UMA SUBTIL E MUITO SECRETA CRUELDADE
Como para todos os retraídos, de um modo geral, a ironia é uma forma de compensação.
Restitui em objectivação acre o que a timidez concentra em subjectivação forçada. Não
se trata de sarcasmo, de troça, que são já formas grosseiras de luta, antes da ironia, que é
um arranhar discreto. Nem é fruto de artificialismo forçado, mas expressão de humor
que flui naturalmente, num certo gozo da inteligência divertida com a verificação dos
contrastes que estão na origem da reacção humorística. Esse humor é um dos traços
mais constantes, mais fortes, mais característicos da personalidade de Salazar, em regra
como divertimento da inteligência, raramente como arma.
Em 1919, no inquérito feito a professores da Universidade de Coimbra que mereciam
ser «saneados», há, na sua resposta, traços de ironia que perfeitamente o definem e
deixa a desequilibrar-se, insustentável e ridícula, a sanha dos seus acusadores. Reparese, a propósito, que as preocupações de «saneamento» não foram novidade da
Revolução dos Cravos. Já vinham de trás. E é curioso também recordar que, a par dos
quatro professores de Direito alvejados - Fezas Vital, Magalhães Colaço, Carneiro
Pacheco e Salazar - foi na mesma altura vítima de inquérito um professor da Faculdade
de Letras, que viria a contribuir para o prestígio daquela escola e sobre o pensamento
democrático do qual não havia dúvidas: o Dr. Joaquim de Carvalho.
Pois na sua resposta, o professor Salazar trata o seu principal acusador desta forma:
O sr. Rui Gomes não sabe se eu sou monárquico ou não, e tem razão para o dizer. Eu
sei muito bem o que sou, mas também lho não digo.
Revela-se neste passo aquela «subtil e muito secreta crueldade» de que a intuição de
Christine Garnier o acusou um dia e que ele não negou. Uma crueldade para as
incongruências das situações, que não raro a ele próprio lhe doíam. Há qualquer coisa
de felino aqui, embora Salazar não gostasse de gatos.
Às vezes era duro na apreciação de certos aspectos do ambiente geral da época:
Homens que fizeram a campanha nos jornais, e discursaram nos comícios, e
conspiraram nas «lojas», e assistiram a reuniões, e falaram em nome da moralidade
pública por não poderem falar em nome da sua individual, que acusaram, que
insultaram...
Mais tarde, quando o engenheiro Cunha Leal publicava livros de Memórias em que
Salazar não era poupado, mandou-lhe um exemplar com delicada dedicatória autógrafa
e uma carta a pedir-lhe a intervenção para que a censura não impedisse a venda do livro.
Na carta, Cunha Leal manifestava o desejo de que Salazar lesse o livro. O Presidente
respondeu agradecendo a amabilidade da oferta e prometendo intervir junto da censura;
quanto a ler o livro, lá isso não prometia...
O Professor Francisco Gentil foi o fundador e animador do Instituto de Oncologia, cuja
direcção lhe estava confiada. Mantinha-o aliás em alto nível: era considerado ao tempo
um dos melhores estabelecimentos daquela especialidade em toda a Europa. Apesar de
democrata conhecido, tinha óptimas relações pessoais com Salazar, que o estimava e
admirava.
Um dia apareceu ao Presidente com ar preocupado. Tinha-lhe chegado aos ouvidos que
o Ministro se propunha afastá-lo da direcção do Instituto. Salazar tranquilizou-o:
- Enquanto eu for Governo, o senhor será o director do Instituto. Ninguém o tira de lá.
Agora, quando forem os seus correligionários a mandar...
E, ao mesmo tempo que levantava as mãos, num gesto de resignação, os olhinhos
sorriam-lhe maliciosos.
Num dos famosos artigos que publicou nas «Novidades» entre fins de 1927 e princípios
de 1928, queixava-se do seu estado de saúde:
Estou com uma constipação formidável. Sinto um enorme peso na cabeça - por dentro,
está visto; choram-me os olhos e não vejo claro. É-me impossível estudar ou
compreender o que leio; bronco, pesado, estou incapaz de aprofundar um problema, de
apanhar a força duma razão, de perceber a nuance de uma ideia, de manter a sintaxe
dentro de regrados limites; em suma, estou em óptimas condições para escrever nos
jornais...
Noutro dos artigos da mesma série conta:
Ao arrumar uns velhos papéis, encontro uma carta de há anos em que um amigo me
pede que consinta na eliminação duma frase por mim escrita em tese destinada a um
Congresso qualquer. Havia quem a julgasse pouco patriótica ou pelo menos pessimista,
desalentadora para tantos que queriam trabalhar com entusiasmo e com fé. Mandei que
se cortassem as palavras do reparo. Diziam: «a redução das despesas públicas é um
problema politicamente insolúvel». A frase desapareceu, mas a verdade... a verdade
ficou.
A propósito das negociações entabuladas em Genebra após o pedido de empréstimo de
12 milhões de libras, e referindo-se ao estudo do necessário plano de aplicação do
crédito - estabilização monetária, reconstituição económica, saneamento financeiro observa:
Disse-se ainda que está pronto, acabado em todos os seus detalhes, o plano desta obra,
que os peritos estrangeiros examinarão antes de se ultimarem as negociações. Não
duvidamos disso, pela categoria da pessoa que o afirma, em primeiro lugar, e depois
porque sabemos que em Portugal se nasce já suficientemente ensinado para que seja
preciso a alguém estudar seja o que for, acontecendo no entanto muitas vezes
confundir-se a fantasia com a inteligência das coisas, e a verdade dos factos com os
desordenados desejos do nosso coração.
Nos discursos políticos mais tarde proferidos, não faltaram os remoques irónicos. Assim
foi no discurso de posse dos corpos directivos da União Nacional, em 23 de Novembro
de 1932:
Tanto se tem repetido de mim saber eu alguma coisa de finanças mas não perceber
nada de política, que, em boa verdade, já me devia ter convencido disso.
No discurso de inauguração do Secretariado da Propaganda Nacional, em Outubro de
1933:
Aos que tiveram a gentileza de aqui vir peço apenas que se esforcem por facilitar a
missão do Secretariado de Propaganda Nacional, nem que não seja senão tornando-o
desnecessário... para si próprios.
Num discurso de Julho de 1958, em que analisa o momento político da altura, aponta:
Desde alguns extremistas monárquicos até aos democratas e aos comunistas - é
delicioso ver como neste país os comunistas acamaradam com aqueles e reclamam
liberdades, decerto para as exportarem depois para além da cortina de ferro, onde
parece fazerem alguma falta...
É de sublinhar, não apenas a ironia em si, mas a elegância literária que geralmente a
rodeia. Daí a naturalidade com que num discurso pensado sobre os conceitos
económicos da Constituição que ia ser plebiscitada, uma frase irónica abre as
considerações sobre o papel da riqueza:
O homem é essencialmente vaidoso, e dizem - mas parece que não é exacto - que a
mulher ainda é mais.
A mesma ironia ressalta nas conversas com pessoas entre as quais se sentia à vontade:
Ia reunir o conselho de ministros. Na sala, os homens do governo faziam grupos. No
maior destes, junto à entrada, alguns com mais confiança com o Professor Caeiro da
Mata, ministro dos Negócios Estrangeiros, riam com ele. Corria que lhe coubera el
gordo da lotaria espanhola. Caeiro da Mata negava. Os outros insistiam que sim, que era
verdade, que não valia a pena negar o que era do conhecimento geral.
Nisto, abre-se a porta e surge Salazar. Repara no ar risonho daquele grupo e alguém lhe
explica:
- O Dr. Caeiro da Mata ganhou o primeiro prémio da lotaria espanhola e teima em fazer
segredo...
O visado dirige-se a Salazar:
- O senhor Presidente acha-me com cara de pessoa a quem saiu o prémio?
E Salazar:
- Eu acho-o com cara de pessoa capaz de lhe ter saído a sorte grande e ficar com a
mesma cara...
Duma vez em que estava em Santa Comba e o barbeiro foi chamado a servi-lo, o
homenzinho aproveitou o ensejo para um pedido. Se não seria possível, lá por Lisboa,
arranjar um emprego para um filho. Talvez nalgum ministério...
Salazar aconselhou-o:
- Olha, pede ao Dr. Jerónimo de Lacerda. Ele é que conhece os ministros. . .
Não faltou também o momento em que a sua reacção irónica encontrou um homem
tranquilo e risonho que o desarmou:
Guilherme Pereira de Carvalho foi uma das personalidades mais simpáticas e mais
curiosas do tempo de Salazar. Nascido no Brasil, onde herdara uma fortuna de
milionário, educado na Alemanha, num dos melhores colégios do Império, onde teve
por companheiro de quarto um rapaz que viria a ser mais tarde Presidente da República
vermelha espanhola (o Dr. Negrin), gastando depois à larga na vida alegre de Paris,
Pereira de Carvalho, - o famoso Mr. Carvalhô que todos os motoristas parisienses
conheciam - quando se viu sem a fortuna e teve de trabalhar para manter a família,
encontrou no Secretariado da Propaganda Nacional, junto de António Ferro, de quem
era amigo, o lugar mais adequado à sua educação, à sua simpatia, ao seu desembaraço,
às suas relações, ao variado número de línguas que falava. Um lugar, diríamos hoje, de
um super de «relações públicas». Ainda então não se generalizara a designação
pretensiosa. Era o companheiro dos visitantes ilustres. O lugar era mal pago (naquele
tempo a própria função de director do Secretariado tinha remuneração equivalente à de
chefe de repartição), mas quadrava-se ao seu feitio boémio. Mais tarde, fundado o
«Diário Popular», acumularia com o de chefia de uma secção daquele jornal.
Uma noite, o Guilherme Pereira de Carvalho, fazendo a sua volta habitual pelos clubes
nocturnos, encontrou um jornalista francês, muito conhecido, a quem haviam prometido
uma entrevista com Salazar. O francês explodiu, furioso:
- Estou há quinze dias em Lisboa. Garantiram-me que o vosso Presidente do Conselho
me receberia, os dias vão passando, e nada! Que talvez amanhã... Talvez amanhã... Não
espero mais! Amanhã vou-me eu embora!
- Importa-se de vir comigo?
O outro aquiesceu e Pereira de Carvalho levou-o ao S. N. I., onde fez uma ligação
directa para casa de Salazar, que ele sabia se deitava tarde. Expôs-lhe o assunto, mas
Salazar estava mal disposto:
- Esses senhores julgam que eu sou um macaco dentro duma jaula, e todos se julgam no
direito de vir ver o macaco. Ora eu tenho mais que fazer...
Serenamente, Pereira de Carvalho observou-lhe:
- Evidentemente que V. Ex.a não é um macaco dentro duma jaula. Mas também o
senhor X... não é uma pessoa qualquer. É um jornalista com grande prestígio e um
antigo senador. Seria preferível dispensar-lhe dez minutos a deixá-lo ir-se embora
furioso, a dizer mal do país...
A presença de espírito de Pereira de Carvalho serenou Salazar. Condescendeu:
- Bem. Mas olhe que são só dez minutos! Faça favor de o mandar cá amanhã pelas sete
horas...
No dia seguinte, Carvalho acompanhou-o a S. Bento. A conversa durou hora e meia.
Como de costume, Salazar perguntou mais do que disse...
Finda a guerra de Espanha, o Generalíssimo Franco substituiu, no Ministério dos
Negócios Estrangeiros, Serrano Suner, que era seu cunhado, pelo general Jordana. Este
era amigo dos portugueses. A Serrano Suner considerava-o Salazar o nosso pior
inimigo. Por isso determinou que, na visita que Jordana vinha fazer a Portugal, fosse
aqui recebido o melhor possível. Entre as festas que se preparavam, além dos banquetes,
recepções, tourada à antiga portuguesa, etc., organizou António Ferro uma festa em S.
Carlos com bailados do Verde Gaio, fados da Amália Rodrigues, um breve recital de
violoncelo pela Guilhermina Suggia...
Um dia, o Ferro apareceu a Salazar muito embaraçado:
- Temos um problema com a Guilhermina Suggia. Ela pede um cachet de quarenta
contos pela sua participação. Que é quanto lhe pagam em Londres e não quer baixar o
preço dos seus recitais...
Salazar ponderou:
- Realmente, quarenta contos por tocar durante meia hora, é puxado...
E de repente, fitando o Secretário da Informação:
- Olhe lá, o senhor sabe tocar rabeca?
Ferro, surpreendido, gaguejou:
- Não, não sei.
- Eu também não. Não há outro remédio: temos de pagar os quarenta contos à senhora.
Diga-se de passagem que os quarenta contos foram depois dados pela artista a casas de
caridade. Simplesmente, não rebaixava o seu cachet.
Mas o humor, que lhe saía espontâneo, não raro envolvia uma situarão que ele sentia
dolorosamente. Uma vez que lhe pediram um subsídio para o tenor José Rosa, que se
encontrava no estrangeiro, respondeu tristemente:
- Eu não tenho dinheiro para os que choram, quanto mais para os que cantam. . .
Um embaixador, a quem ele marcara audiência, chegou com duas horas de atraso.
Salazar, por isso, não o pôde receber.
Voltou o embaixador no dia seguinte e quis-se desculpar com os funcionários do
protocolo.
O Presidente acudiu: pois teria sido culpa do protocolo, mas sucedera que o embaixador
tinha sido anunciado duas horas depois da hora combinada e havia outras audiências
marcadas, que entretanto estavam em curso. E a amenizar, Salazar concluiu: - Que
nestas coisas do protocolo ele ainda não sabia se os funcionários eram muito estúpidos
por serem do protocolo ou se tinham escolhido o protocolo precisamente por serem
muito estúpidos...
Não sabemos se este embaixador seria o mesmo a quem o Presidente se refere num dos
apontamentos que redigia quando estava no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e aos
quais o Dr. Henrique Martins de Carvalho já se referiu:
A entrevista estava marcada para as onze horas. Contra o seu costume o embaixador
chegou apenas com uma hora de atrazo.
Segue a descrição da conversa, que era aliás de matéria muito grave, e Salazar
acrescenta:
Ao despedir-se, verifiquei que o embaixador pensava que a audiência havia sido
marcada para as dez horas.
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