MARCO ANTONIO Análise das Obras Indicadas ao Vestibular da UEM Prof. Marco Antonio Os Melhores Poemas (Manuel Bandeira - Organização de Francisco de Assis Barbosa) • Biografia Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 1886 - Rio de Janeiro, 1968) foi poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor. Considera-se que Bandeira faça parte da geração de 22 da literatura moderna brasileira, sendo seu poema “Os Sapos”, declamado na segunda noite (15 de fevereiro) da Semana de Arte Moderna de 1922, por Ronald de Carvalho. Juntamente com escritores como João Cabral de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre e José Condé, representa o que há de melhor na produção literária do estado de Pernambuco. Manuel Bandeira possui um estilo simples e singelo, não compartilhando da dureza de poetas como João Cabral de Melo Neto. Aliás, numa análise entre as obras de Bandeira e João Cabral, veremos mais tarde que este, ao contrário daquele, visa a purgar de sua obra o lirismo. Bandeira foi o mais lírico dos poetas modernistas de sua geração. Abordando temáticas cotidianas e universais, às vezes com utilização de "poema-piada", lidando com formas e inspiração que a tradição acadêmica considera vulgares; às vezes utilizando-se de estruturas e temáticas clássicas como o soneto. Em sua obra de estréia (Cinza das Horas/1917) estão composições poéticas rígidas, sonetos em rimas ricas e métrica perfeita, na mesma linha onde, em seus textos posteriores, encontramos composições como o rondó e trovas. É comum criar poemas (como o “Poética”, parte de Libertinagem) que se transformam quase que em manifestos da poesia moderna, na medida em que pregam o ideário de libertação lírica. No entanto, suas origens estão nas poesias parnasiana e simbolista. Seus primeiros poemas expressam uma temática noturna, impregnada de imagens e sensações, como ocorre em “Paisagem Noturna”. A imagem de bom homem, terno e em parte amistoso que Bandeira aceitou adotar no final de sua vida tende a produzir enganos: sua poesia, longe de ser uma pequena canção terna de melancolia, está inscrita em um drama que conjuga sua história pessoal e o conflito estilístico vivido pelos poetas de sua época. Cinza das Horas apresenta a grande tese: a mágoa, a melancolia, o ressentimento enquadrados pelo estilo mórbido do simbolismo tardio. Carnaval/1919, que virá logo após, abre com o imprevisível: a evocação báquica e, em alguns momentos, satânica do carnaval, mas termina em plena melancolia. Em Ritmo Dissoluto/1924, seu terceiro livro, a felicidade aparece em poemas como “Vou embora para Pasárgada”, onde é questão a evocação sonhadora de um país imaginário, o “pays de cocagne”, onde todo desejo, principalmente erótico, é satisfeito, não se trata senão de um lugar intangível, de um “locus amenus” espiritual. Em Bandeira, o objeto de anseio restará envolto em névoas e fora do alcance. Lançando mão do tema português da “saudade”, poemas como Pasárgada e tantos outros encontram um símile na nostálgica rememoração bandeiriana da infância, da vida de rua, do mundo cotidiano das provincianas cidades brasileiras do início do século. Além disso, o inapreensível é também o feminino e o erótico. Dividido entre uma idealização simpática às uniões vagas e platônicas e uma sensualidade e uma carnalidade voluptuosa, Manuel Bandeira é, em muitos de seus poemas, um poeta da culpa. Com Libertinagem/1930, talvez o mais celebrado dos livros de Bandeira, adotam-se formas modernistas, abandona-se a metrificação tradicional e acolhe-se o verso livre. É um livro menos personalista. Se os grandes temas nostálgicos cedem ao avanço modernista, não é somente porque os sufocam o desfile fulminante de imagens quotidianas e os esquetes celebratórios do modernismo, mas também porque é um princípio motor de sua obra o reencenar a luta dos dois momentos sentimentais da alegria e da tristeza. O cotidiano “brasileiro” aparece ali, realçando o júbilo evocatório, com o pitoresco popular que se assimila, por exemplo em “Evocação do Recife”, ao tom triste e nostálgico; usa-se o diálogo anedótico/irônico para brindar fatos tão sórdidos quanto sua própria doença (“Pneumotórax”). Libertinagem dará o tom de toda a poesia subseqüente de Manuel Bandeira. Em Estrela da Manhã/1936, Lira dos Cinquent’anos/1940 e outros livros, as experiências da primeira fase darão lugar ao acomodamento do material lírico em formas mais brandas e às vezes mesmo ao retorno a formas tradicionais. • Manuel Bandeira por ele mesmo “A história da minha adolescência é a história da minha doença. Adoeci aos dezoito anos quando estava fazendo o curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo. A moléstia não me chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse, não: caiu sobre mim de supetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu. Durante meses, fiquei entre a vida e a morte. Tive de abandonar para sempre os estudos. Como consegui com os anos levantar-me desse abismo de padecimentos e tristezas é coisa que me parece a mim e aos que me conheceram então um verdadeiro milagre. Aos trinta e um anos, ao editar o meu primeiro livro de versos, A Cinza das Horas, era praticamente um inválido. Publicando-o, não tinha de todo a intenção de iniciar uma carreira literária. Aquilo era antes o meu testamento - um testamento da minha adolescência. Mas os estímulos que recebi fizeram-me persistir nesta atividade poética, que eu exercia mais como um simples desabafo dos meus desgostos íntimos, da minha forçada ociosidade. Hoje vivo admirado de ver que essa minha obra de poeta menor -de poeta rigorosamente menor- tenha podido suscitar tantas simpatias. Conto estas coisas porque a minha dura experiência implica uma lição de otimismo e confiança. Ninguém desanime por grande que seja a pedra no caminho. A do meu parecia intransponível. No entanto saltei-a. Milagre? Pois então isso prova que ainda há milagres.” (Do livro "Poesia e Prosa") MARCO ANTONIO • Poemas Desencanto Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa... remorso vão Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre, Paisagem Noturna A sombra imensa, a noite infinita enche o vale... E lá no fundo vem a voz Humilde e lamentosa Dos pássaros da treva. Em nós, - Em noss'alma criminosa, O pavor se insinua... Um carneiro bale. Ouvem-se pios funerais. Um como grande e doloroso arquejo Corta a amplidão que a amplidão continua... E cadentes, metálicos, pontuais, Os tanoeiros do brejo, - Os vigias da noite silenciosa, Malham nos aguaçais. Pouco a pouco, porém, a muralha de treva Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleve A sombria massa Das serranias. O plenilúnio vai romper...Já da penumbra Lentamente reslumbra A paisagem de grandes árvores dormentes. E cambiantes sutis, tonalidades fugidias, Tintas deliqüescentes Mancham para o levante as nuvens langorosas. Enfim, cheia, serena, pura, Como uma hóstia de luz erguida no horizonte, fazendo levantar a fronte Dos poetas e das almas amorosas, Dissipando o temor nas consciências medrosas E frustrando a emboscada a espiar na noite escura, - A Lua Assoma à crista da montanha. Em sua luz se banha A solidão cheia de vozes que segredam... Os Sapos Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra. Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: Deixando um acre sabor na boca. - Eu faço versos como quem morre. (Teresópolis, 1912) Análise: Perceba que este poema, o primeiro do livro Cinza das Horas, publicado em 1917, segue uma temática neoromântica (morbidez, pessimismo, individualismo, solidão; apesar da estrutura se manter fiel aos modelos clássicos: versos de nove sílabas com rimas alternadas e o famoso “fecho de ouro” (“chave de ouro”) que é o arremate final. Atente também para a metalinguagem “faço versos”, que dá o tom confessional ao texto. (M.A.) Em voluptuoso espreguiçar de forma nua As névoas enveredam No vale. São como alvas, longas charpas Suspensas no ar ao longo das escarpas. Lembram os rebanhos de carneiros Quando, fugindo ao sol a pino, Buscam oitões, adros hospitaleiros E lá quedam tranqüilos ruminando... Assim a névoa azul paira sonhando... As estrelas sorriem de escutar As baladas atrozes Dos sapos. E o luar úmido...fino... Amávico...tutelar... Anima e transfigura a solidão cheia de vozes... (Teresópolis, 1912) Análise: Apesar das alternâncias no número de sílabas poéticas (características que vão aparecer no modernismo e que estão sendo antecipadas aqui), o poema tem marcas nitidamente simbolistas: a presença de paisagens mais sugeridas do que descritas (“A lua/Assoma à crista da montanha./ Em sua luz se banha/A solidão cheia de vozes que segredam.../Em voluptuoso espreguiçar de forma nua”); de sinestesias (“a sombra imensa”, “muralha de treva”, “amplidão que a amplidão continua...”); aliterações e assonâncias (“A paisagem de grandes árvores dormentes./ E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,/Tintas deliqüescentes/Mancham para o levante as nuvens langorosas.”). Perceba o tom lúgubre e a presença do luar que aproxima esta poesia das poesias de Álvares de Azevedo e de Alphonsus Guimaraens. (M.A) - "Meu pai foi à guerra!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: - "Meu cancioneiro É bem martelado. MARCO ANTONIO Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos. O meu verso é bom Frumento sem joio. Faço rimas com Consoantes de apoio. Vai por cinqüenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A fôrmas a forma. Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas..." Urra o sapo-boi: - "Meu pai foi rei!"- "Foi!" - "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: - A grande arte é como Lavor de joalheiro. Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo". Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas, - "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!". A noite infinita Veste a sombra imensa; Lá, fugido ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio...(1918) Análise: Um dos poemas mais importantes da carreira de Manuel Bandeira, apesar de ter sido escrito antes (1918) e publicado no livro Carnaval (1919), foi declamado por Ronald de Carvalho na noite de 15 de fevereiro de 1922, durante a Semana de Arte Moderna, causando imenso alvoroço. Os Sapos satiriza os poetas parnasianos (chamados de “príncipes” pela revista “Fon Fon”), principalmente Olavo Bilac, o “sapo-tanoeiro” que mostra como se deve fazer um poema parnasiano: “Reduzi sem danos A fôrmas a forma.” Ou “A grande arte é como/ Lavor de joalheiro.”, que já tinha aparecido em seu poema “Profissão de Fé”. Além disso a simplicidade dos versos (em medida velha – redondilhas menores) e as onomatopéias "Meu pai foi à guerra!" /- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!" reforçam o riso e a ironia da sátira. Repare no primeiro verso como os sapos parnasianos saem da toca: “A luz os deslumbra.” Em contraste com as três últimas estrofes que se referem aos poetas mais simples e mais populares, esquecidos pela “grande arte” como era vista a poesia. Além disso, o poeta finaliza com uma referência a uma cantiga de roda: “Sapocururu /Da beira do rio...”, em um nítido resgate da cultura popular e brasileira, característica importante em modernistas de épocas posteriores, como o Oswald dos manifestos (Pau-Brasil/1924; Antropofágico/1928) ou o Mário de Andrade de Macunaíma (1928). (M.A) Longe dessa grita, Lá onde mais densa A Dama Branca A Dama Branca que eu encontrei, Faz tantos anos, Na minha vida sem lei nem rei, Sorriu-me em todos os desenganos. Era sorriso de compaixão? Era sorriso de zombaria? Não era mofa nem dó. Senão, Só nas tristezas me sorriria. E a Dama Branca sorriu também A cada júbilo interior. Sorria querendo bem. E todavia não era amor. Era desejo? - Credo! de tísicos? Por história... quem sabe lá?... A Dama tinha caprichos físicos: Era uma estranha vulgívaga. Ela era o gênio da corrupção. Tábua de vícios adulterinos. Tivera amantes: uma porção. Até mulheres. Até meninos. Ao pobre amante que lhe queria, Se lhe furtava sarcástica. Com uns perjura, com outros fria, Com outros má, - A Dama Branca que eu encontrei, Há tantos anos, MARCO ANTONIO Na minha vida sem lei nem rei, Sorriu-me todos os desenganos. Essa constância de anos a fio, Sutil, captara-me. E imaginai! Por uma noite de muito frio A Dama Branca levou meu pai. Análise: Um poema que faz uma referência direta ao tema da morte, personificada na “Dama Branca”, uma mulher que é uma amante voraz: “Ela era o gênio da corrupção./Tábua de vícios adulterinos./Tivera amantes: uma porção./Até mulheres. Até meninos.”, pois fazia com que estes se apaixonassem por ela, ou seja, metaforicamente os matava e que já tinha se encontrado com o poeta (lembre-se que desde muito cedo Bandeira se viu às voltas com a presença da morte em virtude da tuberculose. O poeta vem fazendo referências ao comportamento desta morte personificada para finalizar confessando que esta presença constante na vida dele “imaginai!”, acabou levando-lhe o pai. (M.A) Confidência Tudo o que existe em mim de grave e carinhoso Te digo aqui como se fosse ao teu ouvido. Só tu mesma ouvirás o que aos outros não ouso Contar do meu tormento obscuro e impressentido. Em tuas mãos de morte, ó minha noite escura! Aperta as minhas mãos geladas. E em repouso. Eu te direi no ouvido a minha desventura E tudo o que em mim há de grave e carinhoso. Análise: Um poema da linha confessional de Bandeira. Perceba o tom de “íntimo diálogo” que ele estabelece com o/a leitor/a que bem pode ser a própria morte ou uma sugestão dela: “Em tuas mãos de morte, ó minha noite escura!/ Aperta as minhas mãos geladas.” Se for com a morte, presença marcante nos poemas neo-românticos dos primeiros livros do autor. Perceba a presença do individualismo e da morbidez. O poeta conversa com a própria morte para confessar a ela o que sente e sofre: “Te digo aqui como se fosse ao teu ouvido./Só tu mesma ouvirás o que aos outros não ouso /Contar do meu tormento obscuro e impressentido.” (M.A) Não sei dançar Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Tenho todos os motivos menos um de ser triste. Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria... Abaixo Amiel! E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff. Sim, já perdi, pai, mãe, irmãos. Perdi a saúde também. É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band. Uns tomam éter, outros cocaína. Eu tomo alegria! Eis aí por que vim a este baile de terça-feira gorda. Mistura muito excelente de chás... Esta foi açafata... - Não, foi arrumadeira. E está dançando com o ex-prefeito municipal. Tão Brasil! De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil... Há até a fração incipiente amarela Na figura de um japonês. O japonês também dança maxixe: Acugêlê banzai! A filha do usineiro de Campos Olha com repugnância Para a crioula imoral. No entanto o que faz a indecência da outra É dengue nos olhos maravilhosos da moça. E aquele cair de ombros... Mas ela não sabe... Tão Brasil! Ninguém se lembra da política... Nem dos oito mil quilômetros de costa... O algodão de Seridó é o melhor do mundo... Que me importa? Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos. A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca. Eu tomo alegria! MARCO ANTONIO Análise: Um poema nitidamente modernista (na forma, pela liberdade de composição dos versos – sem métrica nem rima), pois enfoca aspectos típicos da vida cotidiana do início do século XX: a presença de tóxicos que eram muito comuns e consumidos pelos intelectuais da época: “Uns tomam éter, outros cocaína.” E dos ritmos que começavam a ser importados como o “jazz-band” dos negros americanos. O poeta insinua seu tom confessional, inclusive citando um filósofo pessimista (Ariel) e revelando aspectos de sua vida particular (autobiográficos): “Sim, já perdi, pai, mãe, irmãos./Perdi a saúde também./É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.” Além disso, o poeta faz referência à imigração e à miscigenação de “raças”, classes sociais e culturas na formação do país: “De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil.../Há até a fração incipiente amarela/Na figura de um japonês./O japonês também dança maxixe:/Acugêlê banzai!”. É como se o poeta usasse o baile da terça feira gorda (carnaval) para metaforizar e sugerir um país de misturas. Vários modernistas (e pré-modernistas – Graça Aranha/Canaã) detiveram-se nesta temática: Di Cavalcanti, pintor, conhecido como o “Maior Mulatista da Pintura Brasileira”, nas palavras de Mário de Andrade, além do Macunaíma e dos Manifestos já citados acima na análise do poema “Os Sapos”. O fato é que os modernistas queriam ressaltar a figura de um Brasil mais verdadeiro do que aquele exaltado em prosa e verso pelos românticos, daí a necessidade de uma visão mais aguçada e crítica de nossa formação e transformação.: “Tão Brasil!”. Esta mudança de paradigmas é tão importante que, na Sociologia, também alguns autores iniciam, nestes anos, seus estudos sobre a formação do país: Gilberto Freire (Casa Grande e Senzala), Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil). No final, Bandeira faz uma verdadeira mistura de tudo no verso: “A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.”, afinal, tudo é “tão Brasil”!!!! (M.A.) Pneumotórax Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: — Diga trinta e três. — Trinta e três...trinta e três... trinta e três... Respire. ............................................................................ — O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. — Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? — Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. Análise: Um poema modernista, abusando de termos que fogem ao ideal parnasiano da “grande arte”, em virtude da presença de palavras antipoéticas: “Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos”. Presença de sinestesias e onomatopéias que sugerem musicalidade: “Tosse, tosse, tosse.”. Tema autobiográfico, pois o poeta teve tuberculose e sofreu muito com isso: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi.”; temática do cotidiano: “Mandou chamar o médico:/— Diga trinta e três./— Trinta e três...trinta e três... trinta e três... Respire.” E auto-ironia: “— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?/— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.” Lembre-se que Bandeira morreu com 82 anos. Logo, ficar falando de morte o tempo todo ficava ridículo, o que fez com que o poeta desenvolvesse essa temática irônica e prosaica que também aparece em parte da obra de Álvares de Azevedo. Perceba a liberdade de composição de versos brancos em uma poesia condensada (curta). (M.A) Poética Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. MARCO ANTONIO Análise: Este poema, publicado no livro Libertinagem (1930) é um dos poucos da poesia de Manuel Bandeira dentro da temática iconoclasta que marca tão bem a Primeira Geração Modernista, também chamada de Heróica pela atitude destruidora adotada. É importante frisar que ele segue a linha de poemas célebres como o “Ode ao Burguês” de Mário de Andrade (presente no livro Paulicéia Desvairada/1922). Repare a atitude de rebeldia contra um lirismo “funcionário público”, ou seja, um tipo de sentimentalismo que se comporta dentro de padrões préestabelecidos e que se curva a normas e regras de versificação e estilo: “Estou farto do lirismo que pára e vai Evocação do Recife Recife Não a Veneza americana Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais Não o Recife dos Mascates Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois - Recife das revoluções libertárias Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada Recife da minha infância A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras mexericos namoros risadas A gente brincava no meio da rua Os meninos gritavam: Coelho sai! Não sai! A distância as vozes macias das meninas politonavam: Roseira dá-me uma rosa Craveiro dá-me um botão (Dessas rosas muita rosa Terá morrido em botão...) De repente nos longos da noite um sino Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antônio! Outra contrariava: São José! Totônio Rodrigues achava sempre que era são José. Os homens punham o chapéu saíam fumando E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo. Rua da União... Como eram lindos os montes das ruas da minha infância Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal) Atrás de casa ficava a Rua da Saudade... ...onde se ia fumar escondido Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora... ...onde se ia pescar escondido Capiberibe - Capibaribe averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.”. O poeta usa propositalmente versos bárbaros (versos que extrapolam 12 sílabas poéticas) para insinuar a rebeldia modernista; e exalta uma poética que valoriza: “Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis” e critica o lirismo: “Político/Raquítico/Sifilítico”. Nisso o último verso é significativo e estabelece uma intertextualidade com uma frase do Prefácio Interessantíssimo (Paulicéia Desvairada/1922) de Mário de Andrade: “Toda a canção de liberdade vem do cárcere!” MARCO ANTONIO Lá longe o sertãozinho de Caxangá Banheiros de palha Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o coração batendo Ela se riu Foi o meu primeiro alumbramento Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu E nos pregões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras Novenas Cavalhadas E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos Capiberibe - Capibaribe Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas Com o xale vistoso de pano da Costa E o vendedor de roletes de cana O de amendoim que se chamava midubim e não era torrado era cozido Me lembro de todos os pregões: Ovos frescos e baratos Dez ovos por uma pataca Foi há muito tempo... A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem Terras que não sabia onde ficavam Recife... Rua da União... A casa de meu avô... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade Recife... Meu avô morto. Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô. Análise: O poema segue a linha do saudosismo da infância, tão caro aos poetas românticos de segunda fase, em especial na obra de Casimiro de Abreu. Nos versos Bandeira faz várias referências a como era o “seu” Recife: “Recife da minha infância A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado” ou “Rua da União.../Como eram lindos os montes das ruas da minha infância/Rua do Sol/(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)” para terminar com uma referência à casa de seu avô: “A casa de meu avô.../Nunca pensei que ela acabasse!/Tudo lá parecia impregnado de eternidade/Recife.../Meu avô morto./Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro/como a casa de meu avô.” Vale a pela perceber também que o poeta faz três referências ao falar “errado” do povo: “E o vendedor de roletes de cana/O de amendoim/que se chamava midubim e não era torrado era cozido(...)A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/Vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua certa do povo/Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/Ao passo que nós/O que fazemos/É macaquear/A sintaxe lusíada” (M.A.) A terceira referência é a do rio que corta o Recife e que também aparece nos poemas de outro pernambucano, o João Cabral de Mello Neto. Segundo o próprio Bandeira, “Na ‘Evocação do Recife’ as duas formas ‘Capiberibe – Capibaribe’ têm dois motivos. O primeiro foi um episódio que se passou comigo na classe de Geografia do Colégio Pedro II. [...] Certo dia, [o professor José Veríssimo] perguntou à classe: “Qual o maior rio de Pernambuco? ‘Não quis eu que ninguém se antecipasse e gritei imediatamente do fundo da classe: ‘Capibaribe!’ Capibaribe com a, como sempre tinha ouvido dizer no Recife. Fiquei perplexo MARCO ANTONIO quando Veríssimo comentou, para grande divertimento da turma: ‘Bem se vê que o senhor é um pernambucano! “(pronunciou ‘pernambucano’ abrindo bem o e) e corrigiu; ‘Capiberibe’. Meti a viola no saco, mas na ‘Evocação’ me desforrei do professor”. A outra intenção para a repetição era musical: “Capiberibe a primeira vez com e, a segunda com a, me dava a impressão de um acidente, como se a palavra fosse uma frase melódica dita na segunda vez com bemol na terceira nota. De igual modo, em ‘Neologismo’ o verso ‘Teodoro, Teodora’ leva a mesma intenção, mais do que o jogo verbal.” (Manuel Bandeira) Profundamente Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Vozes cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas. No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões Passavam errantes Silenciosamente Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel. Onde estavam os que há pouco Dançavam Cantavam E riam Ao pé das fogueiras acesas? — Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente. Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci. Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? — Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente. Análise: Outro poema em tom confessional sobre a infância do poeta. Uma referência ao fato de que ele não viu o tempo passar, nem percebeu que todas aquelas pessoas que marcaram seus primeiros anos estão mortas: “— Estão todos dormindo/Estão todos deitados/Dormindo/Profundamente.” Nele Manuel Bandeira rememora com extrema singeleza a lembrança de momentos tão importantes na vida do poeta. (M.A.) Quando eu tinha seis anos Irene no céu Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor. Imagino Irene entrando no céu: — Licença, meu branco! E São Pedro bonachão: — Entra, Irene. Você não precisa pedir licença. Vou-me Embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Análise: Irene, uma senhora negra que trabalhava na casa de Manuel Bandeira quando ele era criança vista em uma cena singela e surreal. Irene é tão boa que já teria lugar reservado no céu. Nem precisaria pedir licença para entrar, tal a sua intimidade.(M.A) Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar MARCO ANTONIO Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar Lá sou amigo do rei Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. Análise: Um poema que surgiu da necessidade de evasão do poeta. O próprio Bandeira confessou que quando era menino se viu atraído pelo nome dessa cidade fundada por Ciro. Pasárgada é um lugar ideal projetado pelo poeta com tudo o que ele não pode fazer em sua infância de menino doente: “E como farei ginástica/Andarei de bicicleta/Montarei em burro brabo/Subirei no pau-de-sebo/Tomarei banhos de mar!; mesclado com cenas surreais: “Lá a existência é uma aventura/De tal modo inconseqüente/Que Joana a Louca de Espanha/Rainha e falsa demente/Vem a ser contraparente/Da nora que nunca tive” e referências ao nosso folclore, como já apareceu n’Os Sapos e em outras obras modernistas: E quando estiver cansado/Deito na beira do rio/Mando chamar a mãe-d'água/Pra me contar as histórias//Que no tempo de eu menino/Rosa vinha me contar” Há também referências às novas tecnologias que povoavam o cotidiano dos modernistas: “Em Pasárgada tem tudo/É outra civilização//Tem um processo seguro/De impedir a concepção/Tem telefone automático/Tem alcalóide à vontade/Tem prostitutas bonitas/Para a gente namorar” e ao “mal-do século” tardio, que tanto assumbrava a vida do poeta: “E quando eu estiver mais triste/Mas triste de não ter jeito/Quando de noite me der/Vontade de me matar/Lá sou amigo do rei/Terei a mulher que eu quero/Na cama que escolherei” É impossível perceber a intertextualidade com um outro poema romântico de temática evasionista. A “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Note que o número de sílabas poéticas dos dois poemas é o mesmo (redondilha maior-7 sílabas poéticas) e existe a idealização do “Lá”, que inclusive aparece as mesmas quatro vezes. (M.A.) O Último Poema Assim eu quereria o meu último poema. Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos A paixão dos suicidas que se matam sem explicação. Análise: Um poema curto (lirismo condensado) dentro da linha confessional (individualismo) e singela que marca a lírica do poeta. Expressando toda a sua vontade de se fazer sentir de uma forma intensa: “ardente como um soluço sem lágrimas”. Água Forte O preto no branco, O pente na pele: Pássaro espalmado No céu quase branco. Em meio do pente, A concha bivalve Num mar de escarlata. Concha, rosa ou tâmara? No escuro recesso, As fontes da vida A sangrar inúteis Por duas feridas. Tudo bem oculto Sob a aparência Da água-forte simples: De face, de flanco, O preto no branco. MARCO ANTONIO Análise: “Água forte” é uma técnica usada na gravura em metais. Consiste em derramar ácido para corroer aquilo que se quer deixar em baixo-relevo. O poema é extremamente erótico. São quatro quartetos em redondilha menor sugerindo a parte externa do aparelho reprodutor feminino: Isso pode ser visto nos versos “O preto no branco, (...) Pássaro espalmado (...)” Veja também “Em meio do pente,/A concha bivalve /Num mar de escarlata. /Concha, Testamento O que não tenho e desejo É que melhor me enriquece. Tive uns dinheiros - perdi-os... Tive amores - esqueci-os. Mas no maior desespero Rezei: ganhei essa prece. Vi terras da minha terra. Por outras terras andei. Mas o que ficou marcado No meu olhar fatigado, Foram terras que inventei. Gosto muito de crianças: Não tive um filho de meu. Um filho!... Não foi de jeito... Mas trago dentro do peito Meu filho que não nasceu. Criou-me, desde eu menino Para arquiteto meu pai. Foi-se-me um dia a saúde... Fiz-me arquiteto? Não pude! Sou poeta menor, perdoai! Não faço versos de guerra. Não faço porque não sei. Mas num torpedo-suicida Darei de bom grado a vida Na luta em que não lutei! O homem e a morte O homem já estava deitado Dentro da noite sem cor. Ia adormecendo, e nisto À porta um golpe soou. Não era pancada forte. Contudo, ele se assustou, Pois nela uma qualquer coisa De pressago adivinhou. Levantou-se e junto à porta - Quem bate? Ele perguntou. - Sou eu, alguém lhe responde. - Eu quem? Torna. – A Morte sou. Um vulto que bem sabia Pela mente lhe passou: Esqueleto armado de foice Que a mãe lhe um dia levou. Guardou-se de abrir a porta, Antes ao leito voltou, rosa ou tâmara?” O que, então seriam “As fontes da vida /A sangrar inúteis /Por duas feridas.”? Provavelmente os ovários da mulher. E agora? Toda a timidez amorosa do poeta é subvertida em um poema onde a sensualidade é expressa de uma forma muito sutil. (M.A) Análise: Outro poema em versos simples (redondilha maior) de temática confessional. Nele o poeta expõe sua trajetória e seu trabalho poético. É possível perceber desde a primeira estrofe a sua pendência ao individualismo, ao sentimentalismo e à religiosidade; o poeta que teve toda a possibilidade de ser rico, perdeu tudo. Na segunda estrofe ele faz uma referência ao período em que foi se tratar de tuberculose na Europa (Clavadel/Suíça/1912), mas defende o processo de criação poética como uma das coisas mais importantes de sua vida: “Mas o que ficou marcado/No meu olhar fatigado,/Foram terras que inventei.”. A terceira e a quarta estrofes são de um confessionalismo tão pungente que chega a doer. O poema concretista José Paulo Paes chegou a fazer um “Epitáfio” a Manuel Bandeira a partir do pedido de desculpas: “Sou poeta menor, perdoai!”. Ele pegou a palavra menor e repetiu até surgir outra palavra: menormenormenormenormenormenormenormenormenormn ormenormenormenormenormenormenormenormenormenor menormenormenormenormenormenormenormenormenorme menormenormenormenormenormenormenormenormenorme normenormenormenormenormenormenormenormenormenor menormenormenormenormenormenor..enorme..enorme....... ENORME. Na última estrofe ele –de certa forma – pede desculpas por ter sido um modernista de primeira geração tão diferente das propostas do momento estético. Não sabia fazer os “versos de guerra” exigidos pelo contexto, mas daria a vida de bom grado, na luta que não lutou! (M.A) E nele os membros gelados Cobriu, hirto de pavor. Mas a porta, manso, manso, Se foi abrindo e deixou Ver – uma mulher ou anjo? Figura toda banhada De suave luz interior. A luz de quem nesta vida Tudo viu, tudo perdoou. Olhar inefável como De quem ao peito o criou. Sorriso igual ao da amada Que amara com mais amor. - Tu és a Morte? Pergunta. E o Anjo torna: - A Morte sou! Venho trazer-te descanso Do viver que te humilhou. MARCO ANTONIO -Imaginava-te feia, Pensava em ti com terror... És mesmo a Morte? Ele insiste. - Sim, torna o Anjo, a Morte sou, Mestra que jamais engana, A tua amiga melhor. E o Anjo foi-se aproximando, A fronte do homem tocou, Com infinita doçura As magras mãos lhe cerrou... Era o carinho inefável De quem ao peito o criou. Era a doçura da amada Que amara com mais amor. Análise: A poesia é de uma beleza e uma plasticidade maravilhosas. Só mesmo alguém atormentado pela presença da morte por toda a vida; a morte que não veio, a morte que levou seus parentes mais queridos, mas que sempre o deixava para trás pode ter tamanha sensibilidade. Seguindo o estilo da versificação do cordel, Bandeira conta uma história de um homem que ouve batidas na porta à noite. Pensando ser a morte (figura sinistra vestida de preto com uma foice – gadanha), tem medo e não abre a porta. Por ela, no entanto, entra uma linda mulher, mas anjo que demônio. Assim o homem vê nela a mais encantadora das amantes e se entrega com imensa felicidade. Perceba que conforme o tempo foi passando, Bandeira vai voltando a se referir à morte de uma maneira diferente: já não existe mais a angústia da morte em tenra idade, tão comum aos tuberculosos do ultra-romantismo (segunda fase), mas uma sensação serena de entrega a uma amante ou uma velha amiga. Essa sensação se aproxima de temáticas de Álvares de Azevedo expressas em poemas como “Lembranças de Morrer”, mas se afasta em poemas como “O poeta moribundo” : “Coração, por que tremes?/Vejo a morte,/Ali vem lazarenta e desdentada...//Que noiva!... E devo então dormir com ela?/Se ela ao menos dormisse mascarada!” Perceba que a maneira de ver a morte é exatamente o oposto em Manuel Bandeira.(M.A.) Arte de amar Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus – ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não. Análise: Outro poema de linha sentimental/erótica. Para o poeta as almas não se comunicam, mas os corpos sim. Logo, se você quiser ser feliz, esqueça a alma e satisfaça o corpo...eles se entendem! Ou seja, é um convite a gozar os prazeres carnais ante a impossibilidade de atingir a alma da pessoa amada. Um poema que foge a toda a idealização e platonismo atribuído ao amor.(M.A.) Consoada Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: - Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. Análise: Último dos poemas escolhidos para este “passeio” pela obra de Manuel Bandeira, é um dos mais importantes do autor. Neste momento, fim de sua vida, o poeta já se encontra plenamente tranqüilo com a vinda da morte “a Indesejada das Gentes”. O poeta confessa que talvez tenha medo, mas muito provavelmente dirá que a vida foi boa e que a morte pode levá-lo. Em uma sucessão de metáforas ele diz que ela encontrará o campo lavrado (o trabalho feito e pronto para ser continuado nesta seara de poesias e sofrimentos). A casa estará limpa, como sua alma e sua consciência. E tudo organizado com cada coisa em seu lugar. Tudo pronto para a grande passagem, espera constante de uma vida inteira. O poeta morreu em 1968, com 82 anos de idade. (M.A.)