UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
LUCIANA MARIA DE SOUZA
Preconceito racial – nomeação e enfrentamentos: um estudos a partir
da trajetória de jovens negros
Belo Horizonte
2012
LUCIANA MARIA DE SOUZA
Preconceito racial – nomeação e enfrentamentos: um estudos a partir da trajetória
de jovens negros
Dissertação apresentada ao programa de
Pós-Graduação
em
Psicologia
da
Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
Área de concentração:
Psicologia Social
Linha de pesquisa:
Política, participação social e processos de
Identificação
Orientadora:
Claudia Mayorga
Belo Horizonte
2012
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por
qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa,
desde que citada a fonte.
Souza, Luciana Maria de.
Preconceito Racial – Nomeação e enfrentamento: um estudo a partir da trajetória de
jovens negros/ Luciana Maria de Souza; orientadora Claudia Mayorga – Belo
Horizonte, 2012.
138 f.
Dissertação (Mestrado) – Departamento de Psicologia da Universidade Federal de
Minas Gerais. Área de Concentração: Psicologia Social
(Racismo, Preconceito, Preconceito Racial)
Nome: Souza, Luciana Maria de.
PRECONCEITO RACIAL - NOMEAÇÃO E ENFRENTAMENTOS: UM
ESTUDO A PARTIR DA TRAJETÓRIA DE JOVENS NEGROS.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Psicologia
Aprovado em:
Banca Examinadora
Profa. Dra. Claudia Mayorga.
Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais.
Assinatura:
________________________________________________________________
Profa. Nilma Lino Gomes.
Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais.
Assinatura:
________________________________________________________________
Profa. Maria Juracy Toneli.
Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina.
Assinatura:
________________________________________________________________
À minha mãe, mulher forte e batalhadora, com quem aprendi a lutar pelos sonhos
AGRADECIMENTOS
A todos, coordenadores, bolsistas e parceiros, que durante os últimos seis anos
fizeram e fazem parte da maravilhosa experiência do Programa Conexões de Saberes.
Aos amigos que fiz nesse espaço com quem aprendi a viver a universidade de um jeito
mais feliz e menos dolorido. Em especial aos amigos que acompanharam mais de perto
as angústias desse processo Suellen Guimarães, Daniel Cruz e Julião Amaral.
Aos alunos e professores do NPP pela partilha do cotidiano na universidade e
pela oportunidade de conhecer o as diversas faces da academia. Cassia Reis, André
Diniz e Paulo Júnior, obrigada especialmente pela força que sempre deram.
Aos amigos que dividiram muito de perto o estresse cotidiano da vida de uma
mestranda, Geíse Pinto e Leonel Cardoso, meu agradecimento pela presença
indispensável nesses anos.
Aos vizinhos do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT, (NUH), Igor
Monteiro, Rafaela Vasconcelos e Liliane Anderson, que pela porta de vidro
compartilharam o espaço de trabalho no Conexões.
A Claudia Mayorga pela confiança no meu trabalho e pelo constante apoio e
disponibilidade em cada etapa do processo que se iniciou ainda no Conexões.
Ao Cláudio, meu “paidrasto”, pela presença indispensável na minha vida.
A minha mãe, Lúcia, que suportou com amor minhas ausências e chatices,
triplicadas nos últimos anos.
Ao Robson Cruz pela presença constante, cuidado, apoio e carinho cotidiano que
nos últimos anos se fizeram indispensáveis para que pudesse concluir esse trabalho.
Aqui ficam simbolizadas as vinte mil linhas de agradecimento que prometi.
Aos jovens negros que, com tanta confiança, compartilharam sua história
comigo.
A CAPES pelo apoio financeiro a essa pesquisa.
“Um negro sempre será um negro.
Chama-se pardo, cafuzo, mulato ou moreno-claro.
Um negro sempre será um negro, na luta que assume pelo direito ao emprego
e contra a discriminação no trabalho.
Um negro sempre será um negro.
Afirmando-se como ser humano
na luta pela vida.”
Jorge Posada
SOUZA, L. M. (2012). Preconceito racial – nomeação e enfrentamentos: um estudos a
partir da trajetória de jovens negros. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte.
RESUMO
O racismo no Brasil se constitui de forma ambígua e seu reconhecimento assim como
suas nuances sempre foram um tema polêmico no país. Nesse trabalho entendemos que
as dificuldades em nomear o racismo se relacionam a mecanismos que incidem no
campo das relações sociais, invisibilizando a hierarquia racial e seu caráter contingente
e histórico. Discutimos a invisibilização do racismo a partir das dinâmicas do
preconceito racial, partindo de uma concepção psicossocial desse fenômeno. Esse
estudo buscou localizar as dinâmicas do preconceito racial questionando a sofisticações
de suas dinâmicas como fruto da visibilidade pública e práticas de enfrentamento ao
racismo. Exploramos por meio de entrevistas abertas essa articulação a partir da
trajetória de seis jovens negros que participaram no Programa Conexões de Saberes e
por isso estiveram envolvidos com discussões acadêmicas e políticas da temática racial.
Ao nos aproximar dessas experiências percebemos que os entrevistados têm suas
relações marcadas pela inferiorização e negação da legitimidade das origens, trajetórias
e histórias e que persiste a estética branca como a beleza universalmente aceita e
desejada. O caráter de sutileza que prevalece nos relatos surge em meio a violências
marcantes do racismo e as formas de identificação do preconceito se estabelece pela
racialização das relações seja por meio de uma experiência coletiva de partilha de
experiências seja pela atribuição de legitimidade às experiências de subordinação
propiciadas pelo discurso científico. As formas em que se dão os enfrentamentos
revelaram que explicitar um posicionamento sobre a dinâmica das relações impõe riscos
subjetivos importantes aos sujeitos negros que são pouco partilhados socialmente. Esse
estudo sugere, portanto que o preconceito racial tem exercido mecanismos de
naturalização do racismo sob o discurso de que o consenso social tem transformado as
práticas e concepções racistas e tal dinâmica parece invisibilizar a atualidade das
violências do racismo. Dessa forma vemos que a luta contra o racismo é uma tarefa em
andamento e que suas propostas precisam ser incorporadas no registro que compreenda
as articulações entre as dinâmicas micro e macrossociais.
Palavras chave: Racismo, Preconceito Racial, Discriminação Racial, Psicologia Social
SOUZA, L. M. (2012). Racial Prejudice – naming and resolutions: A study from the
trajectory of young blacks. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
ABSTRACT
Racism in Brazil is ambiguously and its recognition as well as its nuances have always
been a contentious issue in the country. In this work, we understand that the difficulties
in naming racism is related to mechanisms that affect the field of social relations,
making the contingent and historical character of racial hierarchy unssen. We discuss
the invisibility of racism from the dynamics of racial prejudice, declarng the
psychosocial conception of this phenomenon. This study sought to find the dynamics of
racial prejudice by questioning the sophistication of its dynamics as a direct result of
public visibility and practices of racism resolution. We explored by open interviews this
articulation through the lives of six young blacks who participated in the Programa
Conexões de Saberes and so have been involved with the race issue in academic and
political discussions. When analyzing these experiences we noticed that the respondents
have their relationships marked by inferiority and denial of the legitimacy of the origins,
histories and trajectories and that the white aesthetic beauty persists as universally
accepted and desired. The subtlety of racism that prevails in the reports comes amid
remarkable violence of racism. The forms of identification of Prejudice is established by
the racialization of thier relations, through a collective experience of sharing or by the
legitimacy to the experiences of subordination afforded by scientific discourse. The
ways in which occur the resolutions revealed that explicit a position on the dynamics of
relations requires significant subjective risks to black people and these risks are less
socially shared. This study suggests that racial prejudice has played mechanisms of
naturalization racism under the social consensus discourse has transformed the practices
and racist conceptions. It seems that this dynamic is making the current violence of
racism unseen. Thus we see that the fight against racism is an ongoing task and that
their proposals must be incorporated in the record to understand the links between micro
and macro-dynamics.
Keywords: Racism, Racial Prejudice, Racial Discrimination, Social Psychology
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO E MÉTODO
1. INTRODUÇÃO
1.1.
Caminhos metodológicos
1.2.
Metodologia
1.3.
Sujeitos de pesquisa
1.3.1.
Programa Conexões de Saberes
1.4.
Entrevistas: desafios do método e descrição dos procedimentos
1.5.
Análise dos dados
CAPÍTULO 2
11
16
19
21
22
25
29
2. RAÇA E RACISMO NO BRASIL: DESAFIOS DA AMBÍGUIDADE CONSTANTE
2.1.
31
Racismo verdadeiro: A recusa do racismo brasileiro pela perspectiva da 33
comparação.
2.2.
Racismo no Brasil: práticas de aceitação e enfrentamento
3.1.
Persistindo na denúncia
2.3.
CAPÍTULO 3
3.
4. PRECONCEITO E PRECONCEITO RACIAL: LEITURAS E DINÂMICAS
38
41
44
4.1.
O estudo do preconceito na psicologia: aproximação da história e teorias
44
4.1.1.
Processo cognitivo - o preconceito na perspectiva da cognição social
49
4.1.2.
Psicodinâmica – personalidade e preconceito
50
4.1.3.
Sujeitos e pertencimento grupal – preconceito a partir das relações entre grupos
51
4.1.4.
Relações entre sujeitos e sociedade – leituras críticas do preconceito
53
4.2.
Preconceito: sujeito e sociedade
55
4.3.
Preconceito Racial no Brasil
60
4.4.
Preconceito Racial – Ambigüidades e articulações de consensos sociais
65
4.4.1.
Branqueamento – prescrição de sujeitos e sociedade
65
4.4.2.
Democracia racial – história e mito
69
CAPÍTULO 4
5. DINÂMICAS
DO
PRECONCEITO
RACIAL:
LEITURAS
A
PARTIR
DA 73
TRAJETÓRIA DE JOVENS NEGROS
5.1.
5.1.1.
5.1.2.
5.1.3.
5.1.4.
5.1.5.
5.1.6.
Apresentação dos sujeitos
Paulo
Ricardo
José
Rafaela
Bruna
Simone
74
75
76
78
80
82
84
5.1.7. Alguns apontamentos sobre as trajetórias
86
5.2.
Discursos raciais: algo mudou?
5.2.1. A persistência da inferiorização dos negros na sociedade
90
90
A) O corpo a ser alcançado
91
B) Os padrões de reconhecimento social
94
C) A eterna suspeição
96
5.2.2. Algumas mudanças: negros na mídia – visibilidade e reconhecimento
99
5.3.
104
Leituras das dinâmicas e movimento de identificação do preconceito
5.3.1. Movimentos de racialização das trajetórias e experiências: identificação do 104
preconceito racial a partir da formação teórica e convivência com grupo de apoio
5.3.2. Leituras das dinâmicas e expressões do preconceito racial: o passado e presente das 109
5.4.
trajetórias.
Enfrentamentos ao preconceito racial
118
5.4.1. Cálculos do enfrentamento
118
5.4.2. Formas de enfrentamento pela afirmação de um posicionamento
121
5.4.3. Formas de enfrentamento pela transformação de práticas sociais
124
CONSIDERAÇÕES FINAIS
126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
130
ANEXOS
137
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO E MÉTODO
1. INTRODUÇÃO
“Em casa de enforcado, não se fala em corda”. Essa expressão serviu durante
algum tempo como metáfora das incoerências do tratamento dado à questão racial no
Brasil. Sociedade marcada por profundas desigualdades raciais, mas que negou ao longo
de sua história a existência de racismo e preconceito racial. Mas, em que medida falar
em “corda”, em “casa de enforcado” faz cessar os enforcamentos? Aceitando a
persistência da metáfora, nosso objetivo neste trabalho foi buscar compreender de que
formas as relações e trajetórias de sujeitos negros têm sido impactadas pelos discursos
atuais sobre raça no Brasil no sentido de possibilitar estratégias de enfrentamento e
visibilidade dos efeitos do preconceito racial.
Essas reflexões certamente não se iniciaram na construção deste projeto de
pesquisa. Elas são parte das histórias de luta e resistência dos negros no Brasil e
também do esforço de intelectuais em se debruçar sobre as várias nuances do racismo.
No entanto, a anunciação de algo novo do enfrentamento público e democrático no
campo das relações raciais brasileiras fez saltar aos olhos o interesse de compreender a
persistência das dificuldades de lidar com o racismo e suas rearticulações.
Na universidade pública, contexto que se propõe democrático e cuja centralidade
de nossa representação moderna se deu pela emergência da racionalidade como
caminho para a construção de conhecimento crítico sobre a realidade, se esperaria um
debate mais avançado sobre o racismo. Entretanto, em pleno boom da discussão sobre
medidas para inserção de estudantes negros nesse espaço, observam-se casos clássicos
do que poderíamos nomear como racismo invisibilizado. Um objeto valioso some em
um departamento. O primeiro estagiário inquirido sobre o suposto roubo é o único
estudante negro que frequentava aquele espaço. A bolsista negra, em busca de dados
para a financiada pesquisa sobre relações raciais na universidade, percebe,
reiteradamente, que sua aproximação de professores coordenadores de cursos de
graduação da UFMG é carregada de desconfiança sobre seu lugar de estudante e
12
bolsista de pesquisa. Ainda na universidade, em expressão de extrema violência, alunos
colocam sobre a carteira de uma estudante negra uma banana. Sem reação, a menina sai
chorosa da sala e a história vira piada. Como ler essas situações, como dar nomes a elas
e compreendê-las dentro de um contexto mais amplo e menos violento que, ao dizer que
é assim mesmo, culpabiliza os sujeitos nelas envolvidos? Essas situações podem ser
nomeadas como racismo ou existiriam, em seus contextos, outras possibilidades de
interpretação?
A jovem negra conta que, na entrada de um shopping situado na área nobre da
cidade, suas pernas tremem. Ela sabe que há algo errado, sabe que será notada, mas não
sabe muito bem o porquê. A roupa adequada, os cabelos “arrumados”, o dinheiro no
bolso, a adoção de certa postura são estratégias que têm impacto. Mas, porque não
resolvem o constrangimento da situação? Da mesma forma, o garoto negro também
sabe que não pode desejar qualquer mulher, que não é e nem será considerado bonito,
mesmo com os atuais galãs e modelos negros na televisão. Por isso, algo de belo deve
faltar à parceira para que lhe aceitem em uma relação. Essas estratégias, por vezes tão
naturais, têm respondido à qual urgência nas relações desses sujeitos? O que a análise
delas permite visibilizar em relação ao racismo brasileiro?
A pergunta que nos coube nesta pesquisa partiu da reflexão dessas e de outras
tantas experiências, contínuas e cotidianas, na trajetória de nós, negros e negras. As
dificuldades em lidar com tais situações parecem revelar os desafios de nomear e
enfrentar situações de violência, humilhação e subordinação que marcam trajetórias,
sociabilidades, resistências e modos de ser sujeito na sociedade brasileira. No entanto,
diante do debate racial que temos atualmente no Brasil, nos parece que, por vezes, as
perspectivas de enfrentamento têm privilegiado leituras mais estruturais do racismo
brasileiro a partir da localização e denúncia de seus lugares de reprodução. A
importância dessa frente de luta é inquestionável, sobretudo se tomamos como
referência nosso violento quadro de desigualdades raciais. Mas, por considerarmos que
o racismo se expressa no corpo das relações macro e micro-sociais, torna-se importante,
do nosso ponto de vista, explorar as dinâmicas raciais mais efêmeras e, por esse motivo,
passíveis de invisibilidade diante das complexidades em sua enunciação e sustentação.
Hoje podemos – sem facilidades, mas com maior legitimidade – demonstrar,
localizar, enumerar, relatar os contextos sociais em que os negros são excluídos,
violentados,
sub-representados,
marginalizados.
Contudo,
como
traduzir
esse
13
movimento macro para a compreensão dos enredamentos das relações micro-sociais?
Relações que muitas vezes, por sua dinamicidade, naturalidade e urgência cotidiana,
deixam escapar na fugacidade do momento a violência do racismo. Esses contextos,
macro e micro, são certamente interdependentes. Porém, quais possíveis conexões
podemos fazer entre eles?
Diante desses desafios desenhados pelo racismo brasileiro, empreendemos dois
movimentos na construção do problema delineado nessa pesquisa. O primeiro
movimento fez localizar as dificuldades em nomear o racismo como relacionadas a
mecanismos que, de forma muito eficaz, incidem no campo das relações socais,
invisibilizando a hierarquia racial e seu caráter contingente e histórico. Discutimos,
portanto, a invisibilização do racismo a partir das dinâmicas do preconceito racial,
partindo de uma concepção psicossocial desse fenômeno, procurando extrapolar em
nossas análises efeitos do preconceito para além das vivências de discriminações. O
segundo movimento buscou localizar as dinâmicas do preconceito racial no momento
atual do debate racial brasileiro. Questionamos, portanto, o que tem sido apresentado na
literatura como sofisticações de dinâmicas do preconceito racial resultantes das
transformações e visibilidade pública dos discursos e práticas de enfrentamento em
torno das desigualdades raciais do país. Nosso interesse foi explorar essa articulação a
partir do potencial reflexivo de sujeitos envolvidos com discussões acadêmicas e
políticas da temática racial cujas trajetórias foram moldadas em uma geração na qual o
racismo, mesmo que com dissensos, é publicamente reconhecido. Assim, nos
aproximamos dessas experiências com o objetivo de, mediante análise dos
posicionamentos e estratégias desses sujeitos, abstrair possíveis sofisticações dos
mecanismos de naturalização e invisibilização do preconceito racial que permanecem a
ocultar a raça como uma categoria com legítimo potencial de atribuição de
inteligibilidade às experiências.
Acredito que o processo mais árduo de todo esse percurso foi a construção do
problema de pesquisa, a inquietação pessoal a ser traduzida no delineamento de
instrumentos interpeláveis publicamente e legítimos do ponto de vista acadêmico e
social. Durante meses, desde a entrevista do mestrado, me vi defrontada com o
questionamento – ora vindo de outros, ora vindo de mim mesma – sobre a existência de
uma pergunta relevante nessa pesquisa. Graças a esse questionamento, não poderia e –
não gostaria – de me furtar a expor como foi a construção deste problema. Dentro de
14
uma perspectiva crítica de produção de conhecimento, tal exposição torna-se um dos
passos imprescindíveis quando decidimos publicizar nossas investigações.
Para expor tal processo, entendo ser necessário recorrer a alguns pontos da
minha trajetória, mesmo incorrendo em atribuição de linearidade e racionalidade a uma
experiência que, em outras circunstâncias, não poderia ser tratada a partir de nenhum
aspecto linear ou racional. Contar essa história, com o intuito de pensar a origem de um
interesse, exige admiti-la como construída por significados atrelados a sentidos e afetos
de outras histórias e outras trajetórias, sejam essas de sujeitos, coletivos ou de um
campo de conhecimento. Em outras palavras, a história da origem desse interesse não
começa nem acaba em si mesma. O sentido aqui é construído como fruto de idas e
vindas, dúvidas e ressignificações passíveis de imprecisões narrativas. No entanto,
alguns dos aspectos dessa história, assim como a contínua reflexão sobre eles, são partes
do ruído que vem à cabeça quando sou convocada a localizar alguma origem ou
fundamento dessa pesquisa. Ademais, este trabalho parte da reflexão sobre as trajetórias
de jovens negros, e acredito que aqui também se insere a minha própria trajetória.
Cresci em uma família negra e pobre e – em virtude do emprego de minha mãe
em uma escola particular de Belo Horizonte e de sua persistência no intuito de garantir
o direito sindical de bolsa para suas filhas – passei todos os anos escolares em uma
instituição cujo corpo discente e docente eram, quase exclusivamente, branco e rico. O
lugar de filha de uma funcionária fez dessa escola minha primeira casa, um espaço onde
passava grande parte do tempo. Além da dedicação aos estudos, lá eu também cresci.
Certamente foi nesse contexto que vivi minhas conquistas e construí relações de afeto e
carinho. Mas, diante do histórico de vida dos negros no Brasil, não é surpresa dizer que
a vivência nesse espaço teve muitas tensões, tristezas e violências. Afinal, as diferenças
eram expressivas e evidentes no meu cotidiano.
Durante os anos escolares, as respostas que tinha para compreender as
dificuldades que vivia se relacionavam com a grande diferença econômica entre eu e o
meu entorno naquela escola. Aquele lugar não tinha sido pensado para mim e, já que eu
estava no “lugar errado”, o que poderia fazer era lidar com isso enquanto fosse
necessário.
Assim, todas as situações em que me senti diferente, inadequada,
desconfortável e excluída eram passíveis de perder sentido caso eu chegasse a partilhar
dos mesmos recursos materiais que todos daquele ambiente partilhavam. A classe social
era, então, a chave de compreensão de minhas relações, assim como disseram
15
intelectuais brasileiros. Estes, procurando entender a desigualdade no país, afirmam ser
a pobreza – e o subdesenvolvimento do Brasil – o principal obstáculo a ser solucionado.
Descobri o que era racismo – de forma conceitual – na universidade, ao
participar de um programa que se propunha a pautar no ambiente acadêmico as
discussões sobre as relações raciais: o Programa Conexões de Saberes. Assim, junto
com outros colegas negros, construí novas referências para entender que nossa raça
orientava pensamentos e atitudes das pessoas e me vi, consequentemente, como
participante dessa lógica. Isso permitiu que eu relesse minha história, principalmente
escolar, não só pelos marcadores da carência econômica, mas pelos marcadores raciais.
No entanto, a mesma “tranquilidade” que a ideia do racismo me deu para
compreender minha história, relativizando seu caráter estritamente individual, trouxe
outro problema, já bastante enunciado pela militância negra. Não conseguia entender
como era possível terem sido invisíveis por tanto tempo na minha trajetória de vida os
indícios de uma ordem que, quando olhada mais refletidamente, eram tão evidentes. O
mais complexo, no entanto, era compreender que saber de sua existência, conhecer e
nomear essa ordem não fazia necessariamente com que eu a localizasse nas minhas
relações e visibilizasse as estratégias construídas para lidar com ela, fossem essas para
enfrentar, aceitar ou remediar. Foi a partir dessa inquietação, de perguntar por que não
se vê aquilo que cotidianamente é exposto como regra social, que cheguei até aqui. Essa
chegada não foi, e não poderia, ser solitária. Ela foi partilhada e trilhada entre muitos e
eu mesma.
A partir do incômodo de perguntar pelos motivos dessa invisibilidade, o campo
de estudos sobre o preconceito racial, e as constantes referências às sofisticações de sua
ambiguidade na atualidade, emergiu como um problema a ser enfrentado. Não somente
a partir de seus efeitos na vida cotidiana, mas, principalmente pela explicitação das
dinâmicas desse fenômeno que, por produzirem invisibilidade, exigem dos sujeitos
alvos de sua violência um reposicionamento constante no mundo quando defrontados
com a urgência de construir resistências. A pergunta então se delineou na tentativa de
evidenciar, ou compreender melhor, as dinâmicas do preconceito no cenário atual,
através da análise dos posicionamentos que sujeitos negros estabelecem diante dessa
realidade.
Para construir nosso posicionamento de enfrentar essas perguntas, iniciamos por
apresentar nos itens do capítulo que se segue a introdução ao problema e os aspectos
16
metodológicos dessa pesquisa. No segundo capítulo, discutiremos alguns pontos da
ambiguidade do racismo brasileiro. Para tal, focamos na construção da aceitação pública
do racismo enquanto ideologia estruturante de nossas relações sociais e nas estratégias e
políticas construídas para seu enfretamento, apontando também alguns de seus
impasses. No terceiro capítulo, discutiremos o preconceito racial como dinâmica que
atua na invisibilização e naturalização das hierarquias raciais, tornando-as
ininterpeláveis não somente em situações de violência e humilhação, mas, ocultando sua
eficiência em produzir efeitos de subordinação em outros aspectos da experiência de
sujeitos negros. Nosso quarto capítulo apresenta as análises desse trabalho e por fim, as
reflexões finais.
1.1.
Caminhos metodológicos
Como os sujeitos negros significam em suas trajetórias o preconceito racial
hoje? Como constroem estratégias para lidar com as dimensões cotidianas do racismo?
Como é possível nomear e enfrentar lógicas tão presentes, mas tão invisibilizadas?
Como compreender os impactos do preconceito racial em nossa trajetória? Como já dito
essas são algumas das perguntas que orientaram o desejo de realizar esse trabalho e aqui
estarão explícitos os caminhos traçados para desenvolvê-lo. No entanto, para apresentar
tal percurso e a construção possível de respostas, destacamos alguns dos entendimentos
dessa iniciante investigadora sobre o assunto em questão nesse tópico: a pesquisa e seus
aspectos metodológicos.
Em minha trajetória acadêmica, as discussões sobre metodologia sempre foram
difusas. Minha compreensão sobre as diferenciações entre método instrumento e
metodologia constituiu uma questão para a qual não tinha respostas seguras. As
disciplinas, textos e debates sobre o tema quase sempre apresentavam uma perspectiva
de ciência neutra e positivista, carregada de certezas que geravam em mim
desconfianças sobre como era possível recortar o mundo em pequenos pedaços e isolar
as partes de interesse do pesquisador. A premissa da objetividade e universalidade da
ciência moderna era um horizonte incômodo, sobretudo diante daquilo que fui buscar ao
fazer psicologia. Historicamente, tal disciplina ocupou um lugar hegemônico de
regulação e adaptação dos indivíduos. Eu, por outro lado, busquei esse curso por
acreditar que a psicologia era o conhecimento e prática da emancipação. Minha
17
aproximação junto à área e, às ciências humanas em geral, se deu no campo da
participação pastoral que, ancorada na teologia da libertação, tinha como pilares a
liberdade, a centralidade do contexto comunitário e a luta por direitos. Conhecer essa
outra história Psi, assim como conhecer um pouco mais de perto as críticas à ciência
hegemônica, foi algo bastante conflituoso. Exigiu a construção e aproximação de um
novo olhar sobre as formas de fazer e pensar ciência.
Minha inserção com pesquisas na temática racial, no Programa Conexões de
Saberes, implodiu ainda mais meus pensamentos sobre os processos de legitimidade
envolvidos na construção de conhecimento, pois, naquele momento, o que eu estudava e
pesquisava estava inteiramente relacionado com minha vida e meus interesses. Se já não
achava possível, considerando a complexidade dos fenômenos que integram a
experiência humana, “isolar totalmente o meu mundo” dentro de uma pesquisa, naquele
momento “o meu mundo” e a pesquisa estavam em intensa relação. Para refletir sobre
as relações raciais, era importante tomar a mim e a minha história como objetos de
reflexão.
A aproximação com os estudos raciais evidenciou um campo de estudos
engajado e politicamente posicionado. A objetividade e rigor desses trabalhos não se
delineavam por uma crença descomprometida na ciência, mas por sua escolha como
ferramenta política, pela constatação de que a produção de conhecimento desenhada
pelos moldes científicos era um dos meios a serem acionados e integrados na luta contra
as violências do racismo. A ciência objetiva, nessa perspectiva, era também o campo
social onde se legitimaram as inferioridades dos negros, consolidando privilégios e
forjando a neutralidade e legitimidade da produção de conhecimento científico como
um lugar branco. Sendo assim, a discussão sobre os pressupostos científicos eram de
extrema importância na construção de uma perspectiva crítica e engajada no
conhecimento sobre as relações raciais brasileiras. O exercício de trabalhar e lidar com
essas relações foi moldando outra imagem sobre a produção de conhecimento,
permitindo que, aos poucos, se diluísse a antiga perspectiva da ciência como uma
prática que de tão específica e distante tinha quase um status de abstração.
O contato com a sociologia das ausências e emergências de Santos (2002)
contribuiu nesse processo para demarcar o conhecimento científico como uma
perspectiva de conhecimento parcial sobre o mundo. Perspectiva que estabeleceu,
através da classificação hierárquica de outros modos de saber da experiência humana, o
18
status de hegemonia, podendo, assim, instaurar a parcialidade de suas perspectivas
como totalidade. A ciência hegemônica delegou ao domínio do senso comum, da
irracionalidade e da imprecisão outros saberes e práticas sociais, incluindo aí aquelas
dotadas dos afetos e sentidos da experiência. Em diálogo com outras formas de pensar
socialmente a produção de conhecimento, a pesquisa se redimensionou como
possibilidade de reflexão, um processo que consiste em construir e explicitar, não
somente um posicionamento para perguntar, mas as possibilidades para conhecer. Os
caminhos para esse saber permitiam – e exigiam – o diálogo com os posicionamentos,
interesses e lugares sociais daquele que pergunta.
Também na psicologia, a aproximação com a história da psicologia Social
Latino Americana, concebida como um esforço crítico de psicólogos sociais engajados
na compreensão dos problemas sociais dos países latinos, se mostrou como um
importante campo de diálogo sobre os aspectos teóricos e metodológicos de uma
ciência. Enquanto um movimento de resposta as insuficiências de um paradigma
hegemônico e burguês que orientava as práticas e a produção de conhecimento na
América Latina, o movimento de superação dessa hegemonia se traduz na negação da
ciência burguesa e na apropriação da realidade dessas sociedades pelos cientistas,
produzindo novos recortes e olhares capazes de não mais ignorar a história e realidade
do seu contexto específico. A consideração de uma ciência não mais pautada no
descompromisso social orientou o comprometimento de acadêmicos com a mudança
social.
Nos termos críticos dessa perspectiva, nenhuma ciência pode ser considerada
neutra em seu desenvolvimento. Os contextos socioeconômicos se relacionam a
qualquer empreendimento científico, estando as ciências humanas, nesse caso, muito
mais sensíveis a esse tipo de influência. A contextualização histórica torna-se, então,
referência na construção de novos caminhos paradigmáticos da psicologia social na
América Latina. (Sandoval, 2000).
Preciso destacar que as aproximações e experiências pessoais com o campo e
com o problema aqui inscrito não são trabalhadas na perspectiva de construir uma
legitimidade “apriorística” do meu conhecimento sobre essa realidade ou afirmar,
somente pela via da experiência, minha perspectiva sobre ele. O que pretendo explicitar
são os interesses envolvidos nesse processo, considerando que o ato de inseri-los no
corpo dessa pesquisa permite expor ao debate metodológico as limitações e alcances do
19
conhecimento aqui pretendido. Adoto a perspectiva de Harraway (1995) ao considerar
que não é a experiência do subalterno em si mesma que legitima o conhecimento sobre
os elementos da subalternidade, mas sim a exposição de seus posicionamentos e uma
relação crítica com a produção do saber.
Dessa forma, discutir a metodologia de um trabalho é delineá-la como um
elemento que extrapola os aspectos de uma disciplina instrumental que permite a
apreensão total de um objeto existente na realidade definindo os procedimentos para tal.
O percurso metodológico se faz, aqui, compreendido como um elemento do corpo de
uma pesquisa que dialoga com a concepção e definição dos próprios sujeitos, com as
relações estabelecidas entre pesquisador e pesquisado e com os caminhos da produção
de saberes. Nesse sentido, pretendo expor o caminho metodológico escolhido como
forma de demonstrar sua relação com o problema inscrito nesse trabalho, com seus
objetivos e com a dimensão psicossocial atribuída ao fenômeno estudado.
Apresentaremos o caminho metodológico dessa pesquisa como forma de pôr em
discussão a escolha do método, sua aplicação, os procedimentos de análise e as relações
com os sujeitos participantes.
1.2.
Metodologia
Escolher um delineamento metodológico para compreender de forma mais
aprofundada aquilo que invisibiliza o racismo na continuidade e cotidianidade das
trajetórias de sujeitos negros, não é tarefa simples, sobretudo se o desafio é trabalhar
com um fenômeno que, de forma imprescindível, exige considerar as relações entre
sujeito e sociedade. Essa perspectiva recusa, portanto, as análises mais psicologizantes
sobre o preconceito que acabam por relegar aos sujeitos negros a responsabilidade total
sobre o que vivem como subordinação, assim como também desconfia da primazia da
dimensão estrutural das hierarquias raciais como fonte únicas de análise do racismo.
Acreditamos que é concebendo as histórias dos indivíduos nessa relação, macro e
micro-social, que o preconceito se apresente de formas menos aparente e, por isso,
menos apreensível e “mensurável” em suas expressões individuais. Como apontaremos
mais a frente, essa pesquisa pretendeu refletir sobre um fenômeno que têm – como
fortes elementos em sua dinâmica – a ambiguidade em sua expressão social e atuação
via mecanismos de invisibilização (Teodoro, 1996). De todo modo, considerá-lo como
20
fenômeno que se expressa de forma menos “visível” nas relações entre os indivíduos
não significa conceber o preconceito como fenômeno individual. Aqui pretendemos
constituir um olhar analítico que considere sujeito e sociedade como dimensões que se
constituem em interação e contínua relação (Elias, 1994).
A ambiguidade aqui se apresenta como o processo que mascara o racismo em
sua expressão, seja pela cobertura de sua clareza, objetividade e intenção explícita, seja
pelo incremento de sutilezas e sofisticação no seu potencial organizador da sociedade. A
ambiguidade é inserida pela produção de discursos paradoxais que sustentam tanto o
racismo como o preconceito racial. A invisibilização social desse fenômeno, por sua
vez, é ancorada em diversos consensos sociais – democracia racial, mestiçagem, ideal
de branqueamento – que forjam uma compreensão compartilhada socialmente de que o
racismo, enquanto a expressão de uma desigualdade hierárquica racial, não teria lugar
em uma sociedade harmoniosamente miscigenada (Guimarães, 2004a).
Tais processos tornam difícil a identificação dos mecanismos de subordinação
dos negros na hierarquia racial enquanto marcadores atuantes na história desses sujeitos
e permitem que os modos de formatação dessas experiências, inclusive seu caráter de
resistência, sejam lançados na esfera do silêncio, naturalização, patologia e, muitas
vezes, de resignação. Lugares ideais para a reprodução da invisibilidade de uma
ideologia que nos estruturou como nação, como sujeitos. Não por menos, por se
tratarem de vivências de humilhação e sofrimento, os impactos do preconceito racial nas
trajetórias dos negros/as, quando nomeados como tal, são ocultados como elementos
presentes na história desses sujeitos. Em uma sociedade na qual o racismo funciona
como uma organização social a ser negada, não se fala ou pensa sobre ela enquanto uma
prática que se exerceu ou sofreu.
Os desafios metodológicos que se colocam sobre esse campo passam pela
problemática de se propor uma metodologia que seja capaz de alcançar as dinâmicas de
um fenômeno presente, porém pulverizado na sociedade, na vida dos sujeitos dessa
pesquisa e também na trajetória da pesquisadora. Trata-se de lançar mão de um método
que faça falar sobre o que não existe de forma inteiramente interpelável e que, quando o
é, tem sua enunciação proibida, negada ou questionada.
Dessa forma, empreendemos na constituição desta investigação uma pesquisa
qualitativa com dimensão participativa. A perspectiva participativa se destaca por
pressupormos a presença do pesquisador/a em um campo constituído pela cotidianidade
21
dos sujeitos, grupos, comunidades ou instituições (Brandão, 1999). Os sujeitos, nesse
caso, são participantes da investigação e se estabelece uma repartição dos lugares de
produção de conhecimento no processo de pesquisa. Sendo assim, não existe dentro
dessa concepção de investigação a exclusão dos sujeitos de pesquisa do processo
intelectual da compreensão dos fenômenos e da elaboração do conhecimento, objetivo
que se pretendeu alcançar com a pesquisa. Schmid (2008) nos lembra que ao
Considerar o outro como parceiro, não só o processo de pesquisa passa a lidar
com outras interpretações dos fenômenos estudados, quanto se abre para refletir sobre
as relações de poder entre pesquisador e interlocutor ou colaborador e sobre o sentido e
a utilidade da investigação para ambos. (Schmid, 2008. p.396).
A dimensão participativa da pesquisa é entendida e delineada pela implicação do
pesquisador naquilo que move os sujeitos com os quais ele se propõe a entender o
problema. Sendo assim, a perspectiva qualitativa e participativa nessa pesquisa se
delineou como abordagem metodológica que percebeu os sujeitos e pesquisadora
imersos no processo de construção do conhecimento sobre o problema. A relação entre
ambos pode ser entendida em um continuum; não como lugares radicalmente cindidos.
1.3.
Sujeitos de pesquisa
Dentro das dificuldades da escolha e fazendo a articulação com os objetivos
dessa pesquisa, definiu-se como sujeitos homens e mulheres que se autodeclaravam
negros e que apresentavam em sua história alguma aproximação com a discussão racial.
Tal recorte foi feito visando tornar mais apreensível e identificável os elementos dessas
trajetórias relacionados ao preconceito racial e ao momento atual do debate racial
brasileiro. A aposta feita é que, sendo o racismo um fenômeno de efeitos e atuação
ambígua, assim como é a discussão das relações raciais no Brasil, a escolha de sujeitos
com alguma forma de engajamento poderia auxiliar na explicitação dos movimentos
presentes na visibilização desse fenômeno. Esperávamos que os movimentos de
aproximação e discussão sistemática das questões raciais brasileiras fizessem oportuno
o debate e reflexividade dos sujeitos em relação ao problema em questão.
22
O universo que escolhemos foi o de estudantes universitários ou graduados que
participaram durante a graduação de grupos de pesquisa, extensão, estudos ou vivência
com a temática racial e que, por sua vez, tivessem o racismo como centralidade de suas
discussões. O contexto da universidade foi escolhido por garantir maior acesso aos
sujeitos e, principalmente, por ser um dos espaços sociais onde tem recaído a discussão
sobre o enfrentamento dos efeitos do racismo brasileiro a partir da adoção de Ações
Afirmativas. É sabido que diferentes discursos raciais têm estado em disputa de maneira
cada vez mais contundente na pauta das instituições de ensino superior no Brasil. Esse
movimento também tem acontecido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
nos últimos dez anos.
A escolha por uma discussão mais sistemática da temática racial – e também a
proximidade com os sujeitos – culminou no convite aos ex-bolsistas do Programa
Conexões de Saberes, em sua versão de 2007 a 2009. Esse programa se configura na
UFMG como um espaço de pesquisa/extensão e intervenção no qual debates acerca da
questão racial na sociedade, e nas universidades brasileiras, são objetivos comuns.
Certamente, o Programa Conexões de Saberes não é, dentro da UFMG, o único
ambiente onde se tem debatido temas relacionados ao racismo brasileiro. 1 No entanto,
foi no seio das discussões desse programa que essa pesquisa se moldou. A escolha por
trabalhar com seus integrantes também teve relação com as aproximações entre o
problema e a o perfil do programa. Logo, a política de contínua formação política aliada
à formação acadêmica, a diversidade de discussões sobre o racismo brasileiro, assim
como a centralidade do exercício de reflexão junto aos estudantes, fortaleceram a
definição por trabalhar com os bolsistas do Conexões de Saberes da UFMG.
A seguir apresentaremos, de forma breve, a descrição de alguns aspectos da
história do programa no intuito de elucidar alguns dos pontos compartilhados pelos
sujeitos dessa pesquisa e explicitar a escolha por trabalhar com esse programa.
Destacam-se nesse debate o Programa Ações Afirmativas na UFMG, o NUQ – Núcleo de
Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais e outras iniciativas mais pontuais dentro do contexto
da UFMG.
1
23
1.3.1. Programa Conexões de Saberes
O programa Conexões de Saberes: diálogos entre universidade e comunidades
populares é um programa desenvolvido pelo Ministério da Educação, através da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD/ MEC junto
a Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e em parceria com o Observatório de
Favelas do Rio de Janeiro. O programa surgiu a partir da experiência da Rede
Universitária de Espaços Populares (Ruep), ação formulada em 2003 pelo Observatório
de Favelas que consistiu na articulação de universitários oriundos de comunidades
populares para avaliação de políticas públicas e formação de lideranças com perfil
técnico para atuação em suas comunidades de origem (Observatório de Favelas, 2008).
O Conexões de Saberes surge, em âmbito nacional e como uma política do
governo federal, em 2004, sendo implementado nesse ano como um projeto piloto em
cinco universidades: UFMG, UFPE, UFRJ, UFF e UFRGS. Nos anos seguintes, o
programa passa por contínuas ampliações e chega a estar presente, em 2008, em um
total de 33 universidades (Almeida 2011).
Como diretriz nacional, o programa busca trabalhar junto a estudantes com
trajetórias populares em suas instituições de ensino superior, destinando-lhes bolsas de
apoio acadêmico que possam contribuir para a permanência em seus cursos de
graduação. De forma geral, o programa tem como objetivos: 1) fortalecer o
protagonismo de estudantes de origem popular em atividades acadêmicas voltadas para
a elaboração de diagnósticos, proposições e avaliação de políticas de ações afirmativas
de acesso e permanência nas universidades federais; 2) possibilitar a inserção em
atividades de ensino/pesquisa/ extensão em comunidades populares e outros grupos
sociais excluídos, ampliando as relações entre a universidade e os moradores de espaços
sociais diversos através da troca de saberes e fazeres entre esses territórios
socioculturais (Ministério da Educação, n.d).
Desde sua versão piloto em 2004, a UFMG integra o grupo de universidades que
implementam o programa. Na UFMG, o Conexões de Saberes foi inicialmente
coordenado pelo Programa Ações Afirmativas e Observatório da Juventude da
Faculdade de Educação, tendo sido desenvolvidas ações no Aglomerado Santa Lúcia e
no município de Contagem. Junto à comunidade do Aglomerado Santa Lúcia trabalhouse com constituição da memória coletiva, a partir da valorização de relatos e vivências
24
dos sujeitos moradores, vislumbrando a implantação de um centro de memória coletiva.
No desenvolvimento do trabalho em Contagem a atuação teve como intenção o
mapeamento de grupos culturais organizados ligados à juventude (Universidade Federal
de Minas Gerais, [UFMG] n.d).
Também desde 2004, um dos aspectos considerados primordiais na composição
do grupo de bolsistas, nas temáticas abordadas pelo programa e no delineamento e
desenvolvimento do projeto na UFMG, é a adoção do critério racial na seleção de
bolsistas. Tal consideração se dá a partir da constatação da persistente desigualdade
racial no âmbito educacional, sobretudo no ensino superior, evidenciada pela
reprodução da exclusão no acesso e permanência de negros/as e pobres no espaço
acadêmico (UFMG, n.d)
Em 2007, o programa passou a ser coordenado pelo Núcleo de Psicologia
Política, privilegiando o trabalho referenciado em três eixos principais: 1)
Democratização da Universidade, a partir da realização de um mapeamento das lógicas
e mecanismo de exclusão na UFMG; 2) Relação da Universidade com Comunidades
Populares e Movimentos Sociais, eixo no qual essa relação foi trabalhada a partir do
contato com grupos e movimentos sociais diversos e 3) Relação da Universidade com a
Escola Pública, eixo que desenvolveu a parceria Conexões e Escola Aberta através da
discussão sobre direitos humanos e relações raciais em escolas da rede pública de Belo
Horizonte e região Metropolitana.
Além do recorte racial explícito no delineamento do perfil de estudantes, o
programa, desde sua implementação na UFMG, tem como fundamento de ação e
reflexão o quadro brasileiro de desigualdades raciais. Através do debate sobre a adoção
de Políticas de Ação Afirmativa para o acesso e permanência de estudantes de origem
popular e negros/as no ensino superior brasileiro, o Conexões de Saberes se tornou
umas dos atores a pautar junto à comunidade acadêmica a reflexão sobre o racismo
brasileiro e suas dimensões.
A publicação “Universidade Cindida, universidade em Conexão: ensaios sobre a
democratização da Universidade” dedica-se à apresentação sistematizada das reflexões
e questões que fizerem parte percurso do programa entre 2007 e 2009. Mayorga e Souza
(2010), a partir da análise de memoriais de bolsistas, sustentam a perspectiva de política
de permanência do programa e apontam que:
25
Tal percurso nos leva a compreender que uma política de ação afirmativa de
permanência deve sim focar e cuidar das questões acadêmicas dos alunos negros e de
origem popular na universidade e das bolsas de permanência; mas deve, sobretudo,
contribuir para que esses mesmos alunos possam compreender de forma crítica as
dinâmicas do racismo e da exclusão social na sociedade brasileira e também na
universidade que marcam seus corpos e percursos, para que a partir daí possam
construir novos posicionamentos (Mayorga & Souza, 2010, p.229).
O programa promoveu, ao longo dos anos de 2007, 2008 e 2009, um percurso de
debates e reflexões sobre o racismo brasileiro e o enfrentamento ao preconceito racial,
focando principalmente na discussão sobre democratização da universidade. Em sua
agenda de propostas se destacaram a proposição de seminários e eventos sobre a
inserção de negros na UFMG, a discussão ininterrupta sobre o preconceito em oficinas
de enfrentamento e a formação contínua dos bolsistas em temáticas relativas à
democratização da sociedade. Assim, a proposição do Programa não se limita à gestão
de uma política afirmativa de permanência orientada somente para a resolução dos
limites econômicos que perpassam a inserção de estudantes negros e pobres na
universidade. Visa, também, o fortalecimento e construção de uma identidade racial
positiva e uma reflexão crítica que inclui a reconfiguração das trajetórias negras desses
estudantes através de processo de ressignificação de suas vivências. Busca ultrapassar
os enredamentos de interpretações individualizadas para encarar suas histórias de
dificuldades e conquistas de forma contextualizada, inserida na história de uma
sociedade estruturada por uma classificação racial.
1.4.
Entrevistas: desafios do método e descrição dos procedimentos
A escolha de entrevistas individuais como instrumento metodológico se deu
prioritariamente pelo interesse de ouvir, construir e explorar as trajetórias e experiências
dos sujeitos, ainda que, em sua formalidade metodológica, a construção dos dados que
analisaremos não se constituiu nos moldes clássicos de um roteiro de entrevista. O uso
de entrevistas sem roteiro prévio se delineou como um recurso que permitiu conciliar os
objetivos específicos da pesquisa com a proposta de interação entre pesquisador e
sujeitos. Os enquadres das entrevistas permitiram certa liberdade e autonomia dos
sujeitos em refletir sobre a construção de suas falas e interferir, em diálogo com a
entrevistadora, nos rumos dados ao tratamento do problema, possibilitando a
26
emergência de participação e implicação dos sujeitos com aquilo que se pretendia
investigar.
Pretendemos apreender, nos relatos das experiências dos sujeitos, aspectos de
suas trajetórias relacionados ao preconceito racial, focando nos fatores que em sua
história individual, ou mesmo em mudanças no contexto social, pudessem apontar
elementos que permitissem tornar essas experiências inteligíveis, nomeáveis. Assim,
esperávamos que estes expusessem, através de um olhar analítico das experiências,
potencial de explicitar transformações nas dinâmicas do preconceito racial. Por meio
das entrevistas, pretendeu-se estimular narrativas que auxiliassem na compreensão do
fenômeno a partir da perspectiva que considera que as entrevistas fundamentais
“quando se precisa/deseja mapear práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios
de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e
contradições não estejam claramente explicitados” (Duarte, 2004, p. 215).
A entrevista é, como método dentro da pesquisa qualitativa, a escolha
predominante em ciências humanas no que diz respeito à produção de dados verbais,
podendo ser utilizada em várias formatações (Flick, 2009). Sobretudo nas últimas
décadas, as contribuições da linguística auxiliaram a retirar a entrevista do campo dos
métodos menos válidos cientificamente ou dos métodos de suporte (Machado, 2002).
De nossa parte, insistimos que seu potencial está na relação de sua utilização com os
outros elementos presentes no corpo de uma pesquisa.
Como qualquer outro instrumento metodológico, o uso da entrevista requer que o
pesquisador se confronte com a escolha de seu método e por ele se responsabilize, seja em
suas potencialidades seja em seus riscos e limites. Neste sentido, pontuaremos aqui dois
desafios principais que parecem se inscrever no desenvolvimento de nossa investigação.
O primeiro deles diz respeito à necessidade de elucidar de forma minuciosa e
comprometida os caminhos e passos utilizados no desenho metodológico percorrido.
(Duarte, 2004). O uso do material resultante de uma entrevista que, em suma, é a fala dos
sujeitos escolhidos, transcrita e analisada, não pode ser considerada um processo simples.
Para que isso fosse possível, existiu na relação com os sujeitos contato com os mesmos,
negociações, aceites e recusas que são parte da metodologia e serão aqui considerados. O
uso inocente desse instrumento pode levar o pesquisador a considerar a fala dos sujeitos
um modo de acessar, de forma plena, uma dada realidade. Sabemos que estamos diante da
construção de um processo que não se inicia ou se interrompe na fala do sujeito ou na
27
análise feita a partir dela. Tomar esse desafio como premissa, pressupôs questionar uma
suposta linearidade no processo e analisar, portanto, alguns dilemas enfrentados.
Outro ponto importante para essa análise é a necessidade de o pesquisador
compreender que a entrevista se processa em meio a uma relação, que inclui o
pesquisador, o pesquisado e os outros elementos que ali os unem, incluindo aí, os
interesses de ambos (pesquisador e pesquisado). Essa dinâmica é essencialmente interativa
e, por isso, se processa como uma construção da qual participam pesquisador e
pesquisados. Os entraves e desenvolvimentos desta interação são elementos tão
importantes quanto à própria fala do sujeito ou as perguntas do entrevistador. Nesse
sentido, o pesquisador tem de ter responsabilidade e comprometimento com o tratamento
do material coletado visto que dentro da prática acadêmica é ele quem ocupa o lugar de
objetivar em um texto ou relato o que a interação de muitos sujeitos construiu. (Duarte,
2004, p. 218).
O contato e a marcação das entrevistas se deram prioritariamente por e-mail. Nas
primeiras tentativas, obtive poucas respostas, passando, então, a realizar os convites
através de sites de relacionamento, sempre por meio de mensagens privadas. As
comunicações por e-mail ou pelos sites de relacionamento se fizeram através de um
convite em que se apresentava, brevemente, o tema da pesquisa e solicitava a
disponibilidade para a participação na mesma, a partir das possibilidades de cada um
dos convidados2. Em raras exceções foi utilizado o telefone para reagendar ou combinar
detalhes do local e horário dos encontros. Quando necessário, os combinados foram
revistos com bom tempo de antecedência. Todas as entrevistas foram realizadas em
salas da própria universidade, uma conveniência da pesquisadora que também se
mostrou conveniente aos entrevistados. Estes, por um motivo ou outro, ainda
transitavam, mesmo depois de sua formação, pela UFMG.
Destaco esse processo e a tranquilidade em que os convites, os aceites e as
recusas aconteceram porque esse percurso do campo não teve nenhum dos percalços
que a expectativa do trabalho me fez esperar. Aguardava, diante de certa dispersão dos
sujeitos, um processo muito mais complicado para o acordo das entrevistas. No entanto,
todos que aceitaram o convite demonstraram muita vontade e disponibilidade em me
conceder seus relatos: em poucas situações, tivemos que desmarcar encontros. Como
2
A carta convite é apresentada nos anexos.
28
apresentado na delimitação do recorte dos sujeitos, os entrevistados são pessoas com as
quais já trabalhei e compartilhei momentos durante um bom período de tempo no
percurso de trabalho do Conexões de Saberes. Mas, a naturalidade sob a qual os acordos
foram feitos me fez pensar que, de uma forma ou de outra, eles se fizeram parceiros
desse trabalho e compartilharam comigo o interesse em pensar sobre esse problema,
resgatando assim as parcerias e confiança construídas em outros momentos. Os
entrevistados abriram para mim suas vidas tendo a confiança de que eu cuidaria bem
delas. Contaram-me coisas doloridas e não se contiveram em chorar ou se emocionar
quando quiseram, apostando, e insisto nisso, em uma confiança consolidada em
momentos que extrapolaram o tempo das próprias entrevistas.
No entanto, por mais tranquilo que tenha sido o acordo com os sujeitos, o
desconforto desse processo se deu na necessidade de que eu mesma estabelecesse,
diante de uma situação de comodidade e intimidade, o desconfortável lugar de
desconhecimento e estranhamento necessário ao pesquisador. O principal obstáculo de
usar entrevistas como ferramenta metodológica se deu prioritariamente pela minha
necessidade de tomar, mesmo que minimamente, uma posição de dúvida em relação às
narrativas que me eram contadas, quase sempre como se eu já as conhecesse. Por outro
lado, tinha de considerar que elas não eram endereçadas a uma pesquisadora
desconhecida; ao contrário, se dirigiam a uma pesquisadora afetivamente comprometida
com o problema. Tomar esse lugar, a partir do desconforto com o familiar, produziu
algumas tensões no processo, exigindo a configuração de uma relação até então inédita
entre mim e as pessoas entrevistadas. Um lugar comprometido com a familiaridade
daquelas experiências, mas desapegado do que de comum ou esperado, nossa história
prévia poderia fazer emergir. Com o interesse pelo que de novo poderia surgir dessa
relação, tomei, de outra perspectiva, o desenvolvimento de cada umas das entrevistas ao
tentar conceder aos entrevistados a possibilidade de debater comigo o processo das
entrevistas, as perguntas e os rumos de cada narrativa. Minha aposta foi que o novo da
relação só poderia surgir sob um tensionamento do lugar de pesquisadora que ocupei em
cada encontro. A partir daí, o debate sobre os meus interesses, objetivos e postura diante
do tema da pesquisa e dos temas discutidos em cada encontro foi constante com todos
os entrevistados.
Admito que estar nesse lugar não foi tarefa muito fácil, pois significou admitir
também minhas limitações e construir posições frente às tensões para as quais não
29
estava preparada. Tendo a necessidade de “estranhar o familiar”, era imprescindível
trabalhar com as posições de poder inseridas em uma investigação. Se o pesquisador é
quem define a orientação sobre os rumos da produção de dados, propus o exercício
inverso: conceder aos sujeitos o lugar de assumir os relatos, suspendendo meus
interesses iniciais. Essa postura não tinha a intenção de eliminar as hierarquias ali
presentes, pois as relações entre pesquisador e sujeito não se limitam ao momento de
uma entrevista, mas sim às configurações históricas de poder na ciência. Pretender
desconsiderá-las é tarefa ingênua. Adotei essa postura na tentativa de permitir ouvir o
familiar apresentado pelos meus ex-companheiros de trabalho, a partir de um registro
construído pelo outro e não guiado por mim. Assim, os meus direcionamentos puderam
se dar em meio a registros menos limitados àquilo que já conhecia da história de cada
um dos entrevistados.
A partir dessa exposição, cabe reafirmar que as entrevistas não foram trabalhadas a
partir de nenhum roteiro de perguntas previamente definido. A única orientação existente
foi a demanda inicial de que os sujeitos contassem – permitindo a gravação – suas
trajetórias de vida, tomando como partida e chegada aquilo que considerassem mais
oportuno e interessante a partir do acesso ao tema da pesquisa, que foi apresentado no
convite para as entrevistas. Os cuidados éticos relacionados ao anonimato dos sujeitos e
sua autonomia em relação ao conteúdo das entrevistas foram negociados e acordados com
todos os participantes nos momentos iniciais, a cada entrevista. Foram resguardadas todas
as informações pessoais que pudessem identificá-los, como nomes próprios, endereços,
empregadores e outros. Também foram suprimidas das análises informações ou falas que
os sujeitos julgaram terem sido indevidamente anunciadas. Todas as informações
solicitadas pelos participantes foram respondidas, assim como suas questões relativas aos
objetivos e problemas da pesquisa.
A partir do caminho que eles escolheram para relatar suas vidas, foram feitas
intervenções, questionamentos e proposições que fizessem com que as histórias
dialogassem com os objetivos dessa pesquisa e com os interesses construídos a partir dos
referenciais adotados. Dessa forma, a cada entrevista, novas perguntas e dúvidas sobre o
problema foram surgindo e se desmembraram em novos delineamentos para o foco e
orientações das entrevistas futuras em perspectiva das anteriores.
No total, foram realizados dez encontros individuais com três homens e três
mulheres, sendo dois encontros com quatro deles e um com dois deles. A duração dos
30
encontros foi bastante variável. Algumas vezes em função da agenda dos entrevistados,
mas, principalmente, assim como analisaremos mais a frente, em função do conteúdo e
dinâmica da entrevista. As questões relacionadas às dinâmicas das entrevistas serão
tratadas em nossas análises na exposição das trajetórias individuais dos sujeitos dessa
pesquisa.
1.5.
Análise dos dados
Para o tratamento e análise dos dados, a ausência de um roteiro pré- estabelecido
no desenvolvimento das entrevistas fez necessário o movimento inicial de tomar como
referência cada uma das trajetórias apresentadas em suas singularidades e peculiaridades.
Esse esforço se deu na proposta de compreender as vicissitudes das experiências relatadas
a fim de apreender, de cada uma, os principais posicionamentos e enquadramentos em
suas trajetórias. Esse primeiro movimento pretendeu analisar as experiências apresentadas
em cada relato com o intuito de compreendê-las e tomar como destaque seus contextos
sociais específicos, analisando cada sujeito dentro de sua particularidade. Consideramos
esse primeiro exercício necessário para evidenciar que, mesmo partilhando de marcadores
sociais comuns, as trajetórias desses sujeitos são múltiplas e apresentam um distinto e
complexo potencial analítico da capilaridade do preconceito racial enquanto fenômeno
marcante nas trajetórias negras. A partir dessa singularidade, iremos expor dentro de cada
trajetória o segundo exercício analítico que consistiu na categorização de elementos que se
mostraram partilhados e reincidentes no cumprimento do objetivo de compreender as
incidências das dinâmicas do preconceito racial, demonstrando, de forma mais detalhada,
os dilemas e enfrentamentos que as sofisticações desse fenômeno têm apresentado no
contexto atual. Tal exercício propiciou um diálogo com o campo de estudos sobre
preconceito racial utilizado como referencial teórico dessa pesquisa.
31
CAPÍTULO 2
2. RAÇA E RACISMO NO BRASIL: DESAFIOS DA AMBIGUIDADE
CONSTANTE
É através da coexistência de afirmações e negações que podemos pensar a
questão racial no Brasil. “O Brasil é um país racista? Sim e não. O Brasil é uma
democracia racial? Sim e não. Somos racistas e não racistas.” (Pereira, 1996. p.75). A
ambiguidade pela qual se estrutura o modelo racial no Brasil tem variados efeitos, desde
aqueles mais simbólicos como a consolidação de uma memória não violenta da
escravidão brasileira no imaginário social (Chauí, 2000), até aqueles datados
historicamente como a adoção constitucional do princípio da igualdade no Brasil em
uma sociedade ainda escravista (Barrozo, 2004). O caráter ambíguo das relações raciais
no Brasil, seja no exercício de reflexão acadêmica, seja na vivência cotidiana de seus
efeitos, é um elemento inquestionável do racismo brasileiro (Pereira, 1996). Na procura
por discutir essa ambiguidade, Pereira (1996) oferece quatro pares analíticos que podem
auxiliar na apreensão do caráter que torna o modelo racial brasileiro incomparável com
o de outros países, dada sua dimensão de “ser e não ser”. Vamos adotar na nossa
reflexão os dois primeiros pontos debatidos pelo autor, a saber, o “racismo verdadeiro e
racismo falso” e “o discurso e a prática social” por serem esses os mais elucidativos das
questões que pretendemos trabalhar3. É à luz destes dois planos de interpretação que
pretendemos discutir o desafio de apreender contornos atuais da temática racial, assim
como, perguntar pela persistência da ambiguidade racial brasileira e suas articulações
com o preconceito racial.
O primeiro par – “racismo verdadeiro e racismo falso” – propõe a contraposição
entre as concepções de racismo nas quais, por motivos históricos, a ideia compartilhada
no senso comum se relacionaria às dimensões de crueldade e violência do extermínio
étnicos dos regimes nazifascistas ou das práticas discriminatórias institucionalizadas no
apartheid social estadunidense e sul-africano. Esse entendimento adotado como o
racismo empiricamente verdadeiro falsearia qualquer perspectiva racialista que
3
Os demais pontos desenvolvidos pelo autor se referem ao negro e sua cultura, que trata da
incorporação da cultura negra no discurso da mestiçagem e do debate raça e classe como um mecanismo
que organização a leitura da desigualdade brasileira somente sob os aspectos econômicos. (Pereira, 1996).
32
fundamentasse a existência de preconceito no nosso campo de relações sociais e
interpessoais, visto que no Brasil nunca existiu, mesmo diante da escravidão4, tal
racismo verdadeiro, violento e segregacionista, implementado até a Segunda Guerra
Mundial (Pereira, 1996)5.
O segundo par, o discurso e a prática social, se refere ao sistema de valores
discursivos de harmonia que de forma eficiente atuam no controle do comportamento
real do sistema de relações raciais e institui uma não correspondência entre “os níveis
do discurso ou da atitude e da prática social” (Pereira, 1996, p. 77). Essa desarticulação
insere como desafio a reflexão sistemática sobre os impactos e transformações,
materiais e simbólicas, que os enfrentamentos ao racismo brasileiro têm implementado,
na medida em que no país a formalidade legal e discursiva sempre esteve em
descompasso com o conjunto de valores e crenças sociais que orientam as dinâmicas
sociais.
Nesse sentido, o esforço de compreensão e explicitação da ambiguidade que nos
é tão peculiar torna-se ponto de partida para a construção de possíveis respostas aos
problemas de ordem racial no Brasil, sobretudo nos últimos anos em que os discursos
sobre as desigualdades raciais e seu enfrentamento têm sido apresentados a sociedade
brasileira de forma cada vez mais consistente no cenário público. Como presenças cada
vez mais constantes podemos destacar o debate nacional e legal sobre as políticas de
cotas, os efeitos da Conferência de Durban, a presença racializada na mídia de
personagens e personalidades negras, a aprovação do Estatuto de Igualdade Racial, a
implementação da Lei 10.639/03, a criação da Secretaria Especial de Igualdade Racial,
entre tantas outras estratégias que vem sendo desenvolvidas em âmbito nacional ou
local. Mesmo que a constatação de um debate público sobre raça possa ter um caráter
4
Guimarães (2005) e Chauí (2000) apresentam aspectos que na história de constituição da
identidade nacional construíram ideias românticas ou menos violentas sobre os arranjos da escravidão
brasileira. Guimarães destaca os processos relacionados às leituras comparativas entre Brasil e outros
países escravistas e Chauí trabalho com a construção mítica da harmônica identidade nacional.
5
No início dos anos 50, por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultura (Unesco) patrocinou uma série de pesquisas sobre as relações raciais brasileiras, a partir da
constatação de que era o Brasil um exemplo mundial da tolerância racial. As investigações foram
desenvolvidas tendo em vista que, diante dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, era preciso
compreender e explorar uma experiência de convívio e tolerância racial bem-sucedida. (Maio, 1999).
33
parcial6, não podemos negar que nas últimas três décadas o país tem encarado de forma
mais contundente os desafios sobre o tema (Telles, 2003). Tal processo exigiu que os
posicionamentos sobre o racismo brasileiro fossem pautados com maior centralidade na
cena pública e que se rearticulassem os discursos raciais, mesmo que em propostas
distantes de sua total dissolução. É também inegável que, desde os anos 90 até os dias
atuais, tem crescido o número de políticas e estratégias públicas que pretendem
solucionar, pela via da gestão dos aspectos estruturais, as desigualdades consideradas,
de forma minimamente consensuada, frutos de uma assimetria racial.
O que nos competiu, portanto, foi, a partir do enquadramento das transformações
(e porque não avanços) no debate racial brasileiro, fazer persistir a pergunta sobre a
ambiguidade no sentido de reafirmá-la como um desafio constante. Assim, discutiremos
os nossos desdobramentos dos pontos acima mencionados respectivamente nos itens
que se seguem, no sentido de debater aspectos dessa ambiguidade e reconhecer que ela
se fundamenta na coexistência de “realidades” aparentemente opostas. Refletir
continuamente sobre essa oposição e seus rearranjos é um caminho possível para a
compreensão da série de dinâmicas de opressão produzidas por um sistema que adota a
raça como um critério classificatório, mesmo que de forma publicamente não declarada.
A ambiguidade afeta a visibilidade e compreensão do racismo e de seus efeitos – como
o preconceito, por exemplo – e, por isso, se coloca como uma questão e ser enfrentada.
2.1.
Racismo verdadeiro? A recusa do racismo brasileiro pela
perspectiva da comparação.
A hegemonia do discurso da democracia racial no Brasil passou por constantes
questionamentos desde sua denúncia como mecanismo de recusa do racismo brasileiro
(Telles, 2003; Guimarães, 2006). Nesse sentido são distintas as teses que se propuseram
a debater as razões pelas quais se construiu um quadro interpretativo das relações
sociais brasileiras pautadas na oposição e negação da existência do racismo ou na
consideração de um quadro racial menos violento. Admitindo a diversidade de
6
Afirmamos a parcialidade dessa constatação pelo diálogo com trabalhos que demonstram a
centralidade pública da categoria raça na constituição do Estado Brasileiro (Schwarcz, 1998). É evidente
a partir de análises das políticas de desenvolvimento brasileiras (Telles, 2003) que o discurso sobre a raça
negra tinha caráter público e se moldava como um problema enfrentado pela nação, fundamentando o
projeto de modernidade brasileiro no século XX.
34
elementos que na história brasileira contribuíram para a sedimentação da perspectiva de
recusa ao racismo, escolhemos debater a perspectiva que, ao focar nas dimensões de
raça e racismo como conceitos analíticos da experiência social não cientificamente
realistas, permitem explicitar que a recusa do racismo no Brasil se fez também
fundamentada em uma compreensão desse fenômeno que não considerou a
configuração própria da racialização brasileira.
Compreender como múltiplos os racismos, assim como considerar distintos os
contornos que essa ideologia tomou em diferentes sociedades, exige que trabalhemos
com a concepção de racismo referenciada pela construção social da categoria raça.
Categoria que, mesmo desprovida de alguma realidade natural, orientou formas de
classificação social (Guimarães, 2005; Munanga, 2004; Hofbauer, 2006).
No século XVIII, o conceito de raça e sua ideia subjacente de classificação
foram transportados das ciências naturais, Botânica e Zoologia, no intuito de reconstruir
a ideia de humanidade e explicar – à luz da racionalidade iluminista e não mais de
fundamentos teológicos – o lugar do “outro” colonizado, outro que, por sua diversidade,
colocou em questão os limites da civilização ocidental (Munanga, 2004). Essa
transposição teve como efeito não somente a classificação, necessária e imprescindível à
experiência humana; ela produziu o efeito de hierarquização e construção de um outro
racialmente inferior, pavimentando o racialismo. (Munanga, 2004, p.2). O
estabelecimento dessa categoria aplicada à realidade humana parte de critérios artificiais
que significaram a racialização da humanidade a partir da naturalização de qualidades
morais, psicológicas, culturais e intelectuais lidas por meio de uma relação intrínseca
com aspectos biológicos. (Guimarães 2005, Munanga, 2004)
Guimarães (2005) trabalha com os dilemas envolvidos nos usos do termo raça
para orientar a compressão de categorizações sociais e estabelecimento de hierarquias
pelo campo de estudos das ciências sociais, sendo que esse debate se estrutura através
de dois posicionamentos sustentados pela mesma repulsa discursiva ao racismo. A
oposição ao uso do conceito se fundamenta na concepção biológica contemporânea da
inexistência de raças humanas ou no caráter reificador de ideologias de naturalização
das desigualdades de grupos humanos que o termo pode perpetuar. Por outro lado sua
utilização vem sendo defendida a partir do potencial da categoria em apontar o caráter
específico de determinadas crenças e práticas de discriminação social e, ainda, da
possibilidade de reconstrução do termo no tratamento crítico das mesmas ideologias
35
opressivas que se fundamentaram na construção da ideia de raça (Guimarães, 2005, pp.
21-22). É diante desse dilema que se formula a proposta do uso do conceito de raça a
partir da leitura precisa de sua articulação com formas particulares de produção de
discriminações e sua vinculação às identidades sociais. Assim, “diferenças fenotípicas
entre indivíduos e grupos humanos, assim como diferenças intelectuais, morais e
culturais, não podem ser atribuídas, diretamente, a diferenças biológicas, mas devem ser
creditadas a construções socioculturais e a condicionantes ambientais.” (Guimarães,
2005, p. 24).
Retomar de forma crítica o conceito de raça reside em estabelecer as distinções
específicas de hierarquização da experiência humana que o racismo fez operar em
diferentes sociedades. Dessa forma, se instala a necessidade de compreender como
múltiplas e contextuais as formas de racismo, permitindo, via resgate de algumas
análises sobre o racismo no Brasil, evidenciar o porquê de sua recusa ser ideia tão
presente na história nacional e mundial.
Em busca de uma definição mais precisa do que veio a ser o racismo nas
sociedades modernas e, portanto, no projeto moderno do Brasil, é importante localizar a
ideia específica de natureza que fundamentou a hierarquia racial (Guimarães, 2005).
Essa delimitação se faz relevante na medida em que outras classificações sociais
também partem da naturalização das diferenças para produzir hierarquias sem, no
entanto, significar natureza como atributo biológico, endógeno ou hereditário, como
aponta também Munanga (2004). Tal indefinição provocou nos estudos sociológicos do
termo raça uma imprecisão conceitual que permitiu abstrair do conceito relações de
subordinação ligadas a outros tipos de hierarquização, como gênero, etnia e classe
social. Nesse sentido, a naturalização produzida pelo racismo está intimamente ligada a
uma concepção de natureza pautada pelo determinismo endógeno, ou seja, se sustenta
em uma teoria das raças que institui um sistema classificatório humano em que marcas
físicas tomadas como hereditárias, mesmo dentro de regras de transmissão variadas,
significam uma essência moral, intelectual e cultural partilhadas por um determinado
grupo e não por outro (Guimarães, 2005, p. 33).
Portanto, o conceito de raça carrega mais elementos políticos e ideológicos do
que dimensões científicas e naturais (Guimarães, 2005; Munanga, 2004). Seu uso serviu
para a invenção de um outro inferior. Por mais que não usemos mais o conceito de raça
em um registro científico natural e que, biologicamente, essa definição não tenha
36
sentido, a ideia de raça ainda orienta nossas relações sociais. Munanga (2004) apresenta
esse posicionamento e afirma que:
Se na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de um biólogo molecular a
raça não existe, no imaginário e na representação coletivos de diversas populações
contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a partir das diferenças
fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. É a partir dessas raças
fictícias ou “raças sociais” que se reproduzem e se mantêm os racismos populares
(Munanga, 2004, p.21)
Como fruto de uma teoria diferencialista, o racismo pode ser entendido dentro de
um projeto de modernidade.
É na modernidade que a formulação de concepções
individualistas e igualitárias circunscreve a interpretação das classificações humanas ao
plano das diferenças hereditárias de atributos biológicos, psíquicos e morais dos grupos
humanos. (Guimarães, p. 10, 2004b).
O distintivo no racismo moderno seja justamente a ideia de que as desigualdades
entre os seres humanos estão fundadas na diferença biológica, na natureza e na
constituição mesmas do ser humano. A igualdade política e legal seria, portanto, a
negação artificial e superficial da natureza das coisas e dos seres. Ora essa compreensão
do racismo significa circunscrevê-lo à modernidade, pois nos remete logicamente ao
aparecimento da ciência da biologia e da filosofia política liberal (Guimarães, 2004b,
p.10).
Com isso, a classificação hierárquica – orientada pela construção racializada do
outro – significa conceber o racismo como uma ideologia essencialista que estabelece
uma relação fundamental entre atributos biológicos e físicos e características morais,
culturais, psicológicas e intelectuais. Tal concepção se coaduna a uma construção de
uma norma e hegemonia pretendida com a apresentação da diferença. Nesse jogo
relacional de classificações, os grupos humanos são diferenciados e desigualmente
instituídos em inferiores e superiores a partir daquilo que lhes é atribuído como natural
(Munanga, 2004). Mais do que uma realidade historicamente empírica, o racismo deve
ser encarado como elemento analítico da configuração social que permite a
inteligibilidade de determinadas realidades sociais. Por esse motivo, sua interpretação
exige a consideração de distintas histórias de racismo e racialização – e não uma
conceitualização estática referenciada por um determinado modelo de sociedade –,
37
sendo fundamental compreender o racismo brasileiro a partir de seu próprio contexto de
categorização das raças.
No Brasil, a utilização de teorias raciais respondeu à urgência de um projeto
moderno de sociedade (Schwarcz, 1998). As grandes desigualdades do país, sobretudo
as de caráter regional entre nordeste e sudeste, evidenciavam um futuro não promissor
para uma nação que, em vistas com a abolição da escravatura, tinha que lidar com o
ameaçador poder de degenerescência do contingente de negros anunciado pelo
evolucionismo europeu. O termo raça, por sua vez, nunca teve no Brasil nenhum caráter
neutro (Schwarcz, 1998). Por outro lado, seja pela via da solução do embranquecimento,
seja pela “constatação” das deficiências físicas e mentais dos negros na escola de
medicina da Bahia e de Direito do Recife, a leitura do Brasil como um país moderno e
democrático se fez de modo racializado (Guimarães, 2005).
No entanto, mesmo diante do tratamento dado à raça no Brasil, assim como em
outros países latino-americanos, o racismo sempre foi considerado um interdito
(Guimarães, 2005, 2006; Bernardino, 2002; Telles, 2003). O campo de estudos raciais,
desde a metade do século XX, se fundou em um modelo estadunidense. Esta
perspectiva, tomada como referencial para a compreensão da construção de raças,
acabou demonstrando, pela ineficiência da própria comparação, a inexistência de um
racialismo que pudesse fundamentar uma organização social brasileira racista (Telles,
2003; Guimarães, 2005).
Essa tendência de comparação, operando na procura ponto a ponto de um
racismo americano no Brasil também impossibilitou que definições próprias de raça e
racismo fossem incorporadas na compreensão das desigualdades brasileiras. Ao
contrário, a etiqueta refinada do distanciamento social brasileiro e as diferenças de
status e possibilidades em meio à equivalência de direitos jurídicos eram o contraste
ideal para delimitação de um paraíso racial (Guimarães, 2005, p. 41). Por sua vez,
Telles (2003) argumenta que essa comparação se fundamentou na oposição de duas
características antagônicas dos dois sistemas: a exclusão da segregação racial
estadunidense e a conotação de inclusão da miscigenação brasileira. O modelo racial
dos Estados Unidos foi, então, o pano de fundo de muitas interpretações das relações
raciais no Brasil devido a sua hegemonia teórica no campo e influência na formação dos
acadêmicos brasileiros (Telles, 2003; Guimarães, 2005), fato que provocou a utilização
de uma teoria de raça formulada em uma sociedade para a interpretação do modelo
38
racial de outra (Telles, 2003). A aplicação de teorias de um contexto em outro é prática
comum nas Ciências Humanas. Porém, nesse caso, tal exercício incorreu em equívocos
analíticos nas relações raciais brasileiras.
Diante disso, foi somente após a conquista do Movimento de Direitos Civis nos
EUA e a persistência do distanciamento entre negros e brancos que a referência sobre as
relações raciais marcadas pela centralidade da institucionalidade e segregação formal foi
questionada e reinterpretada. Abriu-se a possibilidade de, também, compreender o
racismo como um modelo em que as barreiras que não se limitavam a mecanismos
puramente legais e publicamente institucionalizados, mas que operava na produção de
desigualdades mascaradas em outros mecanismos menos visíveis (Guimarães, 2005).
Nesse sentido, a perspectiva de comparação mudou de foco e pode contribuir para
demonstrar possíveis aproximações entre os dois modelos e demonstrar que, assim
como argumenta Telles (2003), o racismo pode ser também mantido por meios
informais, o que torna, no Brasil, as práticas racistas violentas e repreensíveis menos
importantes para a manutenção da discriminação racial (p.236).
2.2.
Racismo no Brasil: práticas de aceitação e enfrentamento
A organização e as reivindicações do Movimento Negro7 se constituíram no
Brasil como o elemento principal para o questionamento da ideia de democracia racial.
Mesmo que suas ações e mobilizações não se limitem ao período de redemocratização
do país, assim como demonstrado por Domingues (2007), esse período foi marcado por
maior abertura para a expressão de demandas dos movimentos sociais. Embora as
demandas do Movimento Negro fossem lidas como ameaçadoras aos pilares do
nacionalismo brasileiro, a reformulação e persistência desse ator político foi
fundamental para instituir um quadro de reinterpretações da dinâmica racial brasileira,
principalmente pós década de oitenta. Diante desse quadro, se estabelece no Brasil um
cenário de maior diálogo e influência do movimento negro com as instâncias políticas
do estado (Telles, 2003), instituindo o início de programas de enfrentamento às
7
Nesse trabalho utilizamos a expressão Movimento Negro como forma de nomear um ator
político primordial na organização da luta antirracista no Brasil. A nomeação singularizada e unificada no
entanto não desconhece a multiplicidade de vozes e experiências presentes na militância negra e a
heterogeneidade e disputas nas agendas e pautas políticas desse movimento.
39
desigualdades raciais e a consolidação de uma maior aceitação pública da existência do
racismo.
No início da década de 1980, sempre por pressão do Movimento Negro, se inicia
a instalação de conselhos especiais sobre a condição dos negros em alguns estados
brasileiros, seguidos da criação, em nível federal, do Instituto Fundação Cultural
Palmares, em 1988. Esse ano também marca as conquistas do Movimento Negro na
reformulação constitucional dos direitos democráticos, a partir do estabelecimento dos
princípios de tolerância, dignidade e respeito às diversidades identitárias (Telles, 2003).
A constituição de leis de criminalização do racismo em nível estadual e
municipal acompanha as tendências federais de instituir penalidades a práticas racistas e
reiteram os pilares constitucionais de expansão dos direitos democráticos das minorias
historicamente excluídas8. Telles (2003) também destaca a importância da eleição de
negros em postos públicos importantes, fato que desafiou o lugar subalterno dos negros
na sociedade e, principalmente, angariou, de forma regular, propostas de defesa do
direito dos negros a partir da afirmação de sua negritude.
O principal deslocamento realizado nesse momento está na ampliação da visão
sobre a condição dos negros para além dos aspectos culturais – visão comum no foco de
organizações negras em diálogo com o Estado – fenômeno observado quando
Líderes do movimento negro passaram a receber atenção nacional e
internacional através de campanhas que destacavam como, no Brasil, os negros eram
vítimas preferenciais da pobreza e das violações dos direitos humanos, inclusive
crianças de rua, o tráfico de mulheres e a violência proveniente do crescente tráfico de
drogas. (Telles, 2003, p.73)
A década de 1990 marca a organização do movimento negro em ONGs mais
profissionalizadas e instrumentalizadas, contando com o apoio de fundações
internacionais como por exemplo, a Fundação Ford. Essa forma de organização
acompanhou as tendências de outros movimentos sociais e permitiu o incremento de
recursos e profissionais na ampliação das iniciativas de luta contra o racismo em
distintos níveis (Telles, 2003). A criação de linhas diretas como o SOS Racismo, a
formulação em organizações negras de assistência jurídica às vítimas de racismo, o
8
Destaca-se o artigo 5 (inciso 42) da constituição federal que institui a prática de racismo como
crime inafiançável, imprescritível e sujeito a reclusão.
40
lançamento de campanhas educativas e a utilização da mídia na divulgação de suas
ações, assim como na denúncia de racismo em programas televisivos, são alguns dos
exemplos de estratégias do movimento negro sustentadas pela reestruturação
organizacional desse período (Telles, 2003). Os anos noventa registram a radicalidade
da denúncia do racismo no país e impacta o meio acadêmico pelo reconhecimento dos
estudos sobre raça como campo legítimo de pesquisas, alavancando, de forma cada vez
mais sólida, a produção de dados quantitativos e qualitativos sobre as desigualdades
raciais (Guimarães, 2008).
A participação do Brasil na Conferência de Durban9 marca o reconhecimento do
dever do Estado brasileiro em agir ativamente contra o racismo a partir da proposição de
ações de enfrentamento como, por exemplo, políticas de ação afirmativa. Hofbauer
(2006) situa essa mudança a partir da Conferência e afirma que
Se, durante muito tempo, os governos brasileiros se orgulharam de pregar na
cena internacional a ausência do racismo no país, no governo F.H. Cardoso pôde-se
perceber claros sinais de uma mudança de discurso e de ação: pela primeira vez,
reconheceu-se oficialmente a existência de um “problema racial” e se passou a estar
preocupado com estratégias específicas de combatê-lo. (Hofbauer, 2006, p. 9)
Ademais, a imprensa destacou as discussões raciais nas semanas que precederam
a Conferência, marcando uma mudança histórica no tratamento jornalístico das questões
raciais. Telles (2003) nota que entre 25 e 31 de agosto foram publicados pelos cinco
maiores jornais brasileiros 170 artigos, editoriais, cartas e opiniões sobre raça, racismo e
sobre a própria conferência, demonstrando que a mídia passava a considerar as questões
raciais como interesse público.
A Conferência deixou um clima de otimismo entre os militantes negros no Brasil
(Bentes, 2002; Telles, 2003) que viam ruir o silêncio sobre o racismo brasileiro já em
crescente eliminação nos últimos anos.
10
.No entanto, as políticas de nível federal que
resultaram do compromisso brasileiro contra o racismo foram o estabelecimento, em
200, de programas de bolsas para negros do Instituto Rio Branco e da determinação de
9
A Terceira Conferência Mundial da ONU contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerâncias Correlatas aconteceu no ano de 2001 em Durban, na África do Sul e reuniu mais de seis mil
representantes de governos e ONGs. (Dopcke, 2001)
10
Em 1995, a pesquisa Datafolha revela que 89% dos brasileiros afirmavam que existe
preconceito racial no Brasil.
41
uma porcentagem mínima de 20% de negros nas empresas que prestavam serviços ao
Supremo Tribunal Federal. Já no governo Lula, é sancionada em 2003 a Lei 10.639, lei
que institui a obrigatoriedade de Educação das Relações Étnico-raciais e do Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana no currículo oficial da Rede de Ensino,
marcando uma importante conquista no enfrentamento ao racismo.
O desenvolvimento de ações afirmativas é também uma importante frente de luta
e enfrentamento, sendo que, no Brasil, é um tema recente e tem focado basicamente o
acesso à universidade. Mesmo com foco mais restrito do que o desejável, a adoção
dessas políticas tem evidenciado os dissensos nos posicionamentos sobre as formas de
enfrentar o racismo brasileiro, fazendo emergir reinterpretações do imaginário de
democracia racial e revelando que a produção discursiva e instrumental de aceitação do
racismo no Brasil ainda está distante de eliminar nossa cultura racista.
O distanciamento entre a formulação de políticas de enfrentamento ao racismo e
a transformação de nossos padrões culturais é facilmente evidenciado nas análises de
casos emblemáticos de discriminação racial. Em muitos deles o acionamento das leis
antirracistas não foram suficientes para instituir uma interpretação racial a
acontecimentos de humilhação e violência a negros. Telles (2003) destaca casos de
repercussão nacional em que tanto a população em geral quanto o judiciário não
legitimaram eventos de discriminação racial ancorados pelos discursos da mestiçagem e
da democracia racial.
O próprio debate em torno da adoção de ações afirmativas pode sintetizar o
distanciamento entre o reconhecimento do racismo brasileiro, a adoção de políticas e
eliminação de discursos que ancoram a negação do racismo no Brasil. Mayorga e Souza
(2010) apresentam o debate sobre a adoção de ações afirmativas e – junto ao caminho
percorrido por Hofbauer (2006), Santos et all (2008), Bittar e Almeida (2006) e Oliveira
Filho (2009) – acabam por demonstrar a rearticulação atual dos pilares de sustentação
do Brasil como não racista. Esses trabalhos remontam os discursos que, fazendo
referência à configuração racial e social brasileira, pretendem apresentar a suposta
incompatibilidade do cenário social do Brasil com tais políticas. A suposta
impossibilidade de se definir o público-alvo de políticas raciais mediante o alto grau de
miscigenação da população brasileira, a presunção de inconstitucionalidade das políticas
afirmativas e, ainda, seus possíveis efeitos de segregação, são alguns dos argumentos
que permeiam tais discursos. Nesse sentido, a produção em torno dos dilemas de
42
implementação de políticas focais apontam como os argumentos contra a efetivação de
políticas afirmativas desconsideram as especificidades do racismo brasileiro
reinstalando novas versões do mito da democracia racial e da mestiçagem como
dispositivos que instalam a invisibilidade das desigualdades raciais em meio a um
cenário de afirmação democrática.
2.3.
Persistindo na denúncia
Debater as distâncias entre as práticas e os discursos raciais no Brasil torna
imprescindível a permanência da luta por reafirmar as dimensões do racismo e suas
constantes rearticulações com as transformações e conquistas atuais no campo
institucional e discursivo das relações raciais. Em consonância com esse desafio, alguns
trabalhos têm se preocupado em ponderar diferentes nuances da ambiguidade racial
brasileira a partir da análise dinâmica de experiências de negros e negras.
Figueiredo (2004), por exemplo, questiona a ascensão social de negros como
“antídoto” contra a discriminação e preconceito racial. A autora investiga as trajetórias
de mobilidade social de empresários negros de classe média e analisa como o status
social pode significar maior vulnerabilidade a vivências de preconceito e discriminação
racial devido à presença majoritária de brancos nos espaços sociais frequentados por
esses sujeitos. A autora também põe em questão como a percepção da discriminação
racial se torna mais evidente nessas trajetórias. Porém, tal visibilidade não orientou
necessariamente formas de enfrentamento nas trajetórias desses sujeitos, revelando que
a dinâmica do enfrentamento ao racismo não parte somente do reconhecimento público
ou subjetivo de sua existência, assim como permite evidenciar que o acesso a bens e
recursos sociais prestigiados não eliminam a subalternidade na classificação racial.
Weller e Silveira (2008), por sua vez, analisam a trajetória de jovens negras
cotistas na universidade, focando, entre outros aspectos, as suas estratégias de
enfrentamento ao preconceito e discriminação racial, em diferentes espaços, incluindo aí
a própria universidade. As autoras concluem que:
Os dados relativos às experiências escolares e vivências universitárias (...)
confirmam nosso entendimento de que a resolução de problemas “crônicos” de
desenvolvimento coletivo, produzidos por imbricados e sistemáticos processos de
alijamento, seja de amplos setores socioculturais, grupos ou categorias de pessoas, ainda
43
constitui um grande desafio. A esperança de resultados palpáveis, depositada nas ações
afirmativas, exige a tomada de outras medidas nacionais, regionais e locais. Depende
ainda que o crescimento econômico visado pelas políticas específicas esteja associado
ao combate às desigualdades e ao aperfeiçoamento institucional democrático. (Weller &
Silveira, 2008, p. 944)
Oliveira, Meneguel e Bernardes (2009) relatam a conflituosa experiência de
ressignificação de vivências de discriminação racial de mulheres atendidas pelo
programa SOS Racismo de Porto Alegre. Em sua discussão, apresentam os impactos
subjetivos que a naturalização do lugar inferior dos negros impõe ao estabelecimento de
estratégias de enfrentamento ao racismo e apontam, também, como o rompimento com
as posições de assujeitamento dessas mulheres, que as permite denunciar as violências
que sofrem, se dão em intensa articulação com o discurso racista dominante. Nesse
sentido, a existência de um espaço institucional para a discussão e enfrentamento dessas
questões, como é o SOS Racismo, é primordial para o apoio e legitimidades das
vivências dessas mulheres; mas, não constrói, por si só, os fundamentos do
enfrentamento mais subjetivo.
Mais do que reafirmar a persistência da dinâmica racista brasileira, a perspectiva
desses trabalhos contribui para evidenciar a importância do reconhecimento das
dinâmicas mais sofisticadas do racismo brasileiro que não se encerram no seu
reconhecimento público nem no enfrentamento legal, e sim, exigem amplitude nas
possibilidades de interpretação e enfrentamento do racismo.
Assim, colocamos o contexto de transformações do tratamento dado à questão
racial no Brasil atualmente, como um enquadre consistente que sob o qual devemos
fazer permanecer a pergunta sobre as ambiguidades. Considerando as ações e
modificações que foram desenvolvidas no desafio de enfrentar o racismo, quais as
repercussões que essas transformações trouxeram para as relações dos sujeitos? O
racismo mudou? O preconceito mudou? Pretendemos inscrever essa pesquisa na
persistência da pergunta sobre as rearticulações do racismo brasileiro.
44
CAPÍTULO 3
3. PRECONCEITO
E
PRECONCEITO
RACIAL:
LEITURAS
E
DINÂMICAS
Seguindo diferentes perspectivas de conhecimento e distintos projetos de
sociedade, diversas leituras sobre o preconceito foram construídas pela ciência ao longo
do século XX. A psicologia, sobretudo a psicologia social, participou do
empreendimento científico de investigação sobre o preconceito, contribuindo à sua
maneira para a elaboração conceitual sobre esse fenômeno. Tomado como um
fenômeno preocupante e intimamente relacionado a dimensões de conflito social, o
preconceito ganha, na psicologia, um lugar privilegiado de estudo em virtude da
primazia das interpretações de suas articulações se darem no nível das relações entre os
indivíduos. Dessa forma, o estudo do preconceito pela psicologia pode ser concebido
com uma área clássica de investigações (Guimarães, 2008; Chrochik, 2006; Duckitt,
1992; Gough & Mcfadden, 2001).
Tomar como referência o histórico dessa produção nos serve como um caminho
para a localização das complexidades, variabilidade e capilaridade social do fenômeno,
reforçando a imagem do preconceito como um elemento que, ativamente, integra o
corpo social e participa de seus processos de reprodutibilidade. Somos então
apresentados, a partir das distintas perspectivas e abordagens na literatura sobre o tema,
aos enredamentos que o tratamento analítico desse fenômeno pode manifestar diante de
uma investigação que pretenda analisar suas implicações, dinâmicas e impactos.
3.1.
O estudo do preconceito na Psicologia: aproximação da história e
teorias
Em trabalhos recentes (Lacerda, Pereira & Camino, 2002; Chrochik, 2006;
Duckitt, 1992; Gough & McFadden, 2001), a revisão e releitura dos estudos fundadores
desse campo conceitual são constantemente apresentadas para demonstrar o consolidado
percurso de pesquisas e desenvolvimento do conceito. Nosso objetivo é revisitar a
produção sobre o preconceito no sentido de expor algumas considerações importantes
sobre o percurso histórico da área na psicologia, dando ênfase à apresentação dos
45
distintos fatores a ele atribuídos nas diferentes teorias e, também, aos limites e aspectos
importantes apontados por tais pesquisas.
De modo geral, a literatura apresenta o trabalho de Gordon Allport – A Natureza
do Preconceito, publicado em 1954 – como aquele que instituiu o campo de estudo
sobre o preconceito (Lacerda, Pereira & Camino, 2002; Dukit, 2002, Guimarães, 2008),
e estabeleceu diretrizes e conceitos importantes para o tratamento desse fenômeno11.
Duckit (1992), no entanto, remonta o histórico de estudos do preconceito localizando
sua emergência no pensamento de Floyd Allport sobre os comportamentos raciais dos
brancos em relação aos negros nos Estados Unidos, em 1924. Considerado o primeiro
psicólogo social a explicar as estigmatizações sociais, seu trabalho recai sobre o
comportamento dos brancos, pois o contexto da época exigia que se demonstrasse a
inadequação de atitudes e ideias de estigmatização seguidas pelos sujeitos desse grupo
racial. O autor relata que, até os anos 1920, o pensamento psicológico, influenciado pela
ideologia da supremacia racial, admitia a diferença intelectual, moral e cultural entre as
raças. As ideias sobre a inferioridade de grupos sociais, dos negros nesse caso, eram
justificáveis e interpretadas como uma reação esperada dado o caráter natural das
diferenças raciais (Duckit, 1992). A virada desse pensamento compreende as crenças na
superioridade racial e os comportamentos de afirmação de inferioridade dos negros
como injustificáveis e injustos: sua irracionalidade deveria ser explicada. A partir dessa
demarcação, Duckit (1992) apresenta um percurso histórico dos estudos sobre o
preconceito. Neste, o autor faz coincidir as distintas perspectivas teóricas com
momentos históricos ao longo das décadas do século XX, sobretudo nos Estados
Unidos, no intuito de evidenciar a prevalência de determinadas explicações sobre o
preconceito ao longo do tempo. O histórico apresentado pelo autor mostra que, nos
estudos sobre o preconceito, as análises sobre os seus determinantes, suas
Um dos importantes conceitos estabelecidos pelo autor é o referente à “supercategorização”, ou
generalização. Guimarães (2008), ao apresentar a tradição de estudos sobre preconceito na psicologia
social, assim como Pinheiro (2011), Crochik (2006) e Camino et al (2001), aponta que Allport define o
preconceito como fruto de um processo natural de generalização da vida social, imprescindível para a
compreensão dos aspectos da vida real. No entanto, ele estabelece uma importante distinção que
permanece sendo utilizada nos estudos da área: a distinção entre preconceito e prejulgamento. O
prejulgamento seria aquele resultante do processo natural de generalização da vida social, estando
passível de alteração a partir do acesso a aspectos da realidade que questionassem a legitimidade da
generalização. O preconceito, por sua vez, é a generalização estática e imutável diante do conhecimento
dos fatos concretos da realidade. (Guimarães, 2008, p. 48)
11
46
consequências e mecanismos de manutenção passaram por constantes revisões e
atualizações, revelando a complexidade do exame deste fenômeno.
Na revisão de Duckitt (1992), as décadas de 1930 e 1940 são marcadas pelos
estudos psicodinâmicos nos quais o preconceito é concebido como o resultado de
processos psíquicos universais, relacionados a mecanismos de defesas de nível
inconsciente e, por isso, irracionais. Essa perspectiva pretendia responder à persistência
de elementos de inferiorização dos brancos em relação aos negros americanos dentro de
um contexto em que a superioridade branca não era mais um postulado. A década de
1950, pós Segunda Guerra mundial, marca uma mudança na perspectiva psicodinâmica.
A preocupação recai não mais sobre os processos psicológicos universais que
possibilitavam a emergência de atitudes preconceituosas. A ênfase passa a ser o estudo
das patologias estruturais de personalidade que se relacionavam ao preconceito. A
ideologia nazista e a antissemita que operaram durante a Segunda Guerra, lidas como
fenômenos locais, colocaram em suspensão o caráter universal dos processos
psicológicos subjacentes ao preconceito, tornando os contextos de formação das
personalidades um ponto de investigação. Duckitt (1992) aponta os estudos de Adorno e
colegas de 1950 como o trabalho destaque dessa concepção.
As décadas de 1960 e 1970 marcam outra mudança de foco dos estudos sobre
preconceito. Migra-se de uma leitura no nível individual para estudos das influências da
cultura e da sociedade sobre as escolhas e comportamentos dos indivíduos. Essa
mudança marca a emergência dos estudos do preconceito na perspectiva das relações
intergrupais, a partir da leitura de tal fenômeno como uma dinâmica de conflito entre
grupos ou sociedades, expressas também nas relações entre os sujeitos. A década de
1980, por sua vez, retorna a preocupação em explicar processos psicológicos atuantes
no preconceito em virtude da ineficiência das teorias intergrupais em esclarecer as
sofisticações que o preconceito sofria, sobretudo nos Estados Unidos. A pesquisa de
McConahay e Hough, em 1976, (Duckitt, 1992), apresenta um tipo de racismo
denominado simbólico, não consistindo mais na fundamentação de conflito de
interesses, como a perspectiva intergrupal pretendia explicar.
Ao realizar tal revisão, Duckitt (1992) fornece uma visão interessante sobre o
percurso histórico do estudo desse tema evidenciando que as teorias sobre o preconceito
apresentaram, cada uma, diferentes aspectos relacionados ao fenômeno sem, no entanto,
fornecer explicações completas e todavia sem evidenciar sua parcialidade. Cada
47
explicação se concentrava em um fator do fenômeno sem se implicar com a eliminação
eminente de outros. Nesse sentido, o desenvolvimento desses estudos é constantemente
apresentado em uma perspectiva de continuidade, dado o caráter parcial das teorias,
transparecendo um efeito de aumento da complexidade das explicações mediante o
incremento de distintos fatores às análises. Reitera-se, então, uma dimensão evolutiva
do pensamento científico que desconsidera importantes determinantes históricos,
metodológicos, políticos e ideológicos.
Segundo o autor, as mudanças nos níveis de análise sobre o preconceito não
devem ser encaradas como o desenvolvimento progressivo, como superação da
inadequação de uma teoria por outra mais precisa ou a simples transição de um nível
puro de análise para outro. Por mais que essa ideia possa ser assumida – por exemplo,
nos aspectos metodológicos das pesquisas –, é necessário que os períodos históricos em
que essas proposições foram desenvolvidas sejam resgatados, no que se refere tanto às
perspectivas teóricas quanto aos fenômenos sociais em evidência em cada período
histórico (Duckitt, 1992). Essa relação permite compreender que os distintos enfoques e
níveis de análise que os estudos sobre o preconceito tiveram ao longo do tempo
estiveram relacionados não somente à eleição de fatores com maior potencial
explicativo do fenômeno, mas também, a aspectos sociais e históricos relevantes em
cada momento.
Duckitt (1992) mostra que a parcialidade das abordagens sobre o preconceito
permitiu tentativas de integração, classificação ou sistematização dessas teorias. O autor
demonstra que as classificações são geralmente realizadas a partir do nível de análise
das teorias. Mesmo dessa forma, é possível encontrar diferentes propostas de integração
dos estudos. Para demonstrar as distintas tentativas de integração Duckitt toma como
exemplo as classificações proposta por Alport que, em1954, dividiu em seis os distintos
níveis de explicação sobre o preconceito: 1) nível histórico; 2) nível sociocultural; 3)
nível da personalidade; 4) nível situacional; 5) nível das explicações fenomenológicas e;
6)nível de resposta a estímulos. Já em 1985, Simpson e Yinger estabelecem uma
classificação em três níveis: um nível cultural, um nível de explicações de grupo e outro
sobre os determinantes individuais do preconceito. No entanto, as categorizações que
sugerem dois níveis básicos de análise – o sociológico e o psicológico – são as mais
frequentes. (Ashmore, 1970; Babad, Birnbaum & Benne, 1983; Ehrlich, 1973 citado por
Duckitt, 1992).
48
Para Duckitt (1992), em sua grande maioria, tais categorizações são uma
simplificação da complexidade do fenômeno do preconceito (p.1182). A partir da crítica
aos empreendimentos de integração das teorias sobre o preconceito podemos destacar
que:
Em geral, essas classificações não se mostraram muito esclarecedoras. Isso se dá
porque elas são essencialmente descritivas, simplesmente agrupam as teorias que
parecem estar operando em um nível similar. Como tal, elas não mostram como as
teorias e abordagens em diferentes níveis poderiam se encaixar ou se complementar.
Estas classificações também ignoram um fenômeno muito interessante, o de que as
teorias e abordagens diferentes para explicar preconceito foram dominantes em
diferentes períodos históricos (Duckitt, 1992, p. 1182)
Essa premissa nos permite reconhecer que as classificações e as teorias sobre o
preconceito calcadas na pureza de seus níveis de análise, a partir da leitura de seus
principais interesses, não se mostram muito profícuas ao estudo de suas dinâmicas
quando tomadas de forma ingênua e descontextualizada. A prudência que pretendemos
retirar da análise realizada por Duckitt visa garantir um olhar menos simplificador sobre
os estudos da área em termos de seus níveis de análise e, em consequência, reconhecer a
complexidade do fenômeno sem pretender esgotá-la. É necessário demonstrar a
limitação constituinte do recorte analítico, teórico e contextual de cada pesquisa.
Esse ponto de análise reforça o fato de que os estudos sobre o preconceito
tiveram diferentes orientações, já que partiram de diferentes formas de perguntar sobre
o fenômeno e da prevalência histórica de diferentes orientações teóricas. Tal fato o que
justifica a razão de muitas dessas teorias ainda serem referências importantes na área.
Como argumenta Duckitt: “cada nova pergunta, portanto, tende a gerar uma mudança na
percepção ou imagem do preconceito e obter novos tipos de teorias, orientações de
pesquisa, e amplas perspectivas teóricas.” (Duckitt, 1992, p.1183).
Embora apresente uma importante contextualização histórica dos estudos sobre o
preconceito e uma importante crítica aos empreendimentos de categorização das teorias,
a visão do autor acaba por desconsiderar a importância dos aspectos epistemológicos
que orientaram tal percurso de pesquisa. As teorias e estudos sobre o preconceito
certamente se relacionam às transformações históricas. Porém, o debate sobre as
distintas perspectivas de ciência é um elemento importante para a compreensão da
produção de leituras desse fenômeno.
49
Uma visão que considera esse debate é apresentada no trabalho de Gough e
McFadden (2001). Estes autores discutem o percurso de pesquisas psicológicas sobre o
preconceito, a partir do referencial da psicologia social crítica. Apresentam, de forma
criteriosa, quatro grandes perspectivas de explicação sobre o preconceito que se
desenvolveram na psicologia social clássica ao longo do século XX. Seguindo a mesma
categorização proposta pelos autores, apresentamos abaixo tais tendências e suas
principais orientações no sentido de explicitar as leituras das dinâmicas sociais de cada
tendência.
3.1.1Processo Cognitivo – o preconceito na perspectiva da cognição social
A partir da analogia do funcionamento da mente humana com a forma de
processamento de informações de um computador, dentro da perspectiva da cognição
social o preconceito é entendido como um erro no processamento de informações do
indivíduo. O funcionamento da mente humana prevê que, em exposição ao ambiente, os
indivíduos devam dar sentido às múltiplas informações com as quais tem contato. A
complexidade dessas informações, em encontro com a capacidade limitada do
processamento humano, exige que cada indivíduo opere um processamento de
simplificação a partir da geração de categorias que possam gerar sentido sobre si mesmo
e sobre os outros para a garantia da urgência das relações. Lippman (1992, citado por
Gough & McFadden) sugere que a sobrecarga da nossa capacidade de processamento
faz a categorização ser um geralmente um processo vantajoso. No entanto, a falha nesse
processo pode produzir categorizações falhas e a formação de estereótipos de pessoas e
grupos. Esses estereótipos podem influenciar as futuras percepções sobre sujeitos de um
grupo, visto que o indivíduo é impelido a buscar informações que reafirmem o
estereótipo pré-concebido (Gough e McFadden, 2001). Lacerda, Pereira & Camino
(2002) enquadram nesta perspectiva os trabalhos de a) Hamilton, em 1979, sobre a
formação de estereótipos; b) Pettigrew sobre a cognição social, em 1979; c) Ross, em
1977, com estudo sobre as distorções no processo de atribuição social e d) Schaller que,
em 1991, realizou estudo sobre categorização social e formação de estereótipos de
grupos.
A centralidade dada ao indivíduo e, sobretudo, a existência de um aparato
psíquico que comporta na existência da mente um processador de informações,
50
evidencia que nessa perspectiva de leitura do preconceito prevalece um caráter
eminentemente internalista das articulações desse fenômeno. Há uma cisão radical entre
indivíduo e sociedade, ruptura que descreve aquilo que sujeitos partilham de
pensamento e concepções como originários dos próprios indivíduos e não de suas
relações com contextos mais amplos (Wetherell & Potter, 1992 citados por Gough &
McFadden, 2001). Ademais, o indivíduo é considerado de forma isolada de seu contexto
de social, estando sua capacidade de processar dados no centro da produção de
caracteres preconceituosos. Assim, todos os sujeitos estão passíveis de desenvolver
pensamentos ou atitudes preconceituosas por qualquer tipo de pessoa do seu meio de
relações, o que não se percebe na realidade social. Como apontado por Wetherell e
Potter (1992, citados por Gough & McFadden, 2001), determinados grupos foram, ao
longo da história, mais suscetíveis a se tornarem de pensamentos preconceituosos ou
estereótipos. Isto não pode ser explicado por essa teoria.
Essa perspectiva acaba por relegar aos sujeitos alvos dos estereótipos o
empreendimento de demonstrar outros comportamentos e atitudes que possam conflitar
com as imagens forjadas sobre eles, mostrando suas inconsistências. Ao pensarmos no
preconceito racial, por exemplo, caberia aos negros – segundo esta orientação – o papel
de solucionar, pela submissão ao ideal de comportamento branco, o preconceito racial.
3.1.2 Psicodinâmica – personalidade e preconceito
Assim como Duckitt (1992), Gough e McFadden(2001) apresentam a
psicodinâmica como uma abordagem teórica que buscou interpretar o preconceito pela
leitura de dinâmicas psicológicas universais. Essa tendência é apresentada tendo como
trabalho principal o estudo de Adorno – A Personalidade Autoritária, estudo que se
preocupou em compreender o preconceito a partir de seus aspectos sociais e
emocionais.
Recusando a premissa dos processamentos puros de informações, essa vertente
atribui ao preconceito outros elementos – e não somente o cognitivo – e reconhecem
que sua expressão é acompanhada de intensos elementos afetivos também influenciados
por circunstâncias sócio-políticas. O empreendimento desenvolvido por Adorno e seus
colegas procura compreender as origens de tais sentimentos e suas formas de
manifestação, a partir de uma orientação psicanalítica freudiana. Eles procuraram,
51
sobretudo, explicar porque, em determinados contextos históricos, ideologias políticas
autoritárias influenciam os sujeitos em distintos níveis de sua subjetividade. Buscaram
esclarecer os processos psicológicos partilhados por sujeitos que apresentavam
tendência de adesão a ideologias antidemocráticas ou conservadoras intimamente
relacionadas à disseminação de preconceitos, como o nazismo, por exemplo. Essa
perspectiva sugere existir um determinado tipo de personalidade, a autoritária, que é
atraída por esses tipos de ideologia (Gough & McFadden, 2001).
A partir de experiências da infância, indivíduos que viveram uma dinâmica
dualista com o mundo, em que parte dessa é super idealizada e outra estruturada por
excesso de negatividade, a vivência de tal disciplina inconsistente, por parte dos pais,
produziria tendência infantis de aprendizado de obediência à autoridade e temor pela
expressão de desejos e sentimentos (Gough & McFadden, 2001). Acreditando que são
más, as crianças podem se tornar masoquistas e, por isso, buscar atender às expectativas
e normas dos pais, ao mesmo tempo em que aprendem a extrema importância de
obedecer. No caso destas crianças, o superego, instância psíquica de representação das
normas sociais e vigilância, se estrutura de forma demasiadamente forte e punitiva,
julgando severamente os sujeitos a submissão das normas e padrões sociais. Via
mecanismo de defesa, indivíduos com essa personalidade tenderiam a projetar o ódio
interno sobre suas inadequações às figuras externas representadas socialmente como
fracas ou incapacitadas.
Diante do caráter universalista dado aos processos mentais subjacentes as
personalidades autoritárias, essa tendência foi criticada por não permitir a explicação
das dinâmicas do preconceito a partir de mudanças de ambiente de caráter mais microsocial. Mudanças que alteram as dinâmicas de relação entre os sujeitos, modificando as
variações de percepção entre os indivíduos em contextos particulares. Ademais,
Lacerda, Pereira & Camino (2002) apontam que essas explicações recaem sobre as
origens psicológicas e individuais do fenômeno pelo grande enfoque dado à
personalidade, à disposição mental e aos sentimentos internos. Os autores enquadram na
visão psicodinâmica sobre o preconceito não somente as teorias da “personalidade
autoritária” de Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford (1950, citados por
Lacerda, Pereira & Camino, 2002), mas também a teoria da “frustração-agressão” de
Dollard, Doob, Miller, Mowrer e Sears e do "espírito fechado" de Rokeach (1960 citado
52
por Lacerda, Pereira & Camino, 2002). A unidade de análise desses estudos está
referida ao indivíduo e suas atitudes, fato que os aproxima.
3.1.3 Sujeito e pertencimento grupal – preconceito a partir das relações entre grupos
A terceira tendência apresentada por Gough e McFadden (2001) está nos estudos
que procuraram pesquisar o preconceito pelo viés do pertencimento grupal e inserção da
leitura do indivíduo em uma categoria social.
A Teoria do Conflito Realista Grupal, desenvolvida por Sherif e Sherif (1969,
citados por Gough & McFadden, 2001) explica que a relação entre grupos e seus
membros acontece de forma não harmônica em virtude de conflitos de interesses. Os
laços e vínculos entre os sujeitos dos grupos levam à adoção de comportamentos de
manutenção dos interesses endogrupais pela garantia de recursos do grupo de pertença.
Aqui, recaem críticas sobre o fato de que o conflito é dado como saída natural ao
embate de interesse por recursos. Para Gough e McFadden (2001) a eliminação da
disputa por recursos – por exemplo, pelo aumento da oferta dos mesmos –, também
significaria a eliminação do conflito. Tal como a tendência cognitivista, essa leitura
ignora representações históricas de determinados grupos e tira a dimensão do poder da
expressão do preconceito.
A contribuição mais marcante da perspectiva do pertencimento grupal foi, no
entanto, a proposta pelos trabalhos de Tajfel (Lacerda, Pereira & Camino, 2002). Ele
postulou que as relações grupais implicam distintas modificações psicológicas na forma
como os sujeitos se identificam e identificam aos outros fora do grupo. Em resposta à
insuficiência do trabalho de Sherif e Sherif, citado acima, o conflito entre grupos
acontece mesmo na ausência de disputa de interesses ou recursos. Tajfel considera o
comportamento interpessoal um contínuo do comportamento grupal. O comportamento
interpessoal é expresso quando somos tomados como indivíduos, percebendo os outros
como indivíduos, considerando suas características de personalidade isoladas e únicas.
O outro comportamento é o comportamento intergrupal – expresso a partir da
autopercepção como participantes de um grupo. (Gough & McFadden, 2001, p.200)
O preconceito, nessa perspectiva, seria resultante de um favoritismo endogrupal
que traduziria a necessidade de atribuições negativas ao grupo distinto. Nos trabalhos do
autor sobre a diferenciação intergrupal (1982), a divisão social em grupos – e a
53
consciência pessoal da existência de grupos distintos ao seu –seria motivadora de
avaliações negativas em relação ao “exogrupo” e de avaliações positivas em relação ao
“endogrupo”. Nesse, sentido a determinação do preconceito social é marcada por um
processo comparativo entre “nós” e “eles”. O preconceito resultaria do processo em que
a identificação de um indivíduo com seu grupo exige a manutenção das diferenças entre
o “endogrupo” e “exogrupo”, tanto para a persistência de atributos positivos do grupo
quanto para a manutenção da autoestima do indivíduo.
No entanto, a atribuição de dinâmicas mais amplas na ancoragem do preconceito
na perspectiva das relações intergrupais não exclui um forte componente individual e a
permanência de um caráter cindido entre sujeitos e sociedade no tratamento do
preconceito. Ao indivíduo persiste a centralidade nos processos de percepção da
delimitação grupal, da leitura de sua inserção no grupo, assim como é preciso que sejam
subjacentes e inerentes as suas representações específicas de indivíduo e grupo, sendo
que estas não estariam necessariamente relacionadas às dinâmicas sociais mais amplas.
3.1.4 Relações sujeito e sociedade– Leituras críticas do preconceito
A inserção de interpretações mais dinâmicas sobre a relação entre sujeito e
sociedade marcam outro importante referencial nos estudos sobre o preconceito.
Lacerda, Pereira & Camino (2002) vão intitular essa tendência de “perspectiva
societal”. Nesta, as relações intergrupais, motivadoras do preconceito, são encaradas
dentro de um contexto de relações de poder, conflitos culturais e ideológicos que
influenciariam os processos cognitivos, afetivos e a expressão de atitudes dos sujeitos.
Gough e McFadden (2001), por sua vez, apontam a contribuição do construcionismo
social como importante referência da elaboração teórica de conceitos e leituras sobre a
relação “sujeito e sociedade”, assim como a leitura da própria produção de
conhecimento. O construcionismo social permite uma visão do preconceito que rejeita a
concepção dualista de sujeito e sociedade das perspectivas anteriores e compreende as
identidades e comportamento dos sujeitos como fatores não isolados, e sim, em
constante relação com os contextos sociais e culturais. As perspectivas de Gough, Hall e
Wetherell (1998, 1990, 1996, citados por Gough & McFadden, 2001), contribuem para
54
a leitura da identidade concebida como não estática e fluída, construída e reconstruída
pela interação com o ambiente.
O incremento das análises sobre linguagem, discurso e poder como partícipes da
construção das identidades, práticas, subjetividades, ideologias e atitudes integram uma
visão menos dualista sobre a construção a construção dos posicionamentos dos sujeitos
e sobre a configuração de fenômenos sociais. Consequentemente, as dimensões do
preconceito são exploradas como a relação entre diálogos sociais que refletem sentidos
socioculturais partilhados, nos quais os sujeitos negociam suas identidades e consolidam
relacionamentos com outros (Gough & McFadden, 2001). Nesse sentido, as
localizações de aspectos políticos, culturais, sociais e ideológicos envoltos no universo
do falante são a chave para compreender como ele se posiciona na relação com os
outros. As posturas e comportamentos dos sujeitos não são tidos como objetivas; são
construções envoltas por relações de poder, prestígio e privilégios construídos como
práticas discursivas.
É dentro dessa leitura crítica e dinâmica sobre a realidade social que
pretendemos desenvolver esse trabalho. Nossa proposta é compreender o preconceito
em sua vertente racial, tendo como referência as relações entre transformações do
contexto racial e as trajetórias de sujeitos negros. A difusão dos mecanismos do
preconceito racial no Brasil nos exige, nesse trabalho, considerar a capilaridade de sua
influência para além dos limites da expressão de discriminação. A discussão realizada
até aqui nos permite afirmar que não estamos tratando de qualquer fenômeno
psicossocial, haja vista sua importância como campo de pesquisas e, também, os
dilemas envolvidos em seu estudo. Sendo assim, pretendemos considerar em nossa
discussão as funções e efeitos sociais específicos do preconceito, exercício que exige –
mas não esgota – o movimento de explicitar as atitudes de violência e discriminação.
Tomamos esse posicionamento por perceber que, em geral, o principal efeito atribuído
ao preconceito é a discriminação.
Verificamos de maneira mais precisa a distinção entre preconceito e
discriminação: em linhas gerais, o preconceito consiste em um julgamento prematuro,
inadequado sobre alguma coisa em questão, constituindo – e sendo constituído de – um
sistema de predisposições, de crenças e de expectativas em função das quais seu
portador poderia causar dano ao sujeito alvo do preconceito (Guimarães, 2004a). Por
outro lado, a discriminação se processa nas atitudes que expressam o preconceito no
55
comportamento. Nesse trabalho, partimos da consideração dessa diferença conceitual.
O posicionamento que adotamos para fins de interpretação é aquele sintetizado por
Camino (2007), o qual considera as dimensões cognitivas e os prejulgamentos do
preconceito essencialmente relacionados a práticas e comportamentos discriminatórios
(p.491), em uma lógica de retroalimentação. O que pretendemos assumir nesse
posicionamento não é a negação da importância ao combate às discriminações raciais,
visto que são elas que expressam as hierarquias e violências de uma sociedade desigual.
Trabalhamos com a indissociabilidade e interdependência desses dois fenômenos, ao
compreendermos que o preconceito racial se materializa e se estrutura em expressões de
discriminação. No entanto, compreendemos que a dicotomização presente entre essas
perspectivas – que concedem ao campo das ideias e abstração o preconceito e ao campo
das práticas a discriminação – tem orientado leituras e enfrentamentos dessa realidade
que mantêm inalteradas as hierarquias subjacentes, produzindo uma sofisticação nos
mecanismos de invisibilização, nesse caso, do racismo brasileiro. Aqui, consideramos
que o preconceito pode ser lido não somente pela perspectiva da discriminação, mas
pela explicitação de suas dinâmicas e influências nas subjetividades, afetos, gostos,
escolhas, posicionamento e visões de mundo dos sujeitos negros. A partir das trajetórias
e enfrentamentos, são essas dimensões que procuramos analisar neste trabalho.
3.2.
Preconceito: sujeito e sociedade
Como pudemos perceber, os dilemas envolvidos no estudo do preconceito se
relacionam profundamente com as distintas concepções de sociedade e perspectivas de
visão sobre a relação indivíduo/ sociedade que cada orientação teórica adotou ao propor
uma explicação sobre esse fenômeno. O que se destaca, sobretudo, é a prevalência de
leituras que, ao propor interpretações sobre as causas, origens e mecanismos do
preconceito, separam de forma muito extrema sujeito e sociedade, desembocando em
análises sobre o fenômeno que privilegiam uma dessas instâncias como unidade isolada
de análise.
As questões envolvidas nas relações entre sujeito e sociedade não compõem uma
discussão nova nas ciências humanas. Na psicologia, o conflito entre paradigmas
individualistas e coletivistas tem sido pano de fundo de um importante debate
epistemológico sobre a construção de um conhecimento psicológico válido e
56
socialmente comprometido (Jurberg, 2000). No intuito de lidar com os obstáculos dessa
cisão, leituras psicossociais têm pretendido construir uma perspectiva de ciência menos
orientada pelo moldes positivistas de um modelo de ciência aristotélico (Jurberg, 2000).
Nesse sentido, a tendência à dicotomização da realidade em duos opostos e moralmente
valorizados (homem x mulher, natureza x cultura, sujeito x sociedade, branco x negro) é
destacada como um modelo que serviu, e tem servido à reprodução de perspectivas de
dominação hegemônica e à manutenção de privilégios pela naturalização das posições
que cada par interpretativo ocupa. Isto se dá, principalmente, devido à invisibilidade das
relações de poder que se estabelecem a partir dessa dicotomização. (Jurberg, 2000).
O campo de estudos sobre o preconceito é bem representativo desse dilema. As
interpretações que privilegiam as atitudes dos indivíduos como causa ou origem do
preconceito acabam por responsabilizá-los individualmente pelo fenômeno – seja pela
sua personalidade ou incapacidade cognitiva –, deixando de lado os contextos
específicos nos quais se moldam os próprios sujeitos, assim como suas relações. Por
outro lado, ler o preconceito como uma entidade social autônoma, fruto das disputas
entre os grupos ou da propagação de ideias estereotipadas, retira do campo das relações
microssociais o importante potencial analítico dos mecanismos de reprodução e
invisibilidade do preconceito. Encarar o preconceito racial a partir de uma dicotomia
entre sujeito e sociedade acarreta em posicionamentos que ora vitimizam os negros –
ocultando suas estratégias de resistência –, ora colocam sobre a estrutura social todas as
possibilidades de enfrentamento ao desconsiderar os posicionamentos e interpretações
que os indivíduos exercem sobre a sociedade.
Aceitar o desafio de lidar com o preconceito racial a partir de uma leitura
psicossociológica – que reconheça os limites entre sujeito e sociedade, mas não
desconsidere que essas instâncias se constituem mutuamente –, implica considerar as
orientações e sentidos do preconceito racial nas trajetórias de indivíduos e na história de
uma sociedade como constituintes do mesmo processo. Se aqui tomamos como
referência as trajetórias de sujeitos para a leitura desse fenômeno, isso se dá porque
assumimos que os impactos do preconceito em tais trajetórias não se fazem isolados das
funções desse fenômeno na história de uma sociedade. Assumimos, também, o
contrário: a história da sociedade não se faz desconectada das trajetórias dos indivíduos.
Neste trabalho, nosso interesse é considerar os meandros dessa relação.
Reconhecendo as transformações sociais no debate racial no Brasil, procuramos
57
entender efeitos do preconceito racial na trajetória de sujeitos negros a partir da
construção de seus enfrentamentos. É a partir da delimitação do preconceito como uma
dinâmica psicossocial que compreendemos que um ponto fundamental, a ser levado em
consideração no estudo sobre tal dinâmica, é a localização da perspectiva de relação
entre sociedade e indivíduos que tomamos como referência.
Norbert Elias foi um dos teóricos que forneceu uma leitura das relações humanas
a partir da crítica sobre a cisão entre indivíduo e sociedade. Elias (1994) recusa a
antítese cristalizada da dicotomia indivíduo e sociedade, reconhecendo que analisar a
experiência humana a partir do isolamento analítico dessas duas dimensões produz um
caminho problemático e pouco explicativo da complexidade dos fenômenos humanos.
Elias pretende propor uma interpretação sobre a realidade que não pressuponha a
consideração de uma natureza totalmente distinta às instâncias indivíduo e sociedade.
Em sua perspectiva, as interpretações que dialogam sobre a ideia do indivíduo
como o produtor da realidade acabam focando suas conclusões sobre um esquema que o
dota de total capacidade de planejamento, criação e execução da realidade. Por outro
lado, tomar a sociedade como a articulação de forças produtoras, independentes e
autônomas dos indivíduos, é considerar a realidade coordenada por um planejamento
invisível que acontece a despeito das relações entre as pessoas. Essa tendência de
interpretação e suas dificuldades são também vistas por ele no campo de estudos da
psicologia. A respeito disso ele relata que:
Na ciência que lida com fatos dessa espécie, encontram- se, de um lado, ramos
de pesquisa que tratam o indivíduo singular como algo que pode ser completamente
isolado e que buscam elucidar a estrutura de suas funções psicológicas
independentemente de suas relações com as demais pessoas. Por outro lado, encontramse correntes, na psicologia social ou de massa, que não conferem nenhum lugar
apropriado às funções psicológicas do indivíduo singular. Às vezes, os membros deste
último campo, mais ou menos como seus equivalentes nas ciências sociais e históricas,
atribuem a formações sociais inteiras, ou a uma massa de pessoas, uma alma própria que
transcende as almas individuais, uma anima coilectiva ou “mentalidade grupal” (...) E,
como quer que procedam quanto aos detalhes os vários ramos da psicologia individual e
social, a relação entre seus objetos de estudo, observada desse ponto de vista geral,
permanece mais ou menos misteriosa. Muitas vezes, é como se as psicologias do
indivíduo e da sociedade parecessem duas disciplinas completamente distinguíveis. E as
questões levantadas por cada uma delas costumam ser formuladas de maneira a deixar
implícito, logo de saída, que existe um abismo intransponível entre o indivíduo e a
sociedade. (Elias, 1994, p. 15)
58
A saída analítica proposta por Elias (1994) consiste na proposição de modelos
interpretativos que possam considerar as relações fora de modelos dicotômicos. Essa
proposta cabe, sobretudo, à análise de fenômenos conflitivos como o preconceito racial,
visto que o autor pretende explorar as relações sociais a partir de suas estruturas,
regularidades e funções próprias, incluindo aí, também, as funções de poder e privilégio.
Como já discutimos, as leituras e enfretamentos dos violentos dilemas das
relações raciais brasileiras têm se dado a partir da exploração de estratégias e análises
muitas vezes polarizadas entre as dimensões individuais e coletivas. A perspectiva de
Elias nos coloca como proposta pensar os fenômenos sociais não como formados por
substâncias ou entidades isoladas, mas em termos de suas relações e funções (Elias,
1994). Para o autor, sujeitos e sociedade são e estão em constante relação. Cada distinta
relação pressupõe, a despeito de uma natureza ontológica das partes, regularidades e
funções próprias que têm sentido e significado dentro de si mesmo, e não de fora dela
(da relação). Portanto, para compreender as dinâmicas sociais mais ampliadas, é
imprescindível conhecer as menores unidades que integram o corpo das relações das
unidades maiores. É a partir da compreensão dessas relações e de seus padrões e
funções que podemos compreender unidades de análise mais amplas.
Considerando a proposta de Elias (1994), o preconceito racial não pode ser
concebido como um fenômeno que está na sociedade ou no indivíduo. Indivíduo e
sociedade se constituem num contínuo e não podem ser tomados como dimensões
totalmente separadas. Dessa forma, os sujeitos se constituem e constituem suas práticas,
ações, decisões, afetos e sentimentos dentro de certos limites de liberdade e plasticidade
dos padrões de ordenamento social. Ao mesmo tempo, eles moldam esses mesmos
padrões a partir de si mesmos e de suas relações. Para Elias:
O modo como uma pessoa decide e age desenvolve-se nas relações com outras
pessoas, numa modificação de sua natureza pela sociedade. Mas o que assim se molda
não é algo simplesmente passivo, não é uma moeda sem vida, cunhada como milhares
de moedas idênticas, e sim o centro ativo do indivíduo, a direção pessoal de seus
instintos e de sua vontade; numa palavra, seu verdadeiro eu. O que é moldado pela
sociedade também molda, por sua vez: é a auto-regulação do indivíduo em relação aos
outros que estabelece limites à auto-regulação destes. Dito em poucas palavras, o
indivíduo é, ao mesmo tempo, moeda e matriz .(Elias, 1994, p. 52)
A leitura sobre as relações entre indivíduo e sociedade nos faz tomar o
preconceito racial como um fenômeno que se apresenta feito uma lei ou regularidade
59
social (Elias, 1994, p. 23). Assim, dentro de uma dinâmica interativa, prescreve as
relações entre os indivíduos considerados de forma isolada, ou seja, o preconceito racial
tem suas funções, efeitos e regularidades sociais expressas nas relações estabelecidas
entre os indivíduos. Nossa proposta, portanto, é entender os sentidos, regularidades e
funções do preconceito a partir das trajetórias de sujeitos negros e admitir as
possibilidades de diálogo e trânsito que as regularidades, também plásticas, desse
fenômeno fazem incidir sobre essas trajetórias. Aqui, as localizamos como unidades
analíticas que podem demonstrar as dinâmicas do preconceito, suas regularidades e
funções que – fruto de padrões funcionais – não são criadas pelos indivíduos isolados
nem por uma sociedade autônoma. Por mais que o ordenamento social prescinda das
ações e posicionamentos dos indivíduos, é a interdependência das funções individuais
que se vinculam de forma ininterrupta e constroem o corpo de relação a que chamamos
realidade social. É a partir da leitura do preconceito como uma dinâmica psicossocial –
que abarca aspectos sociais, subjetivos, afetivos e cognitivos – que buscamos
compreender as dinâmicas atuais do preconceito racial brasileiro. Nosso interesse é
compreender, através da visibilidade e sistematização das estratégias construídas por
sujeitos negros, a capilaridade e possíveis transformações das dinâmicas do preconceito
racial no contexto brasileiro atual. Portanto, o que orienta nossa visão sobre o
preconceito é o reconhecimento de sua dimensão psicossocial, um fenômeno
intrinsecamente vinculado às relações entre indivíduo e sociedade que isso extrapola o
limite sensível do que enquadramos como sujeito ou sociedade.
A partir de uma perspectiva crítica e ampliada sobre as dinâmicas e efeitos do
preconceito, outras produções têm apresentado perspectivas psicossociais amplas sobre
o fenômeno. Prado e Machado (2008) apontam o preconceito como um mecanismo de
conservadorismo social articulado com os processos de hierarquização social, sendo seu
caráter funcional a preservação da rigidez da hierarquia entre grupos e indivíduos. Os
autores destacam a hierarquização social como produto das lógicas de subordinação que
legitimam a funcionalidade das desigualdades sociais, enquadrando-as como inerentes à
dinâmica social e impedindo sua leitura pela lógica da opressão. Seu papel primordial
está na naturalização da inferiorização social, na medida em que a atuação do
preconceito funciona impedindo os sujeitos e a sociedade de identificar os limites da
percepção sobre o contingente caráter histórico da realidade social e das relações
humanas (p. 70).
60
Nas relações sociais de hierarquização, o preconceito atua na produção e
reprodução de ideologias, legitimando ou não posições sociais e subjetivas de
subordinação. Na dinâmica de naturalização da manutenção da classificação social, o
preconceito se reproduz a partir da realidade social ao mesmo tempo em que produz
essa mesma realidade, afirmando seu caráter natural. Nesse sentido, as dinâmicas do
preconceito estão passiveis de modificação a partir das transformações de aspectos da
realidade social, desde que sejam preservadas as relações de subordinação.
A eficácia do preconceito em garantir a permanência das hierarquias como
naturais tem sido evidenciada em muitos trabalhos que apontam distintas leituras do
preconceito em relação a processos de categorização social. Lima e Vala (2004)
relacionam os mecanismos de infra humanização com o estabelecimento do racismo no
Brasil. Os autores demonstram, a partir de uma análise de desempenho social e
econômica, a tendência ao enegrecimento de sujeitos apresentados como mal sucedidos,
ao mesmo tempo em que lhes são atribuídas menos características humanas
(características socialmente relacionadas à essência humana) relativas aos sujeitos tidos
como menos sucedidos. O estudo pretende evidenciar que as lógicas de classificação
humana baseadas na pertença e hierarquia social são sustentadas por mecanismos de
essencialização, ou seja, naturalização de atributos humanos a grupos e indivíduos. A
naturalização opera, nesse caso, pela elevada correlação de características socialmente
valorizadas como humanas aos brancos e não aos negros.
Bandeira e Batista (2002) discutem o preconceito como mecanismo de
reprodução e legitimação no estabelecimento de subalternidades. A preocupação dos
autores é articular o preconceito às expressões de violência vinculadas ao desrespeito às
diferenças. A inserção da lógica da diferença lida como desigualdade nos permite
considerar que é através do preconceito que se estrutura a negação da legitimidade de
existência e expressão do outro. Este, construído enquanto diferença, tem indeferida a
possibilidade de reconhecimento social pleno. Segundo os autores:
Pela sua sutileza, caráter difuso e capilaridade de intromissão nas relações
sociais, a eficácia e a ubiquidade do preconceito são máximas, tanto em relação às
práticas de controle, como às de dominação e subordinação em todas as categorias
sociais. Manifestam-se como produtor e reprodutor de situações de controle,
menosprezo, humilhação, desqualificação, intimidação, discriminação, fracasso e
exclusão nas relações entre os gêneros, na esfera do trabalho, nas posições de poder, nos
61
espaços morais e éticos e nos lugares de enunciação da linguagem. (Bandeira & Batista,
2002, p.127).
Consideramos que as dinâmicas de invisibilidade e manutenção de hierarquias
do preconceito se difundem no tecido social orientando, a partir da legitimação da
inferioridade, realidades sociais e subjetivas mais amplas. Retomando o conceito de
Prado e Machado (2008): “o preconceito nos impede de identificar os limites de nossa
própria percepção da realidade”. (Prado & Machado, 2008, p.67)
3.3.
Preconceito Racial no Brasil
Tendo como pano de fundo o quadro social apresentado no primeiro capítulo
concordamos com as análises de autores que consideram as configurações raciais
elemento central para o entendimento do quadro brasileiro de desigualdades
(Guimarães, 2005; Munanga, 2004; Telles, 2003). Assim, é possível suspeitar de
interpretações que coloquem sobre as especificidades do desenvolvimento econômico
brasileiro a totalidade de respostas e de possíveis enfrentamentos àquilo que podemos
nomear como fatores estruturantes de nossas assimetrias sociais. Dessa forma, podemos
conceder ao conceito raça um importante valor explicativo de nossa configuração social
e um lugar de elemento fundamental pra compreensão das relações e interações entre
sujeitos e sociedade.
Segundo Guimarães (2005), a partir do conceito de raça, evidenciamos não um
realismo ontológico da categoria, mas tornamos inteligíveis formas de ação e
dominação social (p.31). Sendo assim, recortar a partir da noção de raça a realidade
social não garante explicações absolutas, mas permite a compreensão da orientação e
sentido de certas ações subjetivas e sociais. Isso porque:
Toda via, é que se torna muito difícil imaginar um modo de lutar contra uma
imputação ou discriminação sem lhe dar realidade social. Se não for à ‘raça’, a que
atribuir as discriminações que somente se tornam inteligíveis pela idéia de ‘raça’?
Atribuindo-as a uma realidade subjacente que não é articulada verbalmente, ou a formas
mais subjacentes e abstratas de justificar estruturas de dominação (Guimarães, 2005, p.
27)
62
É o exercício de demonstrar a racialização das nossas relações que tem
permitido uma melhor compreensão do potencial crítico que o uso da categoria raça
exibe no estudo de distintos fenômenos sociais, sejam aqueles de ordem estrutural ou
mesmo de caráter subjetivo. O exercício de denunciar a racialização do contexto social
brasileiro tem sido realizado de forma consistente, e cada vez mais expressiva, através
do trabalho de militantes e intelectuais negros interessados em elucidar os distintos
efeitos da classificação racial brasileira, classificação muitas vezes considerada uma
ficção. No campo do trabalho, o recorte racial é elemento fundamental na compreensão
da formação histórica do mercado de trabalho, haja vista a exclusão dos negros da
lógica da sociedade capitalista no momento pós- abolição (Theodoro, 2008). Pesquisas
indicam o lugar inferior do negro no acesso e competição a empregos e salários
(Andrews, 1998), a sobre representação dessa população nas faixas mais pobres do país
(Henriques, 2001) e sua sub-representação em posições de poder, prestígio social e
econômico (Osório, 2008; Soares, 2008).
No campo da educação, a imposição de maiores dificuldades na trajetória
escolar do aluno negro (Henriques, 2002) e as desvantagens no acesso da população
negra à escola (Hasenbalg & Silva, 1990) demonstram os efeitos acumulados de nossa
assimetria racial. O debate sobre ações afirmativas é um tema atual e recorrente nas
produções da área. Autores se dedicam ao esclarecimento dos desafios e dilemas dessas
políticas (Piovesam, 2008; Santos et al., 2008), seja pela realização de avaliações
quantitativas e qualitativas de políticas afirmativas já implantadas, seja demonstrando
sua eficácia no combate às desigualdades historicamente construídas. (Bittar &
Almeida, 2006; Queiroz & Santos, 2006).
A trajetória do movimento negro na
denúncia e luta pela inclusão social do negro e superação do racismo e das
desigualdades raciais é também importante fonte de estudos raciais no sentido de
demonstrar as contínuas e persistentes resistências negras, assim como apresentado por
Petrônio Domingues (2007).
Diante da gama de possibilidades do campo de estudos raciais, o que nos
interessa é explorar o potencial da categoria a partir do estudo do preconceito. Este é um
fenômeno que, assim como nos aponta Crochik (2006), exige considerações sobre a
interação de dinâmicas micro e macrossociais, sobretudo, no tocante às complexidades
da relação entre indivíduo e sociedade. Sendo um fenômeno de ordem psicossocial –
intimamente relacionado com o processo de socialização dos sujeitos, com a história de
63
hierarquias sociais e com formas de subjetivação – o estudo do preconceito exige,
periodicamente, que se recorra às contribuições de mais de uma área do conhecimento
(Crochik, 2006), exercício que aqui procuramos realizar.
Quando se fala em raça no Brasil, o preconceito é, em geral, um elemento
constante na discussão. É possível identificar nas análises sobre diversos aspectos da
sociedade brasileira, que consideram os aspectos raciais, a preocupação com a
configuração de nossas relações raciais. Mesmo no discurso eugenista e escravista de
Oliveira Viana (1933), sobre os riscos do progresso da nação brasileira diante do alto
índice de população negra, há referência aos distintos padrões de preconceito racial com
os mulatos, influenciando de forma positiva seus padrões de mobilidade social. (Viana,
1933)
A polêmica leitura da sociedade brasileira e seus padrões de relações raciais
realizada por Gilberto Freyre podem não se deter à análise do preconceito no Brasil,
mas, certamente teve também grande impacto sobre a invisibilidade desse fenômeno. Se
tomarmos a discussão racial mais atual, o tema preconceito também está presente na
argumentação contrária ou favorável à adoção de alguma política de ação afirmativa.
Aparecem pontos favoráveis – quando identificado como um mecanismo presente na
manutenção da privação do acesso a bens públicos pela população negra (Oliveira
Filho, 2009; Bittar e Almeida 2006) ou em argumentos desfavoráveis, os quais afirmam
que políticas afirmativas criariam manifestações de preconceito inexistentes entre
grupos raciais pobres (Fry & Magye, 2004).
Oracy Nogueira (2006) reitera o preconceito como uma pilar no campo de
estudos raciais e afirma que:
Embora certos estudiosos se recusem a aceitar que o “problema do preconceito
racial” seja o problema central, nos estudos de relações raciais, e ainda que se admita
que o preconceito, seja qual for a importância que se lhe dê, como problema de estudo,
deva ser focalizado no contexto da “situação racial” em que se manifesta, o fato é que a
preocupação com o mesmo está pelo menos implícita em toda a pesquisa que se faz
nesse setor.Mesmo quando se estuda uma “situação racial” em que se supõe inexistente
(ou quase inexistente) o preconceito, está pelo menos implícito o interesse em comparála com situações em que sua ocorrência é insofismável (Nogueira, 2006, p.290).
Se localizarmos no Brasil os esforços de compreensão sobre o preconceito e sua
vertente racial, é possível identificar desafios muito específicos. A literatura atual revela
que as formas de manifestação do preconceito, e as discriminações consequentes, não
64
têm se restringido aos aspectos teóricos classicamente definidos. Fleury e Torres (2007)
afirmam:
Os estudiosos do preconceito étnico e racial no Brasil e em várias partes do
mundo (...) encontraram evidências de que expressões mais sutis desse fenômeno estão
desenvolvendo subprodutos que atendem à necessidade de perpetuação dos
comportamentos discriminatórios ao mesmo tempo em que preservam a imagem
igualitária dos atores sociais (Fleury & Torres, 2007, p.476)
Essas modificações na expressão do preconceito racial são apontadas como fruto
do desenvolvimento de leis que criminalizam mais pontualmente a discriminação contra
os grupos “minoritários” e, também, do delineamento de consensos sociais que coíbem
o preconceito em suas formas mais explícitas e violentas. No entanto, no Brasil o
preconceito racial e sua sofisticação permitem que a discriminação racial mascarada e
ambígua ocorra cotidianamente, sendo sua erradicação dificultada. (Camino, Silva,
Machado & Pereira, 2001).
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2004a) mostra que no Brasil a impunidade
dos crimes de discriminação racial tem grande relação com a persistência da adoção de
uma definição social de segregação racial orientada pelas formas mais explícitas e
declaradas de racismo. A expressão do racismo brasileiro como não declarado e
ambíguo é ancorada tanto pelas lógicas de invisibilidade de atuação geral do
preconceito (Prado & Machado, 2008) quanto pela especificidade da crença na
democracia racial e na mestiçagem original dos brasileiros. Essas ideologias forjam a
solidificação de uma posição de igualdade entre raças, dificultando e redirecionando,
para outro plano de interpretação, as formas específicas pelas quais se articula o racismo
brasileiro. Isto ocorre sob a afirmação de que no Brasil, por sermos mestiços somos
todos iguais (Guimarães, 2004a).
A polidez e a aparente falta de intenção revestem as atitudes e os
comportamentos discriminatórios no país, constituindo uma forma de racismo que nada
tem de cordial, visto que implica exclusão e negação de direitos das pessoas negras
(Lima & Vala, 2004). Essa dinâmica relega ao sujeito vítima o complexo papel de
reconhecer e afirmar a situação de violência, colocando em questionamento para si, e
para a sociedade, o pacto da harmonia racial. Essa tarefa, quando imposta a sujeitos
historicamente alijados de voz e direitos, pode enfraquecer, dificultar ou impossibilitar o
estabelecimento de processos de enfrentamento, visibilidade e denúncia. O preconceito
65
racial, nesse aspecto, parece operar em uma dinâmica dupla. Além de incidir
violentamente sobre o outro, reposiciona o sujeito alvo dessa dinâmica a um lugar de
não legitimidade em nomear e denunciar12 esse processo. Demonstra-se, mais uma vez,
que o preconceito opera pela via da invisibilidade da inferiorização e da afirmação de
um lugar subalterno na hierarquia social.
A invisibilidade e sofisticação a que são submetidas as expressões desse
fenômeno são um grande obstáculo para o estabelecimento de possibilidades de
denúncia, resistência e enfrentamento dos sujeitos e grupos sociais frente as
operacionalizações do preconceito. Diante da complexidade da classificação racial no
Brasil, marcada pela ambiguidade, pela impossibilidade constante de nomear e
denunciar o preconceito, nos perguntamos como negros e negras nomeiam e visibilizam
em suas trajetórias as operacionalizações do preconceito racial e, ainda, como as
especificidades dessas vivências possibilitam ou não formas de reação a ela.
Desse ponto de partida, processos de naturalização e invisibilidade da hierarquia
racial, produtos do preconceito, podem ser tomados como responsáveis pela dissolução
e negação da violência e opressão que criam e recriam sujeitos inferiorizados,
racialmente localizados. Sujeitos que, por se encontrarem em um nível deslegitimado na
classificação social, têm suas vidas invariavelmente marcadas pelo lugar social
subalterno previamente construído para si, sustentado na invisibilidade.
3.4.
Preconceito Racial - Ambiguidades e articulações de consensos sociais
Discutiremos aqui duas dinâmicas que fazem parte da complexa rede de
fenômenos sociais que (re) constrói e (re) legitima a manutenção de hierarquias raciais
e, também, sua opacidade no tecido das relações sociais. Abordaremos, portanto,
especificidades do racismo brasileiro, sobretudo aquelas que se articulam com
processos, produtos ou efeitos da complexa rede de classificações raciais brasileiras e
suas constantes transformações. O objetivo dessa é discussão apontar algumas
dinâmicas fundamentais que, articuladas à função do preconceito, marcam a trajetória
de sujeitos negros, incidindo de forma silenciosa, escondida e, às vezes, imperceptível,
12
Aqui não tratamos denúncia como denúncia formalizada, mas sim explicitação dessa dinâmica
de forma interpelável.
66
moldando subjetividades e influenciando modos de viver a vida, de construir laços,
reconhecimento, de planejar o futuro, de viver o presente e de pertencer ao mundo.
3.4.1 Branqueamento – prescrição de sujeito e sociedade
Nas palavras de Bento e Carone (2002), o branqueamento foi:
Uma pressão cultural exercida pela hegemonia branca, sobretudo após a
Abolição da Escravatura, para que o negro negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua
mente, como uma espécie de condição para se integrar (ser aceito e ter mobilidade
social) na nova ordem social. (Bento & Carone, 2002, p.14).
Essa definição de branqueamento coloca tal conceito como um dos pontos
centrais para se compreender uma das dimensões específicas à qual o preconceito racial
no Brasil se articulou. Essa centralidade se dá principalmente no que diz respeito aos
elementos sociais hegemônicos disponíveis para a constituição de subjetividades negras
em um plano no qual a constituição da neutralidade racial foi definida como branca.
Assim, como apontado pelas autoras, o branqueamento tem como elemento principal a
prescrição inegável de uma referência de ser aos negros brasileiros. Esta referência foi
forjada na definição de um modelo de sujeito moderno universal, recorrentemente não
nomeado em sua racialidade como um sujeito branco.
Por outro lado, complexificando o efeito do preconceito racial, suas inscrições e
marcadores corporais relacionados ao branqueamento, extrapolando sua dimensão
cultural, Feres Junior (2006) argumenta que:
O mais significativo do preconceito racial não é seu conteúdo cultural (os
hábitos e as disposições do indivíduo moderno), mas sim as consequências que a
inscrição do argumento biológico traz para o horizonte de expectativas do Outro, o
negro, nesse caso. Pois o estigma, as marcas da inferioridade são inscritas no corpo da
pessoa, e, portanto, não podem ser eliminados por suas ações e escolhas. O futuro está
fechado para qualquer tipo de redenção (Feres Junior, 2006, p.170).
Tomando como referência reflexões sobre o tema do branqueamento, Petrônio
Domingues (2002) chama a atenção para a necessidade de distinção conceitual entre
duas formas de se conceber o branqueamento como categoria de análise das relações
raciais brasileiras. A primeira, referente ao clareamento fenotípico da população,
67
consistiria em uma dimensão populacional, denominada pelos autores como o
branqueamento de “realidade empírica”. A segunda forma se relacionaria com o
branqueamento concebido em sua dimensão discursiva, ideológica.
A partir da primeira categoria de definição, é possível entender o branqueamento
como uma estratégia de clareamento populacional. Sustentados pelo discurso científico
sobre as raças e a natureza de suas diferenças, modelos de pensamento referenciados por
padrões europeus de progresso orientaram os projetos de embranquecimento do país e a
sustentação da raça negra como inferior, dados seus aspectos culturais e capacidade
mental inferiores. (Guimarães, 2004b). O modelo branco a ser alcançado exigiu a
construção de alternativas que suprimissem a capacidade de degeneração social da raça
negra por meio de políticas de embranquecimento que, gradualmente, substituíssem os
caracteres genotípicos e fenotípicos de uma população negra por uma população branca.
A preocupação com a configuração racial da população sempre esteve em
questão no pensamento social brasileiro. Desde o final do século XIX – no momento
pós-abolição, com o início dos estudos sobre raça no país –, a perspectiva de
desenvolvimento colocava em questão o futuro do Brasil, sendo que o horizonte traçado
era o da assimilação dos negros na sociedade moderna (Domingues, 2002; Telles,
2003). No período pós-abolição é possível identificar estudos esforçados na descrição e
compreensão da organização populacional também fortemente preocupados com as
diferenciações de raça a partir do estabelecimento dos negros como inferiores e dos
brancos como dotados de integridade biológica e mental. Ao debater os enquadres
raciais da sociedade paulista entre 1915 e 1930, Domingues (2002) analisa alguns
trabalhos com essa tendência destacando “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado de 1944,
“Pedras Lascadas” de Ellis Junior em 1928; a obra “A evolução do Povo Brasileiro” de
Oliveira Viana em 1923 e, também, algumas análises censitárias do período. O autor
identifica que o desenvolvimento do Brasil como nação esteve intimamente relacionado
com a resolução do problema que o alto índice populacional de negros significava ao
futuro brasileiro.
Essa preocupação se mostrava alarmante diante dos padrões de miscigenação no
Brasil, padrões que refletiam na existência de mestiços em todos os níveis sociais.
Fossem nos altos escalões estatais ou na elite intelectual e artística, sujeitos mulatos
gozavam de privilégios dos brancos sem ter, no entanto, sua origem racial totalmente
apagada (Telles, 2003, pp. 44-45).
Telles (2003) argumenta que a perspectiva
68
segregacionista não se tornou a saída brasileira para a resolução do legado negro do
sistema escravista por causa do dilema da miscigenação e, também, do fato de que a
elite poderia ser afetada. Afinal, no Brasil a distinção pura entre brancos e mulatos não
era factível. A indefinição classificatória do mestiço se tornou um grande problema
entre as tendências eugenistas da época.
Esse período é, então marcado pelo delineamento de um dos aspectos mais
importantes, senão exclusivo, do modelo de tratamento racial no Brasil. Fenômeno
desenvolvido pelas elites brasileiras e disseminado de forma intensa no meio científico
como a solução racial brasileira (Domingues, 2002), o branqueamento, orientado pela
visão neo-lamarckista, surge – dada a evidência da mescla do branco com o não-branco
– como alternativa de superação das deficiências genéticas negras (Telles, 2003).
Masiero (2005) mostra como as perspectivas eugenistas construíram, entre os
primeiros anos do século XX, orientações ao estado sobre a regulação de políticas
imigratórias que garantissem o melhoramento racial, sendo destacável a indicação
explícita da exclusão de correntes imigratórias que não fossem da raça branca. Ainda se
tratando de políticas imigratórias Teles (2003) destaca o aumento da imigração europeia
incentivada pelo estado brasileiro, que em 1890 chega ao seu ápice com a entrada de
mais de 1, 2 milhão de imigrantes europeus no Brasil. (p. 47)
As análises demográficas desse período eram, nesse sentido, promissoras:
evidenciavam a diminuição da população negra em relação à branca. Bernardino (2002)
apresenta dados do IBGE que indicam que em 1890 a população brasileira se dividia em
44% de brancos, 41,4% de mulatos e 14,6% de negros. Já em 1950, havia 62% de
brancos, 27% de mulatos e 11% de negros (Skidmore, 1976; Hasenbalg, 1979, citados
por Bernardino, 2002).
A
vertente
empírica
do
branqueamento
é
um
forte
elemento
da
institucionalização do modelo de supremacia branca no Brasil:
A partir da taxa mais alta de fecundidade entre os brancos e da crença de que os
genes brancos eram dominantes, estes eugenistas concluíram que a mistura de raças
eliminaria a população negra e conduziria, gradualmente, a uma população
completamente branca. (Telles, 2003, p. 46)
Podemos compreender então que os esforços de diferenciação racial tinham
como principal orientação o estabelecimento de um modelo branco euro centrado a ser
69
perseguido pela sociedade e por seus sujeitos. Este modelo estabeleceu, nas práticas e
no imaginário social, referências de pensamento, de cultura, de comportamentos, de
padrões estéticos e psicológicos. Por isso, como já apontamos, o branqueamento não
apresenta somente uma dimensão empírica. Retomando a distinção conceitual adotada
anteriormente, precisamos também encará-lo como uma ordem moral e social que prevê
a aquisição e assimilação pelos negros de valores, comportamentos, atitudes e estéticas
positivas presumidas como brancas (Domingues, 2002). Nessa linha, a configuração de
um modelo de país moderno e desejável pressupõe no Brasil não somente a
incorporação de uma população branca. Exige-se, ainda, o estabelecimento de um
modelo de cultura e subjetividade branca.
Dessa forma, a branquitude e o branqueamento foram importantes categorias de
análise crítica da realidade brasileira que permitiram incluir o lugar do branco e seus
privilégios na compreensão das relações raciais. Essas categorias, tomadas enquanto
ideologias, permitiram especificar os mecanismos que ocultam privilégios dos brancos e
garantem sua individualidade pela manutenção de uma identidade racial neutra (Bento,
2002). O estudo dessas categorias também permitiu revelar como a ideologia do
branqueamento no Brasil se constitui, num primeiro momento, como um ideal de
purificação étnica, impulsionando o processo de miscigenação, sendo que,
posteriormente, passou a ser trabalhada como um comportamento dos negros. O
embranquecimento, no perverso jogo racista brasileiro, deixa de ser um dispositivo para
se tornar um discurso atribuído à falta de identidade racial positiva, inveja do branco e
baixa autoestima dos negros (Carone, 2002).
É importante destacar as estratégias de branqueamento – empírico, populacional
e moral – para que possamos compreender que a produção e manutenção das
hierarquias sociais que legitimam formas de preconceito social de raça no Brasil não se
sustentaram somente na invisibilidade de crenças e valores disseminados no cotidiano,
ou em seu potencial ideológico. A legitimidade da supremacia do branco em relação ao
negro teve na política de estado sua implementação prática e na ciência sua
fundamentada justificativa.
Mas, se tão explícito, programado e documentado foi o projeto empírico de
embranquecimento brasileiro, e assim a pesquisa militante o mostrou, o problema que
nos interessa debater ao resgatar essa história consiste não somente em dar visibilidade
a esse projeto como constitutivo de um projeto de nação. Queremos apontar,
70
principalmente, que é a desconsideração desse projeto como processo histórico, e por
isso interpelável, que produz os efeitos e conteúdos de cristalização que se articulam ao
preconceito racial. Conforme argumenta Feres Junior:
O que chega ao Brasil não é só uma estrutura normativa da modernidade, mas
um complexo de ideologias, instituições e teorias científicas muitas delas contraditórias,
que vieram se somar as já existentes no Brasil imperial. É desse encontro, e de
desenvolvimentos históricos posteriores, que se desenvolve a semântica do preconceito
racial no Brasil de hoje. E é o preconceito racial o material bruto privilegiado para
estudarmos a negação do reconhecimento dos não-brancos em nossa sociedade (Feres
Junior, 2006, p.171)
O preconceito racial tem na articulação com a invisibilidade desse processo sua
funcionalidade. Por mais que tal história e seus elementos sejam invisíveis, eles são,por
nós, recorrentemente acessados a partir de sua inexistência enquanto processo,
sustentando nossa identidade nacional em práticas e discursos naturalizados.
3.4.2 Democracia racial – história e mito
A ideia de democracia racial, enquanto fundamento sociológico, esteve presente
no pensamento social brasileiro desde o início dos anos 1930 e sua formulação se
sustentou a partir da constatação, fruto do efeito da comparação a outras sociedades de
história escravista, de uma ausência de barreiras legais que intuíssem impeditivos à
ascensão de negros a posições de prestigio social. (Guimarães, 2002) A cunhagem do
termo é de autoria controversa, mesmo que recorrentemente a consolidação da ideia
instaurada como “democracia racial” seja atribuída ao pensamento sobre as relações
raciais de Gilberto Freyre.
No esforço de apresentar a cronologia do uso do termo, Guimarães (2002)
aponta a democracia racial como uma ideia originária das relações raciais brasileiras e
estruturante da representação social do país antes mesmo da consolidação de uma
sociologia moderna brasileira. O autor comenta que a concepção de uma organização
social sem preconceito de pertença racial ou de cor influenciou não somente o projeto
de abolição que previa um mercado livre com prevalência do mérito individual, mas
também, interpretações da escravidão brasileira como mais humanas e suportáveis aos
71
negros. Curiosamente produziu influência até mesmo nas estratégias discursivas das
primeiras frentes de luta do movimento negro no Brasil. Segundo o autor:
O Brasil teria sido percebido historicamente como um país onde os brancos
tinham uma fraca, ou quase nenhuma, consciência de raça (cf. Freyre, 1933); onde a
miscigenação era, desde o período colonial, disseminada e moralmente consentida; onde
os mestiços, desde que bem educados, seriam regularmente incorporados às elites;
enfim, onde o preconceito racial nunca fora forte o suficiente para criar uma “linha de
cor”. (Guimarães, 2006, p 269)
Embora os usos do termo democracia racial possam se referir a distintas
concepções – realidade sociológica, ideal formalizado de sociedade, institucionalidade
de direitos, padrões de comportamento ou padronização de orientações para a ação –, na
prática, esses entendimentos fundaram de forma mítica uma sociedade sem
discriminações ou preconceitos raciais (Guimarães, 2002).
No entanto, não podemos tomar a construção da ideia brasileira de democracia
racial de forma descontextualizada ou descomprometida. Restringindo a análise e
tomando como referência o quadro analítico de Gilberto Freyre, já que sua obra ainda é
considerada a responsável pela criação do termo, é preciso destacar que a formulação do
autor de uma representação pacífica de relações raciais no Brasil se deu em oposição às
propostas integralistas. A saída de ler a sociedade brasileira a partir da integração
natural do negro, institui, reforça e resgata uma visão conciliadora sobre o Brasil,
construindo a narrativa sobre o passado que propõe uma identidade nacional já
consolidada pela afirmação histórica do respeito e tolerância às diferenças (Guimarães,
2002).
O pensamento de Freyre, assim como de outros intelectuais do período, foi
recebido e apoiado porque apresentava alternativas e justificativas para a
implementação de um modelo de sociedade sem conflitos, formalizado no Estado ou no
corpo das relações sociais e interpessoais. Em contraposição às tendências
segregacionistas das décadas anteriores, se mostrou como um avanço às forças
democráticas nacionais (Guimarães, 2002). No entanto, o que se cunhou sob a pretensão
de encarar o problema da implementação de um modelo de estado autoritário no Brasil
tornou-se útil ao apagamento dos conflitos raciais, à formatação de um pacto social
construído e compartilhado pela negação da violência e da exclusão que marcaram as
trajetórias negras.
72
A partir da década de 1960, a discussão de outro referencial de interpretação das
relações raciais foi fomentada, desde os estudos patrocinados pela Unesco, entre 1952 e
1955 (Guimarães, 2005). A ideia de democracia racial muda de perspectiva. A partir
daí, discute-se a oposição entre o mito e a realidade e, também, a existência ou a não
existência do preconceito racial. O que nos cabe hoje é analisar a ideia de democracia
racial como uma noção de sociedade à qual os brasileiros são fiéis em suas relações
sociais e interpessoais. A democracia racial é, ainda, o discurso orientador na
compreensão das relações raciais no Brasil, quando as ambiguidades e contradições são
expostas. Como mito fundador (Chauí, 2000), o discurso da harmonia existente na
relação entre brancos e negros se submete constantemente à repetição de si mesmo,
tornando ocultas e persistentes as violências necessárias a sua manutenção. Tais
violências se expressam no decorrer da história pela negação da dominação do
português colonizador sobre o negro escravo, no processo de branqueamento e nas
sucessivas apropriações indébitas de bens concretos e simbólicos da elite branca, sob o
julgo da igualdade meritocrática. A superioridade racial branca, que ainda nos orienta, é
mascarada (Bento e Carone, 2002).
Morta a democracia racial, ela continua viva enquanto mito, seja no sentido de
falsa ideologia, seja no sentido de ideal que orienta a ação concreta dos atores sociais,
seja como chave interpretativa da cultura, seja como fato histórico. Enquanto mito
continuará viva ainda por muito tempo como representação do que, no Brasil, são as
relações entre negros e brancos, ou melhor, entre as raças sociais (Wagley 1952) – as
cores – que compõem a nação. (Bento e Carone, 2002, p.19)
Como afirma Kabengele Munanga (2002), o preconceito racial brasileiro
consiste em um fenômeno complexo e pode ser comparado a um iceberg que mantém
partes invisíveis. Podemos considerar que a ideia de democracia racial, e sua capacidade
de compactar as distâncias entre os ideais e práticas, é o pano de fundo no qual se
articulam as dinâmicas de invisibilização do preconceito.
São essas ideias que
permitem que o próprio preconceito, enquanto dinâmica, torne-se um elemento negado
ou questionado no corpo social ou individual. Essa problemática se torna hoje ainda
mais expressiva diante dos avanços e conquistas que o debate público sobre as
desigualdades raciais brasileiras tem alcançado, especialmente a partir da instituição de
políticas que reconhecem, mesmo que em parcialidade, a inexistência de igualdade
racial e se propõem a resolver, pela via da gestão, as desigualdades raciais. Nossa
73
intenção é problematizar, a partir do presente, reinvenções que, dado o potencial mítico
da ideia de democracia racial, se articulam a dinâmicas de naturalização do preconceito
e alteram modos de instituir e nomear a categoria raça como fundamento regulador das
trajetórias de jovens negros.
Dessa forma, a preocupação que nos cabe tem um importante elemento
geracional no que diz respeito ao distinto enfoque dado sobre as relações raciais nos
últimos 20 anos e as novas formatações que as concepções sobre o lugar social do negro
têm apresentado atualmente. Pensemos na presença – ou presença racializada – do
negro em posições de maior prestígio ou visibilidade social, como a universidade, a
mídia, esportes elitizados e postos de trabalho e de governo. Essas novas formatações
também se relacionam às emergências mais atuais de publicização midiática do debate
sobre cotas raciais, casos de racismo, destaque de atores negros, comemorações da
consciência negra, entre outros temas relativos à raça que têm aparecido de forma mais
constante na grande mídia
Dada a fidelidade brasileira à ideia da igualdade entre as raças e os reajustes da
percepção de democracia racial no imaginário, o contexto atual deve ser alvo de análises
que tomem a sedimentação e a maleabilidade do mito como potencial de análise sobre
as dinâmicas do preconceito. Como discutimos até aqui, tal fenômeno se articula pela
invisibilidade que, nesse caso, deriva principalmente da diluição da história e
silenciamento dos processos de produção e reprodução constante do lugar subalterno
dos/as negros/as pela exclusão, pela inclusão subalterna ou pela lógica da exceção.
74
CAPÍTULO 4
4. DINÂMICAS DO PRECONCEITO RACIAL: LEITURAS A PARTIR DA
TRAJETÓRIA DE JOVENS NEGROS
O exercício analítico que propomos teve como objetivo explorar as trajetórias
dos sujeitos entrevistados no sentido de tornar explícitas suas relações e interações com
o contexto atual das relações raciais brasileiras e com as expressões do preconceito
racial. Diante de um cenário de conquistas e avanços ao enfrentamento ao racismo no
Brasil marcado por propostas e políticas de reparação e publicização das violências das
desigualdades raciais, pretendemos compreender se tais transformações apresentam
impactos nas experiências, leituras e enfrentamentos dos sujeitos em relação ao
preconceito racial expresso em suas vidas.
Nosso interesse foi investigar as dinâmicas do preconceito racial por
entendermos que esse fenômeno se estabelece nas relações entre indivíduo e sociedade e
assim, tomá-lo como ponto de análise nas relações de sujeitos permite tratar da
expressão das articulações da classificação racial em um conjunto de relações sociais
mais amplas, ou seja, o estudo do preconceito permite que dinâmicas macrossociais
possam ser lidas a partir da expressão que têm em uma cadeia de relações micro-sociais.
Tomamos os relatos dos sujeitos negros entrevistados como experiências
construídas de forma singular no seio das relações raciais brasileiras. Dessa forma
apresentamos na primeira seção de nossas análises, referente a apresentação dos
sujeitos, a reconstrução que fizeram de seu percurso de vida e os devidos encontros com
a temática de nossa pesquisa. Assim recortamos os pontos que mais se mostraram
importantes em suas trajetórias, assim como suas características gerais.
Tomando cada uma das histórias dos sujeitos propusemos nas seções seguintes
uma análise geral dos relatos que apresente nossa proposta de organização das falas a
partir de uma categorização dos dilemas e experiências que se apresentaram como
compartilhadas por eles, considerando para isso os encontros e desencontros dessas
trajetórias. O exercício de categorização se desenvolveu a partir da leitura e articulação
entre elementos do racismo brasileiro e as dinâmicas de invisibilidade e ambiguidade do
preconceito racial nas trajetórias dos sujeitos entrevistados. Dessa forma surgiram como
destaque experiências que permitiram explicitar a representação da inferioridade
75
atribuída aos lugares sociais dos negros, as dinâmicas de identificação e leituras do
preconceito racial e as estratégias de enfrentamento presentes nas histórias dos
entrevistados.
4.1.
Apresentação dos sujeitos:
As trajetórias dos sujeitos, assim como as relações individuais que estabelecem
em sua vida, não podem ser tomadas fora de uma rede de relações e trajetórias de outros
indivíduos e das necessárias conexões com o conjunto de cadeias relacionais que
chamamos de sociedade (Elias, 1994). Essas cadeias relacionais podem ser expressas
desde a consideração de instituições socialmente demarcadas como a família, a escola, a
religião, o casamento até mesmo com as conexões com outros conjuntos de relações
mais maleáveis e menos formalmente controladas, aquelas dadas nos registros das
vivências interpessoais e afetivas.
Dentro do contexto mais amplo que denominamos de relações sociais, aqui
marcado
pelo
recorte
das
relações
raciais, os
indivíduos
demarcam
seus
posicionamentos em diálogo com ordens sociais invisíveis nas relações individuais, mas
que acontecem dentro de estruturas mais ou menos condicionantes (Elias, 1994). Cada
sujeito, portanto constrói, dentro do jogo de dependências da estrutura, seus próprios
trajetos e assim, pretendemos apresentar cada um dos relatos construídos nessa pesquisa
os contextos relacionais mais específicos, seus posicionamentos, vivências e
experiências mais marcantes, mantendo o diálogo necessário com o contexto social mais
amplo e com o tema dessa pesquisa, o preconceito racial.
Dessa forma seguimos apresentando quem são os sujeitos13 que contribuíram
com a construção desse trabalho cedendo seus relatos, seus pensamentos, seus conflitos
e suas experiências. Cada entrevistado será apresentado tomando como referência além
de sua caracterização geral o apontamento do aspecto que cada um enfatizou em sua
trajetória a partir da liberdade de contar sobre sua história em diálogo com o
conhecimento do problema de pesquisa.
13
Os nomes dos sujeitos foram trocados para garantir a preservação do anonimato.
76
4.1.1. PAULO
Paulo é um jovem de 25 anos, solteiro, residente do bairro Nova Suíça. Ele
declara ser de classe média baixa e ao narrar sua trajetória não aparecem aspectos
relacionados a dificuldades de ordem econômica. A partir dos critérios do IBGE se
autodeclara como preto, sem apresentar muitas dúvidas ou questionamentos na
declaração. Na época da entrevista ele se preparava para cursar no início de 2012 o
primeiro ano de seu mestrado em uma nova linha de pesquisa da pós-graduação na
Faculdade de Medicina da UFMG. Encontro-me com Paulo, após muito tempo sem
manter contato cara a cara, e com isso nossa conversa se inicia pela comemoração de
sua entrada na pós-graduação. Até aquele momento nossas “conversas” se limitavam a
comentários de publicações no Facebook, site de relacionamento que ele
constantemente utiliza pra expor suas críticas e opiniões sobre acontecimentos sociais
contemporâneos das mais diversas ordens, desde fatos políticos até o capítulo final da
novela das oito, sempre em tom crítico e perspicaz. Fico feliz ao saber de sua entrada no
mestrado, principalmente em um programa da medicina, onde historicamente, a
presença de negros é muito baixa.
Filho único, ele reside com a mãe desde a infância. Para ele essa condição
marcou profundamente sua trajetória e a isso ele atribui a centralidade do espaço escolar
em sua vida, sua postura solidária com os outros e à construção de seus interesses e
vínculos com as pessoas. Paulo pouco fala sobre a família para além da mãe e sua
história se dá no registro da sociabilidade e convívio escolar.
“...boa parte da minha história é muito marcada pela escola assim, como eu sou
filho único eu quase não ficava em casa, eu ficava geralmente na escola, então as
minhas principais histórias e vivências são marcadas pelas escolas...”(Paulo, 25 anos)
Ele conta que entrou na escola muito cedo. Com dois anos e meio já frequentava
a sala de aula e outras atividades de uma instituição de ensino de caráter religioso, onde
ficou até o fim da antiga quarta série. O início da segunda etapa do ensino fundamental
é cursado em uma escola estadual do bairro Sagrada Família, sendo que nos últimos
anos desse ciclo, Paulo muda de casa e consequentemente de escola. Ele destaca em sua
fala o bom nível das escolas que estudou. Para ele, apesar de públicas estaduais, naquela
época eram muito superiores às escolas atuais em relação à qualidade. O ensino médio
77
ele cursa em uma escola técnica. Conseguiu uma bolsa em um cursinho preparatório
para as seleções do COLTEC e CEFET e mesmo passando em terceiro lugar no
COLTEC, optou por cursar o Técnico em Eletrônica mais próximo de sua nova casa, no
CEFET.
A entrada no curso de graduação de Psicologia da UFMG acontece na primeira
tentativa do vestibular, sendo que para tal não foi possível (e também preciso) fazer
cursinho. Por ter feito o nível técnico em uma instituição federal a entrada na
universidade não teve muitos impactos para Paulo e o projeto de cursar o nível superior
surge em sua trajetória com muita naturalidade. Sem grandes novidades é a experiência
do CEFET que reflete mudanças importantes na vivência dos contextos escolares de
Paulo em relação à diminuição da heterogeneidade de perfil dos alunos. As experiências
que mais lhe interessaram no ambiente acadêmico se deram no âmbito da participação
no Conexões de Saberes em que permaneceu de 2007 a 2009 e no projeto Educação
Sem Homofobia14. Nesses espaços ele pode debater, produzir e aprofundar
conhecimentos acerca de assuntos como preconceito racial, desigualdade, homofobia e
machismo, temas que sempre lhe inquietaram.
4.1.2. RICARDO
Ricardo cresceu no interior de Minas Gerais, em uma cidade do Vale do
Jequitinhonha. Nascido na capital, ele volta a viver em Belo Horizonte aos 16 anos. Na
época da entrevista ele tinha 27 anos e trabalhava como bolsista de apoio técnico em um
projeto de pesquisa na UFMG. Há um ano formou-se em história pela UFMG nos graus
de licenciatura e bacharelado, tendo na graduação participado do programa Conexões de
Saberes entre 2007 e 2009. De família pobre, foi por meio do auxílio financeiro de sua
mãe que ele e sua irmã conseguiram cursar o ensino superior, sendo que a irmã se
formou em uma instituição particular de ensino superior.
A mãe de Ricardo é empregada doméstica e por mais de 35 anos trabalhou e
viveu na casa dos patrões sem direito ao retorno para casa, nem mesmo nos fins de
semana. Assim pode dispor aos filhos as condições básicas que garantissem o êxito na
14
O Projeto Educação sem Homofobia foi uma ação desenvolvida pelo Núcleo de Direitos
Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH -UFMG) que tinha como principal ação a formação
presencial de professores das redes municipais de ensino nas temáticas de direitos humanos e cidadania
LGBT.
78
escolarização. Ricardo se autodeclara preto, e mesmo que as relações raciais já lhe
saltassem aos olhos desde a vida no interior, ele diz que só compreendeu seu lugar
como negro na sociedade posteriormente a sua entrada na universidade.
Muito afeito as amizades, a sociabilidade da vida pública sempre foi uma
centralidade na trajetória de Ricardo, sendo muito presente em seus relato saídas, festas,
divertimento e entretenimento. Dessa forma, são distinções entre os padrões das
relações interpessoais entre o interior e a capital os pontos de grande interesse dele na
forma como conta sua história. Há 11 anos vivendo em BH, Ricardo hoje reside com a
mãe e o tio em um bairro da região de Venda Nova. A vinda para Belo Horizonte
revelou a ele os contrastes entre a cidade do interior e a capital como principais
mudanças em suas relações. Sobre a vida em Belo Horizonte ele destaca que
“o tempo passa de uma maneira diferente das cidades pequenas assim, cidades
grande é tudo uma correria, você nunca tem tempo pra nada, às vezes você tem um
contato com pessoas lindas (...), porém a gente se perde por diversas coisas que a gente
tem que fazer, e cidade pequena não tem isso é um convívio até que obrigatório assim,
tem algumas pressões mas o convívio é obrigatório né.” (Ricardo, 27 anos)
Para ele as relações no interior se destacam por certo caráter de horizontalidade
da convivência entre as classes sociais, o que percebe como mais raro nas cidades
grandes. Os grandes limites econômicos e poucas oportunidades de emprego na cidade
do interior marcam rigidamente a divisão entre as classes, mas diferente de como se
estabelecem as relações de convivência em Belo Horizonte, no interior do Vale as
fronteiras de classe não significaram em sua trajetória fronteiras nos relacionamentos
interpessoais. Ele destaca que na escola, por exemplo, estudou nos mesmos colégios
públicos que os filhos das classes mais altas da cidade, que as casas das pessoas de
maior condição socioeconômica não eram isoladas em “desertos” como são os
condomínios de Belo Horizonte e que a desigualdade social não se reflete em distância
entre as pessoas assim como ele percebe que é na cidade grande.
No entanto por terem caráter de maior proximidade, as relações que estabeleceu
no interior foram mais marcadas pelo caráter de vigilância das cidades pequenas. A vida
no interior impõe padrões e modelos de comportamento mais rígidos e moralizados, o
que para Ricardo está relacionado ao forte tradicionalismo dessas regiões e também à
79
influência dos valores da igreja católica. Como ele deixa explícito ao apresentar a
situação abaixo.
“...na cidade pequena, por exemplo, em uma relação do homem com a esposa
dele. Ai o cara trai ela sempre e todo mundo fica sabendo inclusive a mulher dele, se a
mulher do cara quisesse traí-lo a cidade saberia bem mais rápido, é exemplo claro de
sexismo, mas que tá no cotidiano. Como as relações interpessoais elas são ali
cotidianas, esse é o termo que eu quero usar, é bem mais visível isso, porque na cidade
grande a mulher fala que vai pro trabalho, pra qualquer lugar e se vinga né, não
necessariamente vai deixar o marido saber, às vezes até deixa mais é mais complicado.
E lá também tem isso né, o marido traído não pode aceitar por conta da pressão social,
se ele aceita não é o macho entendeu...”(Ricardo, 27 anos)
Mesmo não sendo o alvo prioritário dessa vigilância, já que ela incide mais
sobre as mulheres segundo Ricardo, ele destaca que o caráter tradicionalista e as
proximidades das relações no interior impõem padrões mais rígidos a todos.
4.1.3. JOSÉ
José é um professor de língua portuguesa e literatura de 27 anos. Ele trabalha na
rede privada de ensino fazem quase dois anos e leciona no ensino médio e também em
um cursinho pré-vestibular. Criado pela mãe e pela avó ele conta que desde a infância a
família representou para ele um lugar de segurança e conforto. Um ambiente em que se
sentia protegido dos problemas e sofrimentos que vivia em suas relações por ter sofrido
desde a infância com excesso de peso e as consequentes humilhações que estar fora de
um padrão estético significavam. Reflexões posteriores o fizeram também relacionar
essas vivências com o fato de ser negro, sobretudo com a prática dos colegas em puxar
os cachos de seus cabelos quando ainda o mantinha comprido, o que na época ele
considerava ser apenas uma brincadeira dolorida. Essas reflexões significaram também
a definição de sua auto declaração racial como certamente preta.
Os anos escolares de José e sua relação com colegas e amigos próximos se
deram em meio a inquietações e dilemas relacionados ao lugar inferior que ele julgava
ocupar diante dos outros. Ele conta que sempre foi uma pessoa que seguia certos
padrões de conduta considerados positivos, foi coroinha na igreja, tirava boas notas na
escola, era educado e seguia tudo aquilo que estava dentro dos padrões conservadores.
No início da adolescência, no entanto as tentativas de sair do lugar de inferioridade
80
acabaram por fazê-lo se contrapor, na tentativa de se integrar, a esses modelos de boa
conduta impostas pelo seu entorno familiar e religioso.
“...por me sentir ainda com sentimento de inferioridade né, eu não tinha ainda o
conceito de identidade racial ou de auto afirmação, de ação afirmativa, realmente às
vezes eu me sentia no discurso das outras pessoas, por ser obeso e negro eu realmente
estava abaixo dos outros né, e por mais que eu tivesse a proteção familiar, aquilo ali
me influenciava no meu jeito de ser né, então acho que eu tomei algumas atitudes na
juventude que praquele momento poderiam ser consideradas transgressoras, erradas,
como fumar muito jovem, entrar pro grupo da escola que faz bagunça, que joga pedra
né. E eu sempre fui um aluno muito certinho, um bom aluno digamos assim né, pros
valores conservadores. Um aluno de boas notas, de bom convívio, educação, então tive
dois anos assim bem, digamos, desleixados nesses conceitos e valores ai, então foi um
momento diferente.”(José, 27 anos)
Podemos considerar que a trajetória de José é marcada por movimentos de
trânsito entre a recusa da regulação e o estabelecimento de padrões de emancipação,
mesmo que em diálogo com valores morais, como os da igreja católica. Os momentos
de transgressões na trajetória de José deram lugar, no meio da adolescência, à entrada
no grupo de jovens da igreja de sua comunidade para o momento da preparação para a
crisma. José identifica esse momento como um período de transformação em sua
trajetória, em que começa a construir referências mais próprias para alcançar alguns
objetivos que traçara em sua vida, como estudar, cuidar do corpo e da saúde. A
participação na igreja acontece de forma intensa e ele se torna na comunidade uma
liderança junto a outros jovens a partir do estabelecimento de vínculos e identificação
com outras pessoas que partilhavam algumas de suas angústias.
“...então ouve uma identificação com essas pessoas, grupos né, grupos de
jovens na igreja, então fiz amizades, foi um momento que culminou também com uma
dieta que eu fiz, eu emagreci, então eu me senti mais confiante, então foi o momento da
minha trajetória muito positivo pra mim como pessoa mesmo né, eu senti que eu
avancei, fiquei mais confiante. (...) Ai ouve uma mudança, eu me senti mais confiante
né, e essa confiança era atrelada aos valores cristãos (...) e ai foi vários anos de
participação nisso né, quase 6, 7 anos nessa trajetória de grupo de jovens. De me
sentir, de ter uma liderança mesmo no espaço religioso, na igreja próximo da minha
casa. Eu e outros amigos éramos realmente líderes comunitários jovens, nós éramos
referências, não só no sentido assim para os jovens mas pra todos ali, éramos exemplos
né: “olha como os jovens devem ser.” (José, 27 anos)
81
Os valores cristãos sempre estiveram presentes na vida de José dentro e fora da
família, que também seguia os preceitos católicos. Mas é na adolescência que ele diz se
apropriar desses valores de forma mais autônoma e em diálogo com sua própria história
e não mais como um continuum da história familiar. Sobretudo é na igreja, fora da
proteção familiar e junto a outros jovens, que José encontra formas de identificação e de
valorização positiva de sua identidade, permitindo estabelecer mais diálogo com os
padrões de conduta exigidos pela sociedade e com as suas próprias condições de se
construir como sujeito livre dos lugares de subordinação.
A liderança que exerceu no contexto religioso foi importante pra sua escolha
pela licenciatura, e desde então ele já se considerava um professor. A entrada na
universidade, no entanto foi tensa, e nos primeiros períodos do curso ele passa por um
processo de jubilação por excesso de faltas em decorrência do falecimento da irmã. O
desconhecimento do funcionamento institucional exige que ele elabore a partir dessa
situação uma estratégia para garantir a permanência na universidade, afinal sua vaga na
UFMG tinha sido difícil de alcançar. Esse momento é mais um dos momentos em que
José teve que reconstruir sua trajetória e após conseguir cancelar o risco de ser expulso
da universidade ele ressignifica sua inserção na academia e sua dedicação ao curso.
4.1.4. RAFAELA
Rafaela é estudante de psicologia e na época de nossa entrevista estava no fim
do nono período. Ela é casada e reside atualmente com o marido na região do Alto
Paraopeba em Minas Gerais. Por ser de outro município adquiriu o benefício de
moradia universitária e vai pra casa somente nos fins de semana. Rafaela é de uma
família pobre. A mãe é analfabeta e trabalha como empregada doméstica e o pai é um
trabalhador da construção civil que de tempos em tempos, quando está na pausa de um
trabalho para o outro, volta pra escola pra retomar os estudos.
O desejo de fazer faculdade sempre esteve nos planos de Rafaela. No ensino
fundamental ela frequentou uma escola pública da região central de Belo Horizonte
onde a diversidade de classes e raças entre os alunos fazia a possibilidade do futuro em
uma profissão de ensino superior circular de forma mais constante. Ela conta que nessa
escola havia estudantes de classes altas e por isso se falava mais em vestibular e ensino
superior, assunto restrito em sua comunidade de origem. O ensino médio foi cursado em
82
uma escola da região metropolitana de BH, parte no turno noturno, pois Rafaela já havia
casado e começado a trabalhar.
Com o sonho de fazer uma graduação Rafaela entra em um cursinho prévestibular e nesse espaço descobre a possibilidade de fazer a graduação em uma
universidade federal. Descobrindo o que era o ensino superior público, e seu
consequente status, o desejo de fazer ensino superior passa a significar estudar
necessariamente em uma Instituição Federais de Ensino Superior (IFES). Durante as
tentativas de cursar o nível superior em uma instituição federal ela conta que tentou
vários vestibulares em distintos estados, ou seja a UFMG não era sua única escolha.
“Federal pra mim era uma superação assim, já tava numa época onde tinha um
pouco mais de aceso, o pobre né, à Faculdade particular. Já existiam alguns auxílios
assim, mas eu não queria, porque eu achava que se eu fizesse uma Faculdade
particular eu nunca ia me achar competente o suficiente, e ai quis porque quis Federal,
e por um imaginário também que eu tinha do que era uma pessoa que estudava na
Federal assim. Eu achava que se eu passasse aqui eu me tornaria essa pessoa né, esse
ser super inteligente, (...) eu comecei fazer terapia aqui (UFMG) e eu olhava pras
pessoas assim, e era como se elas fossem uma coisa de outro mundo, e eu achava que
quando eu passasse na Federal eu iria me sentir essa coisa de outro mundo que eu via
nessas pessoas.”(Rafaela, 28 anos)
No entanto, a entrada na universidade não significou para Rafaela a mudança
pretendida, a realização do desejo de se tornar “aquela pessoa”, de pertencer totalmente
a outro espaço. O encontro com as exigências das disciplinas, as dificuldades nas
matérias e a realidade de um corpo docente de outro padrão cultural a fazem duvidar das
possibilidades de se tornar esse outro universitário, antes tão desejado. Rafaela percebe
as barreiras de pertencimento a esse mundo, estando entre elas bem presentes as
barreiras raciais. Ao entrar na universidade ela passa a ressignificar suas experiências e
sentimentos a partir de uma leitura histórica e ampla de seu contexto social e é na
universidade, principalmente durante o ano em que esteve no Conexões de Saberes, que
ela se reconhece negra e passa, mesmo em meio a desconfianças dos outros diante seu
tom de pele, a afirmar sua auto declaração como parda.
Os principais apontamentos que Rafaela faz sobre sua trajetória se mostram no
reconhecimento de que aquilo que construiu como trajetória individual tem relação com
um contexto histórico mais amplo e que sua renuncia à origem familiar eram também
fruto de um aprendizado social que privilegia certas experiências em detrimento de
83
outras. Essas questões ressignificaram o passado e tensionaram o futuro de Rafaela. Ela
está para se formar e o marido recém-graduado trabalha em uma área promissora. Os
planos do casal consistem em investir em uma empresa e assim Rafaela apresenta seu
futuro como cercado de boas perspectivas de crescimento econômico. Ela conta ter
construído para si um outro lugar no mundo, um lugar mais próximo de privilégios, e
em seu relato existe o receio de que podendo ocupar um lugar social distinto do seu
lugar de origem ela repita no futuro a mesma lógica de subordinação da qual foi alvo.
A trajetória de Rafaela parece deixar evidente que a ruptura com os lugares
socialmente prescritos e destinados aos sujeitos inferiorizados não depende estritamente
apenas daquilo que a estrutura fornece ou daquilo que o sujeito constrói. A vivência da
ambiguidade relativa a ascensão social mostra maiores complexidades da dinâmica
racial que pressupõe intensa interação entre os sujeitos e suas redes de relações.
4.1.5. BRUNA
Bruna é uma jovem de 25 anos. É a filha mais velha, e mora com os pais e três
irmãos nos fundos do lote dos avós. A trajetória de Bruna é também muito marcada
pela escola, seja como espaço de convivência ou como o lugar para buscar melhorias na
qualidade de vida. Ela teve como referência a figura da tia, que durante sua infância era
a única familiar com nível médio, e mais posteriormente a única que havia cursado o
nível superior. Diante do exemplo e admiração pela tia, a construção de redes familiares
proporcionaram a Bruna possibilidade de estudar o ensino fundamental em um colégio
militar e o ensino médio em uma escola técnica federal. Sendo que os anos escolares
iniciais cursados em escolas públicas da região próxima de sua casa. Ela conta que
descobriu as possibilidades de tentar vagas nessas escolas por meio de informações
eventuais que os espaços profissionais de seus parentes oportunizaram, pois em seu
ciclo social a notícia sobre as formas de acesso às escolas consideradas de qualidade
elevada não eram recorrentes.
Bruna destaca sua relação com a educação como uma paixão desenvolvida
também em meio a sua própria trajetória familiar e escolar. Entre os valores que recebeu
dos pais, a importância aos estudos sempre estiveram entre as preocupações mais
centrais e Bruna sempre teve apoio da família nos momentos de dificuldade que passou
na escolarização, fossem eles de ordem material ou aqueles relacionados a problemas
84
interpessoais, uma vez que na infância e adolescente ela conta que era uma pessoa
muito difícil, que implicava muito com as coisas e “caçava muita confusão”. Assim
como aconteceu com alguns dos outros entrevistados, ela descobre a possibilidade de
gratuidade do ensino superior tardiamente. Desde então já tinha o sonho de ser
professora, pois vivendo intensamente o contexto escolar e o incentivo dos pais pela
escolarização, percebeu nos profissionais e ambiente da escola, principalmente nas
professoras e diretoras, um lugar importante e bonito de trabalho.
“...eu desde de nova eu sempre quis ser professora, sempre, sempre, hoje, eu
acho que era porque era a única referência, a única não mas das referências mais
próximas a que mais me agradava era de ser professora, porque era o ambiente que eu
estudei, aí eu via as professoras lá, na coordenação, na verdade, a minha vontade é
ainda ser coordenadora, mas eu ainda chego lá, era essa referência que eu tinha sabe e
eu sempre fui apaixonada pelo ambiente escolar..”(Bruna, 25 anos)
Bruna cursou a graduação em pedagogia na UFMG e relata que esses anos foram
os mais importantes de sua vida. Viveu intensamente o tempo de sua graduação e
participou ao máximo das oportunidades que a permeância em um ambiente tão diverso
e em sua visão tão rico em possibilidades podia proporcionar. Em seus anos de
graduação participou de várias pesquisas, projetos, programas de monitoria assim como
seminários, palestras e outras atividades acadêmicas. Seu percurso curricular foi extenso
e bastante produtivo. A inserção de Bruna foi efeito de muito esforço e dedicação aos
estudos, integrados, entretanto a um campo recente que abriu maiores possibilidades a
estudantes com seu perfil, pobres e negros. Por mais que se perceba como uma exceção
em meio aos seus antigos colegas de bairro e escola ela apresenta suspeitas sobre o seu
esforço individual ter sido o único ponto que lhe garantiu sucesso na vida acadêmica.
“Olha, eu sempre afirmo o que eu considero sim uma trajetória de exceção, (...)
a gente sabe que aqui na UFMG, por exemplo, a entrada é muito mais complicada, mas
depois que eu entrei, até mesmo por me mostrar disposta e por me empenhar, aqui na
FAE eu tive muitas portas abertas. Não sei se eu teria essas portas abertas em outros
lugares, porque em outras Faculdades, por exemplo, (...) acho que eu teria muito mais
dificuldade de inserção, até mesmo por, como eu posso dizer, por capitais mesmo que
eu não tive sabe (...) eu sempre fui acolhida, e também porque eu busquei né, em
Programas voltados pra questões de ações afirmativas, isso fica claro pra mim...”
(Bruna, 25 anos)
85
“e que eu tava contando um pouco da minha história, eu falei assim “gente, não
é que eu sempre, que todos os Programas aonde que eu tava enfiada lá, que eu tinha me
inserido, são Programas de ações afirmativas” ai, uma coisa que eu tenho pra mim,
mas que eu não poso afirmar, é se é porque só nesses lugares que eu tive abertura, não
sei afirmar isso. (...) Ai às vezes eu fico até pensando sabe, será, essa questão, será que
foi porque eu procurei ou será foi porque foram as únicas portas abertas, ainda tem
que pensar um pouco, eu ainda não consegui me responder sobre isso, agora...”(Bruna,
25 anos)
Bruna está atualmente terminando seu mestrado. Pra ela uma fase complicada
que exigiu um tipo de dedicação que ela ainda não tinha experimentado, sobretudo em
relação à construção de uma autonomia sobre o trabalho solitário que é exigido no
mestrado. Até então suas inserções no espaço de pesquisa acadêmica tinham se dado de
forma coletiva, e essa mudança a fez enfrentar dilemas e questionamentos sobre sua
“capacidade intelectual”. Ademais o programa de pós-graduação em que está inserida
não tem o mesmo caráter dos outros projetos que participou, ou seja, o caráter de ação
afirmativa, que de acordo com seu relato são programas sensíveis às trajetórias negras e
populares e que assim constroem um olhar e políticas diferenciadas sobre as inserções
de estudantes com perfil semelhante ao dela.
A trajetória de Bruna centrada na escolarização deixa explícito, principalmente
em contraste com a trajetória dos outros sujeitos nos espaços escolares, a importância de
leituras e estratégias específicas para a inserção de estudantes negros no espaço
universitário por meio de programas voltados para as especificidades desse grupo social.
No caso de Bruna, a reflexão de seu percurso bem-sucedido é relativizada como mérito
individual a partir dos intercruzamentos que ela faz com o contexto em que sua
trajetória ocorreu e as possibilidades relacionadas à sua inserção na Faculdade de
Educação da UFMG e em programas de ação afirmativa. Dessa forma seu caminho de
reconhecimento é apresentado na relação com a conjuntura social que, juntamente aos
seus próprios movimentos, construíram as possibilidades de seus deslocamentos e
sucesso acadêmico.
4.1.6. SIMONE
Simone é psicóloga, recém-formada pela UFMG. No período da entrevista
trabalhava a menos de um mês em um programa público de assistência social, no qual
86
também foi estagiária durante a graduação. Ela tem 26 anos, e mora em um bairro da
periferia norte de Belo Horizonte com a mãe e um irmão. Sua convivência familiar
parece ser intensa e são recorrentes os relatos sobre o contato com suas tias e primos.
Simone estudou parte do ensino fundamental em uma escola particular e parte
em escola pública. O ensino médio ela cursou em uma instituição federal onde fez a
maior parte dos amigos que tem até hoje. A entrada na universidade não se mostrou
muito conflituosa e para ela o ambiente universitário não significou vivências de
constrangimento, inadequação ou preconceito. Ela relata que na unidade em que
estudou, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, existe maior abertura e aceitação
para as diferenças no perfil dos estudantes, sendo esse espaço mais “desplugado” dos
modelos clássicos de estudantes de elite.
Em sua trajetória fica marcado seu interesse em compreender e explorar os
espaços e a realidade em que vive a partir do encontro com diferentes estratégias e
perspectivas de vida, desde as mais acadêmicas as mais vivenciais. Essas mesmas
dúvidas se refletem na forma como ela se declara como preta. Sua declaração se afirma
pelo conhecimento que adquiriu a partir de suas variadas experiências formativas, que
mesmo tendo deixado dúvidas sobre o uso das categorias raciais, como pardo, moreno,
preto, branco, a fizeram construir essa declaração.
Por gostar do lugar da dúvida Simone sempre buscou participar de vários cursos,
formações, capacitações e eventos de caráter formativo durante a graduação. Sua
inserção na universidade acontece em meio a esse interesse e desde então ela se
envolveu em atividades acadêmicas ou atividades de movimentos sociais divulgadas na
academia. Contando sobre umas das primeiras atividades que participou, ela deixa
explícito esse interesse e um flerte com as possibilidades de atuação em movimentos
sociais dentro dos vários programas que participou incluindo o Conexões de Saberes,
em que ficou por dois anos, entre 2007 e 2009.
“No primeiro período eu participei de um grupo de estudo de análise e
comportamento, aí no segundo eu fui pro laboratório de teste, teve um período, uma
fase da minha vida, que eu fique muito ligada em Movimento assim. Nem sei por que.
Foi por causa do “EIV” que é o Estágio interdisciplinar de Vivência em Área de
Assentamento e Acampamento do MST. Eu tava na FAFICH um dia, vi o cartazinho, 4º
EIV, eu falei “há cara, esse negócio é doido, eu gostei assim, gostei, achei legal.” Ai
então ali tinha discussão do “EIV”, tinha discussão né assim, do sistema econômico. A
gente ocupou a Acesita né. Eu tinha fase de preparação pra discutir, a economia né, as
87
desigualdades sociais, a injustiça que é o mundo, você tinha essa fase. Você tinha a
fase de ir pro campo, ai você ia pra uma área de assentamento e acampamento, e
depois você voltava e tinha avaliação e tinha uma ação final, que era tipo com a
Acesita. A sede do Acesita que era ali no João Pinheiro, ai depois disso, eu comecei a
participar. Teve o negócio do Fórum Social Mundial também né, que ai a gente fez uma
oficina lá do Conexões. (Simone, 26 anos)
Ai você já tava no Conexões, quando você foi pro EIV? (Entrevistadora)
Não, pro EIV não, o EIV foi o meu primeiro contato, inclusive foi até isso assim,
eu lembro que eu falei pro EIV na minha entrevista do Conexões assim, eu falei “há, eu
participei do EIV” que tinha que ter uma ligação assim com Movimento, eu lembro que
assim no edital tinha alguma nesse sentido, ai eu falei, eu acho que o EIV serve, ai daí
eu fiz o CRB também, só que já tava tudo no Conexões. (Simone, 26 anos)
O que é o CRB? (Entrevistadora)
É o Curso de Realidade Brasileira, que é um curso de formação política assim,
um ano, cada mês é um pensador assim, e ai a partir desse CRB também eu comecei a
participar assim de palestras, sempre que tinha uma palestra assim anunciando né ou
então alguma coisa sabe da América Latina, qualquer palestra, independente da linha
assim, independente se fosse partido, se fosse do MSU, eu ia assim sabe. Se eu tivesse
disponibilidade eu ia, ai (...) no CRB que é um curso de formação né de Realidade
Brasileira, que acontecia aqui na FAE, na UFMG, era acho que 90 organizações, era
muita gente assim, sei lá, eram muitas organizações, eram muitos Movimentos, tinha
até assim, Marista, tinha ONG sabe, Marista, tinha MsT, tinha Movimento estudantil,
eu não lembro de Movimento negro, se teve, podia até ter assim.” (...) Teve a Edna, que
era de lá, que começou a puxar isso assim sabe, falou assim “eu acho que isso é
importante e tal” até me pediram “não Simone, vamos organizar, vamos fazer alguma
coisa” falei “eu não participo de Movimento em geral assim” eu vou nos negócios,
gosto de passeata, gostava muito de sabe, ia muito em passeata, em tudo assim.
.(Simone, 26 anos)
O percurso de Simone em diálogo com os movimentos sociais, principalmente
pela participação das propostas de ação desses atores, reflete muitas de suas indagações
e indignações sobre as configurações sociais. Ela afirma e reafirma durante todo o
tempo das entrevistas a necessidade que tem de entender “como é que as coisas
funcionam”. Essa aproximação, portanto reflete em sua trajetória o desejo por
compreender melhor as dinâmicas sociais em que se dão suas relações. Esse movimento
iniciado na inserção na academia permanece atualmente refletido sobre sua atuação
profissional. Inserida em uma política pública de assistência social ela permanece por
88
perguntar, em diálogo com a comunidade a sujeitos que atende em seu trabalho, sobre
possíveis formas de compreensão e transformação social.
4.1.7. Alguns apontamentos sobre as trajetórias
Depois de nos adentrarmos na difícil empreitada de atribuir por meio da escrita
corpo e sentido a vidas que existem fora desse registro, nos cabem duas breves mas
importantes pontuações. É possível esperar que em uma pesquisa que se proponha a
pesquisar dinâmicas do preconceito se encontre com prevalência o sofrimento e a dor
que essa dinâmica tão violenta faz incidir sobre aqueles que a vivem de forma cotidiana.
Nosso primeiro ponto pretende expor que a despeito dos sofrimentos, tristezas,
angústias e conflitos apresentados pelos sujeitos na descrição de suas experiências, o
“clima” que sobressaiu em seus relatos foi, sobretudo a afirmação da positividade de
suas identidades negras, o orgulho sobre suas trajetórias, sobre o caminho que trilharam
e sobre as conquistas que individual ou coletivamente alcançaram.
Essa pontuação se faz necessária como forma de demarcar a emergência de
identidades negras positivas, formadas em meio a reflexão, crítica e deslocamentos
construídos sobre os lugares inferiorizados que são socialmente atribuídos aos negros.
Para nós apontar esse caráter positivo é expressar possibilidades na construção de
visibilidade sobre as lógicas do racismo, mostrando que é possível enfrentá-las e quando
não, é possível construir estratégias para interpelar tais lógicas por meio de caminhos
criativos e diversos, mas que precisam ser publicizados e nomeados de forma recorrente
e sistemática. Nesse sentido a apresentação das vivências desses sujeitos se une a uma
história que não se encerra em suas próprias vidas, mas soma ao histórico de luta de um
povo que nunca viveu somente da dor e resignação, mas construiu, mesmo em meio ao
desprivilegio e inferiorização, sonhos, conquistas e resistência.
O segundo ponto se relaciona com a forma como apresentamos os sujeitos. A
forma que escolhemos para essa apresentação tem também um potencial analítico no
sentido em que as trajetórias estão divididas entre os relatos dos homens e das mulheres
entrevistadas. Essa divisão não tem como objetivo evidenciar somente a paridade de
gênero, recorte dessa pesquisa, mas pretende trazer as especificidades das trajetórias e
sua relação com recortes de gênero e suas articulações com curso das entrevistas e
89
principalmente com as distintas esferas de relevância que cada sujeito destacou em seu
relato. Entendemos o gênero como uma construção histórica e social que formaliza nos
corpos de homens e mulheres distintas significações sociais e distintas posições de
sujeito na sociedade. Nosso interesse não foi desenvolver uma perspectiva de
interseccionalidade entre raça e gênero ou construir uma análise mais aprofundada sobre
as relações de poder que essas posições engendram. Nossa limitação em apresentar os
recortes de gênero como um recorte possível está em considerar os enredamentos que os
distintos padrões de socialização de mulheres e homens apresentaram em seus relatos.
Percebemos que as trajetórias das mulheres são marcadas por maior destaque aos
dilemas subjetivos e de caráter mais privado, sendo marcadas por ambiguidades nas
leituras sobre as formas de vivência do racismo, mesmo que no corpo geral da
apresentação de seu percurso esse não tenha sido o ponto mais emergente que se
destacou. Surgem como pano de fundo, sobretudo diante do desejo de se constituírem
como mulheres autônomas, as tensões com a tradição da família e com o próprio corpo.
Instâncias onde incidem socialmente as regulações das experiências das mulheres. A
ambiguidade se dá em torno da construção de perspectivas de emancipação aliadas aos
rígidos desafios de romper com os padrões sociais exigidos a elas, sejam os da beleza
branca, da obediência ou da abdicação de si. Sobretudo a relação familiar ocupa
centralidade na descrição dos dilemas e dos consequentes sentimentos de culpa que os
questionamentos delas sobre a vida em sociedade inspiram. O percurso dessas mulheres
aponta o que Pateman (1992) já denunciava a partir da ideia de um contrato sexual que
organiza de forma invisível a sociedade, qual seja a legitimação da subordinação das
mulheres a partir da sua restrição a esfera doméstica, negando a elas o direito de serem
indivíduos, de participar e se implicar na cena pública. Essas jovens mulheres têm seus
posicionamentos registrados em perspectivas mais distantes do espaço público,
especialmente nas tensões entre as expectativas familiares pelo enquadramento do corpo
e nas formas de se posicionar com o outro e com suas próprias conquistas.
Um desses dilemas surge na descrição da relação das entrevistadas com as
formas e modos de usar os cabelos. A centralidade das representações do cabelo na
construção da identidade negra é evidenciada por Gomes (2003) nas relações de sujeitos
negros em diversos espaços de socialização, significando muitas vezes o registro de
inferioridade quando prevalece a representação desvalorizada do corpo negro no
conjunto de relações. Bruna, por exemplo, conta uma situação que viveu com a sogra
90
que relata bem essas tensões. A sogra sempre implicava com a sua forma de usar o
cabelo crespo sugerindo que ela fizesse escova progressiva, um método de alisamento
permanente.
“ela já me levou na cabeleireira dela, falou que a cabeleireira podia fazer que
ela pagava pra mim, aquelas coisas assim, mas eu não sei, tinha hora que me dava até
vontade de fazer sabe, mas tinha aquela questão, não, eu não vou mudar por causa
dela.” (Bruna, 25 anos)
Outra tensão referentes as formas de interpelar os lugares prescritos para as
mulheres, surge no relato de Simone. Em sua descrição, a violência é percebida nas
imposições que a família coloca sobre suas tentativas de enfrentar o lugar resignado
muitas vezes pré estabelecido para as mulheres. Num episódio bem violento, o irmão a
agride sujando seu rosto com pó de café, pois ela se recusou a lavar um utensílio
doméstico. Ela chega a fazer uma denúncia na delegacia do bairro, mas tanto a
ineficiência do sistema em reconhecer o ocorrido como violência, como a pressão dos
vínculos familiares com o irmão acabam fazendo com que ela retirasse a denúncia.
Relatos como esses foram recorrentes nas entrevistas com as mulheres que
participaram dessa pesquisa e os mesmos apontam para as relações entre raça e gênero
na construção das trajetórias de mulheres negras. Relações que aqui não serão
profundamente analisadas, mas que apontam assim como defende Hooks (2004) para a
necessidade do reconhecimento de especificidades que constroem outras relações de
subordinação para as mulheres negras.
Os homens por sua vez destacam em suas trajetórias as estratégias de
sociabilidade e posicionamentos mais relacionados com as possibilidades de
autonomamente se constituírem como sujeitos de si e com a afirmação de
posicionamentos mais seguros. Suas decisões e estratégias se dão em meio a tensões,
mas essas se destacam sem muitos desdobramentos, dúvidas ou interdições
permanentes. O processo das entrevistas também evidenciou os efeitos das diferenças de
gênero nas experiências, e os homens, entrevistados, nesse caso por uma mulher, foram
bem mais reticentes e receosos em apresentar fragilidades no seu percurso. Suas
entrevistas foram mais curtas e diretas e as tentativas de explorar elementos mais
conflituosos tiveram sempre como respostas a saída pela abstração de aspectos sociais
ou a afirmação de que tais acontecimentos ficaram no passado e não deixaram muitas
91
marcas subjetivas. Paulo por exemplo, após relatar a vivência de experiência de
violência na escola acaba por dizer que “... foi um período conturbado assim, mas que
foi apenas nessa época e depois eu fiz superar isso bem e acabou não deixando grandes
marcas mesmo.” (Paulo, 25 anos)
Da mesma forma Ricardo afirma que foi pela sociabilidade que construiu saídas
para se destacar e enfrentar alguns problemas de subordinação relacionados à cor da
pele.
“eu acho que eu fiz isso (enfrentar a condição de ser negro) de uma maneira
diferente, eu era nas brincadeiras, nas zuações, de chamar a galera pra zuar, pra se
divertir, mais o rei galera mesmo, sério, o negro gato.( Ricardo, 27 anos)
“eu também sempre fui muito descolado assim nunca tive problema nenhum
com isso, eu acho que me favoreceu, que eu sempre desde moleque assim sempre saía
pra festa pra brincar, pra zuar, e de certa forma eu acho que eu sofri menos com isso,
eu era sempre o mais zuador da turma”( Ricardo, 27 anos)
A emergência dessas diferenças orientou também a leitura realizada para a
apresentação das trajetórias e, mesmo sem se traduzir de forma mais explícita no
delineamento e análise de cada uma delas, o recorte relacionado às relações de gênero
sobressaiu como um ponto a ser considerado e melhor trabalhado em uma proposta de
análise posterior.
4.2.
Discursos raciais: algo mudou?
Como discutimos ao longo do trabalho vivemos no Brasil uma grande
contradição em relação ao enquadre de nossas relações raciais. Se por um lado no Brasil
raça nunca foi um tema neutro (Schwarcz, 1998) admitir nosso racismo sempre foi um
tabu (Guimarães, 2005), e as desigualdades que tal sistema produz são constantemente
lidas por meio de outros mecanismos de interpretação, sobretudo aqueles que fazem
referência à classe social. Nesse trabalho pudemos explorar a visão de sujeitos acerca
das configurações atuais dos discursos raciais e debater suas perspectivas no sentido de
verificar possíveis interlocuções entre o relato dos sujeitos e o contexto atual das
relações raciais e possíveis impactos e transformações desse contexto presentes em suas
experiências. O exercício de análise sobre os discursos raciais que se fizeram evidentes
92
a partir dos relatos de experiência dos sujeitos entrevistados nos serve como uma forma
de evidenciar os enquadres em que se fundamentam as dinâmicas do preconceito racial,
visto que esse fenômeno se apresenta como um mecanismo que invisibiliza o caráter de
opressão histórico que tais discursos veiculam. Nesse sentido essa análise se propôs a
explicitar tais enquadres manifestos na trajetória dos entrevistados que se traduziram
nas categorias seguintes.
4.2.1. A persistência da inferiorização dos negros na sociedade
As trajetórias dos entrevistados apresentam fortes marcas de deslegitimidade e
inferiorização em relação àquilo que, longe de significar outra naturalização,
poderíamos chamar de suas condições reais de existência. Assim, fica evidente nas
análises que fazem de suas experiências a presença constante de um lugar a ser
alcançado, sobretudo quando o horizonte de vida se constrói pelo desejo de
reconhecimento. Tal lugar não lhes é concedido a priori, ele é distante e precisa ser
conquistado a partir de algum tipo de mudança frente a uma inadequação, seja ela
estética, moral ou intelectual. Dessa forma, assim como o racismo científico teorizou e
prescreveu um lugar natural de inferioridade e subordinação aos negros (Munanga,
2004) as práticas sociais atuais reinventaram as formas de reproduzir tal discurso.
Analisaremos, portanto as dimensões relativas a persistências de um lugar de
inferiorização e não reconhecimento dos negros a partir da prescrição sobre o corpo
negro, referenciada pelo ideal de branqueamento, assim como os padrões de
reconhecimento e superação impostos aos sujeitos em suas trajetórias. Por fim
apresentamos o que os sujeitos relataram como mudanças sensíveis nesse campo.
a) O corpo a ser alcançado
O padrão exibido pela perspectiva do ideal de branqueamento tem várias facetas
(Hofbauer, 2006; Domingues, 2002). A estética é aquela vertente que de forma mais
incisiva incide sobre os sujeitos na afirmação de sua inadequação desde o
reconhecimento e aceitação do próprio corpo, exigindo que seu reposicionamento social
seja marcado pela manipulação da materialidade de suas identidades. Dessa forma, o
93
reconhecimento positivo de traços e feições se dá referenciado por contornos
inalcançáveis e nas trajetórias desses sujeitos a emergência constante de um ideal
estético a ser alcançado é o estabelecimento de um desconforto e inadequação com o
mundo, refletido no próprio corpo como expressão daquilo que não pode ser
transformado. José, por exemplo, destaca como considerava essa inadequação e conta
como na infância o sentimento de ser feio, e por isso pior, o fazia desejar uma
transformação radical, a de ser outra pessoa, outro corpo.
“...mas eu tinha esse sentimento como criança, por isso que eu também me
achava feio, você entendeu, eu queria nascer diferente, eu queria nascer loiro,
branquinho, magrinho, eu ficava sonhando no ônibus assim quando eu ia nadar, minha
vó me levava pra nadar “nossa, eu podia entrar na piscina e sair igual o rapaz da
novela, magro, loiro e branquinho”(José, 27 anos)
O reconhecimento do corpo como belo, desejado e aceito é recorrentemente uma
das negações que viveram ao longo de suas trajetórias. Essas experiências de resposta a
padrões estéticos se expressam principalmente nas trajetórias das mulheres, que vivem,
como já mencionado, no dilema dos usos do cabelo, os limites da expressão do
reconhecimento da beleza aceitável. A manipulação do cabelo como um elemento
marcante da trajetória dos negros brasileiros surge como parte importante do processo
de construção identitária e é apontado por Gomes (2003) como presente desde a
infância. Destacando os conflitos existentes nos dilemas da manipulação corporal a
autora destaca que
Mesmo que reconheçamos que a manipulação do cabelo seja uma técnica
corporal e um comportamento social presente nas mais diversas culturas, para o negro, e
mais especificamente para o negro brasileiro, esse processo não se dá sem conflitos.
Estes embates podem expressar sentimentos de rejeição, aceitação, ressignificação e, até
mesmo, de negação ao pertencimento étnico/racial. As múltiplas representações
construídas sobre o cabelo do negro no contexto de uma sociedade racista influenciam o
comportamento individual. (Gomes, 2003, p. 44)
Na trajetória de Bruna a marcação de uma estética branca fica evidente pelos
constrangimentos que vive por decidir manter os cabelos cacheados. Os pais de Bruna
vivem uma relação inter-racial, a mãe é branca e o pai é negro. Ela e os irmãos
apresentam traços fenotípicos distintos que fazem alguns dos irmãos serem
identificados como “mais” brancos e outros como negros. Bruna “puxou” a família do
94
pai, se autodeclara parda e se descreve como tendo traços menos finos e cabelos
cacheados, características diferentes de sua irmã. Na família, desde a infância essa
diferença gerou muitas comparações. Bruna era tida como a menina que “ficou” bonita
com o tempo, enquanto a irmã, com os traços mais parecidos com os da mãe, sempre
“foi” bonita. De forma espontânea ela sempre se negou a alisar os cabelos por achar que
não combinavam com ela e essa postura com o próprio corpo, por mais que sustentada
por uma decisão segura, ocasionou momentos de conflito, indecisão e constrangimento,
assim como geralmente é enfrentar uma situação de caráter prescritivo.
“Ai eu lembro que eu saia com o F.(namorado) e tal, eu ia nesses lugares caros
ou em boates ou em restaurante chiques com a família dele (...) e eu não via ninguém,
casamentos, essas coisas, eu não via ninguém com cabelo anelado, e não era só porque
era branco não, tinha preto também, e o povo todo de escova, e aquilo me incomodava
sabe. Me incomodava porque eu achava que escova em mim ficava feio, que me
incomodava, eu não via ninguém de cachinho. Você vai nessas boates da Savassi, você
não vê ninguém, até hoje você não vê ninguém com o cabelo enrolado, aí teve uma
época que eu fazia questão de ir de cabelo anelado, ainda todo alto, porque eu falava
“então eu vou fazer diferente nesse lugar” aí você sente que o povo tá te olhando sabe.
Aí no início eu ficava constrangida mas sabe aquela fase do querer ser vista, aí no
início eu ficava morrendo de vergonha disso, de ser a única diferente do grupo, ou até
mesmo por questão de roupa né, a única com a roupa mais ou menos, aí depois eu já
achava legal ser a única com o cabelo diferente, já achava bom, mas isso também não
foi um processo fácil não...” (Bruna, 25 anos)
A questão do cabelo e as cobranças em se adequar as normas estéticas são uma
constante na trajetória de Bruna assim como nas trajetórias das mulheres negras, e desde
a infância ela já se deparava com o incômodo de ter que lidar com os penteados que a
mãe fazia.
“a maldita da trança, eu só ia com cabelo de trança pra escola, ia só com o
cabelo de trança (...) ela puxava o cabelo da gente de um jeito pra ficar liso e fazia
aquela trança ou fazia mil cachinhos pra ficar o tal do bunitinho né, o arrumadinho,
segundo ela, e que a gente achava também, e aquilo me incomodava demais, aquela
trança, aqueles coques. Não sei se eu ia gostar de ir com o cabelo todo anelado, todo
ouriçado, naquela época, eu acho que eu não suportaria o preconceito, porque tinha
menina que ia e sofria, mas aquilo me incomodava demais o jeito que minha mãe
prendia o meu cabelo.(Bruna, 25 anos)
Os problemas com o cabelo e a insistência em usá-los cacheados aparecem de
forma mais violenta e prescritiva na sua relação com a família do namorado. A sogra, ao
95
conhecer Bruna diz: “até que ela é bunitinha, ela só tem que dá um jeito no cabelo dela
né”, frase que lembra até hoje e que, apesar de violenta, a faz seguir determinada em
não se submeter ao que os outros acreditam ser mais adequado para ela.
De modo semelhante Simone vive a tensão frente a exigência do reconhecimento
da beleza a partir dos cabelos lisos.
“É muito mais difícil eu ter sucesso, chamar atenção, ainda mais no ambiente,
depende do ambiente né. Mas é muito mais difícil eu chamar atenção com o meu cabelo
assim, do jeito que tá agora...” (Simone, 26 anos)
“...então assim, se não tem cabelo liso é estranho, se não tem, se não veste, é
estranho, sabe” é aquilo ali, então assim, minha mãe é uma das pessoas que implica
com o meu cabelo muito, muito, muito, então assim, eu tenho uma amiga, a Ana. A Ana
chega, ela “nossa, você tem que ouriçar esse cabelo seu, você passa muito creme” ai
ela vai e meche no cabelo, ouriça todo o meu cabelo, ai eu volto pra casa o meu cabelo
tá super grande assim. Ai minha mãe: “nossa Simone, você tem que abaixar esse
cabelo” eu falo assim “mãe, isso é estilo também!” “Não, mas você não pode, o seu
cabelo tava tão bonito ontem!” Então assim, na minha casa, rola, é muito contraditório
assim sabe, e eu fico assim, eu não sei mas eu acho que minha mãe tá ganhando, minha
mãe tá ganhando por enquanto.” (Simone, 26 anos)
Mesmo tendo relações que valorizam a estética negra, as referências de outras redes
de relações, principalmente as familiares, reinstalam o padrão dos cabelos lisos não
como uma escolha possível para a manipulação do corpo, mas como a opção mais
consensuada de beleza, evidenciando que a branquitude permanece sendo a referência
de uma identidade e estética valorizadas. O alcance de um lugar aceitável no mundo
passa portanto pelas diferenciações raciais desiguais, que tem como orientação de corpo
valorizado o estabelecimento de um modelo branco a ser alcançado pela sociedade e por
seus sujeitos. A forma como a vivência do corpo surge na trajetória dos sujeitos
entrevistados, aponta que ideologia do branqueamento (Bento e Carone, 2002)
permanece repercutindo efeitos nos posicionamentos dos sujeitos através da construção
de práticas, de comportamentos, de padrões estéticos e psicológicos referenciados na
negação do reconhecimento dos negros.
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b) Os padrões de reconhecimento social
De forma talvez menos visível, o horizonte de superação de alguma
incapacidade ou o desejo de se igualar a uma referência distante perpassa todas as
trajetórias dos sujeitos entrevistados em âmbitos que extrapolam a dimensão estética,
mas que apresentam em seu cerne um ideal moral e intelectual branco como caráter
universal. Esse ideal representa uma gama de valores que se constroem pela negação de
todo atributo desqualificado e socialmente marcado como um lugar inferior, destinado e
representados pelos negros. Todas as entrevistas fizeram referência ou menção ao
afastamento de alguma realidade ou condição de vida referida como inferior. É
importante destacar que essa condição a ser superada e sua representação de
inferioridade é efeito do jogo de legitimidade social que privilegia determinadas
experiências e práticas em detrimento de outras, elegendo os lugares sociais que devem
ser socialmente valorizados pelos indivíduos (Elias, 1994). Dessa forma a perspectiva
de superação não significa exclusivamente o acesso de direitos negados, como
educação, condições materiais básicas ou acesso aos bens sociais de privilégio restrito.
Nesse sentido os espaços de valorização e reconhecimento social são
representados em oposição aos espaços de trânsito dos entrevistados sempre marcados
dentro da hierarquia social pela desqualificação de suas comunidades, família, gostos e
práticas. Na história de Rafaela percebemos o exemplo mais explícito do impacto
específico que a busca por reconhecimento, efeito da inferiorização dos negros, é capaz
de produzir. A condição econômica herdada da família, condição que posteriormente foi
relida por ela através também de atravessamentos raciais, sempre foi para ela algo a ser
superado, e a saída a ser trilhada passava pelo investimento nos estudos e pelo encontro
com um ideal de sujeito.
Ela tinha como exemplo a ser seguido as famílias e os filhos das patroas da mãe,
brancos em sua maioria. O investimento que Rafaela faz nos estudos acontece na
tentativa de negar e superar as condições familiares de pobreza, mas que também se
refletiam em um lugar social de subalternidade que sempre foi incômodo e desagradável
para ela. O convívio entre dois mundos sociais distintos, o universo das patroas e o
universo da família, deixavam evidente a ela que os modos de vida familiar eram
obstáculos a serem superados dada sua significação social de inferioridade. E assim o
97
acesso ao estudo de nível superior poderia significar um deslocamento de posição social
e a ascensão a outros bens e status, e não, necessariamente, o acesso a um direito.
“...eu entrei aqui (Universidade) pra apagar isso sabe, pra eu mudar de vida,
pra querer ser classe média, pra ter aceso a uma casa legal, a um carro, coisa que a
gente não tinha na época que eu era criança assim. Eu morava numa favela, eu não
tinha problema com isso lá na época, mas eu queria morar num apartamento, eu queria
ter um carro, eu lembro que eu falava assim, que eu queria trabalhar num emprego que
eu ia arrumadinha e voltava arrumadinha porque a minha mãe é faxineira, então a
minha mãe chega de um jeito, troca de roupa, e volta do jeito que ela foi, mas assim eu
queria ir com a roupa que eu fui, trabalhar com a roupa que eu cheguei, e voltar
cheirosa no final do dia.” (Rafaela, 28 anos)
Marcadas pela ordem moral e social da ideologia do branqueamento os efeitos
dessa posição de inferioridade, que marcaram suas referências de vida, foram constantes
em sua trajetória e tem impactos contínuos na forma como se percebe nos espaços onde
transita e na determinação das escolhas e conceitos que construiu durante sua trajetória.
Enquanto conversávamos sobre alguns sentimentos de incompetência e inadequação
que sentia na universidade, pergunto a ela se ela percebia isso em outros espaços.
Rafaela responde que
“Aparece muito, aparece em lugares onde as pessoas são diferentes de mim no
estereótipo mesmo né, dependendo ou não, eu não me sinto bem. Tem a questão da
roupa que às vezes se eu achar que eu não tô adequada, aquilo me incomoda
profundamente, eu não consigo sabe lidar naturalmente sei lá, mas assim, mais no
amplo social assim, porque trabalho, trabalho, eu trabalhava antes de entrar aqui. Eu
já trabalhei em loja, eu trabalhava fazendo chocolate, eu faço bem assim, mais eu
detestava, porque eu achava que era um trabalho super subalterno. Tipo as pessoas
chegavam eu tava de toca, suja de chocolate, mais uma vez a questão de chegar
limpinha e sair limpinha, e eu acho que isso me empurrou também pra fazer Faculdade.
Porque eu fui fazer chocolate, tipo, fazia bem, todo mundo elogiava, gostava, mas eu
não gostava da posição que eu tava ali assim, é muito mais uma coisa minha, de
algumas coisas que eu criei, mais baseada nessa história de vida ai, do que é legal, do
que você pode ter orgulho de falar que você faz, do que é valor ativo assim mesmo, mas
eu me sinto mal, me sinto inferior em vários lugares assim” (Rafaela, 28 anos)
Assim como expresso na fala de Rafaela, a menção a um padrão de
reconhecimento fica expresso, sobretudo na motivação de alguns dos entrevistados, que
assim como Rafaela, viram no ingresso ao ensino superior a possibilidade de alguma
superação e o convite a adequação ou o encontro com o reconhecimento. A
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escolarização em todos os níveis de ensino certamente é um direito social e deve ser
garantido a todos, e negros e negras devem sim, ter no ensino superior, uma perspectiva
de formação e crescimento. No entanto se esse espaço tem representado nas trajetórias
de sujeitos negros não somente o acesso a um direito, mas a possibilidade de negação de
uma origem racialmente localizada, é possível suspeitar que ele se constitui socialmente
como um espaço institucional marcado pela branquitude como elemento neutro e
universalmente representado.
A forma como o sonho pela universidade surge nas trajetórias dos sujeitos pode
significar a persistência da dicotomia de uma classificação social que marca lugares e
trajetórias negras no lugar hierarquicamente inferior, e assim permita a persistência da
desvalorização e desqualificação das experiências negras.
c) A eterna suspeição.
Estar no lugar possível de reconhecimento nem sempre significa o alcance pleno
da igualdade pretendida, e outro elemento que marca, sobretudo os momentos de
conquista desses sujeitos é a eterna suspeição sobre seu merecimento ou sua capacidade,
como fica retratado na fala de Rafaela que atribui suas boas notas a sorte ou ao baixo
nível da avaliação. Se aqui eles consideram que existem lugares predeterminados de
reconhecimento e prestígio social a serem alcançados, como por exemplo, ingressar em
uma universidade federal, fazer pós-graduação, ser inteligente, tirar boas notas, atingir
esses lugares não é movimento suficiente para alcançar o reconhecimento legítimo de si
e dos outros. Bruna conta uma história ocorrida em uma das disciplinas da pósgraduação que retrata esse dilema. Após trilhar uma trajetória acadêmica marcada pela
inserção em várias pesquisas, projetos e monitorias, ela hoje faz mestrado em um
programa com maior conceito da CAPES. Certamente por ter apresentado na seleção os
requisitos meritocráticos exigidos para esse nível de formação. No entanto o que ela
conta nos parece evidenciar a exigência recorrente de movimentos de superação por
parte de sujeitos negros, mesmo quando acessam lugares de prestígio social.
“...gente, quando eu entrei na sala de aula pela primeira vez e escutei aquele
povo todo debatendo eu me senti a pessoa mais burra do Mestrado. Falei assim “gente,
que tanto de pensador e de autor é esses que eu nunca ouvi falar na minha vida” e olha
que eu sou da área sabe. Ai aquela coisa, gente, eu preciso pelo menos entrar no
Wikipédia e saber que são esses caras. Eu anotava o nome, essas coisas. Então eu acho
que é no sentido mesmo de recuperar ou de tentar obter aquilo que eu não tive durante
99
algum tempo que passou sabe, e isso faz a diferença. (...) Tinha uns professores, tinha
um professor especificamente, que ele pegava no meu pé de um jeito do tipo assim, essa
questão, eu fazia o meu ofício de aluno direitinho, eu lia o texto, fichava, essas coisas,
ai na hora que eu chegava aqui, essa foi uma aula que me marcou bastante, pela amor
de Deus. (...) ai eu chegava aqui ai ele lia as questões: “Essa questão aqui é sua Bruna
você pode dá um jeito de melhorar porque senão você não passa na minha aula não.”
Porque, as minhas questões, eu sempre tive dificuldade até mesmo nessa questão do me
mostrar, me colocar em relação aos textos, essas coisas, eu sempre apontava questões
relacionadas ao autor, por exemplo, ai ele falou assim: “Essa questão aqui sua é prova
do professor colocar pro aluno e ir pro gabinete estudar, você pode fazer umas
questões mais ousadas e tal”. (Bruna, 25)
“eu sempre tentei buscar, nesses casos né, onde que eu via que o meu perfil não
tava dando conta, mudar um pouco mesmo, não sei se isso é certo ou se é errado, mas
me enquadrar nos padrões” (Bruna, 25)
A eficiência da produção de subalternidade do racismo brasileiro é abrangente e
cotidiana, acompanhando os sujeitos em todo seu percurso de vida desde a infância. Os
efeitos da subordinação subjetiva produzida pelo racismo são tão eficazes e perversos
que permitem que, os próprios sujeitos e também seu entorno social, lancem mão de
elementos que coloquem em suspeita as capacidades e merecimento de seu sucesso e
reconhecimento. Nesse sentido parece não existir dentro da estrutura racial brasileira um
fim ou limite no movimento de busca de legitimidade para sujeitos negros. Persiste nas
trajetórias a necessidade constante de superação e afastamento de alguma perspectiva de
inferioridade que possa incidir sobre suas trajetórias, assim como pontuado por Paulo,
que diante de uma trajetória de extremo reconhecimento sobre sua inteligência e
desempenho escolar, recusa de todo modo que os outros se refiram a ele como alguém
que superou dificuldade, pois o lugar de superação para ele significa a marcação da
inferioridade.
“tem hora que eu fico pensando assim, se eu fosse, eu acho que eu nunca me
coloquei como vítima, que pra mim seria muito fácil eu me colocar como vítima, eu
acho que eu tenho vários elementos pra que eu fosse vítima, e eu nunca me coloquei,
porque, eu não sei, eu acho que talvez a educação que minha mãe me deu que me
fortaleceu, não sei, não consigo explicar, então assim, no momento que eu não me
coloquei como vítima, que eu enfrentei os desafios eu quero passar essa mesma ideia
para os outros também” (Paulo, 25 anos)
100
“Eu não sei, eu não me vejo nesse lugar assim, apesar das dificuldades e tudo
mais, não me vejo alguém que tenha superado sabe, assim, fez parte da minha vida, não
vejo isso como um diferencial sabe, olha, ele venceu apesar das dificuldades. Acho que
todo mundo tem dificuldade, em alguns aspectos eu venci, em outros não, as pessoas
são assim, então por isso que eu não me vejo como super herói, uma pessoa que tem
uma coisa difícil e que venceu na vida, eu não me deixo me colocar nesse lugar de
vítima. Isso limita muito, eu sou alguém que viveu sabe e que a partir da vida eu to
conseguindo vitórias e derrotas, eu acho que lugar de vítima é o pior lugar que alguém
pode tá assim, eu acho assim, eu não me sinto pior ou melhor por ter conseguido o que
eu consegui. Consegui, sabe, se isso é bom ou ruim depende do parâmetro das outras
pessoas, as pessoas tiveram outras conquistas que eu não consegui, elas são melhores
que eu? Acho que não. Então esse lugar de super herói, de superação, acho muito lugar
de vítima sabe, e vítima enfim, não somos nenhuma Maria do bairro15 (...) enfim, não
dá pra ficar chorando, falando que a vida, pelo amor de Deus, não rola. (Paulo, 25
anos)
Rafaela por sua vez tinha na universidade um importante horizonte de
superação, mas viveu a aprovação do vestibular com pouca comemoração assim como
vive seus momentos de bom rendimento na graduação.
“quando eu passei, que eu tava muito confiante que eu ia passar em alguma
Federal, eu tentava várias Universidades Federais, eu não sei, eu acho que doía muito
mais não passar do que foi feliz passar, assim, eu fiquei feliz, eu chorei, que não é
novidade, mas o não passar era muito mais doido do que foi legal passar. Eu acho que
passar era tipo assim, passar é mais que sua obrigação, não passar é incompetência
total, é o atestado de incompetência, passar não né, já tava na hora né! Vem ai mais
uma vez a questão de não dar conta de, tipo, você foi competente, eba, vamos
comemorar isso, não.”(Rafaela, 28anos)
“eu não sei se eu faço o possível pra me enquadrar nesse ideal (estudante
universitário de bom rendimento acadêmico), mas não estar nesse ideal me incomoda
muito, e eu nunca tiro uma nota boa assim. Falando exatamente o que eu penso, porque
eu não acho que eu fui super capaz assim. Pra mim ou é porque tava fácil (a prova), ou
é porque eu tive sorte, essa coisa da capacidade é muito complicada pra mim assim,
tipo, às vezes, eu não sei, porque. É questão de sentir assim, porque racionalmente às
vezes eu penso, as pessoas às vezes vão fazer prova ai lê o texto 4, 5 vezes, tipo, eu não
15
Maria do bairro é a personagem principal de uma novela mexicana de mesmo nome. A história
dessa personagem é marcada pelo sofrimento, humilhação e lamentação que marcam a primeira fase da
personagem, que muito pobre, padece com a miséria de sua vida. A segunda fase da novela narra a
superação de Maria pela mudança radical de classe social, que, no entanto ainda é marcada por muitos
problemas e sofrimentos. Dessa forma a expressão “Maria do Bairro” acaba por significar em alguns
circuitos uma forma de satirizar posturas de lamentação ou inferioridade.
101
dou muito conta de ler o texto 4, 5 vezes, e faço uma prova. Então teoricamente é
inteligente e tal, mas em termos de sentir isso mesmo não sinto. Tipo, “ai, você é capaz
e tal”, não.(Rafaela, 28 anos)
Certamente essa é uma interpretação que surge desses relatos e não podemos
deixar de admitir que os movimentos de superação desses sujeitos tenham intensa
relação com posições de não aceitação de um lugar inferior prescrito aos seus iguais e
assim, não consideramos que o desejo de mudança seja em si indesejado, afinal é a luta
por igualdade de oportunidades e direitos que marcou todas as conquistas que os negros
puderam alcançar nessa sociedade. No entanto o que marca essa leitura são dois pontos.
O primeiro ponto se refere à própria necessidade de alcançar o “outro lugar”,
necessidade que marca a persistência de um campo de acesso a recursos sociais que não
lhes é garantido desde sempre como direito. O segundo ponto se refere aos limites que
marcam esse “outro lugar”. Limites esses ainda contornados por uma cultura
hegemônica em que os negros, assim como os atributos que os representam, se
encontram como aquilo que se deve negar na esfera do reconhecimento social. Assim
como nos aponta Junior (2006) esse processo pode ser lido como uma oposição
assimétrica cultural, que
De maneira geral, (...) corresponde a imputar ao Outro hábitos e costumes que
são em tudo diferentes daqueles do Eu coletivo. No campo semântico dessa forma de
desrespeito encontramos referências a modos de vestir, comportamentos, valores
morais, gostos, maneiras de falar, práticas religiosas, instituições políticas e sociais,
gosto musical e artístico etc. Em sua forma pura, a oposição assimétrica cultural
demarca uma diferença radical e inamovível entre o Outro e o Eu. Ou seja, o horizonte
futuro é a continuação da hierarquia estabelecida pelas narrativas que articulam a
experiência” (Junior, 2006, p. 69)
A reflexão de Junior (2006) reforça o elemento central, que a categoria “eterna
suspeição” evidencia nas trajetórias desses jovens. Qual seja a existência de um
horizonte de constituição do sujeito negro que se organiza hierarquicamente
subordinando tais experiências ao campo da impossibilidade, e que por isso fazem
persistir a desigualdade racial como um destino cultural e político a ser constantemente
repetido.
102
4.2.2. Algumas mudanças: Negros na Mídia - visibilidade e reconhecimento
Sendo ex-participantes de um programa sobre Ação Afirmativa a referência a
essas políticas não aparecem com centralidade nos relatos dos entrevistados em relação
a mudanças no contexto racial brasileiro no que diz respeito a inserção de negros em
lugares sociais de prestígio e poder. Eles reconhecem, sobretudo a importância desse
programa em suas trajetórias, mas não relataram como relevantes os impactos das
políticas afirmativas como um avanço ou transformação no contexto social mais amplo.
Em relação a universidade em que estudaram, por exemplo, o que prevalece é o relato
desse espaço ainda é muito marcado pela hegemonia branca e de classe média, média
alta. Os estudantes que ainda permanecem na universidade após a implementação da
política de bônus racial na UFMG tampouco relataram ter percebido transformações
significativas referentes ao público discente na universidade.
Em relação à aparente falta de mudança no contexto racial vivido pelos sujeitos
entrevistados e diante o quase inexistente deslocamento ou superação daquilo que
poderíamos nomear como o cerne do racismo, ou seja, a classificação social por meio da
classificação por raças e valoração negativas sobre as representações dos negros,
podemos evidenciar algumas pequenas mudanças no contexto social mais amplo que os
entrevistados apresentaram em relação a atribuição de valores aos negros.
A diferença dada ao tratamento da questão racial na sociedade é marcada quase
que exclusivamente pela referência a novas formas como os negros têm sido
representados na mídia. A presença de personagens negros com destaque nas
telenovelas é um apontamento reincidente na mudança da forma com que os negros são
publicamente representados. Araújo (2000) demonstrou por meio do documentário “A
Negação do Brasil” o lugar estereotipado e negativo ocupado pelos personagens
representados por atores negros. Ele destaca que na teledramaturgia brasileira os atores
negros estiveram relegados a papeis de escravos, empregados domésticos ou
personagens de caráter e moral duvidosa, reforçando a representação social do negro
como subalterno e inferior. Os sujeitos entrevistados nessa pesquisa, no entanto,
revelam que em seu cotidiano a presença de personagens negros com outros perfis
sociais tem significado transformações importantes nessa representação. A referência a
103
novela16 em que Lázaro Ramos interpretou o papel de galã foi apontada por eles como
um elemento de caráter inédito na nossa história que trouxe de forma pública um ator
negro em um papel com posição social geralmente não concedida a personagens negros.
Surge também como referência a divulgação da eleição da primeira Miss Universo
negra, a angolana Leila Lopes de 25 anos, que após ganhar o título de mulher mais
bonita do mundo fez repercutir na mídia um debate a respeito da raça da ganhadora do
prêmio.
No entanto a transformação a que fazem referência não diz da superação e
aceitação das novas representações que os negros tem tido na mídia brasileira, seja em
seus ciclos de relações ou mesmo na recepção do público em geral. Para eles, ter o
negro representado em outros lugares que não aquele comumente concedido aos pretos
e pardos na televisão brasileira é um elemento importante mas não muda radicalmente a
visão das pessoas sobre os negros. Para eles esse outro tipo de presença negra na
televisão, uma presença mais positiva, mais valorizada e menos estereotipada, significa
mais oferta de elementos que possam explicitar, a partir dos posicionamentos das
pessoas em relação a esses novos lugares, os discursos raciais que se reproduzem de
forma invisibilizada na sociedade brasileira. A partir dessa leitura Paulo nos aponta que
Mas na sua família assim nunca apareceu essa questão(racial)?
Aparece, acho eu percebo isso muito no discurso da minha mãe principalmente
assim, eu percebo que vendo televisão e tudo mais, a forma como ela se reporta a
certas situações, é visível o preconceito na fala dela e também o preconceito por ela
mesmo assim porque com certeza ela já viveu assim e acho que aparece bastante nas
falas, mas eu não sei de caso de violência racial e explícita na minha família assim,
mas sei por causa do discurso que está internalizado neles. (Paulo, 25 anos)
Que tipo de discurso assim que aparece?
Sempre colocando negro como inferior, tipo, nessa última novela, Insensato
Coração, foi fácil assim, “olha, como pode o Lázaro Ramos pode ser protagonista da
novela” então assim, você percebe que às vezes passa despercebido assim, mas percebe
que ali tem algo assim sabe, que negro não pode ter um status social maior, que sempre
tem que tá na classe subalterna, então essa visão de interiorização mesmo. (Paulo, 25
anos)
16
A novela em questão, Insensato Coração, foi exibida pela Rede Globo de Televisão entre janeiro
e agosto de 2011. Dirigida por Gilberto Braga e Ricardo Linhares, Lázaro Ramos interpretou André, um
jovem e bem-sucedido designer, que ocupava na trama o papel de galã.
104
Bruna também percebeu na novela um ensejo para a emergência de
posicionamentos da família em relação ao papel exercido por Lázaro Ramos na novela,
o que explicitou o discurso de alguns sobre o lugar que deve ser ocupado pelos negros,
mas para ela teve pouco ou nenhum efeito de mudança.
“É a tal da novela das 9, da Globo, com o Lázaro Ramos. Gente, o tanto de fala
preconceituosa que eu já escutei, que às vezes eu caço confusão, eu penso assim
“gente, mas o cara não tá nem vendo?”Tipo assim “Eu nunca vi, como é que coloca”
principalmente na família da minha mãe “como é que coloca um preto daquele pra ser
protagonista, ainda mais aquele tanto de mulher chegando perto dele?”Aí eu começo a
discutir, aí vira briga, aí tem umas coisas que eu tenho deixado um pouco de lado
sabe!(Bruna, 25 anos)
Simone é a única das entrevistadas que apresentou esse cenário de uma forma
um pouco mais otimista, sobretudo em contraste com seu delineamento no passado.
Para ela as questões sobre a inferiorização de grupos sociais têm ganhado importante
destaque na mídia, e sobre o racismo mesmo que de forma pouco expressiva ela vê
importantes transformações.
Você falou que tá bombando? O que tá bombando?
Até que agora o que tá muito bombante é a questão da diversidade sexual, nas
novelas e tal. A racial nem tanto, mas eu acho que com o passar do tempo isso começou
a aparecer, nem que seja de forma ruim, mas tá aparecendo. Por exemplo, tá
aparecendo mais atores negros nas novelas, não só no papel de serviçal assim, teve a
Taís Araújo como protagonista, tem esse cara agora na novela das nove aí, que é
designer. Ganhou prêmios e tal, ele é negro assim né e tal. Aí eu lembro uma vez numa
entrevista que o autor da novela disse assim “Eu pensei esse papel pra ele” eu fiquei,
“uai, pensou esse papel pro negro! Quem é o designer da empresa maioral, que ganha
prêmios, uai, é branco de olho azul. E que pega mulher? Cara, é inimaginável, um
negro bem sucedido e que pega mulher na boate, que troca de mulher. Gente, esse é um
branco, não é um negro. Então tipo assim, por um lado né, talvez tá bombante porque
eu to aqui também né, na Academia, então isso de uma certa forma, é um assunto que
aparece, porque no ensino médio não aparecia pra mim, nunca apareceu, na minha
casa nunca apareceu, sabe, tá bombante nesse sentido sabe, em relação aos
primórdios, que passo isso deu né.(Simone, 26 anos)
Por mais que a forma como essa visibilidade é apresentada não demonstre a
partir da fala dos entrevistados uma radicalidade na mudança em relação a como o lugar
dos negros é socialmente representado, essa nova visibilidade apresenta na perspectiva
dos sujeitos a possibilidade de inserir um ponto no debate racial que possa tensionar e
105
explicitar os discursos raciais. Paulo sintetiza de forma bem interessante o que foi
apresentado de outras formas pelos entrevistados.
“Eu tava lendo os comentários, depois que a Miss Universo Angola foi eleita a
mais bonita do mundo, eu fiquei assustado com os comentários que eu via assim.
Porque eu leio muito a Folha de SP, que eu acho um erro mas que ela me dá muitas
informações. (....) enfim, eu até postei ontem no facebook um blog que a mulher fez um
apanhado dos comentários assim. É de um nível de atrocidade e preconceito absurdo
assim, é por isso que eu penso, pensando em racismo, que não existe racismo no Brasil,
não existe até o momento que não apareça nada que coloque isso em discussão. É só
aparecer algo que o preconceito vem com toda força assim, e é impressionante os
comentários é impressionante o fato das pessoas não terem vergonha de expor tanto
preconceito assim, as pessoas se orgulham de certos preconceitos, assim “eu não gosto
de negro, isso é um gosto meu assim, eu não sou racista” então é impressionante como
ficou muito forte isso agora” (Paulo, 25 anos)
Se tomarmos o racismo como um sistema de classificação e hierarquização que
toma a construção de diferenças raciais como forma de subalternizar grupos sociais e
sujeitos (Guimarães, 2005; Munanga, 2004) pouco podemos dizer sobre mudanças
desse sistema de classificação nas trajetórias dos sujeitos entrevistados, mesmo que
estejam eles em posições de prestígio e destaque social pouco acessada por negros.
Assim como mostram as estatísticas sobre a desigualdade racial brasileira a taxa bruta
de escolaridade17 no nível superior de pretos e pardos, considerando jovens na idade
entre 18 e 24 anos, era em 2008, equivalente a 16,4%, sendo os jovens negros
universitários os representantes da menor faixa da população de universitários, com
parcela de 7,7% do percentual de universitários do país.
Como já discutido por Figueiredo (2004) a posição social de prestigio não
representa menores chances de viver sob a lente opressora do racismo e sob sua
constante suspeita. Dessa forma aquilo que no Brasil atribuiu significado à raça, a cor da
pele, os traços da negritude como cabelo e nariz servem ainda como símbolos da
discriminação existente (Guimarães, 2004a) colocando os traços fenotípicos como base
de sustentação e significação de inferioridade. Da mesma forma padrões de moralidade
e racionalidade brancas ainda são as referências sociais nas quais sujeitos e instituições
ancoram seus padrões de avaliação e pertencimento.
17
Este indicador expressa o percentual de matrícula total em determinado nível de ensino em
relação à população na faixa etária teoricamente adequada para frequentar esse nível de ensino. (Relatório
Anual das Desigualdades Raciais no Brasil; 2009-2010)
106
Sob outras linguagens que transitam entre o explícito e o oculto, no uso da
categoria raça, as representações sobre os negros se apresentam nas trajetórias dos
sujeitos entrevistados como ainda marcadas pela inferioridade desse grupo social. Dessa
forma permanece a invisibilização da valorizada dicotomia branco e negro, em que o
lugar de sujeito desejável, mesmo que não nomeado, ainda é, pela ideologia do
branqueamento um lugar branco.
4.3.
Leituras das dinâmicas e movimentos de identificação do preconceito
A reflexão que apresentaremos a seguir resultou do movimento de compreender
como se dão nas trajetórias dos sujeitos entrevistados as leituras e concepções sobre o
preconceito racial. Para isso exploramos no conteúdo das entrevistas o que surgiu como
suas visões e impressões sobre o preconceito racial e os impactos desse fenômeno em
suas trajetórias. Nessa análise buscamos não somente o movimento de apresentar as
visões dos sujeitos mas articular essas percepções às dinâmicas do preconceito racial no
momento atual do debate racial brasileiro para enfim, confrontarmos com o que tem
sido apresentado na literatura como sofisticações de dinâmicas do preconceito racial
fruto das transformações e visibilidade das práticas de enfrentamento ao racismo
(Fleury e Torres, 2007).
Dessa forma categorizamos os relatos recorrentes dos sujeitos que apresentaram
a possibilidade de abstração dos mecanismos de naturalização e invisibilização do
preconceito racial que acabam por ocultar a hierarquia racial subjacente ao racismo
Sendo um fenômeno que parte de sua própria invisibilidade categorizamos as falas dos
entrevistados a partir de dois pontos. O primeiro se refere às formas de identificação do
preconceito racial e o segundo relativo suas concepções e leituras sobre o preconceito
racial.
107
4.3.1. Movimentos de racialização das trajetórias e experiências: identificação
do preconceito racial a partir da formação teórica e convivência com o
grupo de apoio
A possibilidade de partilhar as experiências em um grupo de apoio formado por
pessoas que compartilham das mesmas realidades é apresentada como fundamental para
a ressignificação de suas experiências e identificação dos efeitos do preconceito racial.
Nesse sentido os entrevistados afirmam que a identificação com outras trajetórias
permite a construção de uma leitura coletiva e não mais individualizada daquilo que
viveram como humilhação ou inadequação. Dessa forma passam a compreender dentro
de um contexto mais amplo de lógicas sociais aquilo que viviam no âmbito da
individualidade. A experiência que tiveram no programa Conexões de Saberes se
mostra, nesse sentido, marcante para todos eles como expresso na fala de Paulo:
P: Eu acho que a própria convivência, acho que pelo fato de reunir pessoas com
o mesmo ideal, com a mesma questão a ser discutida é um elemento assim porque
querendo ou não a Universidade ela é diversa também, então tem várias pessoas então
ficando bem espalhadas, no momento que você reuni várias pessoas com o mesmo
objetivo isso sai produtos bem interessantes, os textos, eu acho que o aceso a textos que
eu não conhecia, acho que as discussões, acho que tudo assim, acho que as conversas e
algo mais, ouvir as histórias alheias é muito interessante também, então acho que
foram vários elementos, que toda a estrutura formada em cima de um Programa,
ajuda.(Paulo, 25)
A importância de um grupo de apoio não se resume, entretanto a um momento
pontual. A referência a importância do coletivo na participação no Programa Conexões
de Saberes e seu consequentes resultados de transformação e ressignificação sobre as
formas de se posicionar no mundo foram constantes mas, na ausência desse espaço de
troca, as possibilidades de sustentar uma postura crítica em relação ao preconceito racial
se torna um exercício muito mais difícil, assim como exposto por Simone ao relatar os
problemas em lidar com os padrões estéticos brancos impostos pela mãe sobre seu
corpo e cabelo.
“eu acho que isso é muito importante sabe, se eu tivesse um grupo que eu
frequentasse sabe, que me estimulasse, sei lá, talvez eu nem me importaria tanto assim,
108
minha mãe não venceria o combate entendeu, mas eu não acho que não é só ela, minha
mãe é a voz da sociedade, entre aspas assim, eu penso, da maioria...”(Simone, 26 anos)
“você tem um grupo de apoio assim, que tá apoiando a sua estética mesmo,
assim, e eu e acho que não é só informação, porque não é só informação, se fosse só
informação eu seria até emancipada, entre aspas, bem entre aspas, se fosse informação
eu seria emancipada cara”(Simone, 26 anos)
Ricardo também destaca a necessidade que vê hoje de ter um grupo de
solidariedade que permita o trânsito e debate de discussões sobre as experiências
relacionadas à negritude.
“Eu acho que a falta de um grupo de solidariedade, um espaço de discussão,
acho que principalmente isso. Por exemplo, eu achei legal que eu conheci umas
meninas numa igreja aí, igreja católica, que abriu uma discussão sobre racismo, e
evoluiu até, eu acho que um lugar, por exemplo, uma igreja que sustenta diversos tipos
de preconceitos, mas mesmo assim abre brecha pra uma discussão como essa, eu vejo
que é o que falta é isso, é um grupo solidariedade, é um espaço pelo qual as pessoas
consigam dialogar sobre essas coisas, e acho que falta é isso, em casa você tá sozinho
né...” (Ricardo, 27 anos)
A importância da vinculação ou possibilidade de estabelecer relações em um
grupo ou coletivo que forneça apoio, troca e solidariedade no estabelecimento de
movimentos de desnaturalizações nas trajetórias dos indivíduos, reforça o fato de que o
preconceito age sobre o a construção subjetiva da autorrepresentação, produzindo o
isolamento das experiências individuais do contexto de produção social ampla e
histórica. Ou seja, o efeito de naturalização do preconceito se efetiva pela atribuição de
um caráter individual àquilo que se relaciona com produções sociais coletivas. Assim o
valor das vinculações coletivas se apresenta como uma das formas de produzir leituras
sobre as dinâmicas de naturalização do preconceito que incidem prioritariamente pela
afirmação da centralidade do indivíduo na leitura das relações sociais.
Dentro daquilo que os sujeitos identificam como elementos importantes no
processo de identificação do preconceito racial em suas trajetórias surge também como
unanimidade a referência ao acesso e contato com a produção acadêmica relativa ao
racismo e ao preconceito racial. A partir desse contato construíram leituras dessas
dinâmicas que possibilitaram mudanças em suas vidas, identificação dos efeitos do
109
preconceito e deslocamentos na forma como se veem no mundo atualmente, assim
como explicitado por Bruna:
“Quando eu tava no Ações Afirmativas, isso foi muito bacana, as leituras de
texto, era aquelas coisas, você lê o texto “nossa, olha eu aqui gente, nossa realmente,
da pra mudar isso” é uma coisa boba, boba mas séria ao mesmo tempo né. É a questão
do cabelo, da fisionomia mesmo da gente, gente, eu fiz um álbum de fotos pra
presentear meu namorado há algum tempo atrás, há uns dois meses, eu peguei foto
desde o início. O tanto, isso me fez refletir bastante, o tanto que eu vi o quanto que eu
mudei, em termo mesmo de fisionomia, de características, de vestir, sabe, é assim, a
minha irmã que fala muito isso, e eu acho que ela tá se descobrindo agora, mas todo
mundo tem seu tempo né, assim, antes eu vinha aqui pra faculdade só com o cabelo
enrolado e de coque, nossa, eu morria de vergonha de ficar com aquele sarará solto e
tal, e assim, no Ações e até mesmo aqui no Conexões, isso ajuda a gente a ir se
descobrindo. É o que a gente escuta mesmo gente, eu to repetindo o que eu já li, o que
eu escutei.”(Bruna, 25)
Rafaela também apresenta a importância de uma formação teórica sobre a
temática.
O que você acha que dessas experiências contribuíram assim, na sua trajetória,
se você tivesse que elencar algumas coisas?
Eu acho que no Conexões tem a ver com formação teórica mesmo assim, que a
gente teoriza sobre as coisas e vivencial também né, estar no Conexões, eu acho que me
proporcionou estar na UFMG, porque até então tava muito difícil, eu tava aqui mas eu
não era daqui, esse mundo não era meu, por mais que eu quisesse participar desse
mundo como ele era, porque eu queria mudar, eu acho fui vendo que isso não era
possível assim, não é tão simples assim, mas tem que nomear as coisas ainda, por isso
que eu sofria tanto, porque eu tava aqui. E o Conexões me proporcionou tá aqui porque
no Conexões tinham pessoas que viveram, que viviam as coisas parecidas com o que eu
vivia assim, aqui também que eu descobri que eu era parda, até então eu achava que eu
era branca, e aqui que eu aprendi que essa questão do meu cabelo não é porque ele é
feio, quer dizer ele pode ser até feio, mas ele é feio porque ele é um cabelo crespo, e
tinha esse monte de gente aqui na UFMG sabe, então eu acho que o Conexões me fez
estar aqui na UFMG também.”(Rafaela, 28 anos)
Você falou da formação teórica, o que você acha que foi importante nessa
formação?
Foi tudo, foi entender que as coisa são construídas, foi entender um monte de
lógicas que regem nossa sociedade, teoricamente mesmo, e que eu nunca tinha visto
isso em outros lugares, e eu acho que eu não teria tido oportunidade de ver no curso da
forma com que a gente vê aqui, mesmo fazendo esse monte de matéria em Psicologia
social que eu fiz, eu não teria no curso de Psicologia né como ele é hoje, a
oportunidade de ter visto e entendido um monte de coisa que eu vi e entendi
aqui.(Rafaela, 28 anos)
110
O acesso a esse recurso pode parecer esperado se tratando de jovens que
participaram de um programa de Ação Afirmativa, que dentro de suas propostas tem
como objetivo a formação acadêmica e política a respeito da temática. Entretanto o
valor dado ao acesso ao produto acadêmico das temáticas raciais apresenta como
sentido não só a compreensão e conhecimento sobre as lógicas do racismo, mas
sobretudo, insere legitimidade na nomeação de suas experiências. Dessa forma o acesso
ao conhecimento teórico e conceitual produzido por intelectuais engajados no
enfrentamento ao racismo se mostra como uma forma de vincular suas experiências a
uma produção discursiva socialmente valorizada. Essa valorização possibilita que esses
sujeitos sustentem e legitimem aquilo que anteriormente ao contato com a literatura
aparecia em suas trajetórias como uma suspeita ou inquietação pouco autêntica ou
verídica.
“Acho que assim, acho que o conhecimento ele vai sendo ele vai sendo
adquirido passo a passo assim, entrar na Universidade com certeza abriu muito a
minha cabeça para discussões que eu já pensava, mas que eu não tinha elementos o
suficiente para pensar muito a respeito, entrar em no Conexões e Saberes ajudou muito
a pensar na questão racial assim, que era uma questão que na graduação quase não há
essa discussão e na Faculdade em si também não, então isso possibilitou pensar muita
coisa que eu não tinha aceso, participar do Conexões possibilitou que eu tivesse um
aprofundamento, Educação sem homofobia e do Conexões também, um
aprofundamento em relação à sexualidade, então com certeza, participar desses grupos
de discussão, esses grupos de extensões aqui na Universidade me ajudou muito assim,
sem essa ajuda eu não teria aceso a essas discussões.”(Paulo, 25 anos)
Podemos perceber que o esse movimento que permite a identificação do
preconceito e de seus impactos se mostra pelo acesso a recursos que permitem a
racialização das experiências e trajetórias desses sujeitos. Movimentos que deixem
explícitos os discursos em que a subalternidade dos negros seja interpretada como efeito
de classificações que o preconceito invisibiliza e naturaliza. A legitimidade do
conhecimento acadêmico sobre as questões raciais associada ao compartilhamento de
experiências comuns com um grupo de apoio parece ser o exercício que possibilitou aos
entrevistados inserir suas trajetórias no registro crítico sobre as relações raciais e jogar
111
luz sobre inquietações e conflitos que viviam em relação a lógica hierárquica que lhes é
constantemente apresentado como natural.
José resume de forma interessante a complexidade desse movimento no trecho
seguinte:
E o que faz você ter certeza José, de que aquela situação foi preconceito. De que
não é era uma impressão sua?
Pergunta difícil, acho que isso é uma pequena cereja do bolo, o bolo já tá lá,
digamos assim. Toda a relação ela já tá concebida em muitos espaços, na televisão,
hoje a gente já tem um pouco mais de pessoas negras, de matrizes africanas nos
programas, mas olha pra você vê o que eu to falando, um pouco mais né, então você vai
assumindo essa relação em desigualdade, você vai percebendo que isso passa não só
por uma relação visual, uma imagem, uma fala, mas também por olhares, nós nos
manifestamos de diversas formas né. Talvez essa seja uma forma que mais, entre aspas,
sutis, mas ela existe, e em cima de todas essas relações você pode sim se sentir ofendido
por um olhar, talvez você não possa provar mas eu acho que você tem direito de falar
que não tá se sentindo bem com a forma do olhar né, agora, a forma que você lida com
o olhar também. Depois eu fui aprendendo né como que você lida com esse olhar, você
vai ficar calado depois desse olhar ou você vai se posicionar, você vai fazer a pessoa
conflitar esse olhar dela pra que ela também reconstrua esse jeito dela, e aí que passa o
Conexões. Que foi o momento assim que eu coloco transformador, porque o Conexões
coloca os conflitos na mesa, ele coloca os conflitos na mesa, se aquilo ali tá incompleto
pra você, se você tá pensando um pouquinho, se você tá um pouquinho em conflito, o
Conexões com todas as relações que ele proporciona, não só acadêmica, de texto,
teoria, tal, tal, tal, mas também os testemunhos das pessoas, a relação com o campo,
lidar com a cultura negra em outros espaços e com outras culturas também
consideradas à margem da sociedade, isso faz com que você olha praquilo. Você fala
“não existe não e vai embora” ou você acorda, olha praquilo e fala “é, não é igual,
não é igual pra todo mundo, não é justo ainda, tá muito longe de ser justo” e aí você
começa a se colocar “onde que eu to? Eu to no lugar onde aponta pra essas pessoas e
fala que elas tão meio à margem ou eu também to à margem?” Entendeu? Então os
conflitos começam a aparecer mais claramente ou escuramente pra você, então eu acho
que por isso que o Conexões foi tão forte, não porque ele é um programa bonzinho,
legal, porque ali tá realmente bumbando os conflitos, os conflitos que passaram por
você e tão passando também por você, no momento a gente tá pensando nisso né, e aí
essa questão racial ela bateu mais forte em mim né com esse lidar com o grupo, com
esse pertencer, ouvindo as outras pessoas, a trajetória, a história, ouvindo o que
aconteceu com elas, eu comecei a nomear os meus conflitos, a nomear os problemas
dessa trajetória minha desde da infância, o que eu pensava, talvez era porque só era
gordo, não, era gordo e tinha uma característica também que pra muitas pessoas era
uma característica negativa, que é ter características físicas de negro, que é a pele, o
nariz, o cabelo. Aí você começa a nomear mais as coisas que você viveu, por isso que
eu coloco o Conexões como fundamental, eu pude nomear experiências que antes eram
experiências assim só conflituosas, não sabia como nomear o que eu tava sentindo
né.”(José, 27 anos)
112
O preconceito racial é um fenômeno que tem como efeito a naturalização e
invisbilização das hierarquias raciais. Dessa forma sua manifestação compreende um
movimento de impedir a localização dos limites de nossa percepção da realidade (Prado
e Machado 2008, pág. 67). Através de sua capilaridade no tecido das relações sociais
tomamos o preconceito racial como um fenômeno que se apresenta com uma
regularidade social (Elias, 1994, pág. 23) que prescreve as relações entre os indivíduos
efetivando a não articulação dessas relações com o caráter contingente, histórico e
ideológico da produção de hierarquias sociais. Dessa forma a leitura daquilo que se
expressa como natural e cotidiano na vida dos indivíduos requer um complexo
movimento de identificação da subordinação e inferioridade que recuse o caráter natural
das dinâmicas que orientam essas relações, e permita inseri-las em um contexto no qual
a produção de hierarquias se relacione com efeitos de opressão histórica. Assim a
partilha de experiências em um grupo de apoio e o contato com a legitimidade da
produção intelectual negra reforçou em suas trajetórias a possibilidade do exercício de
identificação e nomeação do preconceito racial como produto dessa relação.
4.3.2. Leituras das dinâmicas e expressões do preconceito racial: O passado e
presente das trajetórias
A partir dos movimentos de identificações e nomeação que os sujeitos fazem do
preconceito apresentamos a categorização de suas visões e leituras das dinâmicas do
preconceito racial, seus impactos e expressões.
Nas visões dos entrevistados certamente se percebe um destaque dado à
mudanças significativas nas expressões do preconceito racial. Essa mudança fica
evidente, sobretudo pelas recorrentes comparações que realizam com seu passado e
também com a história pregressa dos pais, quando no caso um desses é negro. A
perspectiva de comparação temporal foi fator constante nos relatos dos sujeitos sobre as
condições do tratamento dado a questão racial no Brasil e o movimento de temporalizar
as nuances de expressão do preconceito pôde revelar especificidades dessa dinâmica.
Em suas trajetórias a prevalência de relatos de violência racial explícita ou
atitudes relacionadas à inferiorização a partir do uso evidente da categoria “negro” é
localizada como presente majoritariamente na infância. Certamente que no decorrer de
113
sua socialização os sujeitos desenvolvem maior sensibilidade aos consensos sociais e as
expressões de seus pensamentos e ideias vão se atualizando e adequando aquilo que é
considerado aceito socialmente e dessa forma é mesmo de se esperar que crianças,
socializadas em um ambiente onde a raça é lida no registro da inferioridade, expressem
de forma mais explícita aqueles discursos que circulam ao seu redor. Pesquisas sobre
estereótipos raciais com crianças tem demonstrado essa dinâmica de forma consistente
(Fazzi, 2004). No entanto essa não parece ser a principal justificativa da diferença
temporal apresentada pelos sujeitos, visto que em sua grande maioria a violência racial
explícita que relatam na infância não foi proferida ou tiveram como atores centrais
outras crianças. Em sua maioria relatam a presença de adultos ou adolescentes como
atores nessas cenas.
Paulo por exemplo relata um único episódio conflituoso na infância relacionado
à sua raça, do qual ele inclusive não se lembra. A história foi contada pela mãe e o
episódio aconteceu quando ele era criança e estava na piscina do condomínio onde o tio
morava. Sua mãe ouviu a solicitação de um morador do condomínio para que ele se
retirasse da piscina, e segundo o que a mãe conta, não havia nenhum motivo aparente
para isso, o que a fez pensar que o pedido do morador tinha como ensejo o fato de Paulo
ser negro. Após esse episódio Paulo teve a primeira e única crise asmática de sua vida.
Além desse ocorrido, ele não relata nenhum outro episódio relacionado a cor de pele em
sua trajetória.
“foi apenas nesse episódio, pensando nas minhas memórias mesmo assim, eu
particularmente eu não me lembro de nada, não lembro de nada diretamente há mim,
talvez piadinhas ao redores e tudo mais, mas ao que me afetasse diretamente não, eu
não lembro assim, não lembro de ninguém falando algo espontaneamente
assim.”(Paulo, 25 anos)
A ausência de percepção de Paulo em relação a efeitos do preconceito em sua
trajetória demonstra a complexidade de identificação do preconceito racial como um
fenômeno presente nas relações e aceitar de antemão esse dado como realidade limita a
compreensão dos desdobramentos do preconceito para além das vivências de
discriminação. Podemos afirmar que na ausência de vivências de discriminação racial as
trajetórias de sujeitos negros não são marcadas pelas dinâmicas opressivas do
preconceito racial? Afirmar essa percepção sem cuidados e crítica pode significar,
114
sobretudo o privilégio da leitura do preconceito a partir das formas consideradas mais
tradicionais de racismo e invisibilizar a violência que a classificação racial brasileira
produz.
Seguindo a mesma tendência os outros entrevistados contam sobre uma maior
prevalência de episódios motivados por preconceito “explícito” e “clássico” quando
crianças. Aqui a dimensão clássica se dá pela clareza com que a inferioridade dos
negros ou superioridade dos brancos era apontada nesses episódios, seja a partir da
intenção do autor da situação seja pelos efeitos do preconceito nos próprios sujeitos.
José por exemplo relata a prevalência constante de preconceito racial mais explícito na
infância do que na adolescência.
“então esse tipo de “brincadeira” que eu to falando, eu nunca tive, digamos,
uma atitude de racismo, tirando essa que eu já citei, na infância, depois na
adolescência uma atitude de racismo assim super aberto “você é isso, isso e isso”
apontando né, normalmente é uma cosia mais velada, em cima de uma brincadeira, de
uma ironia, como eu citei dessas questões físicas e os olhares né, os olhares que a gente
percebe na faculdade, às vezes em certos ambientes a gente percebe esse olhar.”(José,
27 anos)
A vivência a qual José faz referência se deu quando criança junto ao grupo de
coroinhas de sua igreja. Ele conta que o grupo de coroinhas mais velhos, adolescentes,
puxavam constantemente seus cabelos, que na época matinha grandes e encaracolados.
“aquilo era uma tormenta, uma dor física e uma dor psicológica, tipo assim
“você tá abaixo, olha o seu cabelo” entendeu, naquele momento eu não queria ser
negro, não queria, eu queria me transformar, ser outra pessoa, entendeu, então naquele
momento eu não me assumia, eu nem me culpo por isso, eu tinha 11 anos pô, eu queria
sair dalí, ser diferente, para as pessoas me aceitarem, entendeu.” (José, 27 anos)
Bruna por sua vez conta das brincadeiras na infância com um primo negro de
pele bem escura.
“...quando a gente era pequeno a gente ficava brincando muito com ele “nossa
senhora, tá de noite, o Juliano sumiu” e é umas coisas que depois que você cresce que
você fica vendo o tanto de maldade que tinha nisso, o tanto que é perverso, hoje em dia
ele se dá muito bem com isso, mas quando você é pequeno você faz, não vou dizer que é
na inocência, mas você faz umas coisas porque todo muito faz sabe...” (Bruna, 25 anos)
115
A perspectiva de comparação temporal também se dá na referência que fazem as
diferenças de socialização que seus pais ou familiares mais velhos tiverem em relação
às questões raciais. Essa socialização que permitia e aceitava de forma mais explícita a
afirmação de um lugar subalterno aos negros é colocada no passado, sendo que a
diferença geracional é fortemente marcada como um dos fatores que marca a presença
de um preconceito mais explícito e por isso mais arraigado nos discursos e práticas das
gerações anteriores. Bruna conta que em sua família as experiências em relação
negritude do pai sempre foram marcadas por muita violência, dimensão do racismo que
ela e os irmãos não viveram com a mesma forma e mesma intensidade.
“eu escuto muito relato, o meu pai, se você sentar pra conversar com ele você
não acredita nas coisas que ele te conta e que ele vivenciou na escola sabe, e meu pai
assim, (...) mas as coisas de preconceito que ele conta que ele sofreu era muito mais
sérias que eu não vivenciei porque os tempos mudaram também e tal, mas as coisas que
ele conta é coisa de me deixar horrorizada sabe, que eu acho que em vista do que ele
viveu eu não vivi nada sabe, era do tipo “nossa senhora, preto não devia tá aqui, você
devia tá lá fazendo não sei o que, pra que você tá gastando dinheiro do seu pai
estudando seu preto” sabe, essas coisas assim, isso por parte dos professores, dos
alunos, ele conta que sofria muito...” (Bruna, 25 anos)
“Eu acho que é porque sem dúvida ele sofreu demais com isso assim sabe,
porque ele sofreu demais, (...) a gente (os filhos) já aprendeu a cortar essas coisas
sabe, falou do meu cabelo, “mas eu não te perguntei”, “nossa, mas seu cabelo tá feio”
“ah, brigada, mas não tem problema não, quem precisa tá gostando tá gostando”, mas
é porque eu acho que é porque ele sofreu muito com isso e quando ele conta isso pra
gente a gente vê que, nossa, a gente não teve isso, não teve sabe...”(Bruna, 25 anos)
Essa mesma socialização que é colocada no passado incide sobre os discursos
mais explícitos que as pessoas mais velhas demonstram ter sobre os negros. Os
entrevistados relataram que na relação com os familiares é prevalente a afirmação de
condutas e posturas racistas e preconceituosas. Tal elemento inspira maiores
dificuldades que essa geração tem em lidar e aceitar expressões positivas da negritude
não referenciadas por um ideal de embranquecimento ou pela afirmação da diferença
como um valor social positivo. Simone que vive constantemente o dilema de dialogar
com a família sobre a diferença como riqueza e não como desigualdade, relata dois
acontecimentos elucidativos daquilo que ela considera como uma questão de criação em
116
contextos sociais e históricos distintos em relação à aceitação de expressões identitárias
negras.
“eu lembro uma vez que ela (mãe) foi ao Banco do Brasil, ela chegou em casa
da cidade, ela foi no Banco do Brasil e falou assim “Simone, você não acredita o que
aconteceu no Banco do Brasil, você não acredita a pessoa que tava atendendo no
Banco do Brasil, ela tava com uma roupa, sabe aqueles panos que você põe, sabe
aqueles pano de chão, aqueles tecidos? É linho na verdade. “E com o cabelo desse
tamanho, todo espigado, você tinha que ver a mulher que tava no Banco do Brasil
atendendo” eu falei assim “mãe, tipo assim, isso é estilo assim, isso tem a ver com o
estilo dela, mas tem a ver com outra forma de se inserir no mundo.”(Simone, 26 anos)
“a minha tia, por exemplo, fala assim “há não, eu não gosto de preto, não tem
jeito, eu não gosto de preto, mais eu adoro o Martinho de Vila, eu amo o Martinho da
Vila, mas não gosto de preto” eu falei “Tia que isso, qual que é o problema, é uma
pessoa como outra qualquer” “não, mas eu não gosto, pode falar, pode falar que é
politicamente correto, eu não gosto, na verdade eu não gosto, eu não quero, nunca me
relacionaria assim, pronto” entendeu, por mais que eu fale...”(Simone, 26 anos)
Dessa forma é perceptível nos relatos que os entrevistados percebem o contexto
atual que vivem menos aberto para expressões mais explícitas do preconceito racial,
estando elas prevalentes na forma como os sujeitos socializados nas gerações anteriores
encaram o lugar social dos negros. Essa constatação de maior violência nas expressões
do preconceito racial não se mostram totalmente válidas quando nos aproximamos dos
relatos que os entrevistados apresentam fora da perspectiva de comparação temporal.
Quando relatam o efeitos do preconceito racial na ausência de uma tendência de
comparação temporal a “sutileza” e sofisticação não é o que marca a forma como os
relatos surgem e as expressões preconceituosas aparecem de forma tão explicita quanto
aquelas que antes afirmaram estar localizada na infância ou na socialização dos pais.
Simone, que reconhece maior abertura para expressões do preconceito em um passado
em que o debate era menos público, relata duas situações em que a violência do
preconceito racial como um mecanismo de subalternização e humilhação dos negros
aparece em sua história recente.
“Foi num dia, era uma obra ali perto do Minas Shopping, ai tinha, sei lá, um
cara, sei lá o que era, ai tava passando, saí do metrô do Minas Shopping, tava
passando pra pegar o 50, ai ele falou assim “bom dia” ai eu não respondi sabe, não, eu
nem vi quem falou bom dia e continuei seguindo “bom dia princesa” aquelas coisas
“bom dia princesa” ignorei. Eu sempre ignoro entendeu “bom dia princesa” ai repetiu
117
“bom dia” de novo, “bom dia” ai na terceira vez falou assim, eu não me lembro qual
que foi a expressão mas foi: “não sei o que macaca!” Então não precisa macaca,
alguma coisa assim, eu não me lembro qual foi a primeira frase mas tinha esse vocativo
assim, macaca, entendeu, ai eu fique assim gente, eu fique assim, como é que pode,
entendeu, mas é tipo assim, isso é usado pra ofender, pra deixar você lá em baixo
mesmo sabe...”(Simone, 26 anos)
Na minha família é muito forte assim o preconceito, principalmente eu e meu
irmão assim, sabe, o meu irmão assim, se ele quer me ofender ele fala negra, preta, etc
e tal, isso é muito forte, então assim, a estratégia que ele usa pra me colocar sabe assim
por baixo é isso assim”(Simone, 26 anos)
Bruna também relata as expressões de um preconceito muito explícito na forma
como o irmão mais novo se relaciona com a família e colegas.
“...meu irmão, ele tem 16 anos, e ele, nossa, e essa questão, todos os
preconceitos que você imaginar ele aponta sabe, aquela coisa, de mulher não serve pra
nada, nossa, quando eu tirei carteira foi um horror “nossa, mas você conseguiu tirar
carteira? Eu nunca vi mulher ficar dirigindo” isso me incomoda mas não sei se é mais
pra me irritar mas isso eu falo muito com minha mãe, que tá ligado a ela passar muito
a mão na cabeça. A questão do preconceito de raça mesmo, pra ele é muito forte, do
tipo, nossa, eu quase morro quando ele fala isso “eu não fico com menina preta não,
você tá ficando doida?” Eu olho assim pra ele, sabe, e eu sou muito ignorante, então eu
já começo a xingar, eu já tentei conversar muito então quando ele fala umas coisas
desse tipo “Nossa, olha ali, você tá doida, olha o cabelo daquela menina!” ou vira pro
meu irmão mais novo, o meu irmão mais noivo ele tem o cabelo mais crespo, ele é claro
mas tem o cabelo mais crespo “Vocês daqui de casa tem cabelo tudo ruim e que não sei
o que” e começa a ficar falando umas coisas dessa.(...)Tem uma menina na escola dele,
que eu até conheço, que a gente chamou ela pra ser até catequista sabe, porque a
menina é uma gracinha de pessoa mas na escola essa menina sofre um preconceito, e
meu irmão é um deles, de todos os sentidos, ela assim, ela é gorda, bem gorda, ela é
negra, ela não tem o hábito de arrumar, eu não sei se é desleixada, a menina tá com 16,
17 anos, vai com a roupa rasgada, sabe essas coisas que aí, não sei, aí o meu irmão
pega no pé dessa menina de uma forma que aí quando eu to perto dele que a menina
chega pra conversar eu fico até com vergonha. (...) ninguém aguenta ele lá em casa
não, a gente acha que é fase, a gente reza pra um dia passar, é sério, com relação à
família ele é o que incomoda mais, fala mesmo, fala da questão de cor, fala do nariz
“mas o seu nariz é de preto, o meu é mais fino que o seu” essas coisa “o que eu não
consegui, o que eu peguei da minha mãe tá bom, como eu fui o que mais peguei das
coisas dela eu sou o mais bonito” isso aí lá casa com ele, com relação a isso, isso me
incomoda demais.(Bruna, 25 anos)
118
Outro episódio que diante da comparação temporal que os sujeitos fizeram
poderia ser considerado uma expressão de racismo clássico acontece com Ricardo em
seu primeiro emprego em Belo Horizonte.
E na sua trajetória de vida você percebe alguma experiência relacionada ao
preconceito racial?
Sim, mas tipo assim, não sei, porque as coisas confluem muito mas a única que
eu me lembro assim, foi uma vez, eu arrumei emprego, assim que eu cheguei em Belo
Horizonte já arrumei emprego de entregador de pão, na verdade eu trabalhava na
padaria de faz tudo, mas no primeiro dia eu fui entregar pães numa loja, aí eu
passando por uma moça eu falei assim “boa tarde” ela olha pra mim e fala “vê se te
enxerga, como assim boa tarde” eu fiquei tão puto, que eu saí de lá da loja, (...) eu saí
lá da loja, cheguei na padaria e falei tchau, peguei nem o dia que eu tinha trabalhado,
eu já tinha trabalhado algumas horas e nunca mais voltei, não quis mais saber daquela
profissão, eu senti muito aquilo, foi uma coisa que me incomodou muito, deu vontade de
ir lá e sei lá, fazer qualquer coisa com a mulher, quebrar tudo, foi uma coisa muito
paia, porque não é uma coisa que a gente vê no interior, que eu acabei de chegar aqui,
arrumo um emprego, acontece esse tipo de coisa.(Ricardo, 27 anos)
O que percebemos foi que o lapso temporal parece permitir a identificação da
violência nas dinâmicas do preconceito no passado, e não no presente, no cotidiano.
Quando o movimento de leitura do preconceito se dá em referência a uma dimensão
temporal mais ampla o exercício que prevalece é relativizar o presente em detrimento
do passado e em suas trajetórias pessoais mais atuais as referências aos impactos do
preconceito se deram em meio a grandes sofisticações desse fenômeno mesmo com a
presença de eventos tão explicitamente racistas e violentos em suas trajetórias.
Como já discutimos o racismo no Brasil sempre se apresentou de forma ambígua
e a luta contra essa especificidade tem sido desenvolvida no sentido de explicitar essa
ambiguidade a partir do desenvolvimento de diferentes estratégias que possam jogar luz
aos aspectos de invisibilização das dinâmicas raciais brasileiras. Nesse sentido tem se
apresentado leituras do racismo e preconceito racial brasileiro que apontam para a
sofisticação das dinâmicas raciais no sentido de descrevê-las como mais ambíguas e
difusas. Essa sofisticação se articularia ao próprio estabelecimento de políticas de
combate e enfrentamento ao preconceito, que por delimitarem consensos sociais e
incidir de forma mais pontual na moralização de práticas racistas acabaram por impactar
nas relações entre os sujeitos de forma a rearticular os discursos raciais.
119
A análise das trajetórias dos sujeitos entrevistados nos mostra um caminho de
percepção parcialmente similar. Percebemos a persistência da produção de
invisibilidade do preconceito em relação às incidências das classificações raciais e,
sobretudo a continuidade de uma das dinâmicas mais características do preconceito
racial brasileiro, a negação. No entanto essa negação não é mais de sua violência,
tampouco a negação de sua existência, assim como o mito da democracia racial no faz
acreditar (Guimarães, 2004b), mas sim a negação de sua atualidade. Essa aparente
contradição nos relatos dos sujeitos coloca a negação do racismo sobre outra
perspectiva, a temporal, que permite que acreditemos que o cenário de maior discussão
e enfrentamento da desigualdade das relações raciais seja um dado presente
desconectado de um passado já superado. Se antes negávamos o racismo pela afirmação
dessa ideologia como algo do outro, de outra sociedade, hoje nos parece que o discurso
da sofisticação das dinâmicas do preconceito tem atualizado a produção de
invisibilidade sobre a permanência e reincidências das dimensões consideradas mais
explícitas e violentas do racismo brasileiro.
O discurso sobre essa sofisticação e silenciamento também se mostra presente na
forma como os sujeitos percebem a dinâmica do preconceito na sociedade. Em sua
maioria eles afirmam que alguns consensos sociais produzidos pela legitimidade atual
do tema da violência das relações raciais tem produzido transformações sobre as
expressões do preconceito racial.
“Olha, se as pessoas, muitos ter informação de que tem uma lei que pune, por
mais que ela não funcione, é informação né cara, ajuda no sentido assim “olha velho,
tem uma coisa aí que tá sendo discutida, você nunca pensou nisso” sabe aquela coisa
da pergunta, casamento inter-racial, tipo, nunca pensei nisso “oh, tem casamento interracial, o que que é? Entre duas pessoas de raças diferentes” tipo assim, se sai do
invisível e vai pelo menos pra uma coisa visível assim, agora, que vai resolver, eu não
sei se resolve não, assim, talvez possa resolver pra algumas pessoas assim, pra mim
resolve muito pouco assim, mas eu acho que dá um pouco de legitimidade
assim.”(Simone, 26 anos)
Paulo ao comparar o racismo à homofobia demonstra uma leitura similar do
preconceito racial.
120
“Eu acho que a fato da homofobia não ser considerada um crime ainda, isso
possibilita o discurso muito mais, as pessoas ela não tem vergonha de falar, então
assim, elas falam isso tudo porque sabem que não vai haver qualquer recriminação,
isso ficou muito claro daquele caso do Bolsonáro na Band, ele saiu completamente do
discurso racista e foi para o discurso homofóbico, que se fosse só o racista com certeza
as consequências para ele seriam muito piores. Ele é esperto, que que ele fez, mudou o
foco completamente, os gays em detrimento dos negros, eu falo isso muito claro que a
questão ali era racial, aquela resposta dele, não era de orientação sexual, mas então eu
acho que o fato de a homofobia ainda não ser um crime possibilita a discussão muito
maior. As pessoas hoje em dia elas tem medo de serem racista apesar que eu não
conheço ninguém que tenha sido preso por racismo nesse país enfim, acho que isso é
muito engraçado né, as pessoas saem sempre pela tangente, falam que foi uma
brincadeira, eu acho isso muito absurdo assim, eu tava vendo esses dias, um tempinho
atrás, que o Diretor da Globo foi acusado de racismo, a desculpa dele que foi uma
brincadeira, que ele sempre faz isso com os outros funcionários dele, enfim e ficou
nisso, e a juíza aceitou, então pensando, tá, a lei existe só que ela não é efetivada
perfeitamente, por quê? eu acho que o tema ainda é tão tabu assim que as pessoas elas
não conseguem nem aprofundar muito assim, eu acho que isso é um grande problema, e
estou pensando, eu acho que a lei ela foi muito importante, eu acho que, eu me
pergunto se ela foi realmente importante, se ela apenas não silenciou as pessoas. Eu
acho que ela silenciou as pessoas, mas as pessoas começaram a agir de uma outra
forma, de uma forma menos, de uma forma silenciosa mas com efeito tão definitivo
quanto, então não sei ainda até quanto à lei do racismo ela foi válida se ela não foi
aplicada ainda, mas eu acho que foi ótimo por existir.” (Paulo, 25 anos)
Se pensarmos no preconceito como uma dinâmica social que exerce a função de
naturalizar as posições sociais de inferioridade, invisibilizando a dinâmica de
subordinação racial, podemos em certa medida reconhecer a partir dos relatos desses
sujeitos que essa dinâmica de invisibilização do racismo tem interagido com os
posicionamentos dos sujeitos. Sofisticando-se a partir do estabelecimento de novos
arranjos sociais que não mais permitem, ou permitem sob outros discursos, interações
que explicitem as hierarquias fundamentadas na raça, mesmo que a violência dessas
relações seja permanente.
A mudança a qual fazemos referência não parece, portanto, significar
estritamente um contexto melhor, mais harmônico ou menos violento. Essa visão da
sofisticação não significa a superação do preconceito racial, mas sim a existência de
mais elementos que possibilitam a interpelação das dinâmicas do preconceito racial
explícito na sociedade atual, colocando esse fenômeno sob uma constante
transformação que sob o discurso da sofisticação oculta a violência e desigualdade
racial persistentes no país.
121
4.4.
Enfrentamentos ao preconceito racial:
As formas de lidar com o preconceito racial se mostraram diversas e envoltas
por dilemas e conflitos nos relatos dos sujeitos entrevistados. Seguindo os mesmos
padrões da luta histórica dos negros contra as formas de opressão a que foram
submetidos na história da sociedade brasileira, construir enfrentamentos aos efeitos
nocivos da perversa classificação racial brasileira não é tarefa fácil seja no
estabelecimento de estratégias coletivas organizadas, como se dá no movimento negro,
seja no posicionamento subjetivo diante do racismo.
A partir dos relatos dos sujeitos apresentaremos nessa categoria suas formas de
enfrentar os efeitos do preconceito racial. Pontuamos, portanto que nessa categoria os
elementos
presentes
nas
categorias
anteriores
se
mostram
profundamente
correlacionados, uma vez que as formas de enfrentamento são também indícios do lugar
social atribuído aos negros assim como se relacionam as formas de identificação,
nomeação e impactos do preconceito na trajetória dos sujeitos. No entanto ela se
distingue por apresentar o que os entrevistados relataram fazer parte de seu escopo de
enfrentamento.
4.4.1. Cálculos no enfrentamento:
Compreender o preconceito racial exige dos sujeitos leituras sobre as formas de
enfrentamento e resistências que cabem em cada situação. As formas de enfrentar o
preconceito têm intensa relação com as leituras que fazem de suas dinâmicas e com os
dilemas envolvidos no complexo exercício de atribuir significação racial a eventos tão
cotidianos. Mais do que se apresentar como uma intenção planejada, a decisão de
enfrentar ou não parece depender dessa leitura. Como percebemos a partir da análise das
leituras sobre o preconceito a consciência sobre suas dinâmicas se mostra intermitente
nas trajetórias, assim como já pontuado por Nogueira (2006).
As formas de enfrentar são variadas assim como são diversos os dilemas em
escolher, a partir de cada circunstância, a melhor forma de agir. Nesse sentido o
enfrentamento é perpassado por dois movimentos principais: o de analisar cada situação
e o de mensurar os custos subjetivos delas. Certamente compreendemos que esses
processos não são fruto estritamente de uma racionalização operacional, e os relatos dos
122
sujeitos não se apresentam de forma programática, como se fosse possível mensurar o
fato e assim lançar mãos de uma estratégia pronta. Ao contrário os relatos de suas
trajetórias evidenciaram o caráter maleável das dinâmicas do preconceito e as formas
como apresentam aquilo que usam como estratégias demonstram que o aprendizado de
experiências e interações pregressas possibilitou a articulação de estratégias que
levaram em consideração a plasticidade do preconceito racial nas relações sociais assim
como suas regularidades e funções próprias.
Dessa forma diante dos amigos, parceiros e da família, relações que pressupõe
uma alta vinculação afetiva, as expectativas sobre o outro impõe um limite na forma de
lidar com o preconceito. Da mesma forma em outros contextos em que o horizonte de
perdas subjetivas é alto, os enfrentamentos exigem mais cuidados e menos conflito. José
relata esse dilema da seguinte forma
“Uma situação onde você talvez não conheça a pessoa, ou conheça onde você
não está no espaço institucional, onde você pode perder alguma coisa positiva, por
exemplo, eu tenho um trabalho, eu preciso dele pra sobreviver, então se a minha
diretora fala alguma coisa racista eu não vou diretamente falar “pô, deixa de ser
racista, cara de pau” né, “deixa de ser racista cara de pau”Eu vou falar de um jeito,
eu vou apresentar uma revista, eu vou falar “há, mas tem um programa que uma vez
discutiu isso” eu vou usar um caminho pra falar pra ela as coisas né, porque se eu
falar de outro jeito eu estou sendo na verdade é, eu não estou sendo inteligente, eu não
estou usando uma estratégia, é uma questão de estratégia, agora, você está num debate,
você está num espaço social público, ai quando o racismo aparece às vezes você tem
que gritar sim, literalmente né, como quase uma bandeira, como uma manifestação
mesmo de que tem que haver uma mudança, o racismo institucional mais direto, a
manifestação é importante, quando é um racismo direcionado num bar, num banco ou
em qualquer espaços públicos, eu acho ai eu concordo sim que um bom barraco tem
que ser feito, eu acho que é uma questão de estratégia, você tem que saber ler a
situação no momento, pensar que você tá num mundo cheio de regras, contextos, e que
às vezes você vai perder, e também a discussão vai perdendo esse “x” entendeu isso é
política né, é o manejo ai de lidar com isso.” (José,27 anos)
A lógica imposta pelo preconceito requer, portanto que sujeitos dispostos a
transformar a ótica do racismo, invistam energia não somente nos movimento de
enfrentamento, mas também na elaboração de uma estratégia que não ponha em jogo o
caráter positivo de suas relações. Exigindo a adequação de seus afetos e atitudes para
empreender manejos diante do preconceito racial.
123
“Claro, por exemplo, se você tem uma relação afetiva com uma pessoa, você
gosta, convive com ela, tem várias coisas em comum, ou seja, se é amigo, você é
namorado ou alguma coisa, você não vai escrachar né, não na primeira vez, digamos,
Pode chegar o momento que você vai ter que fazer, você vai ter que estourar né, há um
sentimento nessa história evidentemente, coisa que machuca você, então você conhece
a pessoa evidentemente você tem um espaço pra falar com ela de um jeito mais
amigável, chamar a atenção dela pra essa discussão, pra que ela repense, pra que ela
reveja, porque na verdade isso é um debate né. A pessoa na verdade ela pensa de um
jeito, por mais que ela fale “eu não sou racista”, mas quando ela afirma uma coisa
racista, quando ela tem uma atitude racista ou homofóbica ou sexista enfim, aquilo ali
é um pouco da personalidade dela, da trajetória, do que ela foi ensinada e do que ela é,
então isso tem que ser debatido de alguma forma né. Às vezes, normalmente,
diretamente, mas é uma situação, uma novela, ai você coloca “isso não parece com a
realidade né, racista pra caramba” né, então você tem uma estratégia diferente até
porque você convive com essa pessoa né, eu penso assim, você tem que ter um manejo,
como eu já disse antes, de acordo com também a forma com que é dita né, às vezes você
conhece a pessoa, você gosta da pessoa, mas como ela falou, como a linguagem dela
manifestou o preconceito, às vezes não tem como, você tem que ser mais firme no
posicionamento, radical.(José, 27 anos)
Os efeitos e custos do enfrentamento fazem o embate cara a cara a estratégia
menos constante e mais conflituoso. Explicitar em uma situação o preconceito do outro
ou combater de forma mais incisiva e menos harmônica os posicionamentos que possam
refletir posturas e ideias preconceituosas é a expressão menos recorrente de
enfrentamento, pois coloca em cena as relações do próprio sujeito e não um discurso
social compartilhado por outros ou por um ideal de igualdade compartilhado. Nessa
expressão o conflito se apresenta de forma mais evidente e os custos subjetivos são
apresentados pelos sujeitos como mais fortes. Em uma situação em que colocou seu
discurso de forma mais incisiva Rafaela conta que
“Eu morava com uma menina, (...) ela fazia odonto, numa época que a FUMP
fez, ela colocou critério racial pra você conseguir uma bolsa, não era exclusivamente
não mas tava escrito preferencialmente, negro ou pardo. E essa menina puta assim,
porque, ela era loura até, e fazia odonto, material muito caro e tal. Ela comentando lá
em casa, ela morava comigo na moradia, que á FUMP tava criando uma divisão racial
que não existe no Brasil. Assim, mas eu me arrependo de ter feito isso assim, me
arrependo mais ou menos que em outras oportunidades que a gente conversou não sei
se a questão não era ser assim, mas eu fiquei puta com essa menina, meu sangue ferveu
assim, tipo eu falei: “O que? Você já olhou praquela porra daquela sua sala”.
Principalmente odonto que é claro que é um curso muito elitista e né negro, eu acho
que nem tem assim, “Você vem falar que a FUMP tá fazendo essa divisão?” Eu falei
“essa divisão já existe há milhões de anos e tal” e ai ela ficou calada, não defendeu,
saiu e foi pro quarto dela, e ai depois eu falei, gente, não era pra isso assim, eu podia
124
ter conversado com ela de outra forma sabe, mas ai ela nunca mais conversou sobre
nenhuma questão polêmica comigo assim depois disso.”(Rafaela, 2 anos)
“Porque você ficou arrependida Rafaela?”
“Eu fiquei arrependida porque eu achei que se eu tivesse tentado conversar, eu
acho que eu tava pensando que eu ia convencê-la, a verdade era essa, e que às vezes
você não traz a pessoa, isso não faz a pessoa pensar sobre nada, tipo, tá louca,
gritando, e ai se ela não pensa sobre nada ela não muda, não tem a possibilidade de
mudar né, não é nem, todo mundo vai mudar, não tem a possibilidade de mudar. Se
você não vem com argumentos, assim, eu comecei a gritar, tipo, falei palavrão, “a
porra daquela sua sala, não sei, um lugar a menos naquela UFMG” então assim, tipo,
e daí, gritei, gritei, e ela continuou pensando do mesmo jeito, hoje eu acho que eu sou
mais tolerante do que nessa época, porque eu acho que foi um impacto tão grande. Isso
é um sistema, tem todo uma coisa que faz com que as coisa sejam assim, que é
construído, que não é dado, acho que quando meio que caiu a ficha disso eu fiquei
revoltada com tudo assim. Hoje menos assim, eu sinto muito mas eu acho que eu tento
conversar mais assim sabe, tentar esclarecer mesmo...”(Rafaela, 28 anos)
O estabelecimento do enfrentamento exige, portanto que eles tenham que
questionar as lógicas que os inferiorizam enquanto representantes de um grupo, sem,
entretanto correr o risco de, por enfrentarem um tema conflituoso, serem taxados como
pessoas desagradáveis ou construir animosidade com alguém com quem de alguma
forma tenham um vínculo de dependência. São os sujeitos negros que nessa dinâmica
devem tomar para si o lugar de compreender o posicionamento do outro, visto que seu
posicionamento de enfrentamento frente ao silêncio e tabu racial será por vezes lido
como inadequação. O lugar que está em risco no enfrentamento, em geral é o lugar
daquele que “decide” por enfrentar. Essa relação fica explícita principalmente nas
relações interpessoais em que a etiqueta racial é mais “refinada” (Pereira, 1996;
Nogueira, 2006) e tal dinâmica revela como os efeitos da democracia racial articulados
ao preconceito constroem lugares menos legítimos para a visibilidade do racismo no
Brasil.
4.4.2. Formas de enfrentamento pela afirmação de um posicionamento:
A partir da leitura das possibilidades de ler as relações em que se expressam o
preconceito ou interações que tornam explícitos seus efeitos e articulações os
125
entrevistados demonstraram lançar mão de várias estratégias. A explicitação de seus
posicionamentos em relação às relações raciais nos contextos em que estão presentes se
mostrou como uma das maneiras mais presentes de enfrentar os efeitos do preconceito.
Nesse sentido os sujeitos relatam que usualmente enfrentam o preconceito menos pelos
seus efeitos mas mais a partir de uma posição de afirmação contra as ideologias que o
sustentam. Isso acontece seja pelo discurso ou pela ação como forma de racializar os
contextos em que estão e combater ou constranger discursos preconceituosos. Bruna e
José revelam como lidam com isso no seu cotidiano.
“...importante demonstrar a questão da importância de dar visibilidade à
questão racial, à questão do preconceito, em toda pesquisa, em toda coisa que eu vou
escrever, eu sempre tento puxar, por mais que não tenha diretamente a ver com o
assunto jogar essa questão, pelo menos pra questionar as pessoas em relação a isso,
porque é uma coisa que ficou em mim.”(Bruna, 25 anos)
“Pra minha vida, na parte de profissão, eu tenho um discurso muito em cima
dessas experiências, as discussões que eu faço são todas em cima desse discurso de
emancipação, eu vou discutir cotas né, eu vou discutir homofobia, eu acho isso
fundamental, não só chegar pro aluno “você tem que pensar assim, assim” eu to
reproduzindo, eu quero realmente colocar esses tabus, digamos assim, essas coisas que
parecem prontas pra discussão né, isso eu faço, até os conteúdos que a gente trata,
recortes em cima dessa temática afro, dentro da minha profissão, o que digamos, dá
pra usar, é isso, é também evidentemente um discurso que às vezes paira, algum
discurso racista, homofóbico, posicionamento, não deixar o silêncio, tem que se
posicionar né. Eu acho que esse posicionamento é importante e não ficar alheio às
discussões, às manifestações, tá sempre pronto a se mostrar, porque a vida continua,
você vai trabalhar, seguir sua vida, fazer suas viagens, crescer em muitos pontos né,
mas a gente se torna uma pessoa ativa nessa discussão, não pode se sentir alheio, eu
não me permito me sentir totalmente alheio, de jeito nenhum, mesmo que minha vida
esteja direcionada hoje por lado profissional, pro lado familiar, toda trajetória que eu
tive antes me mostra que evidentemente eu não posso só descansar no conforto mais, eu
tenho que tá pronto pra atuar nessa discussão né e pronto também a rever discussões.”
(José, 27 anos)
Essa escolha, por explicitar o posicionamento nem sempre é um recurso
utilizado como forma de instaurar uma transformação. Demonstrar um posicionamento
também é estratégia mesmo quando os sujeitos não lançam mão do discurso, debate ou
da visibilidade ao tema, e dessa forma se posicionar não necessariamente significa
empreender alguma ação mais concreta. Paulo relata que seu enfrentamento se dá na
126
forma de um posicionamento no mundo mesmo que isso não implique em entrar em
discussão ou conflito com alguém.
“Acho que a minha pessoa, querendo ou não, ela é carregada de bandeiras,
acho que é o discurso, o meu próprio posicionamento, ele é presente assim, então eu
acho que, eu acho assim que eu faço militância sem ser aquele militante chato e tudo
mais, então eu acho que militância ela ocorre em todos os lugares assim, você não
precisa tá em lugar especifico, acho que já tá incorporado em mim, no meu discurso,
então em cada pessoa que eu converso isso vai tá presente naturalmente assim, então
todos os amigos que eu faço isso já é algo espontâneo assim, eu penso dessa forma e
dessa forma, você aceita essa forma como eu penso, se aceita ótimo, se não, eu acho
você não tá o suficiente pra ser meu amigo. “... eu até evito o discurso, discutir assim,
acho que não sei se ia adiantar e tudo mais, mas eu percebo que querendo ou não às
vezes eu passo pontuações assim, não entro no discurso assim, mas eu deixo clara a
minha posição assim, e isso acaba modificando sem eu ter que entra em conflito em
relação a isso.” (Paulo, 25 anos)
E porque que você acha que às vezes não vai adiantar?
“Na verdade, nem sei se não vai adiantar, na verdade eu tenho mais preguiça
de ter toda aquela discussão assim, porque é uma história que já tão arraigada assim,
que já faz parte da história dela, e mudar algo é algo difícil, infelizmente assim, e tem
que ter uma disposição, tem que ter uma vontade, eu não sei se eu to afim de tá nesse
papel sabe, assim, eu acho assim, eu acho que eu posso, essa é uma discussão que eu
levo em vários lugares assim, mas eu tenho preguiça de ficar batendo na tecla o tempo
todo assim, eu acho que eu prefiro agir paralelamente assim, acho que eu prefiro, eu
gosto de agir pelo o meu exemplo assim sem ter que enfrentar o conflito, muitas vezes,
eu acho que isso dá muito mais resultado, porque quando você entra em conflito as
pessoas tendem muitas vezes a assustar e muitas vezes reproduzir algo que talvez elas
não quisessem reproduzir assim, e quando você dá o exemplo você dá o exemplo e eu
acho que ele é muito mais consistente assim, então eu prefiro trabalhar em cima de
exemplo do que com o conflito em si.” (Paulo, 25 anos)
Os entrevistados apontam que essa forma de encarar o preconceito transforma a
maneira como os outros os veem e acaba por alterar a dinâmica de relações em que os
indivíduos expressam seus posicionamentos preconceituosos. Ao falar sobre expressão
de comentários preconceituosos José explicita que a reflexão sobre as relações que se
colocam nesse contexto não são de exclusividade da pessoa que se propõe a enfrentar,
mas também de quem expressa o preconceito.
“ela calcula onde que ela tá, com quem ela tá falando, por isso que ela vela, por
isso que ela fala o discurso que ela faz, ela falaria abertamente que é tudo feio mesmo,
127
ela calcula sim. Por isso que ela coloca ironia, ela dá risadinha pra parecer uma
piadinha, porque a piadinha ela pode ser perdoada, é só brincar, descontrair, eu acho
que ela calcula sim, com certeza, eu acho que é muito calculado, num espaço talvez
familiar, entre pessoas que pensem como ela eu acho que ela pode meter o pau, eu acho
que isso acontece muito numa rodinha de pessoas que pensem igual e aí começa.(José,
27 anos)
O enfrentamento a partir da explicitação de seus posicionamentos sobre a
questão racial parece transformar os elementos que estão em jogo na cena de cada
relação, e suas presenças rearticulam as expressões preconceituosas na relação, tornando
essa forma de enfrentar como mais produtora de constrangimento do que
potencialmente transformadora de opiniões, segundo os entrevistados. Rafaela conta
como sua presença nos espaços em que transita alteram o padrão dos discursos das
pessoas, o que traz impacto, mas pode também abafar o conflito e o debate sobre o tema
pela retirada de muitos dos posicionamentos dos sujeitos envolvidos na relação.
“Mas você acha que assim, algum impacto né, desse aprendizado que você falou
que você teve aqui, você vê algum impacto desse aprendizado nessas relações fora
daqui?
“Com certeza, teve e tem assim, é a questão de acontecer alguma coisa e ter
espaço ou não pra você se colocar, alguma coisa nesse sentido que me incomoda muito,
de preconceito, por exemplo. Talvez fora daqui eu to em espaços que role comentários,
todo mundo ri e tal e eu não vou ter oportunidade de falar, não, a questão não é nem
falar, eu acho que se rolar eu vou falar e discutir sobre isso sim, é uma questão de
sentimento mesmo. De sei lá, de tá numa festa e tá achando que eu não to no nível das
pessoas e tal, questão de sentimento, mais impacto em termos de relação tem sim, tem,
até porque eu acho que as pessoas que convivem comigo por exemplo na Universidade,
mil coisa que elas fazem e falariam onde eu não estou, quando eu estou elas não falam
porque elas sabem que vai gerar problematização.” (Rafaela, 28 anos)
“Que tipo de coisa, por exemplo?”
“Há, tipo fazer piadinha com pobre, tipo rolar de rir, por exemplo. Teve um
comentário com uma menina da minha sala na época que eu fui trabalhar no “x” e o
pessoal tava comentando sobre questão de favela, não sei o que. Isso, ela jamais falaria
isso na minha frente, porque ela falou que tinha muita curiosidade de ir mas ela queria
chegar de helicóptero, descer, ver e subir sabe, de preferência numa capsula né, pra
não sentir cheiro nem nada. Eu falei “o que?” E eu converso super com ela e eu sei que
jamais ela faria esse tipo de comentário perto de mim, porque eu ia discutir com ela
alguma coisa, isso não ia ficar. E ai todo mundo ka ka ka e achar o máximo isso sabe,
porque ela falou no sentido de ser engraçado, porque isso minimamente você quer ser
engraçado, você falar que você que ir numa favela conhecer, descer e tipo subir
rapidinho, isso você ta contando de uma curiosidade e tal mas você tá fazendo uma
128
gracinha, então esse tipo de coisa eles não falam perto de mim. Eu acho que as pessoas
que sabem como eu sou brava, e quem é da minha sala me vê assim. Porque eu tipo,
empolgo muito pra defender alguma coisa sabe, mais politicamente corretas, na minha
frente, eu acho que isso é um impacto assim sabe, às vezes isso é ruim porque a pessoa
não se propõe a nem conversar sobre isso, não tem o debate.” (Rafaela, 28 anos)
Outra forma de enfrentar o preconceito localizada na expressão de posições
sobre as relações raciais no Brasil se relaciona a ações cotidianas de transformação das
práticas que se fundamentam em lógicas de inferiorização dos negros. Bruna por
exemplo empreende em casa a adoção de uma nova postura em relação à afirmação de
uma estética negra positiva
“Minha mãe olha duas crianças né, complementar renda e tal, e uma das
meninas tem o cabelo mais claro, quase loiro, e todo enrolado, e a outra tem o cabelo
liso e de franjinha, por sinal, essa outra de cabelo liso é minha prima, a outra é uma
menina da rua. Aí minha mãe lava o cabelo das duas e deixa o da M. solto e o da G. ela
vai lá penteia, penteia, enrola e faz um coque. Aí a G. fala assim “o tia, me deixa ficar
com o cabelo solto igual o dela” aí ela “não, vai embaraçar seu cabelo todo, vai ficar
feio. ” Ai aquilo eu lembro direitinho de mim, ai eu vou lá e solto o cabelo da G. Aí
minha mãe fala assim “você vai prender o cabelo dela” ai eu falo assim “na hora que
secar eu prendo, pode deixar (tom sarcástico)” Ai a G. fica, e balança pra um lado e
balança pro outro, aquela coisa toda, e minha mãe não entende isso...”(Bruna, 25
anos)
José, como professor de língua portuguesa, encara esse processo a partir do
cuidado e vigilância sobre as expressões linguísticas cotidianas que reproduzem o
preconceito.
“...então é um discurso em que você pode repensar esses modos, expressões
como denegrir né, eu sou da área da língua portuguesa, então essas expressões me
preocupam né, essas expressões de que tem esse cunho de que o negro, o preto, a cor
em si, é negativa, né “a situação tá preta” tudo isso eu procuro remexer nos meus
discursos, atentar né.”(José, 27 anos)
O enfrentamento a partir do estabelecimento da transformação de condutas e
referências é expresso na dimensão mais individual, e nenhum dos entrevistados relatou
participar de movimentos de resistência negra que tenham agendas coletivas
propositivas para o enfrentamento ao racismo e preconceito racial. No entanto os
129
entrevistados veem nessas pequenas ações cotidianas um arranjo sensível às dimensões
menos estruturais do preconceito que não poderiam ser combatidas somente por meio
de uma política estrutural, mas pela inserção contínua de práticas que submetam ao
crivo da visibilidade do racismo as dimensões reprodutoras de sua naturalização.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao fim desse processo não tenho como não expressar a ambiguidade de dois
sentimentos. O primeiro é aquele que expressa à alegria de, concluindo um percurso que
muitas vezes me vi incapaz de terminar, me aproximar do arremate de um processo de
dois anos de trabalho, que ora me parecem curtos ora me parecem tão longos. O outro
sentimento, que entra em conflito com o primeiro, é a sensação de que o esforço de
conclusão desse percurso teve imprecisões que não gostaria de ter expressas no
tratamento que dei ao tema em questão. Afinal o contexto no qual me aventurei trata de
um assunto que diz respeito a todos, mas afeta de forma diferenciada grande parcela da
população brasileira, na qual me sinto representada, e que vive sob a incidência do
racismo dilemas que gostaria de ter melhor representado. No entanto chego até aqui
esperando contribuir com a interpretação sobre as dinâmicas e efeitos do preconceito
racial na trajetória de jovens negros, contando que minha sensibilidade e aproximação
do tema são parciais diante da complexidade daquilo que pretendi conhecer.
Os obstáculos que se apresentaram ao longo desse caminho evidenciaram não
apenas as dificuldades de se enfrentar os dilemas do racismo brasileiro, mas
principalmente os entraves em desenvolver um olhar crítico e sensível a uma questão
que se articula a história da sociedade brasileira assim como a histórias dos sujeitos. O
maior desafio enfrentado foi lidar com essa questão a partir de uma relação tão próxima
com ela. Nesse sentido o esforço foi construir um posicionamento que pudesse dialogar
de forma crítica e autônoma com os registros da literatura da área assim como com as
interações construídas com os sujeitos da pesquisa e com os relatos de suas trajetórias.
Desde meu primeiro contato com a temática racial o movimento de lidar com as
tensões envolvidas no debate sobre esse tema foram uma tarefa árdua e empreender o
processo dessa pesquisa se mostrou um exercício instigante que deixa mais dúvidas e
questões do que conclusões fechadas. Dessa forma o que apresentamos é uma
perspectiva localizada sobre o que os sujeitos entrevistados apresentaram de seus
percursos e uma tentativa de diálogo com o cenário de produção das relações raciais
brasileiras assim como com a perspectiva e produção da psicologia social.
Esse trabalho surgiu de uma inquietação, a inquietação de compreender as
possibilidades de nomeação e enfrentamento ao preconceito racial brasileiro diante das
atuais leituras desse fenômeno que o apresentam como mais sofisticado e ambíguo. De
131
um lado percebemos registros cada vez mais presentes de relatos de sofisticação do
preconceito e rearticulações do racismo brasileiro e de outro convivemos com a
persistência de uma classificação que incide sobre os negros de modo a disfarçar sua
violência. Como as ideologias do branqueamento e a democracia racial têm se
apresentando atualmente, superamos a representação do negro como inferior ao
reconhecer publicamente o preconceito e racismo como parte estruturante de nossa
sociedade? A afirmação de que o racismo brasileiro é atualmente reconhecido por essa
sociedade é possível?
A perspectiva de afirmação de transformação da dinâmica do preconceito racial
brasileiro foi encarada como uma realidade a ser suspeitada nesse trabalho e foi diante
dessa suspeita que decidi ouvir de sujeitos negros suas impressões. A construção do
espaço para essa escuta foi formulada a partir de uma ideia de interação e diálogo sobre
o problema de pesquisa. Essa escolha trouxe riquezas ao trabalho, mas também
significou um difícil manejo das relações que se estabelecem entre sujeitos de pesquisa
e pesquisador, sobretudo por que entres esses lugares existiu um espaço de partilha de
histórias e vivências anteriores a pesquisa, o que inclui no trabalho um outro horizonte
de expectativas sobre os impactos do preconceito na trajetória de cada um de nós,
sujeitos de pesquisa e pesquisadora.
Pretendi com esse percurso localizar as dificuldades em nomear o preconceito
racial como uma dinâmica que tua sobre o campo das relações raciais, invisibilizando a
hierarquia racial e seu caráter contingente e histórico. Partimos de uma concepção
psicossocial desse fenômeno delineando análises sobre ele que extrapolassem as
vivências de discriminações. Sobretudo o interesse era compreender possíveis
transformações nas dinâmicas do preconceito racial no momento atual do debate racial
brasileiro questionando suas sofisticações como resultados das transformações e
visibilidade pública dos enfrentamentos às desigualdades raciais do país.
Nessa empreitada a construção de categorias buscou deixar explícita a riqueza
dos relatos dos sujeitos que permearam três dimensões: a dimensão da busca por
reconhecimento, que marca o delineamento social de um lugar desprivilegiado e
inferiorizado aos negros; as visões sobre dinâmicas e impactos do preconceito racial e
as formas de identificação e visibilização do fenômeno e por fim as estratégias
construídas pelos entrevistados como forma de enfrentar as expressões e efeitos do
preconceito racial.
132
O que pudemos perceber é que distante do discurso de sofisticação das
dinâmicas e efeitos do preconceito racial as trajetórias de negros e negras ainda são
violentamente impactadas pela reprodução social da inferioridade negra em referências
explícitas a associação da cor da pele ou de traços físicos à inferioridade. Como grupo
ou como indivíduos isolados os negros tem suas relações marcadas pela violência e
subordinação e os efeitos dessa lógica se reproduzem na persistência da estética branca
como a beleza universalmente aceita e desejada e a negação da legitimidade das origens,
trajetórias e histórias dos sujeitos negros entrevistados.
A sofisticação das expressões do preconceito surge nos relatos, sobretudo em
comparação ao passado, colocando novamente o preconceito racial em um horizonte
distante e tal discurso parece inibir a percepção das persistências da violência do
racismo. A presença de expressões “clássicas” de preconceito racial nos relatos dos
sujeitos permite desconfiar que a sofisticação seja o novo registro das dinâmicas do
preconceito, mas compreendemos que elas se expressam de forma discursiva e
produzem uma realidade que parece invisibilizar a violência do racismo e afirmar um
contexto mais harmonioso e menos conflitivo nas relações raciais atualmente. Dessa
forma é o caráter de sutileza que prevalece nos relatos dos entrevistados mesmo em
meio a violências tão marcantes do racismo. Compreendemos, portanto que o
preconceito racial tem exercido mecanismos de naturalização do racismo sob o discurso
de que o consenso social tem transformado as práticas e concepções racistas.
As práticas de enfrentamento apresentadas pelos sujeitos nos mostram, portanto
que os dilemas em visibilizar os efeitos e expressões de uma dinâmica tão presente no
tecido social e estabelecer um posicionamento incisivo sobre elas exige como
movimento a racialização das relações sociais e das trajetórias individuais. Seja por
meio de uma experiência coletiva de partilhas de experiências seja pela adoção do
discurso científico como forma de atribuir legitimidade às experiências de
subordinação. As formas em que se dão os enfrentamentos também revelaram que
explicitar um posicionamento que insira sobre a dinâmica das relações uma perspectiva
de conflito impõe riscos subjetivos importantes aos sujeitos negros que são pouco
partilhados socialmente, exigindo muitas vezes um recuo ou mudança de estratégias
diante da expressão do preconceito.
Certamente consideramos que o esforço em compreender o preconceito como
um fenômeno que expressa as relações entre indivíduo e sociedade foi parcialmente
133
desenvolvido e algumas dessas relações não tiveram o tratamento e cuidado suficiente.
Entre essas imprecisões destacamos as insuficiências que a ausência de uma leitura mais
precisa das relações de poder expressas na dinâmica do preconceito poderiam ter
contribuído as análises que realizamos, tendo essas ficado muitas vezes firmadas na
explicitação de uma hierarquia racial que não foi devidamente trabalhada em suas
minúcias e efeitos.
Da mesma forma acredito que articulações das análises com os marcadores de
classe e de gênero, que surgiram como importantes questões nos relatos dos sujeitos,
poderiam ter contribuído com maior densidade na tessitura da produção dos efeitos do
preconceito racial e as análises apresentariam maior complexidade de articulação com
outras dinâmicas de hierarquização social que atravessam e dialogam com a hierarquia
racial, principalmente quando a questão principal é a pergunta por sua invisibilidade.
A articulação entre as categorias que emergiram nesse trabalho, a representação
dos negros no registro da inferioridade, a leitura das dinâmicas e efeitos do preconceito
e o estabelecimento de estratégias de enfrentamento nos mostraram que a luta contra o
racismo é uma tarefa em andamento. Sua proposta precisa ser incorporada no registro
que compreenda as articulações entre as dinâmicas micro e macrossocial, pois o racismo
incide fortemente sobre as ambas, se fazendo perder no emaranhado de “não ditos” que
constitui a vida em sociedade. Nesse sentido compreender o preconceito como uma
dinâmica interativa, possibilitou ver nuances do racismo que não se expressam nas
leituras que privilegiam a estrutura e tampouco naquelas interpretações que ao
privilegiar o indivíduo isolado de seu contexto reproduzem uma leitura vitimizante dos
negros.
Os achados dessa pesquisa possibilitaram a emergência de novas realidades
sobre a dinâmica racial brasileira mas também deixam fortes perguntas sobre as formas
como o discurso antirracista tem sido incorporado no tecido social brasileiro e sobre os
desdobramentos das escolhas de enfrentamento simbólico e institucional que a história
nos fez construir. Essa pergunta permanece sem resposta nesse trabalho, uma vez que
analisar o horizonte de possibilidades que o antirracismo tem produzido, exigiria outro
olhar sobre a trajetória dos jovens negros entrevistados. No entanto pensar sobre as
formas de enfrentamento permitiu fazer emergir da fala dos sujeitos algo que escapa da
elaboração racial que construímos nessa sociedade. Algo não dito, quase
impronunciável mas que aponta para o desconforto identitário da ambiguidade de
134
ser/não ser branco e ser/não ser negro. Algo que ainda não teve lugar de ser nomeado no
processo de nomeação do racismo mas que em um breve futuro pode orientar novas
perguntas a essa recente pesquisadora.
135
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142
ANEXO 01 – CARTA CONVITE
Olá (nome),
Depois da nossa experiência no Conexões de Saberes com a temática racial me
inseri no mestrado na Psicologia Social com a intenção de pesquisar dinâmicas do
Preconceito Racial. Meu foco é investigar nas trajetórias de estudantes que participaram
de programas de Ação Afirmativa aqui na UFMG como se dão as estratégias de
nomeação, enfrentamento e resistência frente ao preconceito racial.
Gostaria então de convidar você a participar da pesquisa sendo um/a das pessoas
entrevistadas. As entrevistas serão realizadas a partir de sua disponibilidade e o
anonimato será preservado se assim for de seu interesse. Caso você aceite meu convite
podemos esclarecer outros aspectos e dúvidas relacionados à pesquisa.
Espero poder contar com você nessa empreitada e aguardo sua resposta ao meu
e-mail.
Abraços
Luciana Souza (Lu Souza)
Belo Horizonte - 10/07/2011
143
ANEXO 02 – FICHA DE IDENTIFICAÇÃO
FOLHA DE IDENTIFICAÇÃO DE ENTREVISTAS
Número de identificação do entrevistado:_____
Número da entrevista:_____
Número da gravação:____
Data: ___ /___ /2011 – Local: _____________________________________________
Horário de início:_______: Horário de término:__________ Duração:______________
Dados do entrevistado (a):
Nome: _______________________________________________________________
Idade: ______ Sexo: F(
)
M( ) Raça: Preto ( ) Pardo(
Estado civil (relacionamento):___ __ Tem filhos: Sim (
Estudou Ensino Fundamental: EPuF (
Estudou Ensino Médiol: EPuF (
)
), Qtos:______ Não ( )
) EPuM ( ) EPuE ( ) EPa(
) EPuM (
) EPuE ( ) EPa(
) EPaB(
) EPaB(
)
)
Graduação em curso:__________________________________ Período:_________
Formou-se em: _______________________________________________________
Profissão ____________________________________________________________
Pós Graduação (
) Mestrado ( ) Doutorado (
)
144
Tempo de participação no Conexões de Sabres :_______
Entrou em: ___ ___Saiu em: ______
Local de moradia:________________________________________________________
Reside com:____________________________________________________________
Classe social:___________________________________________________________
Outras atividades relevantes na formação:____________________________________
Permitiu identificação: Sim (
) Não(
) e será identificado como:_______________
145
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luciana maria de souza - Fafich