, e mais tarde quando a polícia abandona essa localidade, os traficantes retornam: Lá na Rua da Lama, traficante já foi preso, já foi feito emboscada, tanta quantidade de droga que já foi tirada de lá, que já foi presa, mas não acaba [...] Hoje em Pinheiro quando tu fecha uma boca, abre duas em outro lugar, se tu fecha uma aqui, abre duas ali. Aqui toda hora, por semana a gente quebra60, duas, três bocas, a gente fecha prende por tráfico [...] mas quando a gente fecha ali, já tem a denúncia que já abriu outra em outro lugar. Todo tempo é isso ai, todo tempo! A gente sai daqui, e vai pra outro lugar. É muito difícil, nunca tinha 60 “Quebrar uma boca” ou “estourar uma boca” são os termos que os policiais utilizam quando querem se referir as operações policiais feitas nas bocas de fumo com intuito de prender traficantes e apreender drogas. 118 visto uma coisa tão complicada como isso (Silva, soldado PM, 03/2014). Os próprios policiais reconhecem que a pobreza e a falta de oportunidades em Pinheiro é um dos vetores que contribui para que nunca falte mão de obra para o tráfico. Mesmo aumentando o número dos traficantes presos e o volume de apreensões, o tráfico, segundo os policiais, nunca dá sintomas de que está recuando, não importa o quanto a repressão aumente. É bem verdade que a repressão ao tráfico em Pinheiro seja basicamente a repressão ao varejo do tráfico, os grandes traficantes atacadistas ou a lavagem de dinheiro dificilmente são alvos de alguma operação policial: Infelizmente os que são presos são os pequenos, os peixes pequenos que a gente fala, na verdade mesmo, os grandes traficantes que manda droga pra cá, a gente não consegue pegar. A gente tá pegando aqui só o receptor (Silva, Soldado PM, Pinheiro, 03/2014). Assim, a guerra ao tráfico em Pinheiro, como na maior parte do Brasil e do mundo, se resume ao combate ao pequeno traficante que se instala nas regiões pobres das cidades e contribuindo para que a vida das populações que moram nessas regiões pobres seja ainda mais difícil. Apesar da dificuldade de combater o tráfico, e um cenário descreditado frente à possibilidade de vencê-lo, ainda assim, paradoxalmente, todos os policiais militares entrevistados, sem exceção, são contrários à legalização das drogas. Para eles, a despeito do que dizem os pesquisadores e especialistas no assunto, a legalização beneficiaria o tráfico e pioraria o problema, pois aumentaria o consumo e, na visão dos policiais, todo usuário é um criminoso em potencial, pois mais cedo ou mais tarde, ele ficará sem dinheiro para comprar drogas e para sustentar seu vício (porque todo usuário é também viciado, na visão deles), vai praticar crimes, como roubos, assaltos, assassinatos, etc. Apenas uma autoridade policial se posicionou favoravelmente à legalização, contudo, condicionando tal legalização apenas se anteriormente forem superados outros problemas como a 119 questão da desigualdade econômica e social e da falta de acesso a educação de qualidade. 3.2.1 Diferenciação entre traficantes e usuários por parte da polícia Como nos lembrou o delegado regional de Pinheiro, não existe legislação no Brasil que estabeleça uma determinada quantidade de droga para caracterizar se trata de usuário ou de traficante aquele que for pego em posse de drogas. Como não é a quantidade que determina a diferenciação entre ambos, fica a cargo da interpretação por parte das autoridades diferenciar traficante de usuário. Segundo as palavras do delegado; A lei não diz quem é traficante quem é usuário, as circunstâncias da prisão dessa pessoa, a partir de uma análise das circunstâncias que o delegado vai ter que dá um despacho fundamentando, levando-se em consideração a quantidade e as circunstâncias de apreensão dessa droga (delegado titular da Delegacia Regional de Pinheiro, 03/2014). Dessa forma, fica a critério de interpretação das autoridades policiais a diferenciação entre traficantes e usuários, haja vista que nem sempre a quantidade é um fator determinante. O delegado cita alguns exemplos para ilustrar: Por exemplo, o cidadão que é pego com 10 cigarros de maconha ou com 20 cigarros de maconha ele não tem como justificar que aqueles 20 cigarros eram destinados ao consumo porque ninguém vai consumir 20 cigarros de maconha, isso deve dá umas 50 gramas. Mas aquela pessoa, por exemplo, que é pego com uma lata de leite ninho, cheia até na metade de maconha com uma quantidade que chega a ser o dobro desses 20 cigarros, mas ela pode chegar e dizer na polícia que aquela droga ela comprou pra ela pro consumo mensal porque não queria ir todos os dias a denominada boca de fumo pra não correr o risco de ser pego pela polícia, ora, esse argumento é um argumento plausível pra que a polícia a considere consumidora, embora a quantidade tenha sido bem maior do que aquele primeiro exemplo que dei anteriormente do cidadão que foi pego 20 cigarros (delegado titular da Delegacia Regional de Pinheiro, 03/2014). Outras questões podem ser levadas em conta na hora de diferenciar traficantes de usuário, como a presença de balanças ou material para embalagem: 120 Então que vai definir pra polícia se o cidadão se adequa ao caso de consumidor ou de traficante são as circunstância. Por exemplo, se ele é pego com três cigarros de maconha mais material para embalar droga, mais balança de precisão, a autoridade policial vai concluir que aquele cidadão trata-se de um traficante. Então não existe uma quantidade específica. As circunstâncias é que vão definir se o cidadão é traficante ou consumidor de drogas, né?! (delegado titular da Delegacia Regional de Pinheiro, 03/2014). Como podemos ver, a diferenciação entre traficantes e usuários é cheia de nuances. Nas palavras do delegado, não existe uma aritmética exata, para diferenciar um do outro, é levado em conta diversas circunstâncias, além dos antecedentes criminais do indivíduo em questão. Isso tudo se deve porque a lei brasileira prevê penas diferenciadas a usuários e traficantes, pelo crime de tráfico o individuo pode pegar de 05 a 15 anos de reclusão, enquanto para os usuários as penas são mais brandas, porém não inexistentes como muitos pensam, o consumo de drogas ilícitas ainda é crime no Brasil, como nos revela o delegado Regional de Pinheiro: Ao contrário do que muita gente pensa, pela nossa legislação, o consumo de substância entorpecentes ainda é considerado crime, não vai se impor mais é prisão em flagrante, mas o juiz pode dentre de muitas outras impor pena de multa e tratamento pra aquela pessoa que tem o caráter de pena se ela se torna obrigatório. Então muitas pessoas pensam que consumir substâncias entorpecentes não é mais crime, ainda continua sendo crime só que não se impõe mais prisão em flagrante. Ele é conduzido à delegacia, é formalizado o procedimento e é encaminhado ao poder judiciário, ele vai responder a processo... (delegado titular da Delegacia Regional de Pinheiro, 03/2014). Para muitos estudiosos, como Zaccone (2013), é exatamente a ausência de critérios claros que diferenciem traficantes de usuários, um dos fatores que abre margem para um problema muito grande na questão penal em relação ao tráfico no Brasil, que tem como resultado a punição sistemática de quase que exclusivamente os mais pobres, sobretudo, aqueles que ocupam a baixa hierarquia do tráfico, ou até mesmo usuários pobres, que não contam com poder financeiro para pagar uma assistência jurídica de qualidade, enquanto aqueles que possuem recursos conseguem se livrar das penas mais duras. Dessa forma o sistema judiciário tende a reproduzir as relações de classes 121 reinantes na sociedade. Aos mais pobres são destinados as penas mais duras, e aos mais ricos penas mais brandas. É sobre isso que trata o texto “Meu nome não é Tuchinha”, publicado no jornal O Globo61 pelo desembargador do Rio de Janeiro Siro Darlan. Com esse título irônico o desembargador quer relacionar dois casos, um deles, amplamente conhecido a partir do Filme “Meu nome não é Johnny” da diretora Mariza Leão, baseado em fatos reais, que conta a história de um dos maiores vendedores de droga do Rio de Janeiro que no fim acabou cumprindo uma pena de usuário e provavelmente por isso, por ter recebido uma pena mais branda, acabou se regenerando, como destaca o desembargador: João Estrella não é um traficante, e sim um comerciante de drogas. Traficantes só são assim chamados os de origem humilde que moram nas favelas e comunidades. Contou com um bom advogado que garantiu uma rápida passagem pelo coletivo do Manicômio, logo ascendendo para um trabalho burocrático que ajudou o tempo a passar mais rápido e permitiu alguns privilégios comprados graças a seu poder econômico, como a visita íntima, comida e cigarros (DARLAN, 07/02/08, Jornal O Globo). O outro caso diferente tragicamente, mas da mesma época, revela uma trajetória bem diferente por parte de outro traficante: Francisco Paulo Testas Monteiro, o "Tuchinha", na mesma época em que João vendia drogas no Brasil e no exterior, exercia a mesma atividade no Morro da Mangueira. Foi condenado a 43 anos de prisão e após cumprir mais de um terço da pena com bom comportamento carcerário foi colocado pelo juiz da Vara de Execuções Penais em liberdade condicional, como manda a lei (DARLAN, 07/02/08, Jornal O Globo). No entanto, a vida fora da prisão para “Tuchinha” foi bem mais complicada do que para João Estrela: "Tuchinha" voltou para sua comunidade na Mangueira e tentou mudar de vida. Dedicou-se à música e à poesia, tendo vencido dois concorridos festivais de samba na própria Mangueira e na Lins Imperial. Assumiu seu nome artístico de Francisco do Pagode como uma forma de afastar-se de sua antiga personalidade ligada ao crime, assim como João abominou seu nome de comerciante de drogas que deu título ao filme "Meu nome não é Johnny". Mas ninguém o deixou em paz um só minuto. Foi vigiado, escutado, criticado e sua resistência sendo minada porque a ele e a tantos outros não é dado o direito de Publicado do dia 07/02/08, disponível em: http://oglobo.globo.com/in/meu-nomenao-tuchinha-3976356 . Acessado em Novembro de 2013. 61 122 mudar de vida. Uma vez traficante marca-se sua vida, seu corpo, como uma tatuagem da qual eles não se podem ver livres, ainda que queiram (DARLAN, 07/02/08, Jornal O Globo). Essa comparação muito bem ilustrada pelo desembargador que possui larga experiência na área serve para ilustrar um dos inúmeros casos da diferenciação de classe feita pela justiça e pelo seu aparato penal, que reforça nosso argumento central sustentado ao longo de todo esse trabalho, que as maiores vítimas do processo de criminalização das drogas são as populações mais pobres. A diferenciação classista, que tende a dar penas mais brandas a uns e mais duras a outros, mesmo se tratando do mesmo crime é mais um fato que se soma a todos os anteriormente apontados que sustenta nosso argumento central de que a “guerra às drogas” significa na prática “guerra aos pobres”, a despeito do que argumentam seus ideólogos e as supostas intenções declaradas dessa guerra. 123 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao examinarmos criticamente o paradigma proibicionista, dialogando com a literatura do tema, sustentamos o argumento de que, além de ser uma política que se alinha aos interesses globais do imperialismo norte-americano, atende a interesses internos das nações que elegeram o caminho da repressão, pois serve como instrumento de disciplinamento e de vigilância permanente de grupos socialmente marginalizados. Trata-se de uma política que recrudesce o Estado penal vigente nos países que desde meados da década de 1970, com a falência do Estado de bem estar social, elegeram o modelo neoliberal que desregulamenta o mercado, privatiza os serviços públicos, precariza as condições de trabalho e aumenta as desigualdades sociais, conforme aponta Wacquant (2008). A “guerra às drogas” tem a mesma lógica do neoliberalismo que é a de encarceramento em massa, em que uma política complementa a outra, pois, conforme demonstramos, na prática, não existe uma criminalização de substâncias químicas, mas sim a criminalização de sujeitos sociais bem específicos e de povos que de alguma maneira estejam associados a essas substâncias. Se levarmos em conta apenas os objetivos declarados do proibicionismo, que seria o combate à produção, à distribuição, à circulação e o consumo de determinadas substâncias químicas, não restaria dúvidas de que constataríamos um fracasso retumbante. Pois o consumo de drogas só aumentou durante os anos em que o proibicionismo se impôs como paradigma global, e todos os usuários e ex-usuários de drogas que entrevistamos foram unânimes em dizer que o acesso às drogas ilícitas é muito fácil, a própria polícia reconhece isso. E em relação ao cenário internacional não vemos algo diferente, pois o consumo e o comércio de drogas ilícitas têm aumentado em todo o mundo, apesar dos bilhões de dólares jogados pelo ralo da repressão, dinheiro que poderia estar servindo para o combate de outros problemas sociais graves. No entanto, apesar de fracassar em seus objetivos declarados, o proibicionismo é bastante eficaz no que se refere 124 à sua instrumentalização como ferramenta de controle social e de opressão de grupos sociais não hegemônicos. No entanto, o tráfico territorializado no Brasil, e especificamente no caso da Rua Agostinho Ramalho, “Rua da Lama” na cidade de Pinheiro, tem aspectos ainda mais graves por trazer esse problema ao interior de bairros onde reside uma população empobrecida. Dessa forma, o tráfico territorializado contribui enormemente para o aumento dos problemas em condições sociais já deterioradas. Conforme analisamos a partir dos relatos de policiais, usuários e ex-usuários de drogas e moradores do bairro Floresta, a presença do tráfico contribui para o aumento da violência nessas regiões. É preciso diferenciar a presença do tráfico, da presença das drogas. De acordo com o exposto, não resta dúvida que as drogas, quaisquer que sejam elas, lícitas ou ilícitas, contribuem para o aumento de problemas, sobretudo de violência, infelizmente bastante presente nos bairros pobres. Porém, concluímos que a presença do tráfico é muito mais nefasta do que a simples presença do consumo de substâncias químicas. Como vimos, o tráfico territorializado tem uma lógica mais violenta do que outras modalidades de tráfico e impõe um controle armado sobre um território e sobre a população que ali reside. Com um monopólio garantido pela violência sobre um mercado bilionário (a nível mundial), as quadrilhas possuem dinheiro suficiente para se armar e corromper agentes estatais e de maneira covarde utilizam a população pobre desses bairros onde se infiltram como escudo humano e como fonte de mão de obra barata e descartável. O tráfico territorializado muito mais que o simples consumo das drogas alimenta um contexto social de medo, violência e de tirania por parte dessas quadrilhas aos cidadãos em geral que não possuem recursos financeiros para buscar alternativas melhores de moradia, produzindo dessa maneira uma situação de guerra aos pobres, encoberta pelo véu de guerra às drogas. A repressão ao tráfico por parte da polícia centra-se quase que exclusivamente nas “bocas de fumo”, que se localizam nesses bairros, apesar de serem apenas a “ponta do 125 iceberg”, de uma rede complexa de relações comerciais. O que alimenta uma lógica de criminalização da pobreza e de estigmatização dos bairros onde se localizam essas bocas de fumo. O fato é que o proibicionismo e a guerra às drogas causam mais problemas do que as drogas em si. A presença do tráfico também impede qualquer controle de qualidade sobre as drogas comercializadas. A substituição da merla pelo crack no Maranhão dentro do período que analisamos de 2005 a 2011, significou na prática a imposição por parte dos traficantes de uma droga mais nefasta, com maior poder de causar dependência, aumentando assim suas vendas à custa da saúde dos usuários. Por essa e outras razões, a legalização de todas as drogas é apontada pelos estudiosos críticos do proibicionismo que discutimos ao longo do trabalho, como única saída para vencer o tráfico em todas as suas modalidades. Não porque entendem ingenuamente que o consumo de drogas é algo inofensivo, mas porque compreendem que a legalização quebraria a espinha dorsal do tráfico, que é o monopólio sobre uma mercadoria valiosa e bastante procurada, que serve a essas quadrilhas como principal fonte de renda para o financiamento de inúmeros outros crimes. Ao mesmo tempo em que traria o problema para o seu devido lugar que é a questão da saúde pública, principalmente no caso dos usuários dependentes que necessitam de ajudas médicas, tirando assim o problema do campo da segurança pública onde há uma tendência de criminalizar pessoas doentes que necessitam de tratamento, ou mesmo pessoas comuns que utilizam a droga como uma forma de recreação, fonte de prazer, ou para demais pessoas que as utilizam em rituais de natureza terapêutica ou religiosa. O tema da legalização, apesar de ser um debate bastante avançado entre os estudiosos e mais difundido em outros países, ainda é um tabu na sociedade brasileira. Basta dizer que praticamente todas as pessoas que entrevistamos, moradores, autoridades policiais e exusuários, disseram ser contra a legalização das drogas. Um dos motivos mais alegados nos depoimentos, principalmente por parte da polícia, é a extensão da identidade de delinquente e de viciado a todos os usuários 126 de droga. Dessa forma, quando colocamos sob exame crítico essa identificação, constatamos que nem todo usuário, mesmo de drogas nefastas como é o caso do crack, é um dependente químico, ou viciado como aparece em alguns depoimentos. Há inúmeras propostas de legalização e praticamente todas elas incluem também proibições e restrições, afinal, não há modelos que se sustentem com o mínimo de seriedade sem impor determinados limites. Não era proposito desse trabalho delinear as características de cada modelo de legalização. Contudo, entendemos que a única forma democrática de enfrentar esse grave problema global, é difundir e debater as mais diversas propostas à exaustão, garantido de maneira democrática alternativas no horizonte de expectativas que estejam além do monolitismo do proibicionismo. 127 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Boitempo. São Paulo. 2004. ALBUQUERQUE, Bernardo Starling. Idade doida da pedra: configurações históricas e antropológicas do crack na contemporaneidade. 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Na sua opinião o tráfico está entre os crimes mais graves dessa cidade? 4) Quais são as outras localidades onde há presença de traficantes em Pinheiro? 5) Numa área que é conhecida por ter bastante presença de traficantes e usuários, como é o caso da Rua da Lama, como é a abordagem nesses locais? 6) Quando começou o tráfico na Rua da Lama? 7) Como você diferencia traficantes e usuários? 8) Existe luta entre quadrilhas rivais pelo controle do tráfico em Pinheiro? Tem alguma ligação com as quadrilhas que atuam em Pedrinhas? 9) Quem são os usuários de droga? 10) Você é a favor ou contra a legalização das drogas? O que mudaria? 135 APÊNDICE B - Roteiro de entrevista para usuários e ex-usuários Idade:____________ Gênero: _______________ Escolaridade:____________ Onde nasceu:________________________________________________________ Substância mais utilizada: ___________________________________________ Quanto tempo de uso: _______________________________________________ 1) Quando a droga começou a afetar outras coisas que você fazia, por exemplo: trabalho? 2) É difícil conseguir drogas para comprar? Como você fazia para comprar? 3) Como era a relação com quem vendia droga? 4) Como era a sua relação com a polícia? 5) Como era a relação com outros usuários? 6) Quem são os usuários de droga que você conheceu? A que classe social eles pertencem? Quais são suas profissões? 7) (Para ex-usuários) O que você vê de diferente hoje na sua vida quando não faz mais uso das drogas? 8) Qual é a sua opinião sobre a legalização das drogas? O que você acha que mudaria? 136 APÊNDICE C - Roteiro de entrevista para moradores Idade:____________ Gênero: _______________ Escolaridade:___________ Onde nasceu: _______________________________________________________ Local onde mora: ____________________________________________________ 1) Quanto tempo faz que você mora nesse bairro? 2) Você gosta do seu bairro ou da sua rua? 3) Como é o cotidiano no seu bairro ou na sua Rua? 4) Você considera seu bairro ou sua rua um local violento? 5) Já presenciou ou ouviu falar de algum episódio de violência no seu bairro ou na sua rua? 6) Muitas pessoas falam que seu bairro é um local onde existe muito tráfico e que é um local muito perigoso, o que você pensa sobre isso? 7) A polícia costuma ir na sua rua ou abordar as pessoas que ali moram? 8) Já ouviu falar de algum caso de violência? 9) Você já foi vítima de algum tipo de violência? 10) O que você acha da legalização das drogas? O que você acha que mudaria? 137 ANEXOS 138 ANEXO A – FIGURA 10: Ponte sobre o rio Pericumã (Fonte: www.google.com.br/maps/). ANEXO B – FIGURA 11 – Ponte sobre o rio Pericumã e o campo alagado (Fonte: www.google.com.br/maps/). 139 ANEXO C – FIGURA 12 www.google.com.br/maps/). – Planície alagada (campo) (Fonte: ANEXO D – FIGURA 13 – Extração de material no Outeiro do Finca, Pinheiro, para atendimento da demanda de aterramentos.