UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS LUCIANA MARIA DE SOUZA Preconceito racial – nomeação e enfrentamentos: um estudos a partir da trajetória de jovens negros Belo Horizonte 2012 LUCIANA MARIA DE SOUZA Preconceito racial – nomeação e enfrentamentos: um estudos a partir da trajetória de jovens negros Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Social Linha de pesquisa: Política, participação social e processos de Identificação Orientadora: Claudia Mayorga Belo Horizonte 2012 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Souza, Luciana Maria de. Preconceito Racial – Nomeação e enfrentamento: um estudo a partir da trajetória de jovens negros/ Luciana Maria de Souza; orientadora Claudia Mayorga – Belo Horizonte, 2012. 138 f. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Área de Concentração: Psicologia Social (Racismo, Preconceito, Preconceito Racial) Nome: Souza, Luciana Maria de. PRECONCEITO RACIAL - NOMEAÇÃO E ENFRENTAMENTOS: UM ESTUDO A PARTIR DA TRAJETÓRIA DE JOVENS NEGROS. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Aprovado em: Banca Examinadora Profa. Dra. Claudia Mayorga. Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais. Assinatura: ________________________________________________________________ Profa. Nilma Lino Gomes. Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais. Assinatura: ________________________________________________________________ Profa. Maria Juracy Toneli. Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina. Assinatura: ________________________________________________________________ À minha mãe, mulher forte e batalhadora, com quem aprendi a lutar pelos sonhos AGRADECIMENTOS A todos, coordenadores, bolsistas e parceiros, que durante os últimos seis anos fizeram e fazem parte da maravilhosa experiência do Programa Conexões de Saberes. Aos amigos que fiz nesse espaço com quem aprendi a viver a universidade de um jeito mais feliz e menos dolorido. Em especial aos amigos que acompanharam mais de perto as angústias desse processo Suellen Guimarães, Daniel Cruz e Julião Amaral. Aos alunos e professores do NPP pela partilha do cotidiano na universidade e pela oportunidade de conhecer o as diversas faces da academia. Cassia Reis, André Diniz e Paulo Júnior, obrigada especialmente pela força que sempre deram. Aos amigos que dividiram muito de perto o estresse cotidiano da vida de uma mestranda, Geíse Pinto e Leonel Cardoso, meu agradecimento pela presença indispensável nesses anos. Aos vizinhos do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT, (NUH), Igor Monteiro, Rafaela Vasconcelos e Liliane Anderson, que pela porta de vidro compartilharam o espaço de trabalho no Conexões. A Claudia Mayorga pela confiança no meu trabalho e pelo constante apoio e disponibilidade em cada etapa do processo que se iniciou ainda no Conexões. Ao Cláudio, meu “paidrasto”, pela presença indispensável na minha vida. A minha mãe, Lúcia, que suportou com amor minhas ausências e chatices, triplicadas nos últimos anos. Ao Robson Cruz pela presença constante, cuidado, apoio e carinho cotidiano que nos últimos anos se fizeram indispensáveis para que pudesse concluir esse trabalho. Aqui ficam simbolizadas as vinte mil linhas de agradecimento que prometi. Aos jovens negros que, com tanta confiança, compartilharam sua história comigo. A CAPES pelo apoio financeiro a essa pesquisa. “Um negro sempre será um negro. Chama-se pardo, cafuzo, mulato ou moreno-claro. Um negro sempre será um negro, na luta que assume pelo direito ao emprego e contra a discriminação no trabalho. Um negro sempre será um negro. Afirmando-se como ser humano na luta pela vida.” Jorge Posada SOUZA, L. M. (2012). Preconceito racial – nomeação e enfrentamentos: um estudos a partir da trajetória de jovens negros. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. RESUMO O racismo no Brasil se constitui de forma ambígua e seu reconhecimento assim como suas nuances sempre foram um tema polêmico no país. Nesse trabalho entendemos que as dificuldades em nomear o racismo se relacionam a mecanismos que incidem no campo das relações sociais, invisibilizando a hierarquia racial e seu caráter contingente e histórico. Discutimos a invisibilização do racismo a partir das dinâmicas do preconceito racial, partindo de uma concepção psicossocial desse fenômeno. Esse estudo buscou localizar as dinâmicas do preconceito racial questionando a sofisticações de suas dinâmicas como fruto da visibilidade pública e práticas de enfrentamento ao racismo. Exploramos por meio de entrevistas abertas essa articulação a partir da trajetória de seis jovens negros que participaram no Programa Conexões de Saberes e por isso estiveram envolvidos com discussões acadêmicas e políticas da temática racial. Ao nos aproximar dessas experiências percebemos que os entrevistados têm suas relações marcadas pela inferiorização e negação da legitimidade das origens, trajetórias e histórias e que persiste a estética branca como a beleza universalmente aceita e desejada. O caráter de sutileza que prevalece nos relatos surge em meio a violências marcantes do racismo e as formas de identificação do preconceito se estabelece pela racialização das relações seja por meio de uma experiência coletiva de partilha de experiências seja pela atribuição de legitimidade às experiências de subordinação propiciadas pelo discurso científico. As formas em que se dão os enfrentamentos revelaram que explicitar um posicionamento sobre a dinâmica das relações impõe riscos subjetivos importantes aos sujeitos negros que são pouco partilhados socialmente. Esse estudo sugere, portanto que o preconceito racial tem exercido mecanismos de naturalização do racismo sob o discurso de que o consenso social tem transformado as práticas e concepções racistas e tal dinâmica parece invisibilizar a atualidade das violências do racismo. Dessa forma vemos que a luta contra o racismo é uma tarefa em andamento e que suas propostas precisam ser incorporadas no registro que compreenda as articulações entre as dinâmicas micro e macrossociais. Palavras chave: Racismo, Preconceito Racial, Discriminação Racial, Psicologia Social SOUZA, L. M. (2012). Racial Prejudice – naming and resolutions: A study from the trajectory of young blacks. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. ABSTRACT Racism in Brazil is ambiguously and its recognition as well as its nuances have always been a contentious issue in the country. In this work, we understand that the difficulties in naming racism is related to mechanisms that affect the field of social relations, making the contingent and historical character of racial hierarchy unssen. We discuss the invisibility of racism from the dynamics of racial prejudice, declarng the psychosocial conception of this phenomenon. This study sought to find the dynamics of racial prejudice by questioning the sophistication of its dynamics as a direct result of public visibility and practices of racism resolution. We explored by open interviews this articulation through the lives of six young blacks who participated in the Programa Conexões de Saberes and so have been involved with the race issue in academic and political discussions. When analyzing these experiences we noticed that the respondents have their relationships marked by inferiority and denial of the legitimacy of the origins, histories and trajectories and that the white aesthetic beauty persists as universally accepted and desired. The subtlety of racism that prevails in the reports comes amid remarkable violence of racism. The forms of identification of Prejudice is established by the racialization of thier relations, through a collective experience of sharing or by the legitimacy to the experiences of subordination afforded by scientific discourse. The ways in which occur the resolutions revealed that explicit a position on the dynamics of relations requires significant subjective risks to black people and these risks are less socially shared. This study suggests that racial prejudice has played mechanisms of naturalization racism under the social consensus discourse has transformed the practices and racist conceptions. It seems that this dynamic is making the current violence of racism unseen. Thus we see that the fight against racism is an ongoing task and that their proposals must be incorporated in the record to understand the links between micro and macro-dynamics. Keywords: Racism, Racial Prejudice, Racial Discrimination, Social Psychology SUMÁRIO CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO E MÉTODO 1. INTRODUÇÃO 1.1. Caminhos metodológicos 1.2. Metodologia 1.3. Sujeitos de pesquisa 1.3.1. Programa Conexões de Saberes 1.4. Entrevistas: desafios do método e descrição dos procedimentos 1.5. Análise dos dados CAPÍTULO 2 11 16 19 21 22 25 29 2. RAÇA E RACISMO NO BRASIL: DESAFIOS DA AMBÍGUIDADE CONSTANTE 2.1. 31 Racismo verdadeiro: A recusa do racismo brasileiro pela perspectiva da 33 comparação. 2.2. Racismo no Brasil: práticas de aceitação e enfrentamento 3.1. Persistindo na denúncia 2.3. CAPÍTULO 3 3. 4. PRECONCEITO E PRECONCEITO RACIAL: LEITURAS E DINÂMICAS 38 41 44 4.1. O estudo do preconceito na psicologia: aproximação da história e teorias 44 4.1.1. Processo cognitivo - o preconceito na perspectiva da cognição social 49 4.1.2. Psicodinâmica – personalidade e preconceito 50 4.1.3. Sujeitos e pertencimento grupal – preconceito a partir das relações entre grupos 51 4.1.4. Relações entre sujeitos e sociedade – leituras críticas do preconceito 53 4.2. Preconceito: sujeito e sociedade 55 4.3. Preconceito Racial no Brasil 60 4.4. Preconceito Racial – Ambigüidades e articulações de consensos sociais 65 4.4.1. Branqueamento – prescrição de sujeitos e sociedade 65 4.4.2. Democracia racial – história e mito 69 CAPÍTULO 4 5. DINÂMICAS DO PRECONCEITO RACIAL: LEITURAS A PARTIR DA 73 TRAJETÓRIA DE JOVENS NEGROS 5.1. 5.1.1. 5.1.2. 5.1.3. 5.1.4. 5.1.5. 5.1.6. Apresentação dos sujeitos Paulo Ricardo José Rafaela Bruna Simone 74 75 76 78 80 82 84 5.1.7. Alguns apontamentos sobre as trajetórias 86 5.2. Discursos raciais: algo mudou? 5.2.1. A persistência da inferiorização dos negros na sociedade 90 90 A) O corpo a ser alcançado 91 B) Os padrões de reconhecimento social 94 C) A eterna suspeição 96 5.2.2. Algumas mudanças: negros na mídia – visibilidade e reconhecimento 99 5.3. 104 Leituras das dinâmicas e movimento de identificação do preconceito 5.3.1. Movimentos de racialização das trajetórias e experiências: identificação do 104 preconceito racial a partir da formação teórica e convivência com grupo de apoio 5.3.2. Leituras das dinâmicas e expressões do preconceito racial: o passado e presente das 109 5.4. trajetórias. Enfrentamentos ao preconceito racial 118 5.4.1. Cálculos do enfrentamento 118 5.4.2. Formas de enfrentamento pela afirmação de um posicionamento 121 5.4.3. Formas de enfrentamento pela transformação de práticas sociais 124 CONSIDERAÇÕES FINAIS 126 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 130 ANEXOS 137 CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO E MÉTODO 1. INTRODUÇÃO “Em casa de enforcado, não se fala em corda”. Essa expressão serviu durante algum tempo como metáfora das incoerências do tratamento dado à questão racial no Brasil. Sociedade marcada por profundas desigualdades raciais, mas que negou ao longo de sua história a existência de racismo e preconceito racial. Mas, em que medida falar em “corda”, em “casa de enforcado” faz cessar os enforcamentos? Aceitando a persistência da metáfora, nosso objetivo neste trabalho foi buscar compreender de que formas as relações e trajetórias de sujeitos negros têm sido impactadas pelos discursos atuais sobre raça no Brasil no sentido de possibilitar estratégias de enfrentamento e visibilidade dos efeitos do preconceito racial. Essas reflexões certamente não se iniciaram na construção deste projeto de pesquisa. Elas são parte das histórias de luta e resistência dos negros no Brasil e também do esforço de intelectuais em se debruçar sobre as várias nuances do racismo. No entanto, a anunciação de algo novo do enfrentamento público e democrático no campo das relações raciais brasileiras fez saltar aos olhos o interesse de compreender a persistência das dificuldades de lidar com o racismo e suas rearticulações. Na universidade pública, contexto que se propõe democrático e cuja centralidade de nossa representação moderna se deu pela emergência da racionalidade como caminho para a construção de conhecimento crítico sobre a realidade, se esperaria um debate mais avançado sobre o racismo. Entretanto, em pleno boom da discussão sobre medidas para inserção de estudantes negros nesse espaço, observam-se casos clássicos do que poderíamos nomear como racismo invisibilizado. Um objeto valioso some em um departamento. O primeiro estagiário inquirido sobre o suposto roubo é o único estudante negro que frequentava aquele espaço. A bolsista negra, em busca de dados para a financiada pesquisa sobre relações raciais na universidade, percebe, reiteradamente, que sua aproximação de professores coordenadores de cursos de graduação da UFMG é carregada de desconfiança sobre seu lugar de estudante e 12 bolsista de pesquisa. Ainda na universidade, em expressão de extrema violência, alunos colocam sobre a carteira de uma estudante negra uma banana. Sem reação, a menina sai chorosa da sala e a história vira piada. Como ler essas situações, como dar nomes a elas e compreendê-las dentro de um contexto mais amplo e menos violento que, ao dizer que é assim mesmo, culpabiliza os sujeitos nelas envolvidos? Essas situações podem ser nomeadas como racismo ou existiriam, em seus contextos, outras possibilidades de interpretação? A jovem negra conta que, na entrada de um shopping situado na área nobre da cidade, suas pernas tremem. Ela sabe que há algo errado, sabe que será notada, mas não sabe muito bem o porquê. A roupa adequada, os cabelos “arrumados”, o dinheiro no bolso, a adoção de certa postura são estratégias que têm impacto. Mas, porque não resolvem o constrangimento da situação? Da mesma forma, o garoto negro também sabe que não pode desejar qualquer mulher, que não é e nem será considerado bonito, mesmo com os atuais galãs e modelos negros na televisão. Por isso, algo de belo deve faltar à parceira para que lhe aceitem em uma relação. Essas estratégias, por vezes tão naturais, têm respondido à qual urgência nas relações desses sujeitos? O que a análise delas permite visibilizar em relação ao racismo brasileiro? A pergunta que nos coube nesta pesquisa partiu da reflexão dessas e de outras tantas experiências, contínuas e cotidianas, na trajetória de nós, negros e negras. As dificuldades em lidar com tais situações parecem revelar os desafios de nomear e enfrentar situações de violência, humilhação e subordinação que marcam trajetórias, sociabilidades, resistências e modos de ser sujeito na sociedade brasileira. No entanto, diante do debate racial que temos atualmente no Brasil, nos parece que, por vezes, as perspectivas de enfrentamento têm privilegiado leituras mais estruturais do racismo brasileiro a partir da localização e denúncia de seus lugares de reprodução. A importância dessa frente de luta é inquestionável, sobretudo se tomamos como referência nosso violento quadro de desigualdades raciais. Mas, por considerarmos que o racismo se expressa no corpo das relações macro e micro-sociais, torna-se importante, do nosso ponto de vista, explorar as dinâmicas raciais mais efêmeras e, por esse motivo, passíveis de invisibilidade diante das complexidades em sua enunciação e sustentação. Hoje podemos – sem facilidades, mas com maior legitimidade – demonstrar, localizar, enumerar, relatar os contextos sociais em que os negros são excluídos, violentados, sub-representados, marginalizados. Contudo, como traduzir esse 13 movimento macro para a compreensão dos enredamentos das relações micro-sociais? Relações que muitas vezes, por sua dinamicidade, naturalidade e urgência cotidiana, deixam escapar na fugacidade do momento a violência do racismo. Esses contextos, macro e micro, são certamente interdependentes. Porém, quais possíveis conexões podemos fazer entre eles? Diante desses desafios desenhados pelo racismo brasileiro, empreendemos dois movimentos na construção do problema delineado nessa pesquisa. O primeiro movimento fez localizar as dificuldades em nomear o racismo como relacionadas a mecanismos que, de forma muito eficaz, incidem no campo das relações socais, invisibilizando a hierarquia racial e seu caráter contingente e histórico. Discutimos, portanto, a invisibilização do racismo a partir das dinâmicas do preconceito racial, partindo de uma concepção psicossocial desse fenômeno, procurando extrapolar em nossas análises efeitos do preconceito para além das vivências de discriminações. O segundo movimento buscou localizar as dinâmicas do preconceito racial no momento atual do debate racial brasileiro. Questionamos, portanto, o que tem sido apresentado na literatura como sofisticações de dinâmicas do preconceito racial resultantes das transformações e visibilidade pública dos discursos e práticas de enfrentamento em torno das desigualdades raciais do país. Nosso interesse foi explorar essa articulação a partir do potencial reflexivo de sujeitos envolvidos com discussões acadêmicas e políticas da temática racial cujas trajetórias foram moldadas em uma geração na qual o racismo, mesmo que com dissensos, é publicamente reconhecido. Assim, nos aproximamos dessas experiências com o objetivo de, mediante análise dos posicionamentos e estratégias desses sujeitos, abstrair possíveis sofisticações dos mecanismos de naturalização e invisibilização do preconceito racial que permanecem a ocultar a raça como uma categoria com legítimo potencial de atribuição de inteligibilidade às experiências. Acredito que o processo mais árduo de todo esse percurso foi a construção do problema de pesquisa, a inquietação pessoal a ser traduzida no delineamento de instrumentos interpeláveis publicamente e legítimos do ponto de vista acadêmico e social. Durante meses, desde a entrevista do mestrado, me vi defrontada com o questionamento – ora vindo de outros, ora vindo de mim mesma – sobre a existência de uma pergunta relevante nessa pesquisa. Graças a esse questionamento, não poderia e – não gostaria – de me furtar a expor como foi a construção deste problema. Dentro de 14 uma perspectiva crítica de produção de conhecimento, tal exposição torna-se um dos passos imprescindíveis quando decidimos publicizar nossas investigações. Para expor tal processo, entendo ser necessário recorrer a alguns pontos da minha trajetória, mesmo incorrendo em atribuição de linearidade e racionalidade a uma experiência que, em outras circunstâncias, não poderia ser tratada a partir de nenhum aspecto linear ou racional. Contar essa história, com o intuito de pensar a origem de um interesse, exige admiti-la como construída por significados atrelados a sentidos e afetos de outras histórias e outras trajetórias, sejam essas de sujeitos, coletivos ou de um campo de conhecimento. Em outras palavras, a história da origem desse interesse não começa nem acaba em si mesma. O sentido aqui é construído como fruto de idas e vindas, dúvidas e ressignificações passíveis de imprecisões narrativas. No entanto, alguns dos aspectos dessa história, assim como a contínua reflexão sobre eles, são partes do ruído que vem à cabeça quando sou convocada a localizar alguma origem ou fundamento dessa pesquisa. Ademais, este trabalho parte da reflexão sobre as trajetórias de jovens negros, e acredito que aqui também se insere a minha própria trajetória. Cresci em uma família negra e pobre e – em virtude do emprego de minha mãe em uma escola particular de Belo Horizonte e de sua persistência no intuito de garantir o direito sindical de bolsa para suas filhas – passei todos os anos escolares em uma instituição cujo corpo discente e docente eram, quase exclusivamente, branco e rico. O lugar de filha de uma funcionária fez dessa escola minha primeira casa, um espaço onde passava grande parte do tempo. Além da dedicação aos estudos, lá eu também cresci. Certamente foi nesse contexto que vivi minhas conquistas e construí relações de afeto e carinho. Mas, diante do histórico de vida dos negros no Brasil, não é surpresa dizer que a vivência nesse espaço teve muitas tensões, tristezas e violências. Afinal, as diferenças eram expressivas e evidentes no meu cotidiano. Durante os anos escolares, as respostas que tinha para compreender as dificuldades que vivia se relacionavam com a grande diferença econômica entre eu e o meu entorno naquela escola. Aquele lugar não tinha sido pensado para mim e, já que eu estava no “lugar errado”, o que poderia fazer era lidar com isso enquanto fosse necessário. Assim, todas as situações em que me senti diferente, inadequada, desconfortável e excluída eram passíveis de perder sentido caso eu chegasse a partilhar dos mesmos recursos materiais que todos daquele ambiente partilhavam. A classe social era, então, a chave de compreensão de minhas relações, assim como disseram 15 intelectuais brasileiros. Estes, procurando entender a desigualdade no país, afirmam ser a pobreza – e o subdesenvolvimento do Brasil – o principal obstáculo a ser solucionado. Descobri o que era racismo – de forma conceitual – na universidade, ao participar de um programa que se propunha a pautar no ambiente acadêmico as discussões sobre as relações raciais: o Programa Conexões de Saberes. Assim, junto com outros colegas negros, construí novas referências para entender que nossa raça orientava pensamentos e atitudes das pessoas e me vi, consequentemente, como participante dessa lógica. Isso permitiu que eu relesse minha história, principalmente escolar, não só pelos marcadores da carência econômica, mas pelos marcadores raciais. No entanto, a mesma “tranquilidade” que a ideia do racismo me deu para compreender minha história, relativizando seu caráter estritamente individual, trouxe outro problema, já bastante enunciado pela militância negra. Não conseguia entender como era possível terem sido invisíveis por tanto tempo na minha trajetória de vida os indícios de uma ordem que, quando olhada mais refletidamente, eram tão evidentes. O mais complexo, no entanto, era compreender que saber de sua existência, conhecer e nomear essa ordem não fazia necessariamente com que eu a localizasse nas minhas relações e visibilizasse as estratégias construídas para lidar com ela, fossem essas para enfrentar, aceitar ou remediar. Foi a partir dessa inquietação, de perguntar por que não se vê aquilo que cotidianamente é exposto como regra social, que cheguei até aqui. Essa chegada não foi, e não poderia, ser solitária. Ela foi partilhada e trilhada entre muitos e eu mesma. A partir do incômodo de perguntar pelos motivos dessa invisibilidade, o campo de estudos sobre o preconceito racial, e as constantes referências às sofisticações de sua ambiguidade na atualidade, emergiu como um problema a ser enfrentado. Não somente a partir de seus efeitos na vida cotidiana, mas, principalmente pela explicitação das dinâmicas desse fenômeno que, por produzirem invisibilidade, exigem dos sujeitos alvos de sua violência um reposicionamento constante no mundo quando defrontados com a urgência de construir resistências. A pergunta então se delineou na tentativa de evidenciar, ou compreender melhor, as dinâmicas do preconceito no cenário atual, através da análise dos posicionamentos que sujeitos negros estabelecem diante dessa realidade. Para construir nosso posicionamento de enfrentar essas perguntas, iniciamos por apresentar nos itens do capítulo que se segue a introdução ao problema e os aspectos 16 metodológicos dessa pesquisa. No segundo capítulo, discutiremos alguns pontos da ambiguidade do racismo brasileiro. Para tal, focamos na construção da aceitação pública do racismo enquanto ideologia estruturante de nossas relações sociais e nas estratégias e políticas construídas para seu enfretamento, apontando também alguns de seus impasses. No terceiro capítulo, discutiremos o preconceito racial como dinâmica que atua na invisibilização e naturalização das hierarquias raciais, tornando-as ininterpeláveis não somente em situações de violência e humilhação, mas, ocultando sua eficiência em produzir efeitos de subordinação em outros aspectos da experiência de sujeitos negros. Nosso quarto capítulo apresenta as análises desse trabalho e por fim, as reflexões finais. 1.1. Caminhos metodológicos Como os sujeitos negros significam em suas trajetórias o preconceito racial hoje? Como constroem estratégias para lidar com as dimensões cotidianas do racismo? Como é possível nomear e enfrentar lógicas tão presentes, mas tão invisibilizadas? Como compreender os impactos do preconceito racial em nossa trajetória? Como já dito essas são algumas das perguntas que orientaram o desejo de realizar esse trabalho e aqui estarão explícitos os caminhos traçados para desenvolvê-lo. No entanto, para apresentar tal percurso e a construção possível de respostas, destacamos alguns dos entendimentos dessa iniciante investigadora sobre o assunto em questão nesse tópico: a pesquisa e seus aspectos metodológicos. Em minha trajetória acadêmica, as discussões sobre metodologia sempre foram difusas. Minha compreensão sobre as diferenciações entre método instrumento e metodologia constituiu uma questão para a qual não tinha respostas seguras. As disciplinas, textos e debates sobre o tema quase sempre apresentavam uma perspectiva de ciência neutra e positivista, carregada de certezas que geravam em mim desconfianças sobre como era possível recortar o mundo em pequenos pedaços e isolar as partes de interesse do pesquisador. A premissa da objetividade e universalidade da ciência moderna era um horizonte incômodo, sobretudo diante daquilo que fui buscar ao fazer psicologia. Historicamente, tal disciplina ocupou um lugar hegemônico de regulação e adaptação dos indivíduos. Eu, por outro lado, busquei esse curso por acreditar que a psicologia era o conhecimento e prática da emancipação. Minha 17 aproximação junto à área e, às ciências humanas em geral, se deu no campo da participação pastoral que, ancorada na teologia da libertação, tinha como pilares a liberdade, a centralidade do contexto comunitário e a luta por direitos. Conhecer essa outra história Psi, assim como conhecer um pouco mais de perto as críticas à ciência hegemônica, foi algo bastante conflituoso. Exigiu a construção e aproximação de um novo olhar sobre as formas de fazer e pensar ciência. Minha inserção com pesquisas na temática racial, no Programa Conexões de Saberes, implodiu ainda mais meus pensamentos sobre os processos de legitimidade envolvidos na construção de conhecimento, pois, naquele momento, o que eu estudava e pesquisava estava inteiramente relacionado com minha vida e meus interesses. Se já não achava possível, considerando a complexidade dos fenômenos que integram a experiência humana, “isolar totalmente o meu mundo” dentro de uma pesquisa, naquele momento “o meu mundo” e a pesquisa estavam em intensa relação. Para refletir sobre as relações raciais, era importante tomar a mim e a minha história como objetos de reflexão. A aproximação com os estudos raciais evidenciou um campo de estudos engajado e politicamente posicionado. A objetividade e rigor desses trabalhos não se delineavam por uma crença descomprometida na ciência, mas por sua escolha como ferramenta política, pela constatação de que a produção de conhecimento desenhada pelos moldes científicos era um dos meios a serem acionados e integrados na luta contra as violências do racismo. A ciência objetiva, nessa perspectiva, era também o campo social onde se legitimaram as inferioridades dos negros, consolidando privilégios e forjando a neutralidade e legitimidade da produção de conhecimento científico como um lugar branco. Sendo assim, a discussão sobre os pressupostos científicos eram de extrema importância na construção de uma perspectiva crítica e engajada no conhecimento sobre as relações raciais brasileiras. O exercício de trabalhar e lidar com essas relações foi moldando outra imagem sobre a produção de conhecimento, permitindo que, aos poucos, se diluísse a antiga perspectiva da ciência como uma prática que de tão específica e distante tinha quase um status de abstração. O contato com a sociologia das ausências e emergências de Santos (2002) contribuiu nesse processo para demarcar o conhecimento científico como uma perspectiva de conhecimento parcial sobre o mundo. Perspectiva que estabeleceu, através da classificação hierárquica de outros modos de saber da experiência humana, o 18 status de hegemonia, podendo, assim, instaurar a parcialidade de suas perspectivas como totalidade. A ciência hegemônica delegou ao domínio do senso comum, da irracionalidade e da imprecisão outros saberes e práticas sociais, incluindo aí aquelas dotadas dos afetos e sentidos da experiência. Em diálogo com outras formas de pensar socialmente a produção de conhecimento, a pesquisa se redimensionou como possibilidade de reflexão, um processo que consiste em construir e explicitar, não somente um posicionamento para perguntar, mas as possibilidades para conhecer. Os caminhos para esse saber permitiam – e exigiam – o diálogo com os posicionamentos, interesses e lugares sociais daquele que pergunta. Também na psicologia, a aproximação com a história da psicologia Social Latino Americana, concebida como um esforço crítico de psicólogos sociais engajados na compreensão dos problemas sociais dos países latinos, se mostrou como um importante campo de diálogo sobre os aspectos teóricos e metodológicos de uma ciência. Enquanto um movimento de resposta as insuficiências de um paradigma hegemônico e burguês que orientava as práticas e a produção de conhecimento na América Latina, o movimento de superação dessa hegemonia se traduz na negação da ciência burguesa e na apropriação da realidade dessas sociedades pelos cientistas, produzindo novos recortes e olhares capazes de não mais ignorar a história e realidade do seu contexto específico. A consideração de uma ciência não mais pautada no descompromisso social orientou o comprometimento de acadêmicos com a mudança social. Nos termos críticos dessa perspectiva, nenhuma ciência pode ser considerada neutra em seu desenvolvimento. Os contextos socioeconômicos se relacionam a qualquer empreendimento científico, estando as ciências humanas, nesse caso, muito mais sensíveis a esse tipo de influência. A contextualização histórica torna-se, então, referência na construção de novos caminhos paradigmáticos da psicologia social na América Latina. (Sandoval, 2000). Preciso destacar que as aproximações e experiências pessoais com o campo e com o problema aqui inscrito não são trabalhadas na perspectiva de construir uma legitimidade “apriorística” do meu conhecimento sobre essa realidade ou afirmar, somente pela via da experiência, minha perspectiva sobre ele. O que pretendo explicitar são os interesses envolvidos nesse processo, considerando que o ato de inseri-los no corpo dessa pesquisa permite expor ao debate metodológico as limitações e alcances do 19 conhecimento aqui pretendido. Adoto a perspectiva de Harraway (1995) ao considerar que não é a experiência do subalterno em si mesma que legitima o conhecimento sobre os elementos da subalternidade, mas sim a exposição de seus posicionamentos e uma relação crítica com a produção do saber. Dessa forma, discutir a metodologia de um trabalho é delineá-la como um elemento que extrapola os aspectos de uma disciplina instrumental que permite a apreensão total de um objeto existente na realidade definindo os procedimentos para tal. O percurso metodológico se faz, aqui, compreendido como um elemento do corpo de uma pesquisa que dialoga com a concepção e definição dos próprios sujeitos, com as relações estabelecidas entre pesquisador e pesquisado e com os caminhos da produção de saberes. Nesse sentido, pretendo expor o caminho metodológico escolhido como forma de demonstrar sua relação com o problema inscrito nesse trabalho, com seus objetivos e com a dimensão psicossocial atribuída ao fenômeno estudado. Apresentaremos o caminho metodológico dessa pesquisa como forma de pôr em discussão a escolha do método, sua aplicação, os procedimentos de análise e as relações com os sujeitos participantes. 1.2. Metodologia Escolher um delineamento metodológico para compreender de forma mais aprofundada aquilo que invisibiliza o racismo na continuidade e cotidianidade das trajetórias de sujeitos negros, não é tarefa simples, sobretudo se o desafio é trabalhar com um fenômeno que, de forma imprescindível, exige considerar as relações entre sujeito e sociedade. Essa perspectiva recusa, portanto, as análises mais psicologizantes sobre o preconceito que acabam por relegar aos sujeitos negros a responsabilidade total sobre o que vivem como subordinação, assim como também desconfia da primazia da dimensão estrutural das hierarquias raciais como fonte únicas de análise do racismo. Acreditamos que é concebendo as histórias dos indivíduos nessa relação, macro e micro-social, que o preconceito se apresente de formas menos aparente e, por isso, menos apreensível e “mensurável” em suas expressões individuais. Como apontaremos mais a frente, essa pesquisa pretendeu refletir sobre um fenômeno que têm – como fortes elementos em sua dinâmica – a ambiguidade em sua expressão social e atuação via mecanismos de invisibilização (Teodoro, 1996). De todo modo, considerá-lo como 20 fenômeno que se expressa de forma menos “visível” nas relações entre os indivíduos não significa conceber o preconceito como fenômeno individual. Aqui pretendemos constituir um olhar analítico que considere sujeito e sociedade como dimensões que se constituem em interação e contínua relação (Elias, 1994). A ambiguidade aqui se apresenta como o processo que mascara o racismo em sua expressão, seja pela cobertura de sua clareza, objetividade e intenção explícita, seja pelo incremento de sutilezas e sofisticação no seu potencial organizador da sociedade. A ambiguidade é inserida pela produção de discursos paradoxais que sustentam tanto o racismo como o preconceito racial. A invisibilização social desse fenômeno, por sua vez, é ancorada em diversos consensos sociais – democracia racial, mestiçagem, ideal de branqueamento – que forjam uma compreensão compartilhada socialmente de que o racismo, enquanto a expressão de uma desigualdade hierárquica racial, não teria lugar em uma sociedade harmoniosamente miscigenada (Guimarães, 2004a). Tais processos tornam difícil a identificação dos mecanismos de subordinação dos negros na hierarquia racial enquanto marcadores atuantes na história desses sujeitos e permitem que os modos de formatação dessas experiências, inclusive seu caráter de resistência, sejam lançados na esfera do silêncio, naturalização, patologia e, muitas vezes, de resignação. Lugares ideais para a reprodução da invisibilidade de uma ideologia que nos estruturou como nação, como sujeitos. Não por menos, por se tratarem de vivências de humilhação e sofrimento, os impactos do preconceito racial nas trajetórias dos negros/as, quando nomeados como tal, são ocultados como elementos presentes na história desses sujeitos. Em uma sociedade na qual o racismo funciona como uma organização social a ser negada, não se fala ou pensa sobre ela enquanto uma prática que se exerceu ou sofreu. Os desafios metodológicos que se colocam sobre esse campo passam pela problemática de se propor uma metodologia que seja capaz de alcançar as dinâmicas de um fenômeno presente, porém pulverizado na sociedade, na vida dos sujeitos dessa pesquisa e também na trajetória da pesquisadora. Trata-se de lançar mão de um método que faça falar sobre o que não existe de forma inteiramente interpelável e que, quando o é, tem sua enunciação proibida, negada ou questionada. Dessa forma, empreendemos na constituição desta investigação uma pesquisa qualitativa com dimensão participativa. A perspectiva participativa se destaca por pressupormos a presença do pesquisador/a em um campo constituído pela cotidianidade 21 dos sujeitos, grupos, comunidades ou instituições (Brandão, 1999). Os sujeitos, nesse caso, são participantes da investigação e se estabelece uma repartição dos lugares de produção de conhecimento no processo de pesquisa. Sendo assim, não existe dentro dessa concepção de investigação a exclusão dos sujeitos de pesquisa do processo intelectual da compreensão dos fenômenos e da elaboração do conhecimento, objetivo que se pretendeu alcançar com a pesquisa. Schmid (2008) nos lembra que ao Considerar o outro como parceiro, não só o processo de pesquisa passa a lidar com outras interpretações dos fenômenos estudados, quanto se abre para refletir sobre as relações de poder entre pesquisador e interlocutor ou colaborador e sobre o sentido e a utilidade da investigação para ambos. (Schmid, 2008. p.396). A dimensão participativa da pesquisa é entendida e delineada pela implicação do pesquisador naquilo que move os sujeitos com os quais ele se propõe a entender o problema. Sendo assim, a perspectiva qualitativa e participativa nessa pesquisa se delineou como abordagem metodológica que percebeu os sujeitos e pesquisadora imersos no processo de construção do conhecimento sobre o problema. A relação entre ambos pode ser entendida em um continuum; não como lugares radicalmente cindidos. 1.3. Sujeitos de pesquisa Dentro das dificuldades da escolha e fazendo a articulação com os objetivos dessa pesquisa, definiu-se como sujeitos homens e mulheres que se autodeclaravam negros e que apresentavam em sua história alguma aproximação com a discussão racial. Tal recorte foi feito visando tornar mais apreensível e identificável os elementos dessas trajetórias relacionados ao preconceito racial e ao momento atual do debate racial brasileiro. A aposta feita é que, sendo o racismo um fenômeno de efeitos e atuação ambígua, assim como é a discussão das relações raciais no Brasil, a escolha de sujeitos com alguma forma de engajamento poderia auxiliar na explicitação dos movimentos presentes na visibilização desse fenômeno. Esperávamos que os movimentos de aproximação e discussão sistemática das questões raciais brasileiras fizessem oportuno o debate e reflexividade dos sujeitos em relação ao problema em questão. 22 O universo que escolhemos foi o de estudantes universitários ou graduados que participaram durante a graduação de grupos de pesquisa, extensão, estudos ou vivência com a temática racial e que, por sua vez, tivessem o racismo como centralidade de suas discussões. O contexto da universidade foi escolhido por garantir maior acesso aos sujeitos e, principalmente, por ser um dos espaços sociais onde tem recaído a discussão sobre o enfrentamento dos efeitos do racismo brasileiro a partir da adoção de Ações Afirmativas. É sabido que diferentes discursos raciais têm estado em disputa de maneira cada vez mais contundente na pauta das instituições de ensino superior no Brasil. Esse movimento também tem acontecido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), nos últimos dez anos. A escolha por uma discussão mais sistemática da temática racial – e também a proximidade com os sujeitos – culminou no convite aos ex-bolsistas do Programa Conexões de Saberes, em sua versão de 2007 a 2009. Esse programa se configura na UFMG como um espaço de pesquisa/extensão e intervenção no qual debates acerca da questão racial na sociedade, e nas universidades brasileiras, são objetivos comuns. Certamente, o Programa Conexões de Saberes não é, dentro da UFMG, o único ambiente onde se tem debatido temas relacionados ao racismo brasileiro. 1 No entanto, foi no seio das discussões desse programa que essa pesquisa se moldou. A escolha por trabalhar com seus integrantes também teve relação com as aproximações entre o problema e a o perfil do programa. Logo, a política de contínua formação política aliada à formação acadêmica, a diversidade de discussões sobre o racismo brasileiro, assim como a centralidade do exercício de reflexão junto aos estudantes, fortaleceram a definição por trabalhar com os bolsistas do Conexões de Saberes da UFMG. A seguir apresentaremos, de forma breve, a descrição de alguns aspectos da história do programa no intuito de elucidar alguns dos pontos compartilhados pelos sujeitos dessa pesquisa e explicitar a escolha por trabalhar com esse programa. Destacam-se nesse debate o Programa Ações Afirmativas na UFMG, o NUQ – Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais e outras iniciativas mais pontuais dentro do contexto da UFMG. 1 23 1.3.1. Programa Conexões de Saberes O programa Conexões de Saberes: diálogos entre universidade e comunidades populares é um programa desenvolvido pelo Ministério da Educação, através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD/ MEC junto a Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e em parceria com o Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. O programa surgiu a partir da experiência da Rede Universitária de Espaços Populares (Ruep), ação formulada em 2003 pelo Observatório de Favelas que consistiu na articulação de universitários oriundos de comunidades populares para avaliação de políticas públicas e formação de lideranças com perfil técnico para atuação em suas comunidades de origem (Observatório de Favelas, 2008). O Conexões de Saberes surge, em âmbito nacional e como uma política do governo federal, em 2004, sendo implementado nesse ano como um projeto piloto em cinco universidades: UFMG, UFPE, UFRJ, UFF e UFRGS. Nos anos seguintes, o programa passa por contínuas ampliações e chega a estar presente, em 2008, em um total de 33 universidades (Almeida 2011). Como diretriz nacional, o programa busca trabalhar junto a estudantes com trajetórias populares em suas instituições de ensino superior, destinando-lhes bolsas de apoio acadêmico que possam contribuir para a permanência em seus cursos de graduação. De forma geral, o programa tem como objetivos: 1) fortalecer o protagonismo de estudantes de origem popular em atividades acadêmicas voltadas para a elaboração de diagnósticos, proposições e avaliação de políticas de ações afirmativas de acesso e permanência nas universidades federais; 2) possibilitar a inserção em atividades de ensino/pesquisa/ extensão em comunidades populares e outros grupos sociais excluídos, ampliando as relações entre a universidade e os moradores de espaços sociais diversos através da troca de saberes e fazeres entre esses territórios socioculturais (Ministério da Educação, n.d). Desde sua versão piloto em 2004, a UFMG integra o grupo de universidades que implementam o programa. Na UFMG, o Conexões de Saberes foi inicialmente coordenado pelo Programa Ações Afirmativas e Observatório da Juventude da Faculdade de Educação, tendo sido desenvolvidas ações no Aglomerado Santa Lúcia e no município de Contagem. Junto à comunidade do Aglomerado Santa Lúcia trabalhouse com constituição da memória coletiva, a partir da valorização de relatos e vivências 24 dos sujeitos moradores, vislumbrando a implantação de um centro de memória coletiva. No desenvolvimento do trabalho em Contagem a atuação teve como intenção o mapeamento de grupos culturais organizados ligados à juventude (Universidade Federal de Minas Gerais, [UFMG] n.d). Também desde 2004, um dos aspectos considerados primordiais na composição do grupo de bolsistas, nas temáticas abordadas pelo programa e no delineamento e desenvolvimento do projeto na UFMG, é a adoção do critério racial na seleção de bolsistas. Tal consideração se dá a partir da constatação da persistente desigualdade racial no âmbito educacional, sobretudo no ensino superior, evidenciada pela reprodução da exclusão no acesso e permanência de negros/as e pobres no espaço acadêmico (UFMG, n.d) Em 2007, o programa passou a ser coordenado pelo Núcleo de Psicologia Política, privilegiando o trabalho referenciado em três eixos principais: 1) Democratização da Universidade, a partir da realização de um mapeamento das lógicas e mecanismo de exclusão na UFMG; 2) Relação da Universidade com Comunidades Populares e Movimentos Sociais, eixo no qual essa relação foi trabalhada a partir do contato com grupos e movimentos sociais diversos e 3) Relação da Universidade com a Escola Pública, eixo que desenvolveu a parceria Conexões e Escola Aberta através da discussão sobre direitos humanos e relações raciais em escolas da rede pública de Belo Horizonte e região Metropolitana. Além do recorte racial explícito no delineamento do perfil de estudantes, o programa, desde sua implementação na UFMG, tem como fundamento de ação e reflexão o quadro brasileiro de desigualdades raciais. Através do debate sobre a adoção de Políticas de Ação Afirmativa para o acesso e permanência de estudantes de origem popular e negros/as no ensino superior brasileiro, o Conexões de Saberes se tornou umas dos atores a pautar junto à comunidade acadêmica a reflexão sobre o racismo brasileiro e suas dimensões. A publicação “Universidade Cindida, universidade em Conexão: ensaios sobre a democratização da Universidade” dedica-se à apresentação sistematizada das reflexões e questões que fizerem parte percurso do programa entre 2007 e 2009. Mayorga e Souza (2010), a partir da análise de memoriais de bolsistas, sustentam a perspectiva de política de permanência do programa e apontam que: 25 Tal percurso nos leva a compreender que uma política de ação afirmativa de permanência deve sim focar e cuidar das questões acadêmicas dos alunos negros e de origem popular na universidade e das bolsas de permanência; mas deve, sobretudo, contribuir para que esses mesmos alunos possam compreender de forma crítica as dinâmicas do racismo e da exclusão social na sociedade brasileira e também na universidade que marcam seus corpos e percursos, para que a partir daí possam construir novos posicionamentos (Mayorga & Souza, 2010, p.229). O programa promoveu, ao longo dos anos de 2007, 2008 e 2009, um percurso de debates e reflexões sobre o racismo brasileiro e o enfrentamento ao preconceito racial, focando principalmente na discussão sobre democratização da universidade. Em sua agenda de propostas se destacaram a proposição de seminários e eventos sobre a inserção de negros na UFMG, a discussão ininterrupta sobre o preconceito em oficinas de enfrentamento e a formação contínua dos bolsistas em temáticas relativas à democratização da sociedade. Assim, a proposição do Programa não se limita à gestão de uma política afirmativa de permanência orientada somente para a resolução dos limites econômicos que perpassam a inserção de estudantes negros e pobres na universidade. Visa, também, o fortalecimento e construção de uma identidade racial positiva e uma reflexão crítica que inclui a reconfiguração das trajetórias negras desses estudantes através de processo de ressignificação de suas vivências. Busca ultrapassar os enredamentos de interpretações individualizadas para encarar suas histórias de dificuldades e conquistas de forma contextualizada, inserida na história de uma sociedade estruturada por uma classificação racial. 1.4. Entrevistas: desafios do método e descrição dos procedimentos A escolha de entrevistas individuais como instrumento metodológico se deu prioritariamente pelo interesse de ouvir, construir e explorar as trajetórias e experiências dos sujeitos, ainda que, em sua formalidade metodológica, a construção dos dados que analisaremos não se constituiu nos moldes clássicos de um roteiro de entrevista. O uso de entrevistas sem roteiro prévio se delineou como um recurso que permitiu conciliar os objetivos específicos da pesquisa com a proposta de interação entre pesquisador e sujeitos. Os enquadres das entrevistas permitiram certa liberdade e autonomia dos sujeitos em refletir sobre a construção de suas falas e interferir, em diálogo com a entrevistadora, nos rumos dados ao tratamento do problema, possibilitando a 26 emergência de participação e implicação dos sujeitos com aquilo que se pretendia investigar. Pretendemos apreender, nos relatos das experiências dos sujeitos, aspectos de suas trajetórias relacionados ao preconceito racial, focando nos fatores que em sua história individual, ou mesmo em mudanças no contexto social, pudessem apontar elementos que permitissem tornar essas experiências inteligíveis, nomeáveis. Assim, esperávamos que estes expusessem, através de um olhar analítico das experiências, potencial de explicitar transformações nas dinâmicas do preconceito racial. Por meio das entrevistas, pretendeu-se estimular narrativas que auxiliassem na compreensão do fenômeno a partir da perspectiva que considera que as entrevistas fundamentais “quando se precisa/deseja mapear práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente explicitados” (Duarte, 2004, p. 215). A entrevista é, como método dentro da pesquisa qualitativa, a escolha predominante em ciências humanas no que diz respeito à produção de dados verbais, podendo ser utilizada em várias formatações (Flick, 2009). Sobretudo nas últimas décadas, as contribuições da linguística auxiliaram a retirar a entrevista do campo dos métodos menos válidos cientificamente ou dos métodos de suporte (Machado, 2002). De nossa parte, insistimos que seu potencial está na relação de sua utilização com os outros elementos presentes no corpo de uma pesquisa. Como qualquer outro instrumento metodológico, o uso da entrevista requer que o pesquisador se confronte com a escolha de seu método e por ele se responsabilize, seja em suas potencialidades seja em seus riscos e limites. Neste sentido, pontuaremos aqui dois desafios principais que parecem se inscrever no desenvolvimento de nossa investigação. O primeiro deles diz respeito à necessidade de elucidar de forma minuciosa e comprometida os caminhos e passos utilizados no desenho metodológico percorrido. (Duarte, 2004). O uso do material resultante de uma entrevista que, em suma, é a fala dos sujeitos escolhidos, transcrita e analisada, não pode ser considerada um processo simples. Para que isso fosse possível, existiu na relação com os sujeitos contato com os mesmos, negociações, aceites e recusas que são parte da metodologia e serão aqui considerados. O uso inocente desse instrumento pode levar o pesquisador a considerar a fala dos sujeitos um modo de acessar, de forma plena, uma dada realidade. Sabemos que estamos diante da construção de um processo que não se inicia ou se interrompe na fala do sujeito ou na 27 análise feita a partir dela. Tomar esse desafio como premissa, pressupôs questionar uma suposta linearidade no processo e analisar, portanto, alguns dilemas enfrentados. Outro ponto importante para essa análise é a necessidade de o pesquisador compreender que a entrevista se processa em meio a uma relação, que inclui o pesquisador, o pesquisado e os outros elementos que ali os unem, incluindo aí, os interesses de ambos (pesquisador e pesquisado). Essa dinâmica é essencialmente interativa e, por isso, se processa como uma construção da qual participam pesquisador e pesquisados. Os entraves e desenvolvimentos desta interação são elementos tão importantes quanto à própria fala do sujeito ou as perguntas do entrevistador. Nesse sentido, o pesquisador tem de ter responsabilidade e comprometimento com o tratamento do material coletado visto que dentro da prática acadêmica é ele quem ocupa o lugar de objetivar em um texto ou relato o que a interação de muitos sujeitos construiu. (Duarte, 2004, p. 218). O contato e a marcação das entrevistas se deram prioritariamente por e-mail. Nas primeiras tentativas, obtive poucas respostas, passando, então, a realizar os convites através de sites de relacionamento, sempre por meio de mensagens privadas. As comunicações por e-mail ou pelos sites de relacionamento se fizeram através de um convite em que se apresentava, brevemente, o tema da pesquisa e solicitava a disponibilidade para a participação na mesma, a partir das possibilidades de cada um dos convidados2. Em raras exceções foi utilizado o telefone para reagendar ou combinar detalhes do local e horário dos encontros. Quando necessário, os combinados foram revistos com bom tempo de antecedência. Todas as entrevistas foram realizadas em salas da própria universidade, uma conveniência da pesquisadora que também se mostrou conveniente aos entrevistados. Estes, por um motivo ou outro, ainda transitavam, mesmo depois de sua formação, pela UFMG. Destaco esse processo e a tranquilidade em que os convites, os aceites e as recusas aconteceram porque esse percurso do campo não teve nenhum dos percalços que a expectativa do trabalho me fez esperar. Aguardava, diante de certa dispersão dos sujeitos, um processo muito mais complicado para o acordo das entrevistas. No entanto, todos que aceitaram o convite demonstraram muita vontade e disponibilidade em me conceder seus relatos: em poucas situações, tivemos que desmarcar encontros. Como 2 A carta convite é apresentada nos anexos. 28 apresentado na delimitação do recorte dos sujeitos, os entrevistados são pessoas com as quais já trabalhei e compartilhei momentos durante um bom período de tempo no percurso de trabalho do Conexões de Saberes. Mas, a naturalidade sob a qual os acordos foram feitos me fez pensar que, de uma forma ou de outra, eles se fizeram parceiros desse trabalho e compartilharam comigo o interesse em pensar sobre esse problema, resgatando assim as parcerias e confiança construídas em outros momentos. Os entrevistados abriram para mim suas vidas tendo a confiança de que eu cuidaria bem delas. Contaram-me coisas doloridas e não se contiveram em chorar ou se emocionar quando quiseram, apostando, e insisto nisso, em uma confiança consolidada em momentos que extrapolaram o tempo das próprias entrevistas. No entanto, por mais tranquilo que tenha sido o acordo com os sujeitos, o desconforto desse processo se deu na necessidade de que eu mesma estabelecesse, diante de uma situação de comodidade e intimidade, o desconfortável lugar de desconhecimento e estranhamento necessário ao pesquisador. O principal obstáculo de usar entrevistas como ferramenta metodológica se deu prioritariamente pela minha necessidade de tomar, mesmo que minimamente, uma posição de dúvida em relação às narrativas que me eram contadas, quase sempre como se eu já as conhecesse. Por outro lado, tinha de considerar que elas não eram endereçadas a uma pesquisadora desconhecida; ao contrário, se dirigiam a uma pesquisadora afetivamente comprometida com o problema. Tomar esse lugar, a partir do desconforto com o familiar, produziu algumas tensões no processo, exigindo a configuração de uma relação até então inédita entre mim e as pessoas entrevistadas. Um lugar comprometido com a familiaridade daquelas experiências, mas desapegado do que de comum ou esperado, nossa história prévia poderia fazer emergir. Com o interesse pelo que de novo poderia surgir dessa relação, tomei, de outra perspectiva, o desenvolvimento de cada umas das entrevistas ao tentar conceder aos entrevistados a possibilidade de debater comigo o processo das entrevistas, as perguntas e os rumos de cada narrativa. Minha aposta foi que o novo da relação só poderia surgir sob um tensionamento do lugar de pesquisadora que ocupei em cada encontro. A partir daí, o debate sobre os meus interesses, objetivos e postura diante do tema da pesquisa e dos temas discutidos em cada encontro foi constante com todos os entrevistados. Admito que estar nesse lugar não foi tarefa muito fácil, pois significou admitir também minhas limitações e construir posições frente às tensões para as quais não 29 estava preparada. Tendo a necessidade de “estranhar o familiar”, era imprescindível trabalhar com as posições de poder inseridas em uma investigação. Se o pesquisador é quem define a orientação sobre os rumos da produção de dados, propus o exercício inverso: conceder aos sujeitos o lugar de assumir os relatos, suspendendo meus interesses iniciais. Essa postura não tinha a intenção de eliminar as hierarquias ali presentes, pois as relações entre pesquisador e sujeito não se limitam ao momento de uma entrevista, mas sim às configurações históricas de poder na ciência. Pretender desconsiderá-las é tarefa ingênua. Adotei essa postura na tentativa de permitir ouvir o familiar apresentado pelos meus ex-companheiros de trabalho, a partir de um registro construído pelo outro e não guiado por mim. Assim, os meus direcionamentos puderam se dar em meio a registros menos limitados àquilo que já conhecia da história de cada um dos entrevistados. A partir dessa exposição, cabe reafirmar que as entrevistas não foram trabalhadas a partir de nenhum roteiro de perguntas previamente definido. A única orientação existente foi a demanda inicial de que os sujeitos contassem – permitindo a gravação – suas trajetórias de vida, tomando como partida e chegada aquilo que considerassem mais oportuno e interessante a partir do acesso ao tema da pesquisa, que foi apresentado no convite para as entrevistas. Os cuidados éticos relacionados ao anonimato dos sujeitos e sua autonomia em relação ao conteúdo das entrevistas foram negociados e acordados com todos os participantes nos momentos iniciais, a cada entrevista. Foram resguardadas todas as informações pessoais que pudessem identificá-los, como nomes próprios, endereços, empregadores e outros. Também foram suprimidas das análises informações ou falas que os sujeitos julgaram terem sido indevidamente anunciadas. Todas as informações solicitadas pelos participantes foram respondidas, assim como suas questões relativas aos objetivos e problemas da pesquisa. A partir do caminho que eles escolheram para relatar suas vidas, foram feitas intervenções, questionamentos e proposições que fizessem com que as histórias dialogassem com os objetivos dessa pesquisa e com os interesses construídos a partir dos referenciais adotados. Dessa forma, a cada entrevista, novas perguntas e dúvidas sobre o problema foram surgindo e se desmembraram em novos delineamentos para o foco e orientações das entrevistas futuras em perspectiva das anteriores. No total, foram realizados dez encontros individuais com três homens e três mulheres, sendo dois encontros com quatro deles e um com dois deles. A duração dos 30 encontros foi bastante variável. Algumas vezes em função da agenda dos entrevistados, mas, principalmente, assim como analisaremos mais a frente, em função do conteúdo e dinâmica da entrevista. As questões relacionadas às dinâmicas das entrevistas serão tratadas em nossas análises na exposição das trajetórias individuais dos sujeitos dessa pesquisa. 1.5. Análise dos dados Para o tratamento e análise dos dados, a ausência de um roteiro pré- estabelecido no desenvolvimento das entrevistas fez necessário o movimento inicial de tomar como referência cada uma das trajetórias apresentadas em suas singularidades e peculiaridades. Esse esforço se deu na proposta de compreender as vicissitudes das experiências relatadas a fim de apreender, de cada uma, os principais posicionamentos e enquadramentos em suas trajetórias. Esse primeiro movimento pretendeu analisar as experiências apresentadas em cada relato com o intuito de compreendê-las e tomar como destaque seus contextos sociais específicos, analisando cada sujeito dentro de sua particularidade. Consideramos esse primeiro exercício necessário para evidenciar que, mesmo partilhando de marcadores sociais comuns, as trajetórias desses sujeitos são múltiplas e apresentam um distinto e complexo potencial analítico da capilaridade do preconceito racial enquanto fenômeno marcante nas trajetórias negras. A partir dessa singularidade, iremos expor dentro de cada trajetória o segundo exercício analítico que consistiu na categorização de elementos que se mostraram partilhados e reincidentes no cumprimento do objetivo de compreender as incidências das dinâmicas do preconceito racial, demonstrando, de forma mais detalhada, os dilemas e enfrentamentos que as sofisticações desse fenômeno têm apresentado no contexto atual. Tal exercício propiciou um diálogo com o campo de estudos sobre preconceito racial utilizado como referencial teórico dessa pesquisa. 31 CAPÍTULO 2 2. RAÇA E RACISMO NO BRASIL: DESAFIOS DA AMBIGUIDADE CONSTANTE É através da coexistência de afirmações e negações que podemos pensar a questão racial no Brasil. “O Brasil é um país racista? Sim e não. O Brasil é uma democracia racial? Sim e não. Somos racistas e não racistas.” (Pereira, 1996. p.75). A ambiguidade pela qual se estrutura o modelo racial no Brasil tem variados efeitos, desde aqueles mais simbólicos como a consolidação de uma memória não violenta da escravidão brasileira no imaginário social (Chauí, 2000), até aqueles datados historicamente como a adoção constitucional do princípio da igualdade no Brasil em uma sociedade ainda escravista (Barrozo, 2004). O caráter ambíguo das relações raciais no Brasil, seja no exercício de reflexão acadêmica, seja na vivência cotidiana de seus efeitos, é um elemento inquestionável do racismo brasileiro (Pereira, 1996). Na procura por discutir essa ambiguidade, Pereira (1996) oferece quatro pares analíticos que podem auxiliar na apreensão do caráter que torna o modelo racial brasileiro incomparável com o de outros países, dada sua dimensão de “ser e não ser”. Vamos adotar na nossa reflexão os dois primeiros pontos debatidos pelo autor, a saber, o “racismo verdadeiro e racismo falso” e “o discurso e a prática social” por serem esses os mais elucidativos das questões que pretendemos trabalhar3. É à luz destes dois planos de interpretação que pretendemos discutir o desafio de apreender contornos atuais da temática racial, assim como, perguntar pela persistência da ambiguidade racial brasileira e suas articulações com o preconceito racial. O primeiro par – “racismo verdadeiro e racismo falso” – propõe a contraposição entre as concepções de racismo nas quais, por motivos históricos, a ideia compartilhada no senso comum se relacionaria às dimensões de crueldade e violência do extermínio étnicos dos regimes nazifascistas ou das práticas discriminatórias institucionalizadas no apartheid social estadunidense e sul-africano. Esse entendimento adotado como o racismo empiricamente verdadeiro falsearia qualquer perspectiva racialista que 3 Os demais pontos desenvolvidos pelo autor se referem ao negro e sua cultura, que trata da incorporação da cultura negra no discurso da mestiçagem e do debate raça e classe como um mecanismo que organização a leitura da desigualdade brasileira somente sob os aspectos econômicos. (Pereira, 1996). 32 fundamentasse a existência de preconceito no nosso campo de relações sociais e interpessoais, visto que no Brasil nunca existiu, mesmo diante da escravidão4, tal racismo verdadeiro, violento e segregacionista, implementado até a Segunda Guerra Mundial (Pereira, 1996)5. O segundo par, o discurso e a prática social, se refere ao sistema de valores discursivos de harmonia que de forma eficiente atuam no controle do comportamento real do sistema de relações raciais e institui uma não correspondência entre “os níveis do discurso ou da atitude e da prática social” (Pereira, 1996, p. 77). Essa desarticulação insere como desafio a reflexão sistemática sobre os impactos e transformações, materiais e simbólicas, que os enfrentamentos ao racismo brasileiro têm implementado, na medida em que no país a formalidade legal e discursiva sempre esteve em descompasso com o conjunto de valores e crenças sociais que orientam as dinâmicas sociais. Nesse sentido, o esforço de compreensão e explicitação da ambiguidade que nos é tão peculiar torna-se ponto de partida para a construção de possíveis respostas aos problemas de ordem racial no Brasil, sobretudo nos últimos anos em que os discursos sobre as desigualdades raciais e seu enfrentamento têm sido apresentados a sociedade brasileira de forma cada vez mais consistente no cenário público. Como presenças cada vez mais constantes podemos destacar o debate nacional e legal sobre as políticas de cotas, os efeitos da Conferência de Durban, a presença racializada na mídia de personagens e personalidades negras, a aprovação do Estatuto de Igualdade Racial, a implementação da Lei 10.639/03, a criação da Secretaria Especial de Igualdade Racial, entre tantas outras estratégias que vem sendo desenvolvidas em âmbito nacional ou local. Mesmo que a constatação de um debate público sobre raça possa ter um caráter 4 Guimarães (2005) e Chauí (2000) apresentam aspectos que na história de constituição da identidade nacional construíram ideias românticas ou menos violentas sobre os arranjos da escravidão brasileira. Guimarães destaca os processos relacionados às leituras comparativas entre Brasil e outros países escravistas e Chauí trabalho com a construção mítica da harmônica identidade nacional. 5 No início dos anos 50, por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) patrocinou uma série de pesquisas sobre as relações raciais brasileiras, a partir da constatação de que era o Brasil um exemplo mundial da tolerância racial. As investigações foram desenvolvidas tendo em vista que, diante dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, era preciso compreender e explorar uma experiência de convívio e tolerância racial bem-sucedida. (Maio, 1999). 33 parcial6, não podemos negar que nas últimas três décadas o país tem encarado de forma mais contundente os desafios sobre o tema (Telles, 2003). Tal processo exigiu que os posicionamentos sobre o racismo brasileiro fossem pautados com maior centralidade na cena pública e que se rearticulassem os discursos raciais, mesmo que em propostas distantes de sua total dissolução. É também inegável que, desde os anos 90 até os dias atuais, tem crescido o número de políticas e estratégias públicas que pretendem solucionar, pela via da gestão dos aspectos estruturais, as desigualdades consideradas, de forma minimamente consensuada, frutos de uma assimetria racial. O que nos competiu, portanto, foi, a partir do enquadramento das transformações (e porque não avanços) no debate racial brasileiro, fazer persistir a pergunta sobre a ambiguidade no sentido de reafirmá-la como um desafio constante. Assim, discutiremos os nossos desdobramentos dos pontos acima mencionados respectivamente nos itens que se seguem, no sentido de debater aspectos dessa ambiguidade e reconhecer que ela se fundamenta na coexistência de “realidades” aparentemente opostas. Refletir continuamente sobre essa oposição e seus rearranjos é um caminho possível para a compreensão da série de dinâmicas de opressão produzidas por um sistema que adota a raça como um critério classificatório, mesmo que de forma publicamente não declarada. A ambiguidade afeta a visibilidade e compreensão do racismo e de seus efeitos – como o preconceito, por exemplo – e, por isso, se coloca como uma questão e ser enfrentada. 2.1. Racismo verdadeiro? A recusa do racismo brasileiro pela perspectiva da comparação. A hegemonia do discurso da democracia racial no Brasil passou por constantes questionamentos desde sua denúncia como mecanismo de recusa do racismo brasileiro (Telles, 2003; Guimarães, 2006). Nesse sentido são distintas as teses que se propuseram a debater as razões pelas quais se construiu um quadro interpretativo das relações sociais brasileiras pautadas na oposição e negação da existência do racismo ou na consideração de um quadro racial menos violento. Admitindo a diversidade de 6 Afirmamos a parcialidade dessa constatação pelo diálogo com trabalhos que demonstram a centralidade pública da categoria raça na constituição do Estado Brasileiro (Schwarcz, 1998). É evidente a partir de análises das políticas de desenvolvimento brasileiras (Telles, 2003) que o discurso sobre a raça negra tinha caráter público e se moldava como um problema enfrentado pela nação, fundamentando o projeto de modernidade brasileiro no século XX. 34 elementos que na história brasileira contribuíram para a sedimentação da perspectiva de recusa ao racismo, escolhemos debater a perspectiva que, ao focar nas dimensões de raça e racismo como conceitos analíticos da experiência social não cientificamente realistas, permitem explicitar que a recusa do racismo no Brasil se fez também fundamentada em uma compreensão desse fenômeno que não considerou a configuração própria da racialização brasileira. Compreender como múltiplos os racismos, assim como considerar distintos os contornos que essa ideologia tomou em diferentes sociedades, exige que trabalhemos com a concepção de racismo referenciada pela construção social da categoria raça. Categoria que, mesmo desprovida de alguma realidade natural, orientou formas de classificação social (Guimarães, 2005; Munanga, 2004; Hofbauer, 2006). No século XVIII, o conceito de raça e sua ideia subjacente de classificação foram transportados das ciências naturais, Botânica e Zoologia, no intuito de reconstruir a ideia de humanidade e explicar – à luz da racionalidade iluminista e não mais de fundamentos teológicos – o lugar do “outro” colonizado, outro que, por sua diversidade, colocou em questão os limites da civilização ocidental (Munanga, 2004). Essa transposição teve como efeito não somente a classificação, necessária e imprescindível à experiência humana; ela produziu o efeito de hierarquização e construção de um outro racialmente inferior, pavimentando o racialismo. (Munanga, 2004, p.2). O estabelecimento dessa categoria aplicada à realidade humana parte de critérios artificiais que significaram a racialização da humanidade a partir da naturalização de qualidades morais, psicológicas, culturais e intelectuais lidas por meio de uma relação intrínseca com aspectos biológicos. (Guimarães 2005, Munanga, 2004) Guimarães (2005) trabalha com os dilemas envolvidos nos usos do termo raça para orientar a compressão de categorizações sociais e estabelecimento de hierarquias pelo campo de estudos das ciências sociais, sendo que esse debate se estrutura através de dois posicionamentos sustentados pela mesma repulsa discursiva ao racismo. A oposição ao uso do conceito se fundamenta na concepção biológica contemporânea da inexistência de raças humanas ou no caráter reificador de ideologias de naturalização das desigualdades de grupos humanos que o termo pode perpetuar. Por outro lado sua utilização vem sendo defendida a partir do potencial da categoria em apontar o caráter específico de determinadas crenças e práticas de discriminação social e, ainda, da possibilidade de reconstrução do termo no tratamento crítico das mesmas ideologias 35 opressivas que se fundamentaram na construção da ideia de raça (Guimarães, 2005, pp. 21-22). É diante desse dilema que se formula a proposta do uso do conceito de raça a partir da leitura precisa de sua articulação com formas particulares de produção de discriminações e sua vinculação às identidades sociais. Assim, “diferenças fenotípicas entre indivíduos e grupos humanos, assim como diferenças intelectuais, morais e culturais, não podem ser atribuídas, diretamente, a diferenças biológicas, mas devem ser creditadas a construções socioculturais e a condicionantes ambientais.” (Guimarães, 2005, p. 24). Retomar de forma crítica o conceito de raça reside em estabelecer as distinções específicas de hierarquização da experiência humana que o racismo fez operar em diferentes sociedades. Dessa forma, se instala a necessidade de compreender como múltiplas e contextuais as formas de racismo, permitindo, via resgate de algumas análises sobre o racismo no Brasil, evidenciar o porquê de sua recusa ser ideia tão presente na história nacional e mundial. Em busca de uma definição mais precisa do que veio a ser o racismo nas sociedades modernas e, portanto, no projeto moderno do Brasil, é importante localizar a ideia específica de natureza que fundamentou a hierarquia racial (Guimarães, 2005). Essa delimitação se faz relevante na medida em que outras classificações sociais também partem da naturalização das diferenças para produzir hierarquias sem, no entanto, significar natureza como atributo biológico, endógeno ou hereditário, como aponta também Munanga (2004). Tal indefinição provocou nos estudos sociológicos do termo raça uma imprecisão conceitual que permitiu abstrair do conceito relações de subordinação ligadas a outros tipos de hierarquização, como gênero, etnia e classe social. Nesse sentido, a naturalização produzida pelo racismo está intimamente ligada a uma concepção de natureza pautada pelo determinismo endógeno, ou seja, se sustenta em uma teoria das raças que institui um sistema classificatório humano em que marcas físicas tomadas como hereditárias, mesmo dentro de regras de transmissão variadas, significam uma essência moral, intelectual e cultural partilhadas por um determinado grupo e não por outro (Guimarães, 2005, p. 33). Portanto, o conceito de raça carrega mais elementos políticos e ideológicos do que dimensões científicas e naturais (Guimarães, 2005; Munanga, 2004). Seu uso serviu para a invenção de um outro inferior. Por mais que não usemos mais o conceito de raça em um registro científico natural e que, biologicamente, essa definição não tenha 36 sentido, a ideia de raça ainda orienta nossas relações sociais. Munanga (2004) apresenta esse posicionamento e afirma que: Se na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de um biólogo molecular a raça não existe, no imaginário e na representação coletivos de diversas populações contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a partir das diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. É a partir dessas raças fictícias ou “raças sociais” que se reproduzem e se mantêm os racismos populares (Munanga, 2004, p.21) Como fruto de uma teoria diferencialista, o racismo pode ser entendido dentro de um projeto de modernidade. É na modernidade que a formulação de concepções individualistas e igualitárias circunscreve a interpretação das classificações humanas ao plano das diferenças hereditárias de atributos biológicos, psíquicos e morais dos grupos humanos. (Guimarães, p. 10, 2004b). O distintivo no racismo moderno seja justamente a ideia de que as desigualdades entre os seres humanos estão fundadas na diferença biológica, na natureza e na constituição mesmas do ser humano. A igualdade política e legal seria, portanto, a negação artificial e superficial da natureza das coisas e dos seres. Ora essa compreensão do racismo significa circunscrevê-lo à modernidade, pois nos remete logicamente ao aparecimento da ciência da biologia e da filosofia política liberal (Guimarães, 2004b, p.10). Com isso, a classificação hierárquica – orientada pela construção racializada do outro – significa conceber o racismo como uma ideologia essencialista que estabelece uma relação fundamental entre atributos biológicos e físicos e características morais, culturais, psicológicas e intelectuais. Tal concepção se coaduna a uma construção de uma norma e hegemonia pretendida com a apresentação da diferença. Nesse jogo relacional de classificações, os grupos humanos são diferenciados e desigualmente instituídos em inferiores e superiores a partir daquilo que lhes é atribuído como natural (Munanga, 2004). Mais do que uma realidade historicamente empírica, o racismo deve ser encarado como elemento analítico da configuração social que permite a inteligibilidade de determinadas realidades sociais. Por esse motivo, sua interpretação exige a consideração de distintas histórias de racismo e racialização – e não uma conceitualização estática referenciada por um determinado modelo de sociedade –, 37 sendo fundamental compreender o racismo brasileiro a partir de seu próprio contexto de categorização das raças. No Brasil, a utilização de teorias raciais respondeu à urgência de um projeto moderno de sociedade (Schwarcz, 1998). As grandes desigualdades do país, sobretudo as de caráter regional entre nordeste e sudeste, evidenciavam um futuro não promissor para uma nação que, em vistas com a abolição da escravatura, tinha que lidar com o ameaçador poder de degenerescência do contingente de negros anunciado pelo evolucionismo europeu. O termo raça, por sua vez, nunca teve no Brasil nenhum caráter neutro (Schwarcz, 1998). Por outro lado, seja pela via da solução do embranquecimento, seja pela “constatação” das deficiências físicas e mentais dos negros na escola de medicina da Bahia e de Direito do Recife, a leitura do Brasil como um país moderno e democrático se fez de modo racializado (Guimarães, 2005). No entanto, mesmo diante do tratamento dado à raça no Brasil, assim como em outros países latino-americanos, o racismo sempre foi considerado um interdito (Guimarães, 2005, 2006; Bernardino, 2002; Telles, 2003). O campo de estudos raciais, desde a metade do século XX, se fundou em um modelo estadunidense. Esta perspectiva, tomada como referencial para a compreensão da construção de raças, acabou demonstrando, pela ineficiência da própria comparação, a inexistência de um racialismo que pudesse fundamentar uma organização social brasileira racista (Telles, 2003; Guimarães, 2005). Essa tendência de comparação, operando na procura ponto a ponto de um racismo americano no Brasil também impossibilitou que definições próprias de raça e racismo fossem incorporadas na compreensão das desigualdades brasileiras. Ao contrário, a etiqueta refinada do distanciamento social brasileiro e as diferenças de status e possibilidades em meio à equivalência de direitos jurídicos eram o contraste ideal para delimitação de um paraíso racial (Guimarães, 2005, p. 41). Por sua vez, Telles (2003) argumenta que essa comparação se fundamentou na oposição de duas características antagônicas dos dois sistemas: a exclusão da segregação racial estadunidense e a conotação de inclusão da miscigenação brasileira. O modelo racial dos Estados Unidos foi, então, o pano de fundo de muitas interpretações das relações raciais no Brasil devido a sua hegemonia teórica no campo e influência na formação dos acadêmicos brasileiros (Telles, 2003; Guimarães, 2005), fato que provocou a utilização de uma teoria de raça formulada em uma sociedade para a interpretação do modelo 38 racial de outra (Telles, 2003). A aplicação de teorias de um contexto em outro é prática comum nas Ciências Humanas. Porém, nesse caso, tal exercício incorreu em equívocos analíticos nas relações raciais brasileiras. Diante disso, foi somente após a conquista do Movimento de Direitos Civis nos EUA e a persistência do distanciamento entre negros e brancos que a referência sobre as relações raciais marcadas pela centralidade da institucionalidade e segregação formal foi questionada e reinterpretada. Abriu-se a possibilidade de, também, compreender o racismo como um modelo em que as barreiras que não se limitavam a mecanismos puramente legais e publicamente institucionalizados, mas que operava na produção de desigualdades mascaradas em outros mecanismos menos visíveis (Guimarães, 2005). Nesse sentido, a perspectiva de comparação mudou de foco e pode contribuir para demonstrar possíveis aproximações entre os dois modelos e demonstrar que, assim como argumenta Telles (2003), o racismo pode ser também mantido por meios informais, o que torna, no Brasil, as práticas racistas violentas e repreensíveis menos importantes para a manutenção da discriminação racial (p.236). 2.2. Racismo no Brasil: práticas de aceitação e enfrentamento A organização e as reivindicações do Movimento Negro7 se constituíram no Brasil como o elemento principal para o questionamento da ideia de democracia racial. Mesmo que suas ações e mobilizações não se limitem ao período de redemocratização do país, assim como demonstrado por Domingues (2007), esse período foi marcado por maior abertura para a expressão de demandas dos movimentos sociais. Embora as demandas do Movimento Negro fossem lidas como ameaçadoras aos pilares do nacionalismo brasileiro, a reformulação e persistência desse ator político foi fundamental para instituir um quadro de reinterpretações da dinâmica racial brasileira, principalmente pós década de oitenta. Diante desse quadro, se estabelece no Brasil um cenário de maior diálogo e influência do movimento negro com as instâncias políticas do estado (Telles, 2003), instituindo o início de programas de enfrentamento às 7 Nesse trabalho utilizamos a expressão Movimento Negro como forma de nomear um ator político primordial na organização da luta antirracista no Brasil. A nomeação singularizada e unificada no entanto não desconhece a multiplicidade de vozes e experiências presentes na militância negra e a heterogeneidade e disputas nas agendas e pautas políticas desse movimento. 39 desigualdades raciais e a consolidação de uma maior aceitação pública da existência do racismo. No início da década de 1980, sempre por pressão do Movimento Negro, se inicia a instalação de conselhos especiais sobre a condição dos negros em alguns estados brasileiros, seguidos da criação, em nível federal, do Instituto Fundação Cultural Palmares, em 1988. Esse ano também marca as conquistas do Movimento Negro na reformulação constitucional dos direitos democráticos, a partir do estabelecimento dos princípios de tolerância, dignidade e respeito às diversidades identitárias (Telles, 2003). A constituição de leis de criminalização do racismo em nível estadual e municipal acompanha as tendências federais de instituir penalidades a práticas racistas e reiteram os pilares constitucionais de expansão dos direitos democráticos das minorias historicamente excluídas8. Telles (2003) também destaca a importância da eleição de negros em postos públicos importantes, fato que desafiou o lugar subalterno dos negros na sociedade e, principalmente, angariou, de forma regular, propostas de defesa do direito dos negros a partir da afirmação de sua negritude. O principal deslocamento realizado nesse momento está na ampliação da visão sobre a condição dos negros para além dos aspectos culturais – visão comum no foco de organizações negras em diálogo com o Estado – fenômeno observado quando Líderes do movimento negro passaram a receber atenção nacional e internacional através de campanhas que destacavam como, no Brasil, os negros eram vítimas preferenciais da pobreza e das violações dos direitos humanos, inclusive crianças de rua, o tráfico de mulheres e a violência proveniente do crescente tráfico de drogas. (Telles, 2003, p.73) A década de 1990 marca a organização do movimento negro em ONGs mais profissionalizadas e instrumentalizadas, contando com o apoio de fundações internacionais como por exemplo, a Fundação Ford. Essa forma de organização acompanhou as tendências de outros movimentos sociais e permitiu o incremento de recursos e profissionais na ampliação das iniciativas de luta contra o racismo em distintos níveis (Telles, 2003). A criação de linhas diretas como o SOS Racismo, a formulação em organizações negras de assistência jurídica às vítimas de racismo, o 8 Destaca-se o artigo 5 (inciso 42) da constituição federal que institui a prática de racismo como crime inafiançável, imprescritível e sujeito a reclusão. 40 lançamento de campanhas educativas e a utilização da mídia na divulgação de suas ações, assim como na denúncia de racismo em programas televisivos, são alguns dos exemplos de estratégias do movimento negro sustentadas pela reestruturação organizacional desse período (Telles, 2003). Os anos noventa registram a radicalidade da denúncia do racismo no país e impacta o meio acadêmico pelo reconhecimento dos estudos sobre raça como campo legítimo de pesquisas, alavancando, de forma cada vez mais sólida, a produção de dados quantitativos e qualitativos sobre as desigualdades raciais (Guimarães, 2008). A participação do Brasil na Conferência de Durban9 marca o reconhecimento do dever do Estado brasileiro em agir ativamente contra o racismo a partir da proposição de ações de enfrentamento como, por exemplo, políticas de ação afirmativa. Hofbauer (2006) situa essa mudança a partir da Conferência e afirma que Se, durante muito tempo, os governos brasileiros se orgulharam de pregar na cena internacional a ausência do racismo no país, no governo F.H. Cardoso pôde-se perceber claros sinais de uma mudança de discurso e de ação: pela primeira vez, reconheceu-se oficialmente a existência de um “problema racial” e se passou a estar preocupado com estratégias específicas de combatê-lo. (Hofbauer, 2006, p. 9) Ademais, a imprensa destacou as discussões raciais nas semanas que precederam a Conferência, marcando uma mudança histórica no tratamento jornalístico das questões raciais. Telles (2003) nota que entre 25 e 31 de agosto foram publicados pelos cinco maiores jornais brasileiros 170 artigos, editoriais, cartas e opiniões sobre raça, racismo e sobre a própria conferência, demonstrando que a mídia passava a considerar as questões raciais como interesse público. A Conferência deixou um clima de otimismo entre os militantes negros no Brasil (Bentes, 2002; Telles, 2003) que viam ruir o silêncio sobre o racismo brasileiro já em crescente eliminação nos últimos anos. 10 .No entanto, as políticas de nível federal que resultaram do compromisso brasileiro contra o racismo foram o estabelecimento, em 200, de programas de bolsas para negros do Instituto Rio Branco e da determinação de 9 A Terceira Conferência Mundial da ONU contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas aconteceu no ano de 2001 em Durban, na África do Sul e reuniu mais de seis mil representantes de governos e ONGs. (Dopcke, 2001) 10 Em 1995, a pesquisa Datafolha revela que 89% dos brasileiros afirmavam que existe preconceito racial no Brasil. 41 uma porcentagem mínima de 20% de negros nas empresas que prestavam serviços ao Supremo Tribunal Federal. Já no governo Lula, é sancionada em 2003 a Lei 10.639, lei que institui a obrigatoriedade de Educação das Relações Étnico-raciais e do Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana no currículo oficial da Rede de Ensino, marcando uma importante conquista no enfrentamento ao racismo. O desenvolvimento de ações afirmativas é também uma importante frente de luta e enfrentamento, sendo que, no Brasil, é um tema recente e tem focado basicamente o acesso à universidade. Mesmo com foco mais restrito do que o desejável, a adoção dessas políticas tem evidenciado os dissensos nos posicionamentos sobre as formas de enfrentar o racismo brasileiro, fazendo emergir reinterpretações do imaginário de democracia racial e revelando que a produção discursiva e instrumental de aceitação do racismo no Brasil ainda está distante de eliminar nossa cultura racista. O distanciamento entre a formulação de políticas de enfrentamento ao racismo e a transformação de nossos padrões culturais é facilmente evidenciado nas análises de casos emblemáticos de discriminação racial. Em muitos deles o acionamento das leis antirracistas não foram suficientes para instituir uma interpretação racial a acontecimentos de humilhação e violência a negros. Telles (2003) destaca casos de repercussão nacional em que tanto a população em geral quanto o judiciário não legitimaram eventos de discriminação racial ancorados pelos discursos da mestiçagem e da democracia racial. O próprio debate em torno da adoção de ações afirmativas pode sintetizar o distanciamento entre o reconhecimento do racismo brasileiro, a adoção de políticas e eliminação de discursos que ancoram a negação do racismo no Brasil. Mayorga e Souza (2010) apresentam o debate sobre a adoção de ações afirmativas e – junto ao caminho percorrido por Hofbauer (2006), Santos et all (2008), Bittar e Almeida (2006) e Oliveira Filho (2009) – acabam por demonstrar a rearticulação atual dos pilares de sustentação do Brasil como não racista. Esses trabalhos remontam os discursos que, fazendo referência à configuração racial e social brasileira, pretendem apresentar a suposta incompatibilidade do cenário social do Brasil com tais políticas. A suposta impossibilidade de se definir o público-alvo de políticas raciais mediante o alto grau de miscigenação da população brasileira, a presunção de inconstitucionalidade das políticas afirmativas e, ainda, seus possíveis efeitos de segregação, são alguns dos argumentos que permeiam tais discursos. Nesse sentido, a produção em torno dos dilemas de 42 implementação de políticas focais apontam como os argumentos contra a efetivação de políticas afirmativas desconsideram as especificidades do racismo brasileiro reinstalando novas versões do mito da democracia racial e da mestiçagem como dispositivos que instalam a invisibilidade das desigualdades raciais em meio a um cenário de afirmação democrática. 2.3. Persistindo na denúncia Debater as distâncias entre as práticas e os discursos raciais no Brasil torna imprescindível a permanência da luta por reafirmar as dimensões do racismo e suas constantes rearticulações com as transformações e conquistas atuais no campo institucional e discursivo das relações raciais. Em consonância com esse desafio, alguns trabalhos têm se preocupado em ponderar diferentes nuances da ambiguidade racial brasileira a partir da análise dinâmica de experiências de negros e negras. Figueiredo (2004), por exemplo, questiona a ascensão social de negros como “antídoto” contra a discriminação e preconceito racial. A autora investiga as trajetórias de mobilidade social de empresários negros de classe média e analisa como o status social pode significar maior vulnerabilidade a vivências de preconceito e discriminação racial devido à presença majoritária de brancos nos espaços sociais frequentados por esses sujeitos. A autora também põe em questão como a percepção da discriminação racial se torna mais evidente nessas trajetórias. Porém, tal visibilidade não orientou necessariamente formas de enfrentamento nas trajetórias desses sujeitos, revelando que a dinâmica do enfrentamento ao racismo não parte somente do reconhecimento público ou subjetivo de sua existência, assim como permite evidenciar que o acesso a bens e recursos sociais prestigiados não eliminam a subalternidade na classificação racial. Weller e Silveira (2008), por sua vez, analisam a trajetória de jovens negras cotistas na universidade, focando, entre outros aspectos, as suas estratégias de enfrentamento ao preconceito e discriminação racial, em diferentes espaços, incluindo aí a própria universidade. As autoras concluem que: Os dados relativos às experiências escolares e vivências universitárias (...) confirmam nosso entendimento de que a resolução de problemas “crônicos” de desenvolvimento coletivo, produzidos por imbricados e sistemáticos processos de alijamento, seja de amplos setores socioculturais, grupos ou categorias de pessoas, ainda 43 constitui um grande desafio. A esperança de resultados palpáveis, depositada nas ações afirmativas, exige a tomada de outras medidas nacionais, regionais e locais. Depende ainda que o crescimento econômico visado pelas políticas específicas esteja associado ao combate às desigualdades e ao aperfeiçoamento institucional democrático. (Weller & Silveira, 2008, p. 944) Oliveira, Meneguel e Bernardes (2009) relatam a conflituosa experiência de ressignificação de vivências de discriminação racial de mulheres atendidas pelo programa SOS Racismo de Porto Alegre. Em sua discussão, apresentam os impactos subjetivos que a naturalização do lugar inferior dos negros impõe ao estabelecimento de estratégias de enfrentamento ao racismo e apontam, também, como o rompimento com as posições de assujeitamento dessas mulheres, que as permite denunciar as violências que sofrem, se dão em intensa articulação com o discurso racista dominante. Nesse sentido, a existência de um espaço institucional para a discussão e enfrentamento dessas questões, como é o SOS Racismo, é primordial para o apoio e legitimidades das vivências dessas mulheres; mas, não constrói, por si só, os fundamentos do enfrentamento mais subjetivo. Mais do que reafirmar a persistência da dinâmica racista brasileira, a perspectiva desses trabalhos contribui para evidenciar a importância do reconhecimento das dinâmicas mais sofisticadas do racismo brasileiro que não se encerram no seu reconhecimento público nem no enfrentamento legal, e sim, exigem amplitude nas possibilidades de interpretação e enfrentamento do racismo. Assim, colocamos o contexto de transformações do tratamento dado à questão racial no Brasil atualmente, como um enquadre consistente que sob o qual devemos fazer permanecer a pergunta sobre as ambiguidades. Considerando as ações e modificações que foram desenvolvidas no desafio de enfrentar o racismo, quais as repercussões que essas transformações trouxeram para as relações dos sujeitos? O racismo mudou? O preconceito mudou? Pretendemos inscrever essa pesquisa na persistência da pergunta sobre as rearticulações do racismo brasileiro. 44 CAPÍTULO 3 3. PRECONCEITO E PRECONCEITO RACIAL: LEITURAS E DINÂMICAS Seguindo diferentes perspectivas de conhecimento e distintos projetos de sociedade, diversas leituras sobre o preconceito foram construídas pela ciência ao longo do século XX. A psicologia, sobretudo a psicologia social, participou do empreendimento científico de investigação sobre o preconceito, contribuindo à sua maneira para a elaboração conceitual sobre esse fenômeno. Tomado como um fenômeno preocupante e intimamente relacionado a dimensões de conflito social, o preconceito ganha, na psicologia, um lugar privilegiado de estudo em virtude da primazia das interpretações de suas articulações se darem no nível das relações entre os indivíduos. Dessa forma, o estudo do preconceito pela psicologia pode ser concebido com uma área clássica de investigações (Guimarães, 2008; Chrochik, 2006; Duckitt, 1992; Gough & Mcfadden, 2001). Tomar como referência o histórico dessa produção nos serve como um caminho para a localização das complexidades, variabilidade e capilaridade social do fenômeno, reforçando a imagem do preconceito como um elemento que, ativamente, integra o corpo social e participa de seus processos de reprodutibilidade. Somos então apresentados, a partir das distintas perspectivas e abordagens na literatura sobre o tema, aos enredamentos que o tratamento analítico desse fenômeno pode manifestar diante de uma investigação que pretenda analisar suas implicações, dinâmicas e impactos. 3.1. O estudo do preconceito na Psicologia: aproximação da história e teorias Em trabalhos recentes (Lacerda, Pereira & Camino, 2002; Chrochik, 2006; Duckitt, 1992; Gough & McFadden, 2001), a revisão e releitura dos estudos fundadores desse campo conceitual são constantemente apresentadas para demonstrar o consolidado percurso de pesquisas e desenvolvimento do conceito. Nosso objetivo é revisitar a produção sobre o preconceito no sentido de expor algumas considerações importantes sobre o percurso histórico da área na psicologia, dando ênfase à apresentação dos 45 distintos fatores a ele atribuídos nas diferentes teorias e, também, aos limites e aspectos importantes apontados por tais pesquisas. De modo geral, a literatura apresenta o trabalho de Gordon Allport – A Natureza do Preconceito, publicado em 1954 – como aquele que instituiu o campo de estudo sobre o preconceito (Lacerda, Pereira & Camino, 2002; Dukit, 2002, Guimarães, 2008), e estabeleceu diretrizes e conceitos importantes para o tratamento desse fenômeno11. Duckit (1992), no entanto, remonta o histórico de estudos do preconceito localizando sua emergência no pensamento de Floyd Allport sobre os comportamentos raciais dos brancos em relação aos negros nos Estados Unidos, em 1924. Considerado o primeiro psicólogo social a explicar as estigmatizações sociais, seu trabalho recai sobre o comportamento dos brancos, pois o contexto da época exigia que se demonstrasse a inadequação de atitudes e ideias de estigmatização seguidas pelos sujeitos desse grupo racial. O autor relata que, até os anos 1920, o pensamento psicológico, influenciado pela ideologia da supremacia racial, admitia a diferença intelectual, moral e cultural entre as raças. As ideias sobre a inferioridade de grupos sociais, dos negros nesse caso, eram justificáveis e interpretadas como uma reação esperada dado o caráter natural das diferenças raciais (Duckit, 1992). A virada desse pensamento compreende as crenças na superioridade racial e os comportamentos de afirmação de inferioridade dos negros como injustificáveis e injustos: sua irracionalidade deveria ser explicada. A partir dessa demarcação, Duckit (1992) apresenta um percurso histórico dos estudos sobre o preconceito. Neste, o autor faz coincidir as distintas perspectivas teóricas com momentos históricos ao longo das décadas do século XX, sobretudo nos Estados Unidos, no intuito de evidenciar a prevalência de determinadas explicações sobre o preconceito ao longo do tempo. O histórico apresentado pelo autor mostra que, nos estudos sobre o preconceito, as análises sobre os seus determinantes, suas Um dos importantes conceitos estabelecidos pelo autor é o referente à “supercategorização”, ou generalização. Guimarães (2008), ao apresentar a tradição de estudos sobre preconceito na psicologia social, assim como Pinheiro (2011), Crochik (2006) e Camino et al (2001), aponta que Allport define o preconceito como fruto de um processo natural de generalização da vida social, imprescindível para a compreensão dos aspectos da vida real. No entanto, ele estabelece uma importante distinção que permanece sendo utilizada nos estudos da área: a distinção entre preconceito e prejulgamento. O prejulgamento seria aquele resultante do processo natural de generalização da vida social, estando passível de alteração a partir do acesso a aspectos da realidade que questionassem a legitimidade da generalização. O preconceito, por sua vez, é a generalização estática e imutável diante do conhecimento dos fatos concretos da realidade. (Guimarães, 2008, p. 48) 11 46 consequências e mecanismos de manutenção passaram por constantes revisões e atualizações, revelando a complexidade do exame deste fenômeno. Na revisão de Duckitt (1992), as décadas de 1930 e 1940 são marcadas pelos estudos psicodinâmicos nos quais o preconceito é concebido como o resultado de processos psíquicos universais, relacionados a mecanismos de defesas de nível inconsciente e, por isso, irracionais. Essa perspectiva pretendia responder à persistência de elementos de inferiorização dos brancos em relação aos negros americanos dentro de um contexto em que a superioridade branca não era mais um postulado. A década de 1950, pós Segunda Guerra mundial, marca uma mudança na perspectiva psicodinâmica. A preocupação recai não mais sobre os processos psicológicos universais que possibilitavam a emergência de atitudes preconceituosas. A ênfase passa a ser o estudo das patologias estruturais de personalidade que se relacionavam ao preconceito. A ideologia nazista e a antissemita que operaram durante a Segunda Guerra, lidas como fenômenos locais, colocaram em suspensão o caráter universal dos processos psicológicos subjacentes ao preconceito, tornando os contextos de formação das personalidades um ponto de investigação. Duckitt (1992) aponta os estudos de Adorno e colegas de 1950 como o trabalho destaque dessa concepção. As décadas de 1960 e 1970 marcam outra mudança de foco dos estudos sobre preconceito. Migra-se de uma leitura no nível individual para estudos das influências da cultura e da sociedade sobre as escolhas e comportamentos dos indivíduos. Essa mudança marca a emergência dos estudos do preconceito na perspectiva das relações intergrupais, a partir da leitura de tal fenômeno como uma dinâmica de conflito entre grupos ou sociedades, expressas também nas relações entre os sujeitos. A década de 1980, por sua vez, retorna a preocupação em explicar processos psicológicos atuantes no preconceito em virtude da ineficiência das teorias intergrupais em esclarecer as sofisticações que o preconceito sofria, sobretudo nos Estados Unidos. A pesquisa de McConahay e Hough, em 1976, (Duckitt, 1992), apresenta um tipo de racismo denominado simbólico, não consistindo mais na fundamentação de conflito de interesses, como a perspectiva intergrupal pretendia explicar. Ao realizar tal revisão, Duckitt (1992) fornece uma visão interessante sobre o percurso histórico do estudo desse tema evidenciando que as teorias sobre o preconceito apresentaram, cada uma, diferentes aspectos relacionados ao fenômeno sem, no entanto, fornecer explicações completas e todavia sem evidenciar sua parcialidade. Cada 47 explicação se concentrava em um fator do fenômeno sem se implicar com a eliminação eminente de outros. Nesse sentido, o desenvolvimento desses estudos é constantemente apresentado em uma perspectiva de continuidade, dado o caráter parcial das teorias, transparecendo um efeito de aumento da complexidade das explicações mediante o incremento de distintos fatores às análises. Reitera-se, então, uma dimensão evolutiva do pensamento científico que desconsidera importantes determinantes históricos, metodológicos, políticos e ideológicos. Segundo o autor, as mudanças nos níveis de análise sobre o preconceito não devem ser encaradas como o desenvolvimento progressivo, como superação da inadequação de uma teoria por outra mais precisa ou a simples transição de um nível puro de análise para outro. Por mais que essa ideia possa ser assumida – por exemplo, nos aspectos metodológicos das pesquisas –, é necessário que os períodos históricos em que essas proposições foram desenvolvidas sejam resgatados, no que se refere tanto às perspectivas teóricas quanto aos fenômenos sociais em evidência em cada período histórico (Duckitt, 1992). Essa relação permite compreender que os distintos enfoques e níveis de análise que os estudos sobre o preconceito tiveram ao longo do tempo estiveram relacionados não somente à eleição de fatores com maior potencial explicativo do fenômeno, mas também, a aspectos sociais e históricos relevantes em cada momento. Duckitt (1992) mostra que a parcialidade das abordagens sobre o preconceito permitiu tentativas de integração, classificação ou sistematização dessas teorias. O autor demonstra que as classificações são geralmente realizadas a partir do nível de análise das teorias. Mesmo dessa forma, é possível encontrar diferentes propostas de integração dos estudos. Para demonstrar as distintas tentativas de integração Duckitt toma como exemplo as classificações proposta por Alport que, em1954, dividiu em seis os distintos níveis de explicação sobre o preconceito: 1) nível histórico; 2) nível sociocultural; 3) nível da personalidade; 4) nível situacional; 5) nível das explicações fenomenológicas e; 6)nível de resposta a estímulos. Já em 1985, Simpson e Yinger estabelecem uma classificação em três níveis: um nível cultural, um nível de explicações de grupo e outro sobre os determinantes individuais do preconceito. No entanto, as categorizações que sugerem dois níveis básicos de análise – o sociológico e o psicológico – são as mais frequentes. (Ashmore, 1970; Babad, Birnbaum & Benne, 1983; Ehrlich, 1973 citado por Duckitt, 1992). 48 Para Duckitt (1992), em sua grande maioria, tais categorizações são uma simplificação da complexidade do fenômeno do preconceito (p.1182). A partir da crítica aos empreendimentos de integração das teorias sobre o preconceito podemos destacar que: Em geral, essas classificações não se mostraram muito esclarecedoras. Isso se dá porque elas são essencialmente descritivas, simplesmente agrupam as teorias que parecem estar operando em um nível similar. Como tal, elas não mostram como as teorias e abordagens em diferentes níveis poderiam se encaixar ou se complementar. Estas classificações também ignoram um fenômeno muito interessante, o de que as teorias e abordagens diferentes para explicar preconceito foram dominantes em diferentes períodos históricos (Duckitt, 1992, p. 1182) Essa premissa nos permite reconhecer que as classificações e as teorias sobre o preconceito calcadas na pureza de seus níveis de análise, a partir da leitura de seus principais interesses, não se mostram muito profícuas ao estudo de suas dinâmicas quando tomadas de forma ingênua e descontextualizada. A prudência que pretendemos retirar da análise realizada por Duckitt visa garantir um olhar menos simplificador sobre os estudos da área em termos de seus níveis de análise e, em consequência, reconhecer a complexidade do fenômeno sem pretender esgotá-la. É necessário demonstrar a limitação constituinte do recorte analítico, teórico e contextual de cada pesquisa. Esse ponto de análise reforça o fato de que os estudos sobre o preconceito tiveram diferentes orientações, já que partiram de diferentes formas de perguntar sobre o fenômeno e da prevalência histórica de diferentes orientações teóricas. Tal fato o que justifica a razão de muitas dessas teorias ainda serem referências importantes na área. Como argumenta Duckitt: “cada nova pergunta, portanto, tende a gerar uma mudança na percepção ou imagem do preconceito e obter novos tipos de teorias, orientações de pesquisa, e amplas perspectivas teóricas.” (Duckitt, 1992, p.1183). Embora apresente uma importante contextualização histórica dos estudos sobre o preconceito e uma importante crítica aos empreendimentos de categorização das teorias, a visão do autor acaba por desconsiderar a importância dos aspectos epistemológicos que orientaram tal percurso de pesquisa. As teorias e estudos sobre o preconceito certamente se relacionam às transformações históricas. Porém, o debate sobre as distintas perspectivas de ciência é um elemento importante para a compreensão da produção de leituras desse fenômeno. 49 Uma visão que considera esse debate é apresentada no trabalho de Gough e McFadden (2001). Estes autores discutem o percurso de pesquisas psicológicas sobre o preconceito, a partir do referencial da psicologia social crítica. Apresentam, de forma criteriosa, quatro grandes perspectivas de explicação sobre o preconceito que se desenvolveram na psicologia social clássica ao longo do século XX. Seguindo a mesma categorização proposta pelos autores, apresentamos abaixo tais tendências e suas principais orientações no sentido de explicitar as leituras das dinâmicas sociais de cada tendência. 3.1.1Processo Cognitivo – o preconceito na perspectiva da cognição social A partir da analogia do funcionamento da mente humana com a forma de processamento de informações de um computador, dentro da perspectiva da cognição social o preconceito é entendido como um erro no processamento de informações do indivíduo. O funcionamento da mente humana prevê que, em exposição ao ambiente, os indivíduos devam dar sentido às múltiplas informações com as quais tem contato. A complexidade dessas informações, em encontro com a capacidade limitada do processamento humano, exige que cada indivíduo opere um processamento de simplificação a partir da geração de categorias que possam gerar sentido sobre si mesmo e sobre os outros para a garantia da urgência das relações. Lippman (1992, citado por Gough & McFadden) sugere que a sobrecarga da nossa capacidade de processamento faz a categorização ser um geralmente um processo vantajoso. No entanto, a falha nesse processo pode produzir categorizações falhas e a formação de estereótipos de pessoas e grupos. Esses estereótipos podem influenciar as futuras percepções sobre sujeitos de um grupo, visto que o indivíduo é impelido a buscar informações que reafirmem o estereótipo pré-concebido (Gough e McFadden, 2001). Lacerda, Pereira & Camino (2002) enquadram nesta perspectiva os trabalhos de a) Hamilton, em 1979, sobre a formação de estereótipos; b) Pettigrew sobre a cognição social, em 1979; c) Ross, em 1977, com estudo sobre as distorções no processo de atribuição social e d) Schaller que, em 1991, realizou estudo sobre categorização social e formação de estereótipos de grupos. A centralidade dada ao indivíduo e, sobretudo, a existência de um aparato psíquico que comporta na existência da mente um processador de informações, 50 evidencia que nessa perspectiva de leitura do preconceito prevalece um caráter eminentemente internalista das articulações desse fenômeno. Há uma cisão radical entre indivíduo e sociedade, ruptura que descreve aquilo que sujeitos partilham de pensamento e concepções como originários dos próprios indivíduos e não de suas relações com contextos mais amplos (Wetherell & Potter, 1992 citados por Gough & McFadden, 2001). Ademais, o indivíduo é considerado de forma isolada de seu contexto de social, estando sua capacidade de processar dados no centro da produção de caracteres preconceituosos. Assim, todos os sujeitos estão passíveis de desenvolver pensamentos ou atitudes preconceituosas por qualquer tipo de pessoa do seu meio de relações, o que não se percebe na realidade social. Como apontado por Wetherell e Potter (1992, citados por Gough & McFadden, 2001), determinados grupos foram, ao longo da história, mais suscetíveis a se tornarem de pensamentos preconceituosos ou estereótipos. Isto não pode ser explicado por essa teoria. Essa perspectiva acaba por relegar aos sujeitos alvos dos estereótipos o empreendimento de demonstrar outros comportamentos e atitudes que possam conflitar com as imagens forjadas sobre eles, mostrando suas inconsistências. Ao pensarmos no preconceito racial, por exemplo, caberia aos negros – segundo esta orientação – o papel de solucionar, pela submissão ao ideal de comportamento branco, o preconceito racial. 3.1.2 Psicodinâmica – personalidade e preconceito Assim como Duckitt (1992), Gough e McFadden(2001) apresentam a psicodinâmica como uma abordagem teórica que buscou interpretar o preconceito pela leitura de dinâmicas psicológicas universais. Essa tendência é apresentada tendo como trabalho principal o estudo de Adorno – A Personalidade Autoritária, estudo que se preocupou em compreender o preconceito a partir de seus aspectos sociais e emocionais. Recusando a premissa dos processamentos puros de informações, essa vertente atribui ao preconceito outros elementos – e não somente o cognitivo – e reconhecem que sua expressão é acompanhada de intensos elementos afetivos também influenciados por circunstâncias sócio-políticas. O empreendimento desenvolvido por Adorno e seus colegas procura compreender as origens de tais sentimentos e suas formas de manifestação, a partir de uma orientação psicanalítica freudiana. Eles procuraram, 51 sobretudo, explicar porque, em determinados contextos históricos, ideologias políticas autoritárias influenciam os sujeitos em distintos níveis de sua subjetividade. Buscaram esclarecer os processos psicológicos partilhados por sujeitos que apresentavam tendência de adesão a ideologias antidemocráticas ou conservadoras intimamente relacionadas à disseminação de preconceitos, como o nazismo, por exemplo. Essa perspectiva sugere existir um determinado tipo de personalidade, a autoritária, que é atraída por esses tipos de ideologia (Gough & McFadden, 2001). A partir de experiências da infância, indivíduos que viveram uma dinâmica dualista com o mundo, em que parte dessa é super idealizada e outra estruturada por excesso de negatividade, a vivência de tal disciplina inconsistente, por parte dos pais, produziria tendência infantis de aprendizado de obediência à autoridade e temor pela expressão de desejos e sentimentos (Gough & McFadden, 2001). Acreditando que são más, as crianças podem se tornar masoquistas e, por isso, buscar atender às expectativas e normas dos pais, ao mesmo tempo em que aprendem a extrema importância de obedecer. No caso destas crianças, o superego, instância psíquica de representação das normas sociais e vigilância, se estrutura de forma demasiadamente forte e punitiva, julgando severamente os sujeitos a submissão das normas e padrões sociais. Via mecanismo de defesa, indivíduos com essa personalidade tenderiam a projetar o ódio interno sobre suas inadequações às figuras externas representadas socialmente como fracas ou incapacitadas. Diante do caráter universalista dado aos processos mentais subjacentes as personalidades autoritárias, essa tendência foi criticada por não permitir a explicação das dinâmicas do preconceito a partir de mudanças de ambiente de caráter mais microsocial. Mudanças que alteram as dinâmicas de relação entre os sujeitos, modificando as variações de percepção entre os indivíduos em contextos particulares. Ademais, Lacerda, Pereira & Camino (2002) apontam que essas explicações recaem sobre as origens psicológicas e individuais do fenômeno pelo grande enfoque dado à personalidade, à disposição mental e aos sentimentos internos. Os autores enquadram na visão psicodinâmica sobre o preconceito não somente as teorias da “personalidade autoritária” de Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford (1950, citados por Lacerda, Pereira & Camino, 2002), mas também a teoria da “frustração-agressão” de Dollard, Doob, Miller, Mowrer e Sears e do "espírito fechado" de Rokeach (1960 citado 52 por Lacerda, Pereira & Camino, 2002). A unidade de análise desses estudos está referida ao indivíduo e suas atitudes, fato que os aproxima. 3.1.3 Sujeito e pertencimento grupal – preconceito a partir das relações entre grupos A terceira tendência apresentada por Gough e McFadden (2001) está nos estudos que procuraram pesquisar o preconceito pelo viés do pertencimento grupal e inserção da leitura do indivíduo em uma categoria social. A Teoria do Conflito Realista Grupal, desenvolvida por Sherif e Sherif (1969, citados por Gough & McFadden, 2001) explica que a relação entre grupos e seus membros acontece de forma não harmônica em virtude de conflitos de interesses. Os laços e vínculos entre os sujeitos dos grupos levam à adoção de comportamentos de manutenção dos interesses endogrupais pela garantia de recursos do grupo de pertença. Aqui, recaem críticas sobre o fato de que o conflito é dado como saída natural ao embate de interesse por recursos. Para Gough e McFadden (2001) a eliminação da disputa por recursos – por exemplo, pelo aumento da oferta dos mesmos –, também significaria a eliminação do conflito. Tal como a tendência cognitivista, essa leitura ignora representações históricas de determinados grupos e tira a dimensão do poder da expressão do preconceito. A contribuição mais marcante da perspectiva do pertencimento grupal foi, no entanto, a proposta pelos trabalhos de Tajfel (Lacerda, Pereira & Camino, 2002). Ele postulou que as relações grupais implicam distintas modificações psicológicas na forma como os sujeitos se identificam e identificam aos outros fora do grupo. Em resposta à insuficiência do trabalho de Sherif e Sherif, citado acima, o conflito entre grupos acontece mesmo na ausência de disputa de interesses ou recursos. Tajfel considera o comportamento interpessoal um contínuo do comportamento grupal. O comportamento interpessoal é expresso quando somos tomados como indivíduos, percebendo os outros como indivíduos, considerando suas características de personalidade isoladas e únicas. O outro comportamento é o comportamento intergrupal – expresso a partir da autopercepção como participantes de um grupo. (Gough & McFadden, 2001, p.200) O preconceito, nessa perspectiva, seria resultante de um favoritismo endogrupal que traduziria a necessidade de atribuições negativas ao grupo distinto. Nos trabalhos do autor sobre a diferenciação intergrupal (1982), a divisão social em grupos – e a 53 consciência pessoal da existência de grupos distintos ao seu –seria motivadora de avaliações negativas em relação ao “exogrupo” e de avaliações positivas em relação ao “endogrupo”. Nesse, sentido a determinação do preconceito social é marcada por um processo comparativo entre “nós” e “eles”. O preconceito resultaria do processo em que a identificação de um indivíduo com seu grupo exige a manutenção das diferenças entre o “endogrupo” e “exogrupo”, tanto para a persistência de atributos positivos do grupo quanto para a manutenção da autoestima do indivíduo. No entanto, a atribuição de dinâmicas mais amplas na ancoragem do preconceito na perspectiva das relações intergrupais não exclui um forte componente individual e a permanência de um caráter cindido entre sujeitos e sociedade no tratamento do preconceito. Ao indivíduo persiste a centralidade nos processos de percepção da delimitação grupal, da leitura de sua inserção no grupo, assim como é preciso que sejam subjacentes e inerentes as suas representações específicas de indivíduo e grupo, sendo que estas não estariam necessariamente relacionadas às dinâmicas sociais mais amplas. 3.1.4 Relações sujeito e sociedade– Leituras críticas do preconceito A inserção de interpretações mais dinâmicas sobre a relação entre sujeito e sociedade marcam outro importante referencial nos estudos sobre o preconceito. Lacerda, Pereira & Camino (2002) vão intitular essa tendência de “perspectiva societal”. Nesta, as relações intergrupais, motivadoras do preconceito, são encaradas dentro de um contexto de relações de poder, conflitos culturais e ideológicos que influenciariam os processos cognitivos, afetivos e a expressão de atitudes dos sujeitos. Gough e McFadden (2001), por sua vez, apontam a contribuição do construcionismo social como importante referência da elaboração teórica de conceitos e leituras sobre a relação “sujeito e sociedade”, assim como a leitura da própria produção de conhecimento. O construcionismo social permite uma visão do preconceito que rejeita a concepção dualista de sujeito e sociedade das perspectivas anteriores e compreende as identidades e comportamento dos sujeitos como fatores não isolados, e sim, em constante relação com os contextos sociais e culturais. As perspectivas de Gough, Hall e Wetherell (1998, 1990, 1996, citados por Gough & McFadden, 2001), contribuem para 54 a leitura da identidade concebida como não estática e fluída, construída e reconstruída pela interação com o ambiente. O incremento das análises sobre linguagem, discurso e poder como partícipes da construção das identidades, práticas, subjetividades, ideologias e atitudes integram uma visão menos dualista sobre a construção a construção dos posicionamentos dos sujeitos e sobre a configuração de fenômenos sociais. Consequentemente, as dimensões do preconceito são exploradas como a relação entre diálogos sociais que refletem sentidos socioculturais partilhados, nos quais os sujeitos negociam suas identidades e consolidam relacionamentos com outros (Gough & McFadden, 2001). Nesse sentido, as localizações de aspectos políticos, culturais, sociais e ideológicos envoltos no universo do falante são a chave para compreender como ele se posiciona na relação com os outros. As posturas e comportamentos dos sujeitos não são tidos como objetivas; são construções envoltas por relações de poder, prestígio e privilégios construídos como práticas discursivas. É dentro dessa leitura crítica e dinâmica sobre a realidade social que pretendemos desenvolver esse trabalho. Nossa proposta é compreender o preconceito em sua vertente racial, tendo como referência as relações entre transformações do contexto racial e as trajetórias de sujeitos negros. A difusão dos mecanismos do preconceito racial no Brasil nos exige, nesse trabalho, considerar a capilaridade de sua influência para além dos limites da expressão de discriminação. A discussão realizada até aqui nos permite afirmar que não estamos tratando de qualquer fenômeno psicossocial, haja vista sua importância como campo de pesquisas e, também, os dilemas envolvidos em seu estudo. Sendo assim, pretendemos considerar em nossa discussão as funções e efeitos sociais específicos do preconceito, exercício que exige – mas não esgota – o movimento de explicitar as atitudes de violência e discriminação. Tomamos esse posicionamento por perceber que, em geral, o principal efeito atribuído ao preconceito é a discriminação. Verificamos de maneira mais precisa a distinção entre preconceito e discriminação: em linhas gerais, o preconceito consiste em um julgamento prematuro, inadequado sobre alguma coisa em questão, constituindo – e sendo constituído de – um sistema de predisposições, de crenças e de expectativas em função das quais seu portador poderia causar dano ao sujeito alvo do preconceito (Guimarães, 2004a). Por outro lado, a discriminação se processa nas atitudes que expressam o preconceito no 55 comportamento. Nesse trabalho, partimos da consideração dessa diferença conceitual. O posicionamento que adotamos para fins de interpretação é aquele sintetizado por Camino (2007), o qual considera as dimensões cognitivas e os prejulgamentos do preconceito essencialmente relacionados a práticas e comportamentos discriminatórios (p.491), em uma lógica de retroalimentação. O que pretendemos assumir nesse posicionamento não é a negação da importância ao combate às discriminações raciais, visto que são elas que expressam as hierarquias e violências de uma sociedade desigual. Trabalhamos com a indissociabilidade e interdependência desses dois fenômenos, ao compreendermos que o preconceito racial se materializa e se estrutura em expressões de discriminação. No entanto, compreendemos que a dicotomização presente entre essas perspectivas – que concedem ao campo das ideias e abstração o preconceito e ao campo das práticas a discriminação – tem orientado leituras e enfrentamentos dessa realidade que mantêm inalteradas as hierarquias subjacentes, produzindo uma sofisticação nos mecanismos de invisibilização, nesse caso, do racismo brasileiro. Aqui, consideramos que o preconceito pode ser lido não somente pela perspectiva da discriminação, mas pela explicitação de suas dinâmicas e influências nas subjetividades, afetos, gostos, escolhas, posicionamento e visões de mundo dos sujeitos negros. A partir das trajetórias e enfrentamentos, são essas dimensões que procuramos analisar neste trabalho. 3.2. Preconceito: sujeito e sociedade Como pudemos perceber, os dilemas envolvidos no estudo do preconceito se relacionam profundamente com as distintas concepções de sociedade e perspectivas de visão sobre a relação indivíduo/ sociedade que cada orientação teórica adotou ao propor uma explicação sobre esse fenômeno. O que se destaca, sobretudo, é a prevalência de leituras que, ao propor interpretações sobre as causas, origens e mecanismos do preconceito, separam de forma muito extrema sujeito e sociedade, desembocando em análises sobre o fenômeno que privilegiam uma dessas instâncias como unidade isolada de análise. As questões envolvidas nas relações entre sujeito e sociedade não compõem uma discussão nova nas ciências humanas. Na psicologia, o conflito entre paradigmas individualistas e coletivistas tem sido pano de fundo de um importante debate epistemológico sobre a construção de um conhecimento psicológico válido e 56 socialmente comprometido (Jurberg, 2000). No intuito de lidar com os obstáculos dessa cisão, leituras psicossociais têm pretendido construir uma perspectiva de ciência menos orientada pelo moldes positivistas de um modelo de ciência aristotélico (Jurberg, 2000). Nesse sentido, a tendência à dicotomização da realidade em duos opostos e moralmente valorizados (homem x mulher, natureza x cultura, sujeito x sociedade, branco x negro) é destacada como um modelo que serviu, e tem servido à reprodução de perspectivas de dominação hegemônica e à manutenção de privilégios pela naturalização das posições que cada par interpretativo ocupa. Isto se dá, principalmente, devido à invisibilidade das relações de poder que se estabelecem a partir dessa dicotomização. (Jurberg, 2000). O campo de estudos sobre o preconceito é bem representativo desse dilema. As interpretações que privilegiam as atitudes dos indivíduos como causa ou origem do preconceito acabam por responsabilizá-los individualmente pelo fenômeno – seja pela sua personalidade ou incapacidade cognitiva –, deixando de lado os contextos específicos nos quais se moldam os próprios sujeitos, assim como suas relações. Por outro lado, ler o preconceito como uma entidade social autônoma, fruto das disputas entre os grupos ou da propagação de ideias estereotipadas, retira do campo das relações microssociais o importante potencial analítico dos mecanismos de reprodução e invisibilidade do preconceito. Encarar o preconceito racial a partir de uma dicotomia entre sujeito e sociedade acarreta em posicionamentos que ora vitimizam os negros – ocultando suas estratégias de resistência –, ora colocam sobre a estrutura social todas as possibilidades de enfrentamento ao desconsiderar os posicionamentos e interpretações que os indivíduos exercem sobre a sociedade. Aceitar o desafio de lidar com o preconceito racial a partir de uma leitura psicossociológica – que reconheça os limites entre sujeito e sociedade, mas não desconsidere que essas instâncias se constituem mutuamente –, implica considerar as orientações e sentidos do preconceito racial nas trajetórias de indivíduos e na história de uma sociedade como constituintes do mesmo processo. Se aqui tomamos como referência as trajetórias de sujeitos para a leitura desse fenômeno, isso se dá porque assumimos que os impactos do preconceito em tais trajetórias não se fazem isolados das funções desse fenômeno na história de uma sociedade. Assumimos, também, o contrário: a história da sociedade não se faz desconectada das trajetórias dos indivíduos. Neste trabalho, nosso interesse é considerar os meandros dessa relação. Reconhecendo as transformações sociais no debate racial no Brasil, procuramos 57 entender efeitos do preconceito racial na trajetória de sujeitos negros a partir da construção de seus enfrentamentos. É a partir da delimitação do preconceito como uma dinâmica psicossocial que compreendemos que um ponto fundamental, a ser levado em consideração no estudo sobre tal dinâmica, é a localização da perspectiva de relação entre sociedade e indivíduos que tomamos como referência. Norbert Elias foi um dos teóricos que forneceu uma leitura das relações humanas a partir da crítica sobre a cisão entre indivíduo e sociedade. Elias (1994) recusa a antítese cristalizada da dicotomia indivíduo e sociedade, reconhecendo que analisar a experiência humana a partir do isolamento analítico dessas duas dimensões produz um caminho problemático e pouco explicativo da complexidade dos fenômenos humanos. Elias pretende propor uma interpretação sobre a realidade que não pressuponha a consideração de uma natureza totalmente distinta às instâncias indivíduo e sociedade. Em sua perspectiva, as interpretações que dialogam sobre a ideia do indivíduo como o produtor da realidade acabam focando suas conclusões sobre um esquema que o dota de total capacidade de planejamento, criação e execução da realidade. Por outro lado, tomar a sociedade como a articulação de forças produtoras, independentes e autônomas dos indivíduos, é considerar a realidade coordenada por um planejamento invisível que acontece a despeito das relações entre as pessoas. Essa tendência de interpretação e suas dificuldades são também vistas por ele no campo de estudos da psicologia. A respeito disso ele relata que: Na ciência que lida com fatos dessa espécie, encontram- se, de um lado, ramos de pesquisa que tratam o indivíduo singular como algo que pode ser completamente isolado e que buscam elucidar a estrutura de suas funções psicológicas independentemente de suas relações com as demais pessoas. Por outro lado, encontramse correntes, na psicologia social ou de massa, que não conferem nenhum lugar apropriado às funções psicológicas do indivíduo singular. Às vezes, os membros deste último campo, mais ou menos como seus equivalentes nas ciências sociais e históricas, atribuem a formações sociais inteiras, ou a uma massa de pessoas, uma alma própria que transcende as almas individuais, uma anima coilectiva ou “mentalidade grupal” (...) E, como quer que procedam quanto aos detalhes os vários ramos da psicologia individual e social, a relação entre seus objetos de estudo, observada desse ponto de vista geral, permanece mais ou menos misteriosa. Muitas vezes, é como se as psicologias do indivíduo e da sociedade parecessem duas disciplinas completamente distinguíveis. E as questões levantadas por cada uma delas costumam ser formuladas de maneira a deixar implícito, logo de saída, que existe um abismo intransponível entre o indivíduo e a sociedade. (Elias, 1994, p. 15) 58 A saída analítica proposta por Elias (1994) consiste na proposição de modelos interpretativos que possam considerar as relações fora de modelos dicotômicos. Essa proposta cabe, sobretudo, à análise de fenômenos conflitivos como o preconceito racial, visto que o autor pretende explorar as relações sociais a partir de suas estruturas, regularidades e funções próprias, incluindo aí, também, as funções de poder e privilégio. Como já discutimos, as leituras e enfretamentos dos violentos dilemas das relações raciais brasileiras têm se dado a partir da exploração de estratégias e análises muitas vezes polarizadas entre as dimensões individuais e coletivas. A perspectiva de Elias nos coloca como proposta pensar os fenômenos sociais não como formados por substâncias ou entidades isoladas, mas em termos de suas relações e funções (Elias, 1994). Para o autor, sujeitos e sociedade são e estão em constante relação. Cada distinta relação pressupõe, a despeito de uma natureza ontológica das partes, regularidades e funções próprias que têm sentido e significado dentro de si mesmo, e não de fora dela (da relação). Portanto, para compreender as dinâmicas sociais mais ampliadas, é imprescindível conhecer as menores unidades que integram o corpo das relações das unidades maiores. É a partir da compreensão dessas relações e de seus padrões e funções que podemos compreender unidades de análise mais amplas. Considerando a proposta de Elias (1994), o preconceito racial não pode ser concebido como um fenômeno que está na sociedade ou no indivíduo. Indivíduo e sociedade se constituem num contínuo e não podem ser tomados como dimensões totalmente separadas. Dessa forma, os sujeitos se constituem e constituem suas práticas, ações, decisões, afetos e sentimentos dentro de certos limites de liberdade e plasticidade dos padrões de ordenamento social. Ao mesmo tempo, eles moldam esses mesmos padrões a partir de si mesmos e de suas relações. Para Elias: O modo como uma pessoa decide e age desenvolve-se nas relações com outras pessoas, numa modificação de sua natureza pela sociedade. Mas o que assim se molda não é algo simplesmente passivo, não é uma moeda sem vida, cunhada como milhares de moedas idênticas, e sim o centro ativo do indivíduo, a direção pessoal de seus instintos e de sua vontade; numa palavra, seu verdadeiro eu. O que é moldado pela sociedade também molda, por sua vez: é a auto-regulação do indivíduo em relação aos outros que estabelece limites à auto-regulação destes. Dito em poucas palavras, o indivíduo é, ao mesmo tempo, moeda e matriz .(Elias, 1994, p. 52) A leitura sobre as relações entre indivíduo e sociedade nos faz tomar o preconceito racial como um fenômeno que se apresenta feito uma lei ou regularidade 59 social (Elias, 1994, p. 23). Assim, dentro de uma dinâmica interativa, prescreve as relações entre os indivíduos considerados de forma isolada, ou seja, o preconceito racial tem suas funções, efeitos e regularidades sociais expressas nas relações estabelecidas entre os indivíduos. Nossa proposta, portanto, é entender os sentidos, regularidades e funções do preconceito a partir das trajetórias de sujeitos negros e admitir as possibilidades de diálogo e trânsito que as regularidades, também plásticas, desse fenômeno fazem incidir sobre essas trajetórias. Aqui, as localizamos como unidades analíticas que podem demonstrar as dinâmicas do preconceito, suas regularidades e funções que – fruto de padrões funcionais – não são criadas pelos indivíduos isolados nem por uma sociedade autônoma. Por mais que o ordenamento social prescinda das ações e posicionamentos dos indivíduos, é a interdependência das funções individuais que se vinculam de forma ininterrupta e constroem o corpo de relação a que chamamos realidade social. É a partir da leitura do preconceito como uma dinâmica psicossocial – que abarca aspectos sociais, subjetivos, afetivos e cognitivos – que buscamos compreender as dinâmicas atuais do preconceito racial brasileiro. Nosso interesse é compreender, através da visibilidade e sistematização das estratégias construídas por sujeitos negros, a capilaridade e possíveis transformações das dinâmicas do preconceito racial no contexto brasileiro atual. Portanto, o que orienta nossa visão sobre o preconceito é o reconhecimento de sua dimensão psicossocial, um fenômeno intrinsecamente vinculado às relações entre indivíduo e sociedade que isso extrapola o limite sensível do que enquadramos como sujeito ou sociedade. A partir de uma perspectiva crítica e ampliada sobre as dinâmicas e efeitos do preconceito, outras produções têm apresentado perspectivas psicossociais amplas sobre o fenômeno. Prado e Machado (2008) apontam o preconceito como um mecanismo de conservadorismo social articulado com os processos de hierarquização social, sendo seu caráter funcional a preservação da rigidez da hierarquia entre grupos e indivíduos. Os autores destacam a hierarquização social como produto das lógicas de subordinação que legitimam a funcionalidade das desigualdades sociais, enquadrando-as como inerentes à dinâmica social e impedindo sua leitura pela lógica da opressão. Seu papel primordial está na naturalização da inferiorização social, na medida em que a atuação do preconceito funciona impedindo os sujeitos e a sociedade de identificar os limites da percepção sobre o contingente caráter histórico da realidade social e das relações humanas (p. 70). 60 Nas relações sociais de hierarquização, o preconceito atua na produção e reprodução de ideologias, legitimando ou não posições sociais e subjetivas de subordinação. Na dinâmica de naturalização da manutenção da classificação social, o preconceito se reproduz a partir da realidade social ao mesmo tempo em que produz essa mesma realidade, afirmando seu caráter natural. Nesse sentido, as dinâmicas do preconceito estão passiveis de modificação a partir das transformações de aspectos da realidade social, desde que sejam preservadas as relações de subordinação. A eficácia do preconceito em garantir a permanência das hierarquias como naturais tem sido evidenciada em muitos trabalhos que apontam distintas leituras do preconceito em relação a processos de categorização social. Lima e Vala (2004) relacionam os mecanismos de infra humanização com o estabelecimento do racismo no Brasil. Os autores demonstram, a partir de uma análise de desempenho social e econômica, a tendência ao enegrecimento de sujeitos apresentados como mal sucedidos, ao mesmo tempo em que lhes são atribuídas menos características humanas (características socialmente relacionadas à essência humana) relativas aos sujeitos tidos como menos sucedidos. O estudo pretende evidenciar que as lógicas de classificação humana baseadas na pertença e hierarquia social são sustentadas por mecanismos de essencialização, ou seja, naturalização de atributos humanos a grupos e indivíduos. A naturalização opera, nesse caso, pela elevada correlação de características socialmente valorizadas como humanas aos brancos e não aos negros. Bandeira e Batista (2002) discutem o preconceito como mecanismo de reprodução e legitimação no estabelecimento de subalternidades. A preocupação dos autores é articular o preconceito às expressões de violência vinculadas ao desrespeito às diferenças. A inserção da lógica da diferença lida como desigualdade nos permite considerar que é através do preconceito que se estrutura a negação da legitimidade de existência e expressão do outro. Este, construído enquanto diferença, tem indeferida a possibilidade de reconhecimento social pleno. Segundo os autores: Pela sua sutileza, caráter difuso e capilaridade de intromissão nas relações sociais, a eficácia e a ubiquidade do preconceito são máximas, tanto em relação às práticas de controle, como às de dominação e subordinação em todas as categorias sociais. Manifestam-se como produtor e reprodutor de situações de controle, menosprezo, humilhação, desqualificação, intimidação, discriminação, fracasso e exclusão nas relações entre os gêneros, na esfera do trabalho, nas posições de poder, nos 61 espaços morais e éticos e nos lugares de enunciação da linguagem. (Bandeira & Batista, 2002, p.127). Consideramos que as dinâmicas de invisibilidade e manutenção de hierarquias do preconceito se difundem no tecido social orientando, a partir da legitimação da inferioridade, realidades sociais e subjetivas mais amplas. Retomando o conceito de Prado e Machado (2008): “o preconceito nos impede de identificar os limites de nossa própria percepção da realidade”. (Prado & Machado, 2008, p.67) 3.3. Preconceito Racial no Brasil Tendo como pano de fundo o quadro social apresentado no primeiro capítulo concordamos com as análises de autores que consideram as configurações raciais elemento central para o entendimento do quadro brasileiro de desigualdades (Guimarães, 2005; Munanga, 2004; Telles, 2003). Assim, é possível suspeitar de interpretações que coloquem sobre as especificidades do desenvolvimento econômico brasileiro a totalidade de respostas e de possíveis enfrentamentos àquilo que podemos nomear como fatores estruturantes de nossas assimetrias sociais. Dessa forma, podemos conceder ao conceito raça um importante valor explicativo de nossa configuração social e um lugar de elemento fundamental pra compreensão das relações e interações entre sujeitos e sociedade. Segundo Guimarães (2005), a partir do conceito de raça, evidenciamos não um realismo ontológico da categoria, mas tornamos inteligíveis formas de ação e dominação social (p.31). Sendo assim, recortar a partir da noção de raça a realidade social não garante explicações absolutas, mas permite a compreensão da orientação e sentido de certas ações subjetivas e sociais. Isso porque: Toda via, é que se torna muito difícil imaginar um modo de lutar contra uma imputação ou discriminação sem lhe dar realidade social. Se não for à ‘raça’, a que atribuir as discriminações que somente se tornam inteligíveis pela idéia de ‘raça’? Atribuindo-as a uma realidade subjacente que não é articulada verbalmente, ou a formas mais subjacentes e abstratas de justificar estruturas de dominação (Guimarães, 2005, p. 27) 62 É o exercício de demonstrar a racialização das nossas relações que tem permitido uma melhor compreensão do potencial crítico que o uso da categoria raça exibe no estudo de distintos fenômenos sociais, sejam aqueles de ordem estrutural ou mesmo de caráter subjetivo. O exercício de denunciar a racialização do contexto social brasileiro tem sido realizado de forma consistente, e cada vez mais expressiva, através do trabalho de militantes e intelectuais negros interessados em elucidar os distintos efeitos da classificação racial brasileira, classificação muitas vezes considerada uma ficção. No campo do trabalho, o recorte racial é elemento fundamental na compreensão da formação histórica do mercado de trabalho, haja vista a exclusão dos negros da lógica da sociedade capitalista no momento pós- abolição (Theodoro, 2008). Pesquisas indicam o lugar inferior do negro no acesso e competição a empregos e salários (Andrews, 1998), a sobre representação dessa população nas faixas mais pobres do país (Henriques, 2001) e sua sub-representação em posições de poder, prestígio social e econômico (Osório, 2008; Soares, 2008). No campo da educação, a imposição de maiores dificuldades na trajetória escolar do aluno negro (Henriques, 2002) e as desvantagens no acesso da população negra à escola (Hasenbalg & Silva, 1990) demonstram os efeitos acumulados de nossa assimetria racial. O debate sobre ações afirmativas é um tema atual e recorrente nas produções da área. Autores se dedicam ao esclarecimento dos desafios e dilemas dessas políticas (Piovesam, 2008; Santos et al., 2008), seja pela realização de avaliações quantitativas e qualitativas de políticas afirmativas já implantadas, seja demonstrando sua eficácia no combate às desigualdades historicamente construídas. (Bittar & Almeida, 2006; Queiroz & Santos, 2006). A trajetória do movimento negro na denúncia e luta pela inclusão social do negro e superação do racismo e das desigualdades raciais é também importante fonte de estudos raciais no sentido de demonstrar as contínuas e persistentes resistências negras, assim como apresentado por Petrônio Domingues (2007). Diante da gama de possibilidades do campo de estudos raciais, o que nos interessa é explorar o potencial da categoria a partir do estudo do preconceito. Este é um fenômeno que, assim como nos aponta Crochik (2006), exige considerações sobre a interação de dinâmicas micro e macrossociais, sobretudo, no tocante às complexidades da relação entre indivíduo e sociedade. Sendo um fenômeno de ordem psicossocial – intimamente relacionado com o processo de socialização dos sujeitos, com a história de 63 hierarquias sociais e com formas de subjetivação – o estudo do preconceito exige, periodicamente, que se recorra às contribuições de mais de uma área do conhecimento (Crochik, 2006), exercício que aqui procuramos realizar. Quando se fala em raça no Brasil, o preconceito é, em geral, um elemento constante na discussão. É possível identificar nas análises sobre diversos aspectos da sociedade brasileira, que consideram os aspectos raciais, a preocupação com a configuração de nossas relações raciais. Mesmo no discurso eugenista e escravista de Oliveira Viana (1933), sobre os riscos do progresso da nação brasileira diante do alto índice de população negra, há referência aos distintos padrões de preconceito racial com os mulatos, influenciando de forma positiva seus padrões de mobilidade social. (Viana, 1933) A polêmica leitura da sociedade brasileira e seus padrões de relações raciais realizada por Gilberto Freyre podem não se deter à análise do preconceito no Brasil, mas, certamente teve também grande impacto sobre a invisibilidade desse fenômeno. Se tomarmos a discussão racial mais atual, o tema preconceito também está presente na argumentação contrária ou favorável à adoção de alguma política de ação afirmativa. Aparecem pontos favoráveis – quando identificado como um mecanismo presente na manutenção da privação do acesso a bens públicos pela população negra (Oliveira Filho, 2009; Bittar e Almeida 2006) ou em argumentos desfavoráveis, os quais afirmam que políticas afirmativas criariam manifestações de preconceito inexistentes entre grupos raciais pobres (Fry & Magye, 2004). Oracy Nogueira (2006) reitera o preconceito como uma pilar no campo de estudos raciais e afirma que: Embora certos estudiosos se recusem a aceitar que o “problema do preconceito racial” seja o problema central, nos estudos de relações raciais, e ainda que se admita que o preconceito, seja qual for a importância que se lhe dê, como problema de estudo, deva ser focalizado no contexto da “situação racial” em que se manifesta, o fato é que a preocupação com o mesmo está pelo menos implícita em toda a pesquisa que se faz nesse setor.Mesmo quando se estuda uma “situação racial” em que se supõe inexistente (ou quase inexistente) o preconceito, está pelo menos implícito o interesse em comparála com situações em que sua ocorrência é insofismável (Nogueira, 2006, p.290). Se localizarmos no Brasil os esforços de compreensão sobre o preconceito e sua vertente racial, é possível identificar desafios muito específicos. A literatura atual revela que as formas de manifestação do preconceito, e as discriminações consequentes, não 64 têm se restringido aos aspectos teóricos classicamente definidos. Fleury e Torres (2007) afirmam: Os estudiosos do preconceito étnico e racial no Brasil e em várias partes do mundo (...) encontraram evidências de que expressões mais sutis desse fenômeno estão desenvolvendo subprodutos que atendem à necessidade de perpetuação dos comportamentos discriminatórios ao mesmo tempo em que preservam a imagem igualitária dos atores sociais (Fleury & Torres, 2007, p.476) Essas modificações na expressão do preconceito racial são apontadas como fruto do desenvolvimento de leis que criminalizam mais pontualmente a discriminação contra os grupos “minoritários” e, também, do delineamento de consensos sociais que coíbem o preconceito em suas formas mais explícitas e violentas. No entanto, no Brasil o preconceito racial e sua sofisticação permitem que a discriminação racial mascarada e ambígua ocorra cotidianamente, sendo sua erradicação dificultada. (Camino, Silva, Machado & Pereira, 2001). Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2004a) mostra que no Brasil a impunidade dos crimes de discriminação racial tem grande relação com a persistência da adoção de uma definição social de segregação racial orientada pelas formas mais explícitas e declaradas de racismo. A expressão do racismo brasileiro como não declarado e ambíguo é ancorada tanto pelas lógicas de invisibilidade de atuação geral do preconceito (Prado & Machado, 2008) quanto pela especificidade da crença na democracia racial e na mestiçagem original dos brasileiros. Essas ideologias forjam a solidificação de uma posição de igualdade entre raças, dificultando e redirecionando, para outro plano de interpretação, as formas específicas pelas quais se articula o racismo brasileiro. Isto ocorre sob a afirmação de que no Brasil, por sermos mestiços somos todos iguais (Guimarães, 2004a). A polidez e a aparente falta de intenção revestem as atitudes e os comportamentos discriminatórios no país, constituindo uma forma de racismo que nada tem de cordial, visto que implica exclusão e negação de direitos das pessoas negras (Lima & Vala, 2004). Essa dinâmica relega ao sujeito vítima o complexo papel de reconhecer e afirmar a situação de violência, colocando em questionamento para si, e para a sociedade, o pacto da harmonia racial. Essa tarefa, quando imposta a sujeitos historicamente alijados de voz e direitos, pode enfraquecer, dificultar ou impossibilitar o estabelecimento de processos de enfrentamento, visibilidade e denúncia. O preconceito 65 racial, nesse aspecto, parece operar em uma dinâmica dupla. Além de incidir violentamente sobre o outro, reposiciona o sujeito alvo dessa dinâmica a um lugar de não legitimidade em nomear e denunciar12 esse processo. Demonstra-se, mais uma vez, que o preconceito opera pela via da invisibilidade da inferiorização e da afirmação de um lugar subalterno na hierarquia social. A invisibilidade e sofisticação a que são submetidas as expressões desse fenômeno são um grande obstáculo para o estabelecimento de possibilidades de denúncia, resistência e enfrentamento dos sujeitos e grupos sociais frente as operacionalizações do preconceito. Diante da complexidade da classificação racial no Brasil, marcada pela ambiguidade, pela impossibilidade constante de nomear e denunciar o preconceito, nos perguntamos como negros e negras nomeiam e visibilizam em suas trajetórias as operacionalizações do preconceito racial e, ainda, como as especificidades dessas vivências possibilitam ou não formas de reação a ela. Desse ponto de partida, processos de naturalização e invisibilidade da hierarquia racial, produtos do preconceito, podem ser tomados como responsáveis pela dissolução e negação da violência e opressão que criam e recriam sujeitos inferiorizados, racialmente localizados. Sujeitos que, por se encontrarem em um nível deslegitimado na classificação social, têm suas vidas invariavelmente marcadas pelo lugar social subalterno previamente construído para si, sustentado na invisibilidade. 3.4. Preconceito Racial - Ambiguidades e articulações de consensos sociais Discutiremos aqui duas dinâmicas que fazem parte da complexa rede de fenômenos sociais que (re) constrói e (re) legitima a manutenção de hierarquias raciais e, também, sua opacidade no tecido das relações sociais. Abordaremos, portanto, especificidades do racismo brasileiro, sobretudo aquelas que se articulam com processos, produtos ou efeitos da complexa rede de classificações raciais brasileiras e suas constantes transformações. O objetivo dessa é discussão apontar algumas dinâmicas fundamentais que, articuladas à função do preconceito, marcam a trajetória de sujeitos negros, incidindo de forma silenciosa, escondida e, às vezes, imperceptível, 12 Aqui não tratamos denúncia como denúncia formalizada, mas sim explicitação dessa dinâmica de forma interpelável. 66 moldando subjetividades e influenciando modos de viver a vida, de construir laços, reconhecimento, de planejar o futuro, de viver o presente e de pertencer ao mundo. 3.4.1 Branqueamento – prescrição de sujeito e sociedade Nas palavras de Bento e Carone (2002), o branqueamento foi: Uma pressão cultural exercida pela hegemonia branca, sobretudo após a Abolição da Escravatura, para que o negro negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma espécie de condição para se integrar (ser aceito e ter mobilidade social) na nova ordem social. (Bento & Carone, 2002, p.14). Essa definição de branqueamento coloca tal conceito como um dos pontos centrais para se compreender uma das dimensões específicas à qual o preconceito racial no Brasil se articulou. Essa centralidade se dá principalmente no que diz respeito aos elementos sociais hegemônicos disponíveis para a constituição de subjetividades negras em um plano no qual a constituição da neutralidade racial foi definida como branca. Assim, como apontado pelas autoras, o branqueamento tem como elemento principal a prescrição inegável de uma referência de ser aos negros brasileiros. Esta referência foi forjada na definição de um modelo de sujeito moderno universal, recorrentemente não nomeado em sua racialidade como um sujeito branco. Por outro lado, complexificando o efeito do preconceito racial, suas inscrições e marcadores corporais relacionados ao branqueamento, extrapolando sua dimensão cultural, Feres Junior (2006) argumenta que: O mais significativo do preconceito racial não é seu conteúdo cultural (os hábitos e as disposições do indivíduo moderno), mas sim as consequências que a inscrição do argumento biológico traz para o horizonte de expectativas do Outro, o negro, nesse caso. Pois o estigma, as marcas da inferioridade são inscritas no corpo da pessoa, e, portanto, não podem ser eliminados por suas ações e escolhas. O futuro está fechado para qualquer tipo de redenção (Feres Junior, 2006, p.170). Tomando como referência reflexões sobre o tema do branqueamento, Petrônio Domingues (2002) chama a atenção para a necessidade de distinção conceitual entre duas formas de se conceber o branqueamento como categoria de análise das relações raciais brasileiras. A primeira, referente ao clareamento fenotípico da população, 67 consistiria em uma dimensão populacional, denominada pelos autores como o branqueamento de “realidade empírica”. A segunda forma se relacionaria com o branqueamento concebido em sua dimensão discursiva, ideológica. A partir da primeira categoria de definição, é possível entender o branqueamento como uma estratégia de clareamento populacional. Sustentados pelo discurso científico sobre as raças e a natureza de suas diferenças, modelos de pensamento referenciados por padrões europeus de progresso orientaram os projetos de embranquecimento do país e a sustentação da raça negra como inferior, dados seus aspectos culturais e capacidade mental inferiores. (Guimarães, 2004b). O modelo branco a ser alcançado exigiu a construção de alternativas que suprimissem a capacidade de degeneração social da raça negra por meio de políticas de embranquecimento que, gradualmente, substituíssem os caracteres genotípicos e fenotípicos de uma população negra por uma população branca. A preocupação com a configuração racial da população sempre esteve em questão no pensamento social brasileiro. Desde o final do século XIX – no momento pós-abolição, com o início dos estudos sobre raça no país –, a perspectiva de desenvolvimento colocava em questão o futuro do Brasil, sendo que o horizonte traçado era o da assimilação dos negros na sociedade moderna (Domingues, 2002; Telles, 2003). No período pós-abolição é possível identificar estudos esforçados na descrição e compreensão da organização populacional também fortemente preocupados com as diferenciações de raça a partir do estabelecimento dos negros como inferiores e dos brancos como dotados de integridade biológica e mental. Ao debater os enquadres raciais da sociedade paulista entre 1915 e 1930, Domingues (2002) analisa alguns trabalhos com essa tendência destacando “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado de 1944, “Pedras Lascadas” de Ellis Junior em 1928; a obra “A evolução do Povo Brasileiro” de Oliveira Viana em 1923 e, também, algumas análises censitárias do período. O autor identifica que o desenvolvimento do Brasil como nação esteve intimamente relacionado com a resolução do problema que o alto índice populacional de negros significava ao futuro brasileiro. Essa preocupação se mostrava alarmante diante dos padrões de miscigenação no Brasil, padrões que refletiam na existência de mestiços em todos os níveis sociais. Fossem nos altos escalões estatais ou na elite intelectual e artística, sujeitos mulatos gozavam de privilégios dos brancos sem ter, no entanto, sua origem racial totalmente apagada (Telles, 2003, pp. 44-45). Telles (2003) argumenta que a perspectiva 68 segregacionista não se tornou a saída brasileira para a resolução do legado negro do sistema escravista por causa do dilema da miscigenação e, também, do fato de que a elite poderia ser afetada. Afinal, no Brasil a distinção pura entre brancos e mulatos não era factível. A indefinição classificatória do mestiço se tornou um grande problema entre as tendências eugenistas da época. Esse período é, então marcado pelo delineamento de um dos aspectos mais importantes, senão exclusivo, do modelo de tratamento racial no Brasil. Fenômeno desenvolvido pelas elites brasileiras e disseminado de forma intensa no meio científico como a solução racial brasileira (Domingues, 2002), o branqueamento, orientado pela visão neo-lamarckista, surge – dada a evidência da mescla do branco com o não-branco – como alternativa de superação das deficiências genéticas negras (Telles, 2003). Masiero (2005) mostra como as perspectivas eugenistas construíram, entre os primeiros anos do século XX, orientações ao estado sobre a regulação de políticas imigratórias que garantissem o melhoramento racial, sendo destacável a indicação explícita da exclusão de correntes imigratórias que não fossem da raça branca. Ainda se tratando de políticas imigratórias Teles (2003) destaca o aumento da imigração europeia incentivada pelo estado brasileiro, que em 1890 chega ao seu ápice com a entrada de mais de 1, 2 milhão de imigrantes europeus no Brasil. (p. 47) As análises demográficas desse período eram, nesse sentido, promissoras: evidenciavam a diminuição da população negra em relação à branca. Bernardino (2002) apresenta dados do IBGE que indicam que em 1890 a população brasileira se dividia em 44% de brancos, 41,4% de mulatos e 14,6% de negros. Já em 1950, havia 62% de brancos, 27% de mulatos e 11% de negros (Skidmore, 1976; Hasenbalg, 1979, citados por Bernardino, 2002). A vertente empírica do branqueamento é um forte elemento da institucionalização do modelo de supremacia branca no Brasil: A partir da taxa mais alta de fecundidade entre os brancos e da crença de que os genes brancos eram dominantes, estes eugenistas concluíram que a mistura de raças eliminaria a população negra e conduziria, gradualmente, a uma população completamente branca. (Telles, 2003, p. 46) Podemos compreender então que os esforços de diferenciação racial tinham como principal orientação o estabelecimento de um modelo branco euro centrado a ser 69 perseguido pela sociedade e por seus sujeitos. Este modelo estabeleceu, nas práticas e no imaginário social, referências de pensamento, de cultura, de comportamentos, de padrões estéticos e psicológicos. Por isso, como já apontamos, o branqueamento não apresenta somente uma dimensão empírica. Retomando a distinção conceitual adotada anteriormente, precisamos também encará-lo como uma ordem moral e social que prevê a aquisição e assimilação pelos negros de valores, comportamentos, atitudes e estéticas positivas presumidas como brancas (Domingues, 2002). Nessa linha, a configuração de um modelo de país moderno e desejável pressupõe no Brasil não somente a incorporação de uma população branca. Exige-se, ainda, o estabelecimento de um modelo de cultura e subjetividade branca. Dessa forma, a branquitude e o branqueamento foram importantes categorias de análise crítica da realidade brasileira que permitiram incluir o lugar do branco e seus privilégios na compreensão das relações raciais. Essas categorias, tomadas enquanto ideologias, permitiram especificar os mecanismos que ocultam privilégios dos brancos e garantem sua individualidade pela manutenção de uma identidade racial neutra (Bento, 2002). O estudo dessas categorias também permitiu revelar como a ideologia do branqueamento no Brasil se constitui, num primeiro momento, como um ideal de purificação étnica, impulsionando o processo de miscigenação, sendo que, posteriormente, passou a ser trabalhada como um comportamento dos negros. O embranquecimento, no perverso jogo racista brasileiro, deixa de ser um dispositivo para se tornar um discurso atribuído à falta de identidade racial positiva, inveja do branco e baixa autoestima dos negros (Carone, 2002). É importante destacar as estratégias de branqueamento – empírico, populacional e moral – para que possamos compreender que a produção e manutenção das hierarquias sociais que legitimam formas de preconceito social de raça no Brasil não se sustentaram somente na invisibilidade de crenças e valores disseminados no cotidiano, ou em seu potencial ideológico. A legitimidade da supremacia do branco em relação ao negro teve na política de estado sua implementação prática e na ciência sua fundamentada justificativa. Mas, se tão explícito, programado e documentado foi o projeto empírico de embranquecimento brasileiro, e assim a pesquisa militante o mostrou, o problema que nos interessa debater ao resgatar essa história consiste não somente em dar visibilidade a esse projeto como constitutivo de um projeto de nação. Queremos apontar, 70 principalmente, que é a desconsideração desse projeto como processo histórico, e por isso interpelável, que produz os efeitos e conteúdos de cristalização que se articulam ao preconceito racial. Conforme argumenta Feres Junior: O que chega ao Brasil não é só uma estrutura normativa da modernidade, mas um complexo de ideologias, instituições e teorias científicas muitas delas contraditórias, que vieram se somar as já existentes no Brasil imperial. É desse encontro, e de desenvolvimentos históricos posteriores, que se desenvolve a semântica do preconceito racial no Brasil de hoje. E é o preconceito racial o material bruto privilegiado para estudarmos a negação do reconhecimento dos não-brancos em nossa sociedade (Feres Junior, 2006, p.171) O preconceito racial tem na articulação com a invisibilidade desse processo sua funcionalidade. Por mais que tal história e seus elementos sejam invisíveis, eles são,por nós, recorrentemente acessados a partir de sua inexistência enquanto processo, sustentando nossa identidade nacional em práticas e discursos naturalizados. 3.4.2 Democracia racial – história e mito A ideia de democracia racial, enquanto fundamento sociológico, esteve presente no pensamento social brasileiro desde o início dos anos 1930 e sua formulação se sustentou a partir da constatação, fruto do efeito da comparação a outras sociedades de história escravista, de uma ausência de barreiras legais que intuíssem impeditivos à ascensão de negros a posições de prestigio social. (Guimarães, 2002) A cunhagem do termo é de autoria controversa, mesmo que recorrentemente a consolidação da ideia instaurada como “democracia racial” seja atribuída ao pensamento sobre as relações raciais de Gilberto Freyre. No esforço de apresentar a cronologia do uso do termo, Guimarães (2002) aponta a democracia racial como uma ideia originária das relações raciais brasileiras e estruturante da representação social do país antes mesmo da consolidação de uma sociologia moderna brasileira. O autor comenta que a concepção de uma organização social sem preconceito de pertença racial ou de cor influenciou não somente o projeto de abolição que previa um mercado livre com prevalência do mérito individual, mas também, interpretações da escravidão brasileira como mais humanas e suportáveis aos 71 negros. Curiosamente produziu influência até mesmo nas estratégias discursivas das primeiras frentes de luta do movimento negro no Brasil. Segundo o autor: O Brasil teria sido percebido historicamente como um país onde os brancos tinham uma fraca, ou quase nenhuma, consciência de raça (cf. Freyre, 1933); onde a miscigenação era, desde o período colonial, disseminada e moralmente consentida; onde os mestiços, desde que bem educados, seriam regularmente incorporados às elites; enfim, onde o preconceito racial nunca fora forte o suficiente para criar uma “linha de cor”. (Guimarães, 2006, p 269) Embora os usos do termo democracia racial possam se referir a distintas concepções – realidade sociológica, ideal formalizado de sociedade, institucionalidade de direitos, padrões de comportamento ou padronização de orientações para a ação –, na prática, esses entendimentos fundaram de forma mítica uma sociedade sem discriminações ou preconceitos raciais (Guimarães, 2002). No entanto, não podemos tomar a construção da ideia brasileira de democracia racial de forma descontextualizada ou descomprometida. Restringindo a análise e tomando como referência o quadro analítico de Gilberto Freyre, já que sua obra ainda é considerada a responsável pela criação do termo, é preciso destacar que a formulação do autor de uma representação pacífica de relações raciais no Brasil se deu em oposição às propostas integralistas. A saída de ler a sociedade brasileira a partir da integração natural do negro, institui, reforça e resgata uma visão conciliadora sobre o Brasil, construindo a narrativa sobre o passado que propõe uma identidade nacional já consolidada pela afirmação histórica do respeito e tolerância às diferenças (Guimarães, 2002). O pensamento de Freyre, assim como de outros intelectuais do período, foi recebido e apoiado porque apresentava alternativas e justificativas para a implementação de um modelo de sociedade sem conflitos, formalizado no Estado ou no corpo das relações sociais e interpessoais. Em contraposição às tendências segregacionistas das décadas anteriores, se mostrou como um avanço às forças democráticas nacionais (Guimarães, 2002). No entanto, o que se cunhou sob a pretensão de encarar o problema da implementação de um modelo de estado autoritário no Brasil tornou-se útil ao apagamento dos conflitos raciais, à formatação de um pacto social construído e compartilhado pela negação da violência e da exclusão que marcaram as trajetórias negras. 72 A partir da década de 1960, a discussão de outro referencial de interpretação das relações raciais foi fomentada, desde os estudos patrocinados pela Unesco, entre 1952 e 1955 (Guimarães, 2005). A ideia de democracia racial muda de perspectiva. A partir daí, discute-se a oposição entre o mito e a realidade e, também, a existência ou a não existência do preconceito racial. O que nos cabe hoje é analisar a ideia de democracia racial como uma noção de sociedade à qual os brasileiros são fiéis em suas relações sociais e interpessoais. A democracia racial é, ainda, o discurso orientador na compreensão das relações raciais no Brasil, quando as ambiguidades e contradições são expostas. Como mito fundador (Chauí, 2000), o discurso da harmonia existente na relação entre brancos e negros se submete constantemente à repetição de si mesmo, tornando ocultas e persistentes as violências necessárias a sua manutenção. Tais violências se expressam no decorrer da história pela negação da dominação do português colonizador sobre o negro escravo, no processo de branqueamento e nas sucessivas apropriações indébitas de bens concretos e simbólicos da elite branca, sob o julgo da igualdade meritocrática. A superioridade racial branca, que ainda nos orienta, é mascarada (Bento e Carone, 2002). Morta a democracia racial, ela continua viva enquanto mito, seja no sentido de falsa ideologia, seja no sentido de ideal que orienta a ação concreta dos atores sociais, seja como chave interpretativa da cultura, seja como fato histórico. Enquanto mito continuará viva ainda por muito tempo como representação do que, no Brasil, são as relações entre negros e brancos, ou melhor, entre as raças sociais (Wagley 1952) – as cores – que compõem a nação. (Bento e Carone, 2002, p.19) Como afirma Kabengele Munanga (2002), o preconceito racial brasileiro consiste em um fenômeno complexo e pode ser comparado a um iceberg que mantém partes invisíveis. Podemos considerar que a ideia de democracia racial, e sua capacidade de compactar as distâncias entre os ideais e práticas, é o pano de fundo no qual se articulam as dinâmicas de invisibilização do preconceito. São essas ideias que permitem que o próprio preconceito, enquanto dinâmica, torne-se um elemento negado ou questionado no corpo social ou individual. Essa problemática se torna hoje ainda mais expressiva diante dos avanços e conquistas que o debate público sobre as desigualdades raciais brasileiras tem alcançado, especialmente a partir da instituição de políticas que reconhecem, mesmo que em parcialidade, a inexistência de igualdade racial e se propõem a resolver, pela via da gestão, as desigualdades raciais. Nossa 73 intenção é problematizar, a partir do presente, reinvenções que, dado o potencial mítico da ideia de democracia racial, se articulam a dinâmicas de naturalização do preconceito e alteram modos de instituir e nomear a categoria raça como fundamento regulador das trajetórias de jovens negros. Dessa forma, a preocupação que nos cabe tem um importante elemento geracional no que diz respeito ao distinto enfoque dado sobre as relações raciais nos últimos 20 anos e as novas formatações que as concepções sobre o lugar social do negro têm apresentado atualmente. Pensemos na presença – ou presença racializada – do negro em posições de maior prestígio ou visibilidade social, como a universidade, a mídia, esportes elitizados e postos de trabalho e de governo. Essas novas formatações também se relacionam às emergências mais atuais de publicização midiática do debate sobre cotas raciais, casos de racismo, destaque de atores negros, comemorações da consciência negra, entre outros temas relativos à raça que têm aparecido de forma mais constante na grande mídia Dada a fidelidade brasileira à ideia da igualdade entre as raças e os reajustes da percepção de democracia racial no imaginário, o contexto atual deve ser alvo de análises que tomem a sedimentação e a maleabilidade do mito como potencial de análise sobre as dinâmicas do preconceito. Como discutimos até aqui, tal fenômeno se articula pela invisibilidade que, nesse caso, deriva principalmente da diluição da história e silenciamento dos processos de produção e reprodução constante do lugar subalterno dos/as negros/as pela exclusão, pela inclusão subalterna ou pela lógica da exceção. 74 CAPÍTULO 4 4. DINÂMICAS DO PRECONCEITO RACIAL: LEITURAS A PARTIR DA TRAJETÓRIA DE JOVENS NEGROS O exercício analítico que propomos teve como objetivo explorar as trajetórias dos sujeitos entrevistados no sentido de tornar explícitas suas relações e interações com o contexto atual das relações raciais brasileiras e com as expressões do preconceito racial. Diante de um cenário de conquistas e avanços ao enfrentamento ao racismo no Brasil marcado por propostas e políticas de reparação e publicização das violências das desigualdades raciais, pretendemos compreender se tais transformações apresentam impactos nas experiências, leituras e enfrentamentos dos sujeitos em relação ao preconceito racial expresso em suas vidas. Nosso interesse foi investigar as dinâmicas do preconceito racial por entendermos que esse fenômeno se estabelece nas relações entre indivíduo e sociedade e assim, tomá-lo como ponto de análise nas relações de sujeitos permite tratar da expressão das articulações da classificação racial em um conjunto de relações sociais mais amplas, ou seja, o estudo do preconceito permite que dinâmicas macrossociais possam ser lidas a partir da expressão que têm em uma cadeia de relações micro-sociais. Tomamos os relatos dos sujeitos negros entrevistados como experiências construídas de forma singular no seio das relações raciais brasileiras. Dessa forma apresentamos na primeira seção de nossas análises, referente a apresentação dos sujeitos, a reconstrução que fizeram de seu percurso de vida e os devidos encontros com a temática de nossa pesquisa. Assim recortamos os pontos que mais se mostraram importantes em suas trajetórias, assim como suas características gerais. Tomando cada uma das histórias dos sujeitos propusemos nas seções seguintes uma análise geral dos relatos que apresente nossa proposta de organização das falas a partir de uma categorização dos dilemas e experiências que se apresentaram como compartilhadas por eles, considerando para isso os encontros e desencontros dessas trajetórias. O exercício de categorização se desenvolveu a partir da leitura e articulação entre elementos do racismo brasileiro e as dinâmicas de invisibilidade e ambiguidade do preconceito racial nas trajetórias dos sujeitos entrevistados. Dessa forma surgiram como destaque experiências que permitiram explicitar a representação da inferioridade 75 atribuída aos lugares sociais dos negros, as dinâmicas de identificação e leituras do preconceito racial e as estratégias de enfrentamento presentes nas histórias dos entrevistados. 4.1. Apresentação dos sujeitos: As trajetórias dos sujeitos, assim como as relações individuais que estabelecem em sua vida, não podem ser tomadas fora de uma rede de relações e trajetórias de outros indivíduos e das necessárias conexões com o conjunto de cadeias relacionais que chamamos de sociedade (Elias, 1994). Essas cadeias relacionais podem ser expressas desde a consideração de instituições socialmente demarcadas como a família, a escola, a religião, o casamento até mesmo com as conexões com outros conjuntos de relações mais maleáveis e menos formalmente controladas, aquelas dadas nos registros das vivências interpessoais e afetivas. Dentro do contexto mais amplo que denominamos de relações sociais, aqui marcado pelo recorte das relações raciais, os indivíduos demarcam seus posicionamentos em diálogo com ordens sociais invisíveis nas relações individuais, mas que acontecem dentro de estruturas mais ou menos condicionantes (Elias, 1994). Cada sujeito, portanto constrói, dentro do jogo de dependências da estrutura, seus próprios trajetos e assim, pretendemos apresentar cada um dos relatos construídos nessa pesquisa os contextos relacionais mais específicos, seus posicionamentos, vivências e experiências mais marcantes, mantendo o diálogo necessário com o contexto social mais amplo e com o tema dessa pesquisa, o preconceito racial. Dessa forma seguimos apresentando quem são os sujeitos13 que contribuíram com a construção desse trabalho cedendo seus relatos, seus pensamentos, seus conflitos e suas experiências. Cada entrevistado será apresentado tomando como referência além de sua caracterização geral o apontamento do aspecto que cada um enfatizou em sua trajetória a partir da liberdade de contar sobre sua história em diálogo com o conhecimento do problema de pesquisa. 13 Os nomes dos sujeitos foram trocados para garantir a preservação do anonimato. 76 4.1.1. PAULO Paulo é um jovem de 25 anos, solteiro, residente do bairro Nova Suíça. Ele declara ser de classe média baixa e ao narrar sua trajetória não aparecem aspectos relacionados a dificuldades de ordem econômica. A partir dos critérios do IBGE se autodeclara como preto, sem apresentar muitas dúvidas ou questionamentos na declaração. Na época da entrevista ele se preparava para cursar no início de 2012 o primeiro ano de seu mestrado em uma nova linha de pesquisa da pós-graduação na Faculdade de Medicina da UFMG. Encontro-me com Paulo, após muito tempo sem manter contato cara a cara, e com isso nossa conversa se inicia pela comemoração de sua entrada na pós-graduação. Até aquele momento nossas “conversas” se limitavam a comentários de publicações no Facebook, site de relacionamento que ele constantemente utiliza pra expor suas críticas e opiniões sobre acontecimentos sociais contemporâneos das mais diversas ordens, desde fatos políticos até o capítulo final da novela das oito, sempre em tom crítico e perspicaz. Fico feliz ao saber de sua entrada no mestrado, principalmente em um programa da medicina, onde historicamente, a presença de negros é muito baixa. Filho único, ele reside com a mãe desde a infância. Para ele essa condição marcou profundamente sua trajetória e a isso ele atribui a centralidade do espaço escolar em sua vida, sua postura solidária com os outros e à construção de seus interesses e vínculos com as pessoas. Paulo pouco fala sobre a família para além da mãe e sua história se dá no registro da sociabilidade e convívio escolar. “...boa parte da minha história é muito marcada pela escola assim, como eu sou filho único eu quase não ficava em casa, eu ficava geralmente na escola, então as minhas principais histórias e vivências são marcadas pelas escolas...”(Paulo, 25 anos) Ele conta que entrou na escola muito cedo. Com dois anos e meio já frequentava a sala de aula e outras atividades de uma instituição de ensino de caráter religioso, onde ficou até o fim da antiga quarta série. O início da segunda etapa do ensino fundamental é cursado em uma escola estadual do bairro Sagrada Família, sendo que nos últimos anos desse ciclo, Paulo muda de casa e consequentemente de escola. Ele destaca em sua fala o bom nível das escolas que estudou. Para ele, apesar de públicas estaduais, naquela época eram muito superiores às escolas atuais em relação à qualidade. O ensino médio 77 ele cursa em uma escola técnica. Conseguiu uma bolsa em um cursinho preparatório para as seleções do COLTEC e CEFET e mesmo passando em terceiro lugar no COLTEC, optou por cursar o Técnico em Eletrônica mais próximo de sua nova casa, no CEFET. A entrada no curso de graduação de Psicologia da UFMG acontece na primeira tentativa do vestibular, sendo que para tal não foi possível (e também preciso) fazer cursinho. Por ter feito o nível técnico em uma instituição federal a entrada na universidade não teve muitos impactos para Paulo e o projeto de cursar o nível superior surge em sua trajetória com muita naturalidade. Sem grandes novidades é a experiência do CEFET que reflete mudanças importantes na vivência dos contextos escolares de Paulo em relação à diminuição da heterogeneidade de perfil dos alunos. As experiências que mais lhe interessaram no ambiente acadêmico se deram no âmbito da participação no Conexões de Saberes em que permaneceu de 2007 a 2009 e no projeto Educação Sem Homofobia14. Nesses espaços ele pode debater, produzir e aprofundar conhecimentos acerca de assuntos como preconceito racial, desigualdade, homofobia e machismo, temas que sempre lhe inquietaram. 4.1.2. RICARDO Ricardo cresceu no interior de Minas Gerais, em uma cidade do Vale do Jequitinhonha. Nascido na capital, ele volta a viver em Belo Horizonte aos 16 anos. Na época da entrevista ele tinha 27 anos e trabalhava como bolsista de apoio técnico em um projeto de pesquisa na UFMG. Há um ano formou-se em história pela UFMG nos graus de licenciatura e bacharelado, tendo na graduação participado do programa Conexões de Saberes entre 2007 e 2009. De família pobre, foi por meio do auxílio financeiro de sua mãe que ele e sua irmã conseguiram cursar o ensino superior, sendo que a irmã se formou em uma instituição particular de ensino superior. A mãe de Ricardo é empregada doméstica e por mais de 35 anos trabalhou e viveu na casa dos patrões sem direito ao retorno para casa, nem mesmo nos fins de semana. Assim pode dispor aos filhos as condições básicas que garantissem o êxito na 14 O Projeto Educação sem Homofobia foi uma ação desenvolvida pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG (NUH -UFMG) que tinha como principal ação a formação presencial de professores das redes municipais de ensino nas temáticas de direitos humanos e cidadania LGBT. 78 escolarização. Ricardo se autodeclara preto, e mesmo que as relações raciais já lhe saltassem aos olhos desde a vida no interior, ele diz que só compreendeu seu lugar como negro na sociedade posteriormente a sua entrada na universidade. Muito afeito as amizades, a sociabilidade da vida pública sempre foi uma centralidade na trajetória de Ricardo, sendo muito presente em seus relato saídas, festas, divertimento e entretenimento. Dessa forma, são distinções entre os padrões das relações interpessoais entre o interior e a capital os pontos de grande interesse dele na forma como conta sua história. Há 11 anos vivendo em BH, Ricardo hoje reside com a mãe e o tio em um bairro da região de Venda Nova. A vinda para Belo Horizonte revelou a ele os contrastes entre a cidade do interior e a capital como principais mudanças em suas relações. Sobre a vida em Belo Horizonte ele destaca que “o tempo passa de uma maneira diferente das cidades pequenas assim, cidades grande é tudo uma correria, você nunca tem tempo pra nada, às vezes você tem um contato com pessoas lindas (...), porém a gente se perde por diversas coisas que a gente tem que fazer, e cidade pequena não tem isso é um convívio até que obrigatório assim, tem algumas pressões mas o convívio é obrigatório né.” (Ricardo, 27 anos) Para ele as relações no interior se destacam por certo caráter de horizontalidade da convivência entre as classes sociais, o que percebe como mais raro nas cidades grandes. Os grandes limites econômicos e poucas oportunidades de emprego na cidade do interior marcam rigidamente a divisão entre as classes, mas diferente de como se estabelecem as relações de convivência em Belo Horizonte, no interior do Vale as fronteiras de classe não significaram em sua trajetória fronteiras nos relacionamentos interpessoais. Ele destaca que na escola, por exemplo, estudou nos mesmos colégios públicos que os filhos das classes mais altas da cidade, que as casas das pessoas de maior condição socioeconômica não eram isoladas em “desertos” como são os condomínios de Belo Horizonte e que a desigualdade social não se reflete em distância entre as pessoas assim como ele percebe que é na cidade grande. No entanto por terem caráter de maior proximidade, as relações que estabeleceu no interior foram mais marcadas pelo caráter de vigilância das cidades pequenas. A vida no interior impõe padrões e modelos de comportamento mais rígidos e moralizados, o que para Ricardo está relacionado ao forte tradicionalismo dessas regiões e também à 79 influência dos valores da igreja católica. Como ele deixa explícito ao apresentar a situação abaixo. “...na cidade pequena, por exemplo, em uma relação do homem com a esposa dele. Ai o cara trai ela sempre e todo mundo fica sabendo inclusive a mulher dele, se a mulher do cara quisesse traí-lo a cidade saberia bem mais rápido, é exemplo claro de sexismo, mas que tá no cotidiano. Como as relações interpessoais elas são ali cotidianas, esse é o termo que eu quero usar, é bem mais visível isso, porque na cidade grande a mulher fala que vai pro trabalho, pra qualquer lugar e se vinga né, não necessariamente vai deixar o marido saber, às vezes até deixa mais é mais complicado. E lá também tem isso né, o marido traído não pode aceitar por conta da pressão social, se ele aceita não é o macho entendeu...”(Ricardo, 27 anos) Mesmo não sendo o alvo prioritário dessa vigilância, já que ela incide mais sobre as mulheres segundo Ricardo, ele destaca que o caráter tradicionalista e as proximidades das relações no interior impõem padrões mais rígidos a todos. 4.1.3. JOSÉ José é um professor de língua portuguesa e literatura de 27 anos. Ele trabalha na rede privada de ensino fazem quase dois anos e leciona no ensino médio e também em um cursinho pré-vestibular. Criado pela mãe e pela avó ele conta que desde a infância a família representou para ele um lugar de segurança e conforto. Um ambiente em que se sentia protegido dos problemas e sofrimentos que vivia em suas relações por ter sofrido desde a infância com excesso de peso e as consequentes humilhações que estar fora de um padrão estético significavam. Reflexões posteriores o fizeram também relacionar essas vivências com o fato de ser negro, sobretudo com a prática dos colegas em puxar os cachos de seus cabelos quando ainda o mantinha comprido, o que na época ele considerava ser apenas uma brincadeira dolorida. Essas reflexões significaram também a definição de sua auto declaração racial como certamente preta. Os anos escolares de José e sua relação com colegas e amigos próximos se deram em meio a inquietações e dilemas relacionados ao lugar inferior que ele julgava ocupar diante dos outros. Ele conta que sempre foi uma pessoa que seguia certos padrões de conduta considerados positivos, foi coroinha na igreja, tirava boas notas na escola, era educado e seguia tudo aquilo que estava dentro dos padrões conservadores. No início da adolescência, no entanto as tentativas de sair do lugar de inferioridade 80 acabaram por fazê-lo se contrapor, na tentativa de se integrar, a esses modelos de boa conduta impostas pelo seu entorno familiar e religioso. “...por me sentir ainda com sentimento de inferioridade né, eu não tinha ainda o conceito de identidade racial ou de auto afirmação, de ação afirmativa, realmente às vezes eu me sentia no discurso das outras pessoas, por ser obeso e negro eu realmente estava abaixo dos outros né, e por mais que eu tivesse a proteção familiar, aquilo ali me influenciava no meu jeito de ser né, então acho que eu tomei algumas atitudes na juventude que praquele momento poderiam ser consideradas transgressoras, erradas, como fumar muito jovem, entrar pro grupo da escola que faz bagunça, que joga pedra né. E eu sempre fui um aluno muito certinho, um bom aluno digamos assim né, pros valores conservadores. Um aluno de boas notas, de bom convívio, educação, então tive dois anos assim bem, digamos, desleixados nesses conceitos e valores ai, então foi um momento diferente.”(José, 27 anos) Podemos considerar que a trajetória de José é marcada por movimentos de trânsito entre a recusa da regulação e o estabelecimento de padrões de emancipação, mesmo que em diálogo com valores morais, como os da igreja católica. Os momentos de transgressões na trajetória de José deram lugar, no meio da adolescência, à entrada no grupo de jovens da igreja de sua comunidade para o momento da preparação para a crisma. José identifica esse momento como um período de transformação em sua trajetória, em que começa a construir referências mais próprias para alcançar alguns objetivos que traçara em sua vida, como estudar, cuidar do corpo e da saúde. A participação na igreja acontece de forma intensa e ele se torna na comunidade uma liderança junto a outros jovens a partir do estabelecimento de vínculos e identificação com outras pessoas que partilhavam algumas de suas angústias. “...então ouve uma identificação com essas pessoas, grupos né, grupos de jovens na igreja, então fiz amizades, foi um momento que culminou também com uma dieta que eu fiz, eu emagreci, então eu me senti mais confiante, então foi o momento da minha trajetória muito positivo pra mim como pessoa mesmo né, eu senti que eu avancei, fiquei mais confiante. (...) Ai ouve uma mudança, eu me senti mais confiante né, e essa confiança era atrelada aos valores cristãos (...) e ai foi vários anos de participação nisso né, quase 6, 7 anos nessa trajetória de grupo de jovens. De me sentir, de ter uma liderança mesmo no espaço religioso, na igreja próximo da minha casa. Eu e outros amigos éramos realmente líderes comunitários jovens, nós éramos referências, não só no sentido assim para os jovens mas pra todos ali, éramos exemplos né: “olha como os jovens devem ser.” (José, 27 anos) 81 Os valores cristãos sempre estiveram presentes na vida de José dentro e fora da família, que também seguia os preceitos católicos. Mas é na adolescência que ele diz se apropriar desses valores de forma mais autônoma e em diálogo com sua própria história e não mais como um continuum da história familiar. Sobretudo é na igreja, fora da proteção familiar e junto a outros jovens, que José encontra formas de identificação e de valorização positiva de sua identidade, permitindo estabelecer mais diálogo com os padrões de conduta exigidos pela sociedade e com as suas próprias condições de se construir como sujeito livre dos lugares de subordinação. A liderança que exerceu no contexto religioso foi importante pra sua escolha pela licenciatura, e desde então ele já se considerava um professor. A entrada na universidade, no entanto foi tensa, e nos primeiros períodos do curso ele passa por um processo de jubilação por excesso de faltas em decorrência do falecimento da irmã. O desconhecimento do funcionamento institucional exige que ele elabore a partir dessa situação uma estratégia para garantir a permanência na universidade, afinal sua vaga na UFMG tinha sido difícil de alcançar. Esse momento é mais um dos momentos em que José teve que reconstruir sua trajetória e após conseguir cancelar o risco de ser expulso da universidade ele ressignifica sua inserção na academia e sua dedicação ao curso. 4.1.4. RAFAELA Rafaela é estudante de psicologia e na época de nossa entrevista estava no fim do nono período. Ela é casada e reside atualmente com o marido na região do Alto Paraopeba em Minas Gerais. Por ser de outro município adquiriu o benefício de moradia universitária e vai pra casa somente nos fins de semana. Rafaela é de uma família pobre. A mãe é analfabeta e trabalha como empregada doméstica e o pai é um trabalhador da construção civil que de tempos em tempos, quando está na pausa de um trabalho para o outro, volta pra escola pra retomar os estudos. O desejo de fazer faculdade sempre esteve nos planos de Rafaela. No ensino fundamental ela frequentou uma escola pública da região central de Belo Horizonte onde a diversidade de classes e raças entre os alunos fazia a possibilidade do futuro em uma profissão de ensino superior circular de forma mais constante. Ela conta que nessa escola havia estudantes de classes altas e por isso se falava mais em vestibular e ensino superior, assunto restrito em sua comunidade de origem. O ensino médio foi cursado em 82 uma escola da região metropolitana de BH, parte no turno noturno, pois Rafaela já havia casado e começado a trabalhar. Com o sonho de fazer uma graduação Rafaela entra em um cursinho prévestibular e nesse espaço descobre a possibilidade de fazer a graduação em uma universidade federal. Descobrindo o que era o ensino superior público, e seu consequente status, o desejo de fazer ensino superior passa a significar estudar necessariamente em uma Instituição Federais de Ensino Superior (IFES). Durante as tentativas de cursar o nível superior em uma instituição federal ela conta que tentou vários vestibulares em distintos estados, ou seja a UFMG não era sua única escolha. “Federal pra mim era uma superação assim, já tava numa época onde tinha um pouco mais de aceso, o pobre né, à Faculdade particular. Já existiam alguns auxílios assim, mas eu não queria, porque eu achava que se eu fizesse uma Faculdade particular eu nunca ia me achar competente o suficiente, e ai quis porque quis Federal, e por um imaginário também que eu tinha do que era uma pessoa que estudava na Federal assim. Eu achava que se eu passasse aqui eu me tornaria essa pessoa né, esse ser super inteligente, (...) eu comecei fazer terapia aqui (UFMG) e eu olhava pras pessoas assim, e era como se elas fossem uma coisa de outro mundo, e eu achava que quando eu passasse na Federal eu iria me sentir essa coisa de outro mundo que eu via nessas pessoas.”(Rafaela, 28 anos) No entanto, a entrada na universidade não significou para Rafaela a mudança pretendida, a realização do desejo de se tornar “aquela pessoa”, de pertencer totalmente a outro espaço. O encontro com as exigências das disciplinas, as dificuldades nas matérias e a realidade de um corpo docente de outro padrão cultural a fazem duvidar das possibilidades de se tornar esse outro universitário, antes tão desejado. Rafaela percebe as barreiras de pertencimento a esse mundo, estando entre elas bem presentes as barreiras raciais. Ao entrar na universidade ela passa a ressignificar suas experiências e sentimentos a partir de uma leitura histórica e ampla de seu contexto social e é na universidade, principalmente durante o ano em que esteve no Conexões de Saberes, que ela se reconhece negra e passa, mesmo em meio a desconfianças dos outros diante seu tom de pele, a afirmar sua auto declaração como parda. Os principais apontamentos que Rafaela faz sobre sua trajetória se mostram no reconhecimento de que aquilo que construiu como trajetória individual tem relação com um contexto histórico mais amplo e que sua renuncia à origem familiar eram também fruto de um aprendizado social que privilegia certas experiências em detrimento de 83 outras. Essas questões ressignificaram o passado e tensionaram o futuro de Rafaela. Ela está para se formar e o marido recém-graduado trabalha em uma área promissora. Os planos do casal consistem em investir em uma empresa e assim Rafaela apresenta seu futuro como cercado de boas perspectivas de crescimento econômico. Ela conta ter construído para si um outro lugar no mundo, um lugar mais próximo de privilégios, e em seu relato existe o receio de que podendo ocupar um lugar social distinto do seu lugar de origem ela repita no futuro a mesma lógica de subordinação da qual foi alvo. A trajetória de Rafaela parece deixar evidente que a ruptura com os lugares socialmente prescritos e destinados aos sujeitos inferiorizados não depende estritamente apenas daquilo que a estrutura fornece ou daquilo que o sujeito constrói. A vivência da ambiguidade relativa a ascensão social mostra maiores complexidades da dinâmica racial que pressupõe intensa interação entre os sujeitos e suas redes de relações. 4.1.5. BRUNA Bruna é uma jovem de 25 anos. É a filha mais velha, e mora com os pais e três irmãos nos fundos do lote dos avós. A trajetória de Bruna é também muito marcada pela escola, seja como espaço de convivência ou como o lugar para buscar melhorias na qualidade de vida. Ela teve como referência a figura da tia, que durante sua infância era a única familiar com nível médio, e mais posteriormente a única que havia cursado o nível superior. Diante do exemplo e admiração pela tia, a construção de redes familiares proporcionaram a Bruna possibilidade de estudar o ensino fundamental em um colégio militar e o ensino médio em uma escola técnica federal. Sendo que os anos escolares iniciais cursados em escolas públicas da região próxima de sua casa. Ela conta que descobriu as possibilidades de tentar vagas nessas escolas por meio de informações eventuais que os espaços profissionais de seus parentes oportunizaram, pois em seu ciclo social a notícia sobre as formas de acesso às escolas consideradas de qualidade elevada não eram recorrentes. Bruna destaca sua relação com a educação como uma paixão desenvolvida também em meio a sua própria trajetória familiar e escolar. Entre os valores que recebeu dos pais, a importância aos estudos sempre estiveram entre as preocupações mais centrais e Bruna sempre teve apoio da família nos momentos de dificuldade que passou na escolarização, fossem eles de ordem material ou aqueles relacionados a problemas 84 interpessoais, uma vez que na infância e adolescente ela conta que era uma pessoa muito difícil, que implicava muito com as coisas e “caçava muita confusão”. Assim como aconteceu com alguns dos outros entrevistados, ela descobre a possibilidade de gratuidade do ensino superior tardiamente. Desde então já tinha o sonho de ser professora, pois vivendo intensamente o contexto escolar e o incentivo dos pais pela escolarização, percebeu nos profissionais e ambiente da escola, principalmente nas professoras e diretoras, um lugar importante e bonito de trabalho. “...eu desde de nova eu sempre quis ser professora, sempre, sempre, hoje, eu acho que era porque era a única referência, a única não mas das referências mais próximas a que mais me agradava era de ser professora, porque era o ambiente que eu estudei, aí eu via as professoras lá, na coordenação, na verdade, a minha vontade é ainda ser coordenadora, mas eu ainda chego lá, era essa referência que eu tinha sabe e eu sempre fui apaixonada pelo ambiente escolar..”(Bruna, 25 anos) Bruna cursou a graduação em pedagogia na UFMG e relata que esses anos foram os mais importantes de sua vida. Viveu intensamente o tempo de sua graduação e participou ao máximo das oportunidades que a permeância em um ambiente tão diverso e em sua visão tão rico em possibilidades podia proporcionar. Em seus anos de graduação participou de várias pesquisas, projetos, programas de monitoria assim como seminários, palestras e outras atividades acadêmicas. Seu percurso curricular foi extenso e bastante produtivo. A inserção de Bruna foi efeito de muito esforço e dedicação aos estudos, integrados, entretanto a um campo recente que abriu maiores possibilidades a estudantes com seu perfil, pobres e negros. Por mais que se perceba como uma exceção em meio aos seus antigos colegas de bairro e escola ela apresenta suspeitas sobre o seu esforço individual ter sido o único ponto que lhe garantiu sucesso na vida acadêmica. “Olha, eu sempre afirmo o que eu considero sim uma trajetória de exceção, (...) a gente sabe que aqui na UFMG, por exemplo, a entrada é muito mais complicada, mas depois que eu entrei, até mesmo por me mostrar disposta e por me empenhar, aqui na FAE eu tive muitas portas abertas. Não sei se eu teria essas portas abertas em outros lugares, porque em outras Faculdades, por exemplo, (...) acho que eu teria muito mais dificuldade de inserção, até mesmo por, como eu posso dizer, por capitais mesmo que eu não tive sabe (...) eu sempre fui acolhida, e também porque eu busquei né, em Programas voltados pra questões de ações afirmativas, isso fica claro pra mim...” (Bruna, 25 anos) 85 “e que eu tava contando um pouco da minha história, eu falei assim “gente, não é que eu sempre, que todos os Programas aonde que eu tava enfiada lá, que eu tinha me inserido, são Programas de ações afirmativas” ai, uma coisa que eu tenho pra mim, mas que eu não poso afirmar, é se é porque só nesses lugares que eu tive abertura, não sei afirmar isso. (...) Ai às vezes eu fico até pensando sabe, será, essa questão, será que foi porque eu procurei ou será foi porque foram as únicas portas abertas, ainda tem que pensar um pouco, eu ainda não consegui me responder sobre isso, agora...”(Bruna, 25 anos) Bruna está atualmente terminando seu mestrado. Pra ela uma fase complicada que exigiu um tipo de dedicação que ela ainda não tinha experimentado, sobretudo em relação à construção de uma autonomia sobre o trabalho solitário que é exigido no mestrado. Até então suas inserções no espaço de pesquisa acadêmica tinham se dado de forma coletiva, e essa mudança a fez enfrentar dilemas e questionamentos sobre sua “capacidade intelectual”. Ademais o programa de pós-graduação em que está inserida não tem o mesmo caráter dos outros projetos que participou, ou seja, o caráter de ação afirmativa, que de acordo com seu relato são programas sensíveis às trajetórias negras e populares e que assim constroem um olhar e políticas diferenciadas sobre as inserções de estudantes com perfil semelhante ao dela. A trajetória de Bruna centrada na escolarização deixa explícito, principalmente em contraste com a trajetória dos outros sujeitos nos espaços escolares, a importância de leituras e estratégias específicas para a inserção de estudantes negros no espaço universitário por meio de programas voltados para as especificidades desse grupo social. No caso de Bruna, a reflexão de seu percurso bem-sucedido é relativizada como mérito individual a partir dos intercruzamentos que ela faz com o contexto em que sua trajetória ocorreu e as possibilidades relacionadas à sua inserção na Faculdade de Educação da UFMG e em programas de ação afirmativa. Dessa forma seu caminho de reconhecimento é apresentado na relação com a conjuntura social que, juntamente aos seus próprios movimentos, construíram as possibilidades de seus deslocamentos e sucesso acadêmico. 4.1.6. SIMONE Simone é psicóloga, recém-formada pela UFMG. No período da entrevista trabalhava a menos de um mês em um programa público de assistência social, no qual 86 também foi estagiária durante a graduação. Ela tem 26 anos, e mora em um bairro da periferia norte de Belo Horizonte com a mãe e um irmão. Sua convivência familiar parece ser intensa e são recorrentes os relatos sobre o contato com suas tias e primos. Simone estudou parte do ensino fundamental em uma escola particular e parte em escola pública. O ensino médio ela cursou em uma instituição federal onde fez a maior parte dos amigos que tem até hoje. A entrada na universidade não se mostrou muito conflituosa e para ela o ambiente universitário não significou vivências de constrangimento, inadequação ou preconceito. Ela relata que na unidade em que estudou, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, existe maior abertura e aceitação para as diferenças no perfil dos estudantes, sendo esse espaço mais “desplugado” dos modelos clássicos de estudantes de elite. Em sua trajetória fica marcado seu interesse em compreender e explorar os espaços e a realidade em que vive a partir do encontro com diferentes estratégias e perspectivas de vida, desde as mais acadêmicas as mais vivenciais. Essas mesmas dúvidas se refletem na forma como ela se declara como preta. Sua declaração se afirma pelo conhecimento que adquiriu a partir de suas variadas experiências formativas, que mesmo tendo deixado dúvidas sobre o uso das categorias raciais, como pardo, moreno, preto, branco, a fizeram construir essa declaração. Por gostar do lugar da dúvida Simone sempre buscou participar de vários cursos, formações, capacitações e eventos de caráter formativo durante a graduação. Sua inserção na universidade acontece em meio a esse interesse e desde então ela se envolveu em atividades acadêmicas ou atividades de movimentos sociais divulgadas na academia. Contando sobre umas das primeiras atividades que participou, ela deixa explícito esse interesse e um flerte com as possibilidades de atuação em movimentos sociais dentro dos vários programas que participou incluindo o Conexões de Saberes, em que ficou por dois anos, entre 2007 e 2009. “No primeiro período eu participei de um grupo de estudo de análise e comportamento, aí no segundo eu fui pro laboratório de teste, teve um período, uma fase da minha vida, que eu fique muito ligada em Movimento assim. Nem sei por que. Foi por causa do “EIV” que é o Estágio interdisciplinar de Vivência em Área de Assentamento e Acampamento do MST. Eu tava na FAFICH um dia, vi o cartazinho, 4º EIV, eu falei “há cara, esse negócio é doido, eu gostei assim, gostei, achei legal.” Ai então ali tinha discussão do “EIV”, tinha discussão né assim, do sistema econômico. A gente ocupou a Acesita né. Eu tinha fase de preparação pra discutir, a economia né, as 87 desigualdades sociais, a injustiça que é o mundo, você tinha essa fase. Você tinha a fase de ir pro campo, ai você ia pra uma área de assentamento e acampamento, e depois você voltava e tinha avaliação e tinha uma ação final, que era tipo com a Acesita. A sede do Acesita que era ali no João Pinheiro, ai depois disso, eu comecei a participar. Teve o negócio do Fórum Social Mundial também né, que ai a gente fez uma oficina lá do Conexões. (Simone, 26 anos) Ai você já tava no Conexões, quando você foi pro EIV? (Entrevistadora) Não, pro EIV não, o EIV foi o meu primeiro contato, inclusive foi até isso assim, eu lembro que eu falei pro EIV na minha entrevista do Conexões assim, eu falei “há, eu participei do EIV” que tinha que ter uma ligação assim com Movimento, eu lembro que assim no edital tinha alguma nesse sentido, ai eu falei, eu acho que o EIV serve, ai daí eu fiz o CRB também, só que já tava tudo no Conexões. (Simone, 26 anos) O que é o CRB? (Entrevistadora) É o Curso de Realidade Brasileira, que é um curso de formação política assim, um ano, cada mês é um pensador assim, e ai a partir desse CRB também eu comecei a participar assim de palestras, sempre que tinha uma palestra assim anunciando né ou então alguma coisa sabe da América Latina, qualquer palestra, independente da linha assim, independente se fosse partido, se fosse do MSU, eu ia assim sabe. Se eu tivesse disponibilidade eu ia, ai (...) no CRB que é um curso de formação né de Realidade Brasileira, que acontecia aqui na FAE, na UFMG, era acho que 90 organizações, era muita gente assim, sei lá, eram muitas organizações, eram muitos Movimentos, tinha até assim, Marista, tinha ONG sabe, Marista, tinha MsT, tinha Movimento estudantil, eu não lembro de Movimento negro, se teve, podia até ter assim.” (...) Teve a Edna, que era de lá, que começou a puxar isso assim sabe, falou assim “eu acho que isso é importante e tal” até me pediram “não Simone, vamos organizar, vamos fazer alguma coisa” falei “eu não participo de Movimento em geral assim” eu vou nos negócios, gosto de passeata, gostava muito de sabe, ia muito em passeata, em tudo assim. .(Simone, 26 anos) O percurso de Simone em diálogo com os movimentos sociais, principalmente pela participação das propostas de ação desses atores, reflete muitas de suas indagações e indignações sobre as configurações sociais. Ela afirma e reafirma durante todo o tempo das entrevistas a necessidade que tem de entender “como é que as coisas funcionam”. Essa aproximação, portanto reflete em sua trajetória o desejo por compreender melhor as dinâmicas sociais em que se dão suas relações. Esse movimento iniciado na inserção na academia permanece atualmente refletido sobre sua atuação profissional. Inserida em uma política pública de assistência social ela permanece por 88 perguntar, em diálogo com a comunidade a sujeitos que atende em seu trabalho, sobre possíveis formas de compreensão e transformação social. 4.1.7. Alguns apontamentos sobre as trajetórias Depois de nos adentrarmos na difícil empreitada de atribuir por meio da escrita corpo e sentido a vidas que existem fora desse registro, nos cabem duas breves mas importantes pontuações. É possível esperar que em uma pesquisa que se proponha a pesquisar dinâmicas do preconceito se encontre com prevalência o sofrimento e a dor que essa dinâmica tão violenta faz incidir sobre aqueles que a vivem de forma cotidiana. Nosso primeiro ponto pretende expor que a despeito dos sofrimentos, tristezas, angústias e conflitos apresentados pelos sujeitos na descrição de suas experiências, o “clima” que sobressaiu em seus relatos foi, sobretudo a afirmação da positividade de suas identidades negras, o orgulho sobre suas trajetórias, sobre o caminho que trilharam e sobre as conquistas que individual ou coletivamente alcançaram. Essa pontuação se faz necessária como forma de demarcar a emergência de identidades negras positivas, formadas em meio a reflexão, crítica e deslocamentos construídos sobre os lugares inferiorizados que são socialmente atribuídos aos negros. Para nós apontar esse caráter positivo é expressar possibilidades na construção de visibilidade sobre as lógicas do racismo, mostrando que é possível enfrentá-las e quando não, é possível construir estratégias para interpelar tais lógicas por meio de caminhos criativos e diversos, mas que precisam ser publicizados e nomeados de forma recorrente e sistemática. Nesse sentido a apresentação das vivências desses sujeitos se une a uma história que não se encerra em suas próprias vidas, mas soma ao histórico de luta de um povo que nunca viveu somente da dor e resignação, mas construiu, mesmo em meio ao desprivilegio e inferiorização, sonhos, conquistas e resistência. O segundo ponto se relaciona com a forma como apresentamos os sujeitos. A forma que escolhemos para essa apresentação tem também um potencial analítico no sentido em que as trajetórias estão divididas entre os relatos dos homens e das mulheres entrevistadas. Essa divisão não tem como objetivo evidenciar somente a paridade de gênero, recorte dessa pesquisa, mas pretende trazer as especificidades das trajetórias e sua relação com recortes de gênero e suas articulações com curso das entrevistas e 89 principalmente com as distintas esferas de relevância que cada sujeito destacou em seu relato. Entendemos o gênero como uma construção histórica e social que formaliza nos corpos de homens e mulheres distintas significações sociais e distintas posições de sujeito na sociedade. Nosso interesse não foi desenvolver uma perspectiva de interseccionalidade entre raça e gênero ou construir uma análise mais aprofundada sobre as relações de poder que essas posições engendram. Nossa limitação em apresentar os recortes de gênero como um recorte possível está em considerar os enredamentos que os distintos padrões de socialização de mulheres e homens apresentaram em seus relatos. Percebemos que as trajetórias das mulheres são marcadas por maior destaque aos dilemas subjetivos e de caráter mais privado, sendo marcadas por ambiguidades nas leituras sobre as formas de vivência do racismo, mesmo que no corpo geral da apresentação de seu percurso esse não tenha sido o ponto mais emergente que se destacou. Surgem como pano de fundo, sobretudo diante do desejo de se constituírem como mulheres autônomas, as tensões com a tradição da família e com o próprio corpo. Instâncias onde incidem socialmente as regulações das experiências das mulheres. A ambiguidade se dá em torno da construção de perspectivas de emancipação aliadas aos rígidos desafios de romper com os padrões sociais exigidos a elas, sejam os da beleza branca, da obediência ou da abdicação de si. Sobretudo a relação familiar ocupa centralidade na descrição dos dilemas e dos consequentes sentimentos de culpa que os questionamentos delas sobre a vida em sociedade inspiram. O percurso dessas mulheres aponta o que Pateman (1992) já denunciava a partir da ideia de um contrato sexual que organiza de forma invisível a sociedade, qual seja a legitimação da subordinação das mulheres a partir da sua restrição a esfera doméstica, negando a elas o direito de serem indivíduos, de participar e se implicar na cena pública. Essas jovens mulheres têm seus posicionamentos registrados em perspectivas mais distantes do espaço público, especialmente nas tensões entre as expectativas familiares pelo enquadramento do corpo e nas formas de se posicionar com o outro e com suas próprias conquistas. Um desses dilemas surge na descrição da relação das entrevistadas com as formas e modos de usar os cabelos. A centralidade das representações do cabelo na construção da identidade negra é evidenciada por Gomes (2003) nas relações de sujeitos negros em diversos espaços de socialização, significando muitas vezes o registro de inferioridade quando prevalece a representação desvalorizada do corpo negro no conjunto de relações. Bruna, por exemplo, conta uma situação que viveu com a sogra 90 que relata bem essas tensões. A sogra sempre implicava com a sua forma de usar o cabelo crespo sugerindo que ela fizesse escova progressiva, um método de alisamento permanente. “ela já me levou na cabeleireira dela, falou que a cabeleireira podia fazer que ela pagava pra mim, aquelas coisas assim, mas eu não sei, tinha hora que me dava até vontade de fazer sabe, mas tinha aquela questão, não, eu não vou mudar por causa dela.” (Bruna, 25 anos) Outra tensão referentes as formas de interpelar os lugares prescritos para as mulheres, surge no relato de Simone. Em sua descrição, a violência é percebida nas imposições que a família coloca sobre suas tentativas de enfrentar o lugar resignado muitas vezes pré estabelecido para as mulheres. Num episódio bem violento, o irmão a agride sujando seu rosto com pó de café, pois ela se recusou a lavar um utensílio doméstico. Ela chega a fazer uma denúncia na delegacia do bairro, mas tanto a ineficiência do sistema em reconhecer o ocorrido como violência, como a pressão dos vínculos familiares com o irmão acabam fazendo com que ela retirasse a denúncia. Relatos como esses foram recorrentes nas entrevistas com as mulheres que participaram dessa pesquisa e os mesmos apontam para as relações entre raça e gênero na construção das trajetórias de mulheres negras. Relações que aqui não serão profundamente analisadas, mas que apontam assim como defende Hooks (2004) para a necessidade do reconhecimento de especificidades que constroem outras relações de subordinação para as mulheres negras. Os homens por sua vez destacam em suas trajetórias as estratégias de sociabilidade e posicionamentos mais relacionados com as possibilidades de autonomamente se constituírem como sujeitos de si e com a afirmação de posicionamentos mais seguros. Suas decisões e estratégias se dão em meio a tensões, mas essas se destacam sem muitos desdobramentos, dúvidas ou interdições permanentes. O processo das entrevistas também evidenciou os efeitos das diferenças de gênero nas experiências, e os homens, entrevistados, nesse caso por uma mulher, foram bem mais reticentes e receosos em apresentar fragilidades no seu percurso. Suas entrevistas foram mais curtas e diretas e as tentativas de explorar elementos mais conflituosos tiveram sempre como respostas a saída pela abstração de aspectos sociais ou a afirmação de que tais acontecimentos ficaram no passado e não deixaram muitas 91 marcas subjetivas. Paulo por exemplo, após relatar a vivência de experiência de violência na escola acaba por dizer que “... foi um período conturbado assim, mas que foi apenas nessa época e depois eu fiz superar isso bem e acabou não deixando grandes marcas mesmo.” (Paulo, 25 anos) Da mesma forma Ricardo afirma que foi pela sociabilidade que construiu saídas para se destacar e enfrentar alguns problemas de subordinação relacionados à cor da pele. “eu acho que eu fiz isso (enfrentar a condição de ser negro) de uma maneira diferente, eu era nas brincadeiras, nas zuações, de chamar a galera pra zuar, pra se divertir, mais o rei galera mesmo, sério, o negro gato.( Ricardo, 27 anos) “eu também sempre fui muito descolado assim nunca tive problema nenhum com isso, eu acho que me favoreceu, que eu sempre desde moleque assim sempre saía pra festa pra brincar, pra zuar, e de certa forma eu acho que eu sofri menos com isso, eu era sempre o mais zuador da turma”( Ricardo, 27 anos) A emergência dessas diferenças orientou também a leitura realizada para a apresentação das trajetórias e, mesmo sem se traduzir de forma mais explícita no delineamento e análise de cada uma delas, o recorte relacionado às relações de gênero sobressaiu como um ponto a ser considerado e melhor trabalhado em uma proposta de análise posterior. 4.2. Discursos raciais: algo mudou? Como discutimos ao longo do trabalho vivemos no Brasil uma grande contradição em relação ao enquadre de nossas relações raciais. Se por um lado no Brasil raça nunca foi um tema neutro (Schwarcz, 1998) admitir nosso racismo sempre foi um tabu (Guimarães, 2005), e as desigualdades que tal sistema produz são constantemente lidas por meio de outros mecanismos de interpretação, sobretudo aqueles que fazem referência à classe social. Nesse trabalho pudemos explorar a visão de sujeitos acerca das configurações atuais dos discursos raciais e debater suas perspectivas no sentido de verificar possíveis interlocuções entre o relato dos sujeitos e o contexto atual das relações raciais e possíveis impactos e transformações desse contexto presentes em suas experiências. O exercício de análise sobre os discursos raciais que se fizeram evidentes 92 a partir dos relatos de experiência dos sujeitos entrevistados nos serve como uma forma de evidenciar os enquadres em que se fundamentam as dinâmicas do preconceito racial, visto que esse fenômeno se apresenta como um mecanismo que invisibiliza o caráter de opressão histórico que tais discursos veiculam. Nesse sentido essa análise se propôs a explicitar tais enquadres manifestos na trajetória dos entrevistados que se traduziram nas categorias seguintes. 4.2.1. A persistência da inferiorização dos negros na sociedade As trajetórias dos entrevistados apresentam fortes marcas de deslegitimidade e inferiorização em relação àquilo que, longe de significar outra naturalização, poderíamos chamar de suas condições reais de existência. Assim, fica evidente nas análises que fazem de suas experiências a presença constante de um lugar a ser alcançado, sobretudo quando o horizonte de vida se constrói pelo desejo de reconhecimento. Tal lugar não lhes é concedido a priori, ele é distante e precisa ser conquistado a partir de algum tipo de mudança frente a uma inadequação, seja ela estética, moral ou intelectual. Dessa forma, assim como o racismo científico teorizou e prescreveu um lugar natural de inferioridade e subordinação aos negros (Munanga, 2004) as práticas sociais atuais reinventaram as formas de reproduzir tal discurso. Analisaremos, portanto as dimensões relativas a persistências de um lugar de inferiorização e não reconhecimento dos negros a partir da prescrição sobre o corpo negro, referenciada pelo ideal de branqueamento, assim como os padrões de reconhecimento e superação impostos aos sujeitos em suas trajetórias. Por fim apresentamos o que os sujeitos relataram como mudanças sensíveis nesse campo. a) O corpo a ser alcançado O padrão exibido pela perspectiva do ideal de branqueamento tem várias facetas (Hofbauer, 2006; Domingues, 2002). A estética é aquela vertente que de forma mais incisiva incide sobre os sujeitos na afirmação de sua inadequação desde o reconhecimento e aceitação do próprio corpo, exigindo que seu reposicionamento social seja marcado pela manipulação da materialidade de suas identidades. Dessa forma, o 93 reconhecimento positivo de traços e feições se dá referenciado por contornos inalcançáveis e nas trajetórias desses sujeitos a emergência constante de um ideal estético a ser alcançado é o estabelecimento de um desconforto e inadequação com o mundo, refletido no próprio corpo como expressão daquilo que não pode ser transformado. José, por exemplo, destaca como considerava essa inadequação e conta como na infância o sentimento de ser feio, e por isso pior, o fazia desejar uma transformação radical, a de ser outra pessoa, outro corpo. “...mas eu tinha esse sentimento como criança, por isso que eu também me achava feio, você entendeu, eu queria nascer diferente, eu queria nascer loiro, branquinho, magrinho, eu ficava sonhando no ônibus assim quando eu ia nadar, minha vó me levava pra nadar “nossa, eu podia entrar na piscina e sair igual o rapaz da novela, magro, loiro e branquinho”(José, 27 anos) O reconhecimento do corpo como belo, desejado e aceito é recorrentemente uma das negações que viveram ao longo de suas trajetórias. Essas experiências de resposta a padrões estéticos se expressam principalmente nas trajetórias das mulheres, que vivem, como já mencionado, no dilema dos usos do cabelo, os limites da expressão do reconhecimento da beleza aceitável. A manipulação do cabelo como um elemento marcante da trajetória dos negros brasileiros surge como parte importante do processo de construção identitária e é apontado por Gomes (2003) como presente desde a infância. Destacando os conflitos existentes nos dilemas da manipulação corporal a autora destaca que Mesmo que reconheçamos que a manipulação do cabelo seja uma técnica corporal e um comportamento social presente nas mais diversas culturas, para o negro, e mais especificamente para o negro brasileiro, esse processo não se dá sem conflitos. Estes embates podem expressar sentimentos de rejeição, aceitação, ressignificação e, até mesmo, de negação ao pertencimento étnico/racial. As múltiplas representações construídas sobre o cabelo do negro no contexto de uma sociedade racista influenciam o comportamento individual. (Gomes, 2003, p. 44) Na trajetória de Bruna a marcação de uma estética branca fica evidente pelos constrangimentos que vive por decidir manter os cabelos cacheados. Os pais de Bruna vivem uma relação inter-racial, a mãe é branca e o pai é negro. Ela e os irmãos apresentam traços fenotípicos distintos que fazem alguns dos irmãos serem identificados como “mais” brancos e outros como negros. Bruna “puxou” a família do 94 pai, se autodeclara parda e se descreve como tendo traços menos finos e cabelos cacheados, características diferentes de sua irmã. Na família, desde a infância essa diferença gerou muitas comparações. Bruna era tida como a menina que “ficou” bonita com o tempo, enquanto a irmã, com os traços mais parecidos com os da mãe, sempre “foi” bonita. De forma espontânea ela sempre se negou a alisar os cabelos por achar que não combinavam com ela e essa postura com o próprio corpo, por mais que sustentada por uma decisão segura, ocasionou momentos de conflito, indecisão e constrangimento, assim como geralmente é enfrentar uma situação de caráter prescritivo. “Ai eu lembro que eu saia com o F.(namorado) e tal, eu ia nesses lugares caros ou em boates ou em restaurante chiques com a família dele (...) e eu não via ninguém, casamentos, essas coisas, eu não via ninguém com cabelo anelado, e não era só porque era branco não, tinha preto também, e o povo todo de escova, e aquilo me incomodava sabe. Me incomodava porque eu achava que escova em mim ficava feio, que me incomodava, eu não via ninguém de cachinho. Você vai nessas boates da Savassi, você não vê ninguém, até hoje você não vê ninguém com o cabelo enrolado, aí teve uma época que eu fazia questão de ir de cabelo anelado, ainda todo alto, porque eu falava “então eu vou fazer diferente nesse lugar” aí você sente que o povo tá te olhando sabe. Aí no início eu ficava constrangida mas sabe aquela fase do querer ser vista, aí no início eu ficava morrendo de vergonha disso, de ser a única diferente do grupo, ou até mesmo por questão de roupa né, a única com a roupa mais ou menos, aí depois eu já achava legal ser a única com o cabelo diferente, já achava bom, mas isso também não foi um processo fácil não...” (Bruna, 25 anos) A questão do cabelo e as cobranças em se adequar as normas estéticas são uma constante na trajetória de Bruna assim como nas trajetórias das mulheres negras, e desde a infância ela já se deparava com o incômodo de ter que lidar com os penteados que a mãe fazia. “a maldita da trança, eu só ia com cabelo de trança pra escola, ia só com o cabelo de trança (...) ela puxava o cabelo da gente de um jeito pra ficar liso e fazia aquela trança ou fazia mil cachinhos pra ficar o tal do bunitinho né, o arrumadinho, segundo ela, e que a gente achava também, e aquilo me incomodava demais, aquela trança, aqueles coques. Não sei se eu ia gostar de ir com o cabelo todo anelado, todo ouriçado, naquela época, eu acho que eu não suportaria o preconceito, porque tinha menina que ia e sofria, mas aquilo me incomodava demais o jeito que minha mãe prendia o meu cabelo.(Bruna, 25 anos) Os problemas com o cabelo e a insistência em usá-los cacheados aparecem de forma mais violenta e prescritiva na sua relação com a família do namorado. A sogra, ao 95 conhecer Bruna diz: “até que ela é bunitinha, ela só tem que dá um jeito no cabelo dela né”, frase que lembra até hoje e que, apesar de violenta, a faz seguir determinada em não se submeter ao que os outros acreditam ser mais adequado para ela. De modo semelhante Simone vive a tensão frente a exigência do reconhecimento da beleza a partir dos cabelos lisos. “É muito mais difícil eu ter sucesso, chamar atenção, ainda mais no ambiente, depende do ambiente né. Mas é muito mais difícil eu chamar atenção com o meu cabelo assim, do jeito que tá agora...” (Simone, 26 anos) “...então assim, se não tem cabelo liso é estranho, se não tem, se não veste, é estranho, sabe” é aquilo ali, então assim, minha mãe é uma das pessoas que implica com o meu cabelo muito, muito, muito, então assim, eu tenho uma amiga, a Ana. A Ana chega, ela “nossa, você tem que ouriçar esse cabelo seu, você passa muito creme” ai ela vai e meche no cabelo, ouriça todo o meu cabelo, ai eu volto pra casa o meu cabelo tá super grande assim. Ai minha mãe: “nossa Simone, você tem que abaixar esse cabelo” eu falo assim “mãe, isso é estilo também!” “Não, mas você não pode, o seu cabelo tava tão bonito ontem!” Então assim, na minha casa, rola, é muito contraditório assim sabe, e eu fico assim, eu não sei mas eu acho que minha mãe tá ganhando, minha mãe tá ganhando por enquanto.” (Simone, 26 anos) Mesmo tendo relações que valorizam a estética negra, as referências de outras redes de relações, principalmente as familiares, reinstalam o padrão dos cabelos lisos não como uma escolha possível para a manipulação do corpo, mas como a opção mais consensuada de beleza, evidenciando que a branquitude permanece sendo a referência de uma identidade e estética valorizadas. O alcance de um lugar aceitável no mundo passa portanto pelas diferenciações raciais desiguais, que tem como orientação de corpo valorizado o estabelecimento de um modelo branco a ser alcançado pela sociedade e por seus sujeitos. A forma como a vivência do corpo surge na trajetória dos sujeitos entrevistados, aponta que ideologia do branqueamento (Bento e Carone, 2002) permanece repercutindo efeitos nos posicionamentos dos sujeitos através da construção de práticas, de comportamentos, de padrões estéticos e psicológicos referenciados na negação do reconhecimento dos negros. 96 b) Os padrões de reconhecimento social De forma talvez menos visível, o horizonte de superação de alguma incapacidade ou o desejo de se igualar a uma referência distante perpassa todas as trajetórias dos sujeitos entrevistados em âmbitos que extrapolam a dimensão estética, mas que apresentam em seu cerne um ideal moral e intelectual branco como caráter universal. Esse ideal representa uma gama de valores que se constroem pela negação de todo atributo desqualificado e socialmente marcado como um lugar inferior, destinado e representados pelos negros. Todas as entrevistas fizeram referência ou menção ao afastamento de alguma realidade ou condição de vida referida como inferior. É importante destacar que essa condição a ser superada e sua representação de inferioridade é efeito do jogo de legitimidade social que privilegia determinadas experiências e práticas em detrimento de outras, elegendo os lugares sociais que devem ser socialmente valorizados pelos indivíduos (Elias, 1994). Dessa forma a perspectiva de superação não significa exclusivamente o acesso de direitos negados, como educação, condições materiais básicas ou acesso aos bens sociais de privilégio restrito. Nesse sentido os espaços de valorização e reconhecimento social são representados em oposição aos espaços de trânsito dos entrevistados sempre marcados dentro da hierarquia social pela desqualificação de suas comunidades, família, gostos e práticas. Na história de Rafaela percebemos o exemplo mais explícito do impacto específico que a busca por reconhecimento, efeito da inferiorização dos negros, é capaz de produzir. A condição econômica herdada da família, condição que posteriormente foi relida por ela através também de atravessamentos raciais, sempre foi para ela algo a ser superado, e a saída a ser trilhada passava pelo investimento nos estudos e pelo encontro com um ideal de sujeito. Ela tinha como exemplo a ser seguido as famílias e os filhos das patroas da mãe, brancos em sua maioria. O investimento que Rafaela faz nos estudos acontece na tentativa de negar e superar as condições familiares de pobreza, mas que também se refletiam em um lugar social de subalternidade que sempre foi incômodo e desagradável para ela. O convívio entre dois mundos sociais distintos, o universo das patroas e o universo da família, deixavam evidente a ela que os modos de vida familiar eram obstáculos a serem superados dada sua significação social de inferioridade. E assim o 97 acesso ao estudo de nível superior poderia significar um deslocamento de posição social e a ascensão a outros bens e status, e não, necessariamente, o acesso a um direito. “...eu entrei aqui (Universidade) pra apagar isso sabe, pra eu mudar de vida, pra querer ser classe média, pra ter aceso a uma casa legal, a um carro, coisa que a gente não tinha na época que eu era criança assim. Eu morava numa favela, eu não tinha problema com isso lá na época, mas eu queria morar num apartamento, eu queria ter um carro, eu lembro que eu falava assim, que eu queria trabalhar num emprego que eu ia arrumadinha e voltava arrumadinha porque a minha mãe é faxineira, então a minha mãe chega de um jeito, troca de roupa, e volta do jeito que ela foi, mas assim eu queria ir com a roupa que eu fui, trabalhar com a roupa que eu cheguei, e voltar cheirosa no final do dia.” (Rafaela, 28 anos) Marcadas pela ordem moral e social da ideologia do branqueamento os efeitos dessa posição de inferioridade, que marcaram suas referências de vida, foram constantes em sua trajetória e tem impactos contínuos na forma como se percebe nos espaços onde transita e na determinação das escolhas e conceitos que construiu durante sua trajetória. Enquanto conversávamos sobre alguns sentimentos de incompetência e inadequação que sentia na universidade, pergunto a ela se ela percebia isso em outros espaços. Rafaela responde que “Aparece muito, aparece em lugares onde as pessoas são diferentes de mim no estereótipo mesmo né, dependendo ou não, eu não me sinto bem. Tem a questão da roupa que às vezes se eu achar que eu não tô adequada, aquilo me incomoda profundamente, eu não consigo sabe lidar naturalmente sei lá, mas assim, mais no amplo social assim, porque trabalho, trabalho, eu trabalhava antes de entrar aqui. Eu já trabalhei em loja, eu trabalhava fazendo chocolate, eu faço bem assim, mais eu detestava, porque eu achava que era um trabalho super subalterno. Tipo as pessoas chegavam eu tava de toca, suja de chocolate, mais uma vez a questão de chegar limpinha e sair limpinha, e eu acho que isso me empurrou também pra fazer Faculdade. Porque eu fui fazer chocolate, tipo, fazia bem, todo mundo elogiava, gostava, mas eu não gostava da posição que eu tava ali assim, é muito mais uma coisa minha, de algumas coisas que eu criei, mais baseada nessa história de vida ai, do que é legal, do que você pode ter orgulho de falar que você faz, do que é valor ativo assim mesmo, mas eu me sinto mal, me sinto inferior em vários lugares assim” (Rafaela, 28 anos) Assim como expresso na fala de Rafaela, a menção a um padrão de reconhecimento fica expresso, sobretudo na motivação de alguns dos entrevistados, que assim como Rafaela, viram no ingresso ao ensino superior a possibilidade de alguma superação e o convite a adequação ou o encontro com o reconhecimento. A 98 escolarização em todos os níveis de ensino certamente é um direito social e deve ser garantido a todos, e negros e negras devem sim, ter no ensino superior, uma perspectiva de formação e crescimento. No entanto se esse espaço tem representado nas trajetórias de sujeitos negros não somente o acesso a um direito, mas a possibilidade de negação de uma origem racialmente localizada, é possível suspeitar que ele se constitui socialmente como um espaço institucional marcado pela branquitude como elemento neutro e universalmente representado. A forma como o sonho pela universidade surge nas trajetórias dos sujeitos pode significar a persistência da dicotomia de uma classificação social que marca lugares e trajetórias negras no lugar hierarquicamente inferior, e assim permita a persistência da desvalorização e desqualificação das experiências negras. c) A eterna suspeição. Estar no lugar possível de reconhecimento nem sempre significa o alcance pleno da igualdade pretendida, e outro elemento que marca, sobretudo os momentos de conquista desses sujeitos é a eterna suspeição sobre seu merecimento ou sua capacidade, como fica retratado na fala de Rafaela que atribui suas boas notas a sorte ou ao baixo nível da avaliação. Se aqui eles consideram que existem lugares predeterminados de reconhecimento e prestígio social a serem alcançados, como por exemplo, ingressar em uma universidade federal, fazer pós-graduação, ser inteligente, tirar boas notas, atingir esses lugares não é movimento suficiente para alcançar o reconhecimento legítimo de si e dos outros. Bruna conta uma história ocorrida em uma das disciplinas da pósgraduação que retrata esse dilema. Após trilhar uma trajetória acadêmica marcada pela inserção em várias pesquisas, projetos e monitorias, ela hoje faz mestrado em um programa com maior conceito da CAPES. Certamente por ter apresentado na seleção os requisitos meritocráticos exigidos para esse nível de formação. No entanto o que ela conta nos parece evidenciar a exigência recorrente de movimentos de superação por parte de sujeitos negros, mesmo quando acessam lugares de prestígio social. “...gente, quando eu entrei na sala de aula pela primeira vez e escutei aquele povo todo debatendo eu me senti a pessoa mais burra do Mestrado. Falei assim “gente, que tanto de pensador e de autor é esses que eu nunca ouvi falar na minha vida” e olha que eu sou da área sabe. Ai aquela coisa, gente, eu preciso pelo menos entrar no Wikipédia e saber que são esses caras. Eu anotava o nome, essas coisas. Então eu acho que é no sentido mesmo de recuperar ou de tentar obter aquilo que eu não tive durante 99 algum tempo que passou sabe, e isso faz a diferença. (...) Tinha uns professores, tinha um professor especificamente, que ele pegava no meu pé de um jeito do tipo assim, essa questão, eu fazia o meu ofício de aluno direitinho, eu lia o texto, fichava, essas coisas, ai na hora que eu chegava aqui, essa foi uma aula que me marcou bastante, pela amor de Deus. (...) ai eu chegava aqui ai ele lia as questões: “Essa questão aqui é sua Bruna você pode dá um jeito de melhorar porque senão você não passa na minha aula não.” Porque, as minhas questões, eu sempre tive dificuldade até mesmo nessa questão do me mostrar, me colocar em relação aos textos, essas coisas, eu sempre apontava questões relacionadas ao autor, por exemplo, ai ele falou assim: “Essa questão aqui sua é prova do professor colocar pro aluno e ir pro gabinete estudar, você pode fazer umas questões mais ousadas e tal”. (Bruna, 25) “eu sempre tentei buscar, nesses casos né, onde que eu via que o meu perfil não tava dando conta, mudar um pouco mesmo, não sei se isso é certo ou se é errado, mas me enquadrar nos padrões” (Bruna, 25) A eficiência da produção de subalternidade do racismo brasileiro é abrangente e cotidiana, acompanhando os sujeitos em todo seu percurso de vida desde a infância. Os efeitos da subordinação subjetiva produzida pelo racismo são tão eficazes e perversos que permitem que, os próprios sujeitos e também seu entorno social, lancem mão de elementos que coloquem em suspeita as capacidades e merecimento de seu sucesso e reconhecimento. Nesse sentido parece não existir dentro da estrutura racial brasileira um fim ou limite no movimento de busca de legitimidade para sujeitos negros. Persiste nas trajetórias a necessidade constante de superação e afastamento de alguma perspectiva de inferioridade que possa incidir sobre suas trajetórias, assim como pontuado por Paulo, que diante de uma trajetória de extremo reconhecimento sobre sua inteligência e desempenho escolar, recusa de todo modo que os outros se refiram a ele como alguém que superou dificuldade, pois o lugar de superação para ele significa a marcação da inferioridade. “tem hora que eu fico pensando assim, se eu fosse, eu acho que eu nunca me coloquei como vítima, que pra mim seria muito fácil eu me colocar como vítima, eu acho que eu tenho vários elementos pra que eu fosse vítima, e eu nunca me coloquei, porque, eu não sei, eu acho que talvez a educação que minha mãe me deu que me fortaleceu, não sei, não consigo explicar, então assim, no momento que eu não me coloquei como vítima, que eu enfrentei os desafios eu quero passar essa mesma ideia para os outros também” (Paulo, 25 anos) 100 “Eu não sei, eu não me vejo nesse lugar assim, apesar das dificuldades e tudo mais, não me vejo alguém que tenha superado sabe, assim, fez parte da minha vida, não vejo isso como um diferencial sabe, olha, ele venceu apesar das dificuldades. Acho que todo mundo tem dificuldade, em alguns aspectos eu venci, em outros não, as pessoas são assim, então por isso que eu não me vejo como super herói, uma pessoa que tem uma coisa difícil e que venceu na vida, eu não me deixo me colocar nesse lugar de vítima. Isso limita muito, eu sou alguém que viveu sabe e que a partir da vida eu to conseguindo vitórias e derrotas, eu acho que lugar de vítima é o pior lugar que alguém pode tá assim, eu acho assim, eu não me sinto pior ou melhor por ter conseguido o que eu consegui. Consegui, sabe, se isso é bom ou ruim depende do parâmetro das outras pessoas, as pessoas tiveram outras conquistas que eu não consegui, elas são melhores que eu? Acho que não. Então esse lugar de super herói, de superação, acho muito lugar de vítima sabe, e vítima enfim, não somos nenhuma Maria do bairro15 (...) enfim, não dá pra ficar chorando, falando que a vida, pelo amor de Deus, não rola. (Paulo, 25 anos) Rafaela por sua vez tinha na universidade um importante horizonte de superação, mas viveu a aprovação do vestibular com pouca comemoração assim como vive seus momentos de bom rendimento na graduação. “quando eu passei, que eu tava muito confiante que eu ia passar em alguma Federal, eu tentava várias Universidades Federais, eu não sei, eu acho que doía muito mais não passar do que foi feliz passar, assim, eu fiquei feliz, eu chorei, que não é novidade, mas o não passar era muito mais doido do que foi legal passar. Eu acho que passar era tipo assim, passar é mais que sua obrigação, não passar é incompetência total, é o atestado de incompetência, passar não né, já tava na hora né! Vem ai mais uma vez a questão de não dar conta de, tipo, você foi competente, eba, vamos comemorar isso, não.”(Rafaela, 28anos) “eu não sei se eu faço o possível pra me enquadrar nesse ideal (estudante universitário de bom rendimento acadêmico), mas não estar nesse ideal me incomoda muito, e eu nunca tiro uma nota boa assim. Falando exatamente o que eu penso, porque eu não acho que eu fui super capaz assim. Pra mim ou é porque tava fácil (a prova), ou é porque eu tive sorte, essa coisa da capacidade é muito complicada pra mim assim, tipo, às vezes, eu não sei, porque. É questão de sentir assim, porque racionalmente às vezes eu penso, as pessoas às vezes vão fazer prova ai lê o texto 4, 5 vezes, tipo, eu não 15 Maria do bairro é a personagem principal de uma novela mexicana de mesmo nome. A história dessa personagem é marcada pelo sofrimento, humilhação e lamentação que marcam a primeira fase da personagem, que muito pobre, padece com a miséria de sua vida. A segunda fase da novela narra a superação de Maria pela mudança radical de classe social, que, no entanto ainda é marcada por muitos problemas e sofrimentos. Dessa forma a expressão “Maria do Bairro” acaba por significar em alguns circuitos uma forma de satirizar posturas de lamentação ou inferioridade. 101 dou muito conta de ler o texto 4, 5 vezes, e faço uma prova. Então teoricamente é inteligente e tal, mas em termos de sentir isso mesmo não sinto. Tipo, “ai, você é capaz e tal”, não.(Rafaela, 28 anos) Certamente essa é uma interpretação que surge desses relatos e não podemos deixar de admitir que os movimentos de superação desses sujeitos tenham intensa relação com posições de não aceitação de um lugar inferior prescrito aos seus iguais e assim, não consideramos que o desejo de mudança seja em si indesejado, afinal é a luta por igualdade de oportunidades e direitos que marcou todas as conquistas que os negros puderam alcançar nessa sociedade. No entanto o que marca essa leitura são dois pontos. O primeiro ponto se refere à própria necessidade de alcançar o “outro lugar”, necessidade que marca a persistência de um campo de acesso a recursos sociais que não lhes é garantido desde sempre como direito. O segundo ponto se refere aos limites que marcam esse “outro lugar”. Limites esses ainda contornados por uma cultura hegemônica em que os negros, assim como os atributos que os representam, se encontram como aquilo que se deve negar na esfera do reconhecimento social. Assim como nos aponta Junior (2006) esse processo pode ser lido como uma oposição assimétrica cultural, que De maneira geral, (...) corresponde a imputar ao Outro hábitos e costumes que são em tudo diferentes daqueles do Eu coletivo. No campo semântico dessa forma de desrespeito encontramos referências a modos de vestir, comportamentos, valores morais, gostos, maneiras de falar, práticas religiosas, instituições políticas e sociais, gosto musical e artístico etc. Em sua forma pura, a oposição assimétrica cultural demarca uma diferença radical e inamovível entre o Outro e o Eu. Ou seja, o horizonte futuro é a continuação da hierarquia estabelecida pelas narrativas que articulam a experiência” (Junior, 2006, p. 69) A reflexão de Junior (2006) reforça o elemento central, que a categoria “eterna suspeição” evidencia nas trajetórias desses jovens. Qual seja a existência de um horizonte de constituição do sujeito negro que se organiza hierarquicamente subordinando tais experiências ao campo da impossibilidade, e que por isso fazem persistir a desigualdade racial como um destino cultural e político a ser constantemente repetido. 102 4.2.2. Algumas mudanças: Negros na Mídia - visibilidade e reconhecimento Sendo ex-participantes de um programa sobre Ação Afirmativa a referência a essas políticas não aparecem com centralidade nos relatos dos entrevistados em relação a mudanças no contexto racial brasileiro no que diz respeito a inserção de negros em lugares sociais de prestígio e poder. Eles reconhecem, sobretudo a importância desse programa em suas trajetórias, mas não relataram como relevantes os impactos das políticas afirmativas como um avanço ou transformação no contexto social mais amplo. Em relação a universidade em que estudaram, por exemplo, o que prevalece é o relato desse espaço ainda é muito marcado pela hegemonia branca e de classe média, média alta. Os estudantes que ainda permanecem na universidade após a implementação da política de bônus racial na UFMG tampouco relataram ter percebido transformações significativas referentes ao público discente na universidade. Em relação à aparente falta de mudança no contexto racial vivido pelos sujeitos entrevistados e diante o quase inexistente deslocamento ou superação daquilo que poderíamos nomear como o cerne do racismo, ou seja, a classificação social por meio da classificação por raças e valoração negativas sobre as representações dos negros, podemos evidenciar algumas pequenas mudanças no contexto social mais amplo que os entrevistados apresentaram em relação a atribuição de valores aos negros. A diferença dada ao tratamento da questão racial na sociedade é marcada quase que exclusivamente pela referência a novas formas como os negros têm sido representados na mídia. A presença de personagens negros com destaque nas telenovelas é um apontamento reincidente na mudança da forma com que os negros são publicamente representados. Araújo (2000) demonstrou por meio do documentário “A Negação do Brasil” o lugar estereotipado e negativo ocupado pelos personagens representados por atores negros. Ele destaca que na teledramaturgia brasileira os atores negros estiveram relegados a papeis de escravos, empregados domésticos ou personagens de caráter e moral duvidosa, reforçando a representação social do negro como subalterno e inferior. Os sujeitos entrevistados nessa pesquisa, no entanto, revelam que em seu cotidiano a presença de personagens negros com outros perfis sociais tem significado transformações importantes nessa representação. A referência a 103 novela16 em que Lázaro Ramos interpretou o papel de galã foi apontada por eles como um elemento de caráter inédito na nossa história que trouxe de forma pública um ator negro em um papel com posição social geralmente não concedida a personagens negros. Surge também como referência a divulgação da eleição da primeira Miss Universo negra, a angolana Leila Lopes de 25 anos, que após ganhar o título de mulher mais bonita do mundo fez repercutir na mídia um debate a respeito da raça da ganhadora do prêmio. No entanto a transformação a que fazem referência não diz da superação e aceitação das novas representações que os negros tem tido na mídia brasileira, seja em seus ciclos de relações ou mesmo na recepção do público em geral. Para eles, ter o negro representado em outros lugares que não aquele comumente concedido aos pretos e pardos na televisão brasileira é um elemento importante mas não muda radicalmente a visão das pessoas sobre os negros. Para eles esse outro tipo de presença negra na televisão, uma presença mais positiva, mais valorizada e menos estereotipada, significa mais oferta de elementos que possam explicitar, a partir dos posicionamentos das pessoas em relação a esses novos lugares, os discursos raciais que se reproduzem de forma invisibilizada na sociedade brasileira. A partir dessa leitura Paulo nos aponta que Mas na sua família assim nunca apareceu essa questão(racial)? Aparece, acho eu percebo isso muito no discurso da minha mãe principalmente assim, eu percebo que vendo televisão e tudo mais, a forma como ela se reporta a certas situações, é visível o preconceito na fala dela e também o preconceito por ela mesmo assim porque com certeza ela já viveu assim e acho que aparece bastante nas falas, mas eu não sei de caso de violência racial e explícita na minha família assim, mas sei por causa do discurso que está internalizado neles. (Paulo, 25 anos) Que tipo de discurso assim que aparece? Sempre colocando negro como inferior, tipo, nessa última novela, Insensato Coração, foi fácil assim, “olha, como pode o Lázaro Ramos pode ser protagonista da novela” então assim, você percebe que às vezes passa despercebido assim, mas percebe que ali tem algo assim sabe, que negro não pode ter um status social maior, que sempre tem que tá na classe subalterna, então essa visão de interiorização mesmo. (Paulo, 25 anos) 16 A novela em questão, Insensato Coração, foi exibida pela Rede Globo de Televisão entre janeiro e agosto de 2011. Dirigida por Gilberto Braga e Ricardo Linhares, Lázaro Ramos interpretou André, um jovem e bem-sucedido designer, que ocupava na trama o papel de galã. 104 Bruna também percebeu na novela um ensejo para a emergência de posicionamentos da família em relação ao papel exercido por Lázaro Ramos na novela, o que explicitou o discurso de alguns sobre o lugar que deve ser ocupado pelos negros, mas para ela teve pouco ou nenhum efeito de mudança. “É a tal da novela das 9, da Globo, com o Lázaro Ramos. Gente, o tanto de fala preconceituosa que eu já escutei, que às vezes eu caço confusão, eu penso assim “gente, mas o cara não tá nem vendo?”Tipo assim “Eu nunca vi, como é que coloca” principalmente na família da minha mãe “como é que coloca um preto daquele pra ser protagonista, ainda mais aquele tanto de mulher chegando perto dele?”Aí eu começo a discutir, aí vira briga, aí tem umas coisas que eu tenho deixado um pouco de lado sabe!(Bruna, 25 anos) Simone é a única das entrevistadas que apresentou esse cenário de uma forma um pouco mais otimista, sobretudo em contraste com seu delineamento no passado. Para ela as questões sobre a inferiorização de grupos sociais têm ganhado importante destaque na mídia, e sobre o racismo mesmo que de forma pouco expressiva ela vê importantes transformações. Você falou que tá bombando? O que tá bombando? Até que agora o que tá muito bombante é a questão da diversidade sexual, nas novelas e tal. A racial nem tanto, mas eu acho que com o passar do tempo isso começou a aparecer, nem que seja de forma ruim, mas tá aparecendo. Por exemplo, tá aparecendo mais atores negros nas novelas, não só no papel de serviçal assim, teve a Taís Araújo como protagonista, tem esse cara agora na novela das nove aí, que é designer. Ganhou prêmios e tal, ele é negro assim né e tal. Aí eu lembro uma vez numa entrevista que o autor da novela disse assim “Eu pensei esse papel pra ele” eu fiquei, “uai, pensou esse papel pro negro! Quem é o designer da empresa maioral, que ganha prêmios, uai, é branco de olho azul. E que pega mulher? Cara, é inimaginável, um negro bem sucedido e que pega mulher na boate, que troca de mulher. Gente, esse é um branco, não é um negro. Então tipo assim, por um lado né, talvez tá bombante porque eu to aqui também né, na Academia, então isso de uma certa forma, é um assunto que aparece, porque no ensino médio não aparecia pra mim, nunca apareceu, na minha casa nunca apareceu, sabe, tá bombante nesse sentido sabe, em relação aos primórdios, que passo isso deu né.(Simone, 26 anos) Por mais que a forma como essa visibilidade é apresentada não demonstre a partir da fala dos entrevistados uma radicalidade na mudança em relação a como o lugar dos negros é socialmente representado, essa nova visibilidade apresenta na perspectiva dos sujeitos a possibilidade de inserir um ponto no debate racial que possa tensionar e 105 explicitar os discursos raciais. Paulo sintetiza de forma bem interessante o que foi apresentado de outras formas pelos entrevistados. “Eu tava lendo os comentários, depois que a Miss Universo Angola foi eleita a mais bonita do mundo, eu fiquei assustado com os comentários que eu via assim. Porque eu leio muito a Folha de SP, que eu acho um erro mas que ela me dá muitas informações. (....) enfim, eu até postei ontem no facebook um blog que a mulher fez um apanhado dos comentários assim. É de um nível de atrocidade e preconceito absurdo assim, é por isso que eu penso, pensando em racismo, que não existe racismo no Brasil, não existe até o momento que não apareça nada que coloque isso em discussão. É só aparecer algo que o preconceito vem com toda força assim, e é impressionante os comentários é impressionante o fato das pessoas não terem vergonha de expor tanto preconceito assim, as pessoas se orgulham de certos preconceitos, assim “eu não gosto de negro, isso é um gosto meu assim, eu não sou racista” então é impressionante como ficou muito forte isso agora” (Paulo, 25 anos) Se tomarmos o racismo como um sistema de classificação e hierarquização que toma a construção de diferenças raciais como forma de subalternizar grupos sociais e sujeitos (Guimarães, 2005; Munanga, 2004) pouco podemos dizer sobre mudanças desse sistema de classificação nas trajetórias dos sujeitos entrevistados, mesmo que estejam eles em posições de prestígio e destaque social pouco acessada por negros. Assim como mostram as estatísticas sobre a desigualdade racial brasileira a taxa bruta de escolaridade17 no nível superior de pretos e pardos, considerando jovens na idade entre 18 e 24 anos, era em 2008, equivalente a 16,4%, sendo os jovens negros universitários os representantes da menor faixa da população de universitários, com parcela de 7,7% do percentual de universitários do país. Como já discutido por Figueiredo (2004) a posição social de prestigio não representa menores chances de viver sob a lente opressora do racismo e sob sua constante suspeita. Dessa forma aquilo que no Brasil atribuiu significado à raça, a cor da pele, os traços da negritude como cabelo e nariz servem ainda como símbolos da discriminação existente (Guimarães, 2004a) colocando os traços fenotípicos como base de sustentação e significação de inferioridade. Da mesma forma padrões de moralidade e racionalidade brancas ainda são as referências sociais nas quais sujeitos e instituições ancoram seus padrões de avaliação e pertencimento. 17 Este indicador expressa o percentual de matrícula total em determinado nível de ensino em relação à população na faixa etária teoricamente adequada para frequentar esse nível de ensino. (Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil; 2009-2010) 106 Sob outras linguagens que transitam entre o explícito e o oculto, no uso da categoria raça, as representações sobre os negros se apresentam nas trajetórias dos sujeitos entrevistados como ainda marcadas pela inferioridade desse grupo social. Dessa forma permanece a invisibilização da valorizada dicotomia branco e negro, em que o lugar de sujeito desejável, mesmo que não nomeado, ainda é, pela ideologia do branqueamento um lugar branco. 4.3. Leituras das dinâmicas e movimentos de identificação do preconceito A reflexão que apresentaremos a seguir resultou do movimento de compreender como se dão nas trajetórias dos sujeitos entrevistados as leituras e concepções sobre o preconceito racial. Para isso exploramos no conteúdo das entrevistas o que surgiu como suas visões e impressões sobre o preconceito racial e os impactos desse fenômeno em suas trajetórias. Nessa análise buscamos não somente o movimento de apresentar as visões dos sujeitos mas articular essas percepções às dinâmicas do preconceito racial no momento atual do debate racial brasileiro para enfim, confrontarmos com o que tem sido apresentado na literatura como sofisticações de dinâmicas do preconceito racial fruto das transformações e visibilidade das práticas de enfrentamento ao racismo (Fleury e Torres, 2007). Dessa forma categorizamos os relatos recorrentes dos sujeitos que apresentaram a possibilidade de abstração dos mecanismos de naturalização e invisibilização do preconceito racial que acabam por ocultar a hierarquia racial subjacente ao racismo Sendo um fenômeno que parte de sua própria invisibilidade categorizamos as falas dos entrevistados a partir de dois pontos. O primeiro se refere às formas de identificação do preconceito racial e o segundo relativo suas concepções e leituras sobre o preconceito racial. 107 4.3.1. Movimentos de racialização das trajetórias e experiências: identificação do preconceito racial a partir da formação teórica e convivência com o grupo de apoio A possibilidade de partilhar as experiências em um grupo de apoio formado por pessoas que compartilham das mesmas realidades é apresentada como fundamental para a ressignificação de suas experiências e identificação dos efeitos do preconceito racial. Nesse sentido os entrevistados afirmam que a identificação com outras trajetórias permite a construção de uma leitura coletiva e não mais individualizada daquilo que viveram como humilhação ou inadequação. Dessa forma passam a compreender dentro de um contexto mais amplo de lógicas sociais aquilo que viviam no âmbito da individualidade. A experiência que tiveram no programa Conexões de Saberes se mostra, nesse sentido, marcante para todos eles como expresso na fala de Paulo: P: Eu acho que a própria convivência, acho que pelo fato de reunir pessoas com o mesmo ideal, com a mesma questão a ser discutida é um elemento assim porque querendo ou não a Universidade ela é diversa também, então tem várias pessoas então ficando bem espalhadas, no momento que você reuni várias pessoas com o mesmo objetivo isso sai produtos bem interessantes, os textos, eu acho que o aceso a textos que eu não conhecia, acho que as discussões, acho que tudo assim, acho que as conversas e algo mais, ouvir as histórias alheias é muito interessante também, então acho que foram vários elementos, que toda a estrutura formada em cima de um Programa, ajuda.(Paulo, 25) A importância de um grupo de apoio não se resume, entretanto a um momento pontual. A referência a importância do coletivo na participação no Programa Conexões de Saberes e seu consequentes resultados de transformação e ressignificação sobre as formas de se posicionar no mundo foram constantes mas, na ausência desse espaço de troca, as possibilidades de sustentar uma postura crítica em relação ao preconceito racial se torna um exercício muito mais difícil, assim como exposto por Simone ao relatar os problemas em lidar com os padrões estéticos brancos impostos pela mãe sobre seu corpo e cabelo. “eu acho que isso é muito importante sabe, se eu tivesse um grupo que eu frequentasse sabe, que me estimulasse, sei lá, talvez eu nem me importaria tanto assim, 108 minha mãe não venceria o combate entendeu, mas eu não acho que não é só ela, minha mãe é a voz da sociedade, entre aspas assim, eu penso, da maioria...”(Simone, 26 anos) “você tem um grupo de apoio assim, que tá apoiando a sua estética mesmo, assim, e eu e acho que não é só informação, porque não é só informação, se fosse só informação eu seria até emancipada, entre aspas, bem entre aspas, se fosse informação eu seria emancipada cara”(Simone, 26 anos) Ricardo também destaca a necessidade que vê hoje de ter um grupo de solidariedade que permita o trânsito e debate de discussões sobre as experiências relacionadas à negritude. “Eu acho que a falta de um grupo de solidariedade, um espaço de discussão, acho que principalmente isso. Por exemplo, eu achei legal que eu conheci umas meninas numa igreja aí, igreja católica, que abriu uma discussão sobre racismo, e evoluiu até, eu acho que um lugar, por exemplo, uma igreja que sustenta diversos tipos de preconceitos, mas mesmo assim abre brecha pra uma discussão como essa, eu vejo que é o que falta é isso, é um grupo solidariedade, é um espaço pelo qual as pessoas consigam dialogar sobre essas coisas, e acho que falta é isso, em casa você tá sozinho né...” (Ricardo, 27 anos) A importância da vinculação ou possibilidade de estabelecer relações em um grupo ou coletivo que forneça apoio, troca e solidariedade no estabelecimento de movimentos de desnaturalizações nas trajetórias dos indivíduos, reforça o fato de que o preconceito age sobre o a construção subjetiva da autorrepresentação, produzindo o isolamento das experiências individuais do contexto de produção social ampla e histórica. Ou seja, o efeito de naturalização do preconceito se efetiva pela atribuição de um caráter individual àquilo que se relaciona com produções sociais coletivas. Assim o valor das vinculações coletivas se apresenta como uma das formas de produzir leituras sobre as dinâmicas de naturalização do preconceito que incidem prioritariamente pela afirmação da centralidade do indivíduo na leitura das relações sociais. Dentro daquilo que os sujeitos identificam como elementos importantes no processo de identificação do preconceito racial em suas trajetórias surge também como unanimidade a referência ao acesso e contato com a produção acadêmica relativa ao racismo e ao preconceito racial. A partir desse contato construíram leituras dessas dinâmicas que possibilitaram mudanças em suas vidas, identificação dos efeitos do 109 preconceito e deslocamentos na forma como se veem no mundo atualmente, assim como explicitado por Bruna: “Quando eu tava no Ações Afirmativas, isso foi muito bacana, as leituras de texto, era aquelas coisas, você lê o texto “nossa, olha eu aqui gente, nossa realmente, da pra mudar isso” é uma coisa boba, boba mas séria ao mesmo tempo né. É a questão do cabelo, da fisionomia mesmo da gente, gente, eu fiz um álbum de fotos pra presentear meu namorado há algum tempo atrás, há uns dois meses, eu peguei foto desde o início. O tanto, isso me fez refletir bastante, o tanto que eu vi o quanto que eu mudei, em termo mesmo de fisionomia, de características, de vestir, sabe, é assim, a minha irmã que fala muito isso, e eu acho que ela tá se descobrindo agora, mas todo mundo tem seu tempo né, assim, antes eu vinha aqui pra faculdade só com o cabelo enrolado e de coque, nossa, eu morria de vergonha de ficar com aquele sarará solto e tal, e assim, no Ações e até mesmo aqui no Conexões, isso ajuda a gente a ir se descobrindo. É o que a gente escuta mesmo gente, eu to repetindo o que eu já li, o que eu escutei.”(Bruna, 25) Rafaela também apresenta a importância de uma formação teórica sobre a temática. O que você acha que dessas experiências contribuíram assim, na sua trajetória, se você tivesse que elencar algumas coisas? Eu acho que no Conexões tem a ver com formação teórica mesmo assim, que a gente teoriza sobre as coisas e vivencial também né, estar no Conexões, eu acho que me proporcionou estar na UFMG, porque até então tava muito difícil, eu tava aqui mas eu não era daqui, esse mundo não era meu, por mais que eu quisesse participar desse mundo como ele era, porque eu queria mudar, eu acho fui vendo que isso não era possível assim, não é tão simples assim, mas tem que nomear as coisas ainda, por isso que eu sofria tanto, porque eu tava aqui. E o Conexões me proporcionou tá aqui porque no Conexões tinham pessoas que viveram, que viviam as coisas parecidas com o que eu vivia assim, aqui também que eu descobri que eu era parda, até então eu achava que eu era branca, e aqui que eu aprendi que essa questão do meu cabelo não é porque ele é feio, quer dizer ele pode ser até feio, mas ele é feio porque ele é um cabelo crespo, e tinha esse monte de gente aqui na UFMG sabe, então eu acho que o Conexões me fez estar aqui na UFMG também.”(Rafaela, 28 anos) Você falou da formação teórica, o que você acha que foi importante nessa formação? Foi tudo, foi entender que as coisa são construídas, foi entender um monte de lógicas que regem nossa sociedade, teoricamente mesmo, e que eu nunca tinha visto isso em outros lugares, e eu acho que eu não teria tido oportunidade de ver no curso da forma com que a gente vê aqui, mesmo fazendo esse monte de matéria em Psicologia social que eu fiz, eu não teria no curso de Psicologia né como ele é hoje, a oportunidade de ter visto e entendido um monte de coisa que eu vi e entendi aqui.(Rafaela, 28 anos) 110 O acesso a esse recurso pode parecer esperado se tratando de jovens que participaram de um programa de Ação Afirmativa, que dentro de suas propostas tem como objetivo a formação acadêmica e política a respeito da temática. Entretanto o valor dado ao acesso ao produto acadêmico das temáticas raciais apresenta como sentido não só a compreensão e conhecimento sobre as lógicas do racismo, mas sobretudo, insere legitimidade na nomeação de suas experiências. Dessa forma o acesso ao conhecimento teórico e conceitual produzido por intelectuais engajados no enfrentamento ao racismo se mostra como uma forma de vincular suas experiências a uma produção discursiva socialmente valorizada. Essa valorização possibilita que esses sujeitos sustentem e legitimem aquilo que anteriormente ao contato com a literatura aparecia em suas trajetórias como uma suspeita ou inquietação pouco autêntica ou verídica. “Acho que assim, acho que o conhecimento ele vai sendo ele vai sendo adquirido passo a passo assim, entrar na Universidade com certeza abriu muito a minha cabeça para discussões que eu já pensava, mas que eu não tinha elementos o suficiente para pensar muito a respeito, entrar em no Conexões e Saberes ajudou muito a pensar na questão racial assim, que era uma questão que na graduação quase não há essa discussão e na Faculdade em si também não, então isso possibilitou pensar muita coisa que eu não tinha aceso, participar do Conexões possibilitou que eu tivesse um aprofundamento, Educação sem homofobia e do Conexões também, um aprofundamento em relação à sexualidade, então com certeza, participar desses grupos de discussão, esses grupos de extensões aqui na Universidade me ajudou muito assim, sem essa ajuda eu não teria aceso a essas discussões.”(Paulo, 25 anos) Podemos perceber que o esse movimento que permite a identificação do preconceito e de seus impactos se mostra pelo acesso a recursos que permitem a racialização das experiências e trajetórias desses sujeitos. Movimentos que deixem explícitos os discursos em que a subalternidade dos negros seja interpretada como efeito de classificações que o preconceito invisibiliza e naturaliza. A legitimidade do conhecimento acadêmico sobre as questões raciais associada ao compartilhamento de experiências comuns com um grupo de apoio parece ser o exercício que possibilitou aos entrevistados inserir suas trajetórias no registro crítico sobre as relações raciais e jogar 111 luz sobre inquietações e conflitos que viviam em relação a lógica hierárquica que lhes é constantemente apresentado como natural. José resume de forma interessante a complexidade desse movimento no trecho seguinte: E o que faz você ter certeza José, de que aquela situação foi preconceito. De que não é era uma impressão sua? Pergunta difícil, acho que isso é uma pequena cereja do bolo, o bolo já tá lá, digamos assim. Toda a relação ela já tá concebida em muitos espaços, na televisão, hoje a gente já tem um pouco mais de pessoas negras, de matrizes africanas nos programas, mas olha pra você vê o que eu to falando, um pouco mais né, então você vai assumindo essa relação em desigualdade, você vai percebendo que isso passa não só por uma relação visual, uma imagem, uma fala, mas também por olhares, nós nos manifestamos de diversas formas né. Talvez essa seja uma forma que mais, entre aspas, sutis, mas ela existe, e em cima de todas essas relações você pode sim se sentir ofendido por um olhar, talvez você não possa provar mas eu acho que você tem direito de falar que não tá se sentindo bem com a forma do olhar né, agora, a forma que você lida com o olhar também. Depois eu fui aprendendo né como que você lida com esse olhar, você vai ficar calado depois desse olhar ou você vai se posicionar, você vai fazer a pessoa conflitar esse olhar dela pra que ela também reconstrua esse jeito dela, e aí que passa o Conexões. Que foi o momento assim que eu coloco transformador, porque o Conexões coloca os conflitos na mesa, ele coloca os conflitos na mesa, se aquilo ali tá incompleto pra você, se você tá pensando um pouquinho, se você tá um pouquinho em conflito, o Conexões com todas as relações que ele proporciona, não só acadêmica, de texto, teoria, tal, tal, tal, mas também os testemunhos das pessoas, a relação com o campo, lidar com a cultura negra em outros espaços e com outras culturas também consideradas à margem da sociedade, isso faz com que você olha praquilo. Você fala “não existe não e vai embora” ou você acorda, olha praquilo e fala “é, não é igual, não é igual pra todo mundo, não é justo ainda, tá muito longe de ser justo” e aí você começa a se colocar “onde que eu to? Eu to no lugar onde aponta pra essas pessoas e fala que elas tão meio à margem ou eu também to à margem?” Entendeu? Então os conflitos começam a aparecer mais claramente ou escuramente pra você, então eu acho que por isso que o Conexões foi tão forte, não porque ele é um programa bonzinho, legal, porque ali tá realmente bumbando os conflitos, os conflitos que passaram por você e tão passando também por você, no momento a gente tá pensando nisso né, e aí essa questão racial ela bateu mais forte em mim né com esse lidar com o grupo, com esse pertencer, ouvindo as outras pessoas, a trajetória, a história, ouvindo o que aconteceu com elas, eu comecei a nomear os meus conflitos, a nomear os problemas dessa trajetória minha desde da infância, o que eu pensava, talvez era porque só era gordo, não, era gordo e tinha uma característica também que pra muitas pessoas era uma característica negativa, que é ter características físicas de negro, que é a pele, o nariz, o cabelo. Aí você começa a nomear mais as coisas que você viveu, por isso que eu coloco o Conexões como fundamental, eu pude nomear experiências que antes eram experiências assim só conflituosas, não sabia como nomear o que eu tava sentindo né.”(José, 27 anos) 112 O preconceito racial é um fenômeno que tem como efeito a naturalização e invisbilização das hierarquias raciais. Dessa forma sua manifestação compreende um movimento de impedir a localização dos limites de nossa percepção da realidade (Prado e Machado 2008, pág. 67). Através de sua capilaridade no tecido das relações sociais tomamos o preconceito racial como um fenômeno que se apresenta com uma regularidade social (Elias, 1994, pág. 23) que prescreve as relações entre os indivíduos efetivando a não articulação dessas relações com o caráter contingente, histórico e ideológico da produção de hierarquias sociais. Dessa forma a leitura daquilo que se expressa como natural e cotidiano na vida dos indivíduos requer um complexo movimento de identificação da subordinação e inferioridade que recuse o caráter natural das dinâmicas que orientam essas relações, e permita inseri-las em um contexto no qual a produção de hierarquias se relacione com efeitos de opressão histórica. Assim a partilha de experiências em um grupo de apoio e o contato com a legitimidade da produção intelectual negra reforçou em suas trajetórias a possibilidade do exercício de identificação e nomeação do preconceito racial como produto dessa relação. 4.3.2. Leituras das dinâmicas e expressões do preconceito racial: O passado e presente das trajetórias A partir dos movimentos de identificações e nomeação que os sujeitos fazem do preconceito apresentamos a categorização de suas visões e leituras das dinâmicas do preconceito racial, seus impactos e expressões. Nas visões dos entrevistados certamente se percebe um destaque dado à mudanças significativas nas expressões do preconceito racial. Essa mudança fica evidente, sobretudo pelas recorrentes comparações que realizam com seu passado e também com a história pregressa dos pais, quando no caso um desses é negro. A perspectiva de comparação temporal foi fator constante nos relatos dos sujeitos sobre as condições do tratamento dado a questão racial no Brasil e o movimento de temporalizar as nuances de expressão do preconceito pôde revelar especificidades dessa dinâmica. Em suas trajetórias a prevalência de relatos de violência racial explícita ou atitudes relacionadas à inferiorização a partir do uso evidente da categoria “negro” é localizada como presente majoritariamente na infância. Certamente que no decorrer de 113 sua socialização os sujeitos desenvolvem maior sensibilidade aos consensos sociais e as expressões de seus pensamentos e ideias vão se atualizando e adequando aquilo que é considerado aceito socialmente e dessa forma é mesmo de se esperar que crianças, socializadas em um ambiente onde a raça é lida no registro da inferioridade, expressem de forma mais explícita aqueles discursos que circulam ao seu redor. Pesquisas sobre estereótipos raciais com crianças tem demonstrado essa dinâmica de forma consistente (Fazzi, 2004). No entanto essa não parece ser a principal justificativa da diferença temporal apresentada pelos sujeitos, visto que em sua grande maioria a violência racial explícita que relatam na infância não foi proferida ou tiveram como atores centrais outras crianças. Em sua maioria relatam a presença de adultos ou adolescentes como atores nessas cenas. Paulo por exemplo relata um único episódio conflituoso na infância relacionado à sua raça, do qual ele inclusive não se lembra. A história foi contada pela mãe e o episódio aconteceu quando ele era criança e estava na piscina do condomínio onde o tio morava. Sua mãe ouviu a solicitação de um morador do condomínio para que ele se retirasse da piscina, e segundo o que a mãe conta, não havia nenhum motivo aparente para isso, o que a fez pensar que o pedido do morador tinha como ensejo o fato de Paulo ser negro. Após esse episódio Paulo teve a primeira e única crise asmática de sua vida. Além desse ocorrido, ele não relata nenhum outro episódio relacionado a cor de pele em sua trajetória. “foi apenas nesse episódio, pensando nas minhas memórias mesmo assim, eu particularmente eu não me lembro de nada, não lembro de nada diretamente há mim, talvez piadinhas ao redores e tudo mais, mas ao que me afetasse diretamente não, eu não lembro assim, não lembro de ninguém falando algo espontaneamente assim.”(Paulo, 25 anos) A ausência de percepção de Paulo em relação a efeitos do preconceito em sua trajetória demonstra a complexidade de identificação do preconceito racial como um fenômeno presente nas relações e aceitar de antemão esse dado como realidade limita a compreensão dos desdobramentos do preconceito para além das vivências de discriminação. Podemos afirmar que na ausência de vivências de discriminação racial as trajetórias de sujeitos negros não são marcadas pelas dinâmicas opressivas do preconceito racial? Afirmar essa percepção sem cuidados e crítica pode significar, 114 sobretudo o privilégio da leitura do preconceito a partir das formas consideradas mais tradicionais de racismo e invisibilizar a violência que a classificação racial brasileira produz. Seguindo a mesma tendência os outros entrevistados contam sobre uma maior prevalência de episódios motivados por preconceito “explícito” e “clássico” quando crianças. Aqui a dimensão clássica se dá pela clareza com que a inferioridade dos negros ou superioridade dos brancos era apontada nesses episódios, seja a partir da intenção do autor da situação seja pelos efeitos do preconceito nos próprios sujeitos. José por exemplo relata a prevalência constante de preconceito racial mais explícito na infância do que na adolescência. “então esse tipo de “brincadeira” que eu to falando, eu nunca tive, digamos, uma atitude de racismo, tirando essa que eu já citei, na infância, depois na adolescência uma atitude de racismo assim super aberto “você é isso, isso e isso” apontando né, normalmente é uma cosia mais velada, em cima de uma brincadeira, de uma ironia, como eu citei dessas questões físicas e os olhares né, os olhares que a gente percebe na faculdade, às vezes em certos ambientes a gente percebe esse olhar.”(José, 27 anos) A vivência a qual José faz referência se deu quando criança junto ao grupo de coroinhas de sua igreja. Ele conta que o grupo de coroinhas mais velhos, adolescentes, puxavam constantemente seus cabelos, que na época matinha grandes e encaracolados. “aquilo era uma tormenta, uma dor física e uma dor psicológica, tipo assim “você tá abaixo, olha o seu cabelo” entendeu, naquele momento eu não queria ser negro, não queria, eu queria me transformar, ser outra pessoa, entendeu, então naquele momento eu não me assumia, eu nem me culpo por isso, eu tinha 11 anos pô, eu queria sair dalí, ser diferente, para as pessoas me aceitarem, entendeu.” (José, 27 anos) Bruna por sua vez conta das brincadeiras na infância com um primo negro de pele bem escura. “...quando a gente era pequeno a gente ficava brincando muito com ele “nossa senhora, tá de noite, o Juliano sumiu” e é umas coisas que depois que você cresce que você fica vendo o tanto de maldade que tinha nisso, o tanto que é perverso, hoje em dia ele se dá muito bem com isso, mas quando você é pequeno você faz, não vou dizer que é na inocência, mas você faz umas coisas porque todo muito faz sabe...” (Bruna, 25 anos) 115 A perspectiva de comparação temporal também se dá na referência que fazem as diferenças de socialização que seus pais ou familiares mais velhos tiverem em relação às questões raciais. Essa socialização que permitia e aceitava de forma mais explícita a afirmação de um lugar subalterno aos negros é colocada no passado, sendo que a diferença geracional é fortemente marcada como um dos fatores que marca a presença de um preconceito mais explícito e por isso mais arraigado nos discursos e práticas das gerações anteriores. Bruna conta que em sua família as experiências em relação negritude do pai sempre foram marcadas por muita violência, dimensão do racismo que ela e os irmãos não viveram com a mesma forma e mesma intensidade. “eu escuto muito relato, o meu pai, se você sentar pra conversar com ele você não acredita nas coisas que ele te conta e que ele vivenciou na escola sabe, e meu pai assim, (...) mas as coisas de preconceito que ele conta que ele sofreu era muito mais sérias que eu não vivenciei porque os tempos mudaram também e tal, mas as coisas que ele conta é coisa de me deixar horrorizada sabe, que eu acho que em vista do que ele viveu eu não vivi nada sabe, era do tipo “nossa senhora, preto não devia tá aqui, você devia tá lá fazendo não sei o que, pra que você tá gastando dinheiro do seu pai estudando seu preto” sabe, essas coisas assim, isso por parte dos professores, dos alunos, ele conta que sofria muito...” (Bruna, 25 anos) “Eu acho que é porque sem dúvida ele sofreu demais com isso assim sabe, porque ele sofreu demais, (...) a gente (os filhos) já aprendeu a cortar essas coisas sabe, falou do meu cabelo, “mas eu não te perguntei”, “nossa, mas seu cabelo tá feio” “ah, brigada, mas não tem problema não, quem precisa tá gostando tá gostando”, mas é porque eu acho que é porque ele sofreu muito com isso e quando ele conta isso pra gente a gente vê que, nossa, a gente não teve isso, não teve sabe...”(Bruna, 25 anos) Essa mesma socialização que é colocada no passado incide sobre os discursos mais explícitos que as pessoas mais velhas demonstram ter sobre os negros. Os entrevistados relataram que na relação com os familiares é prevalente a afirmação de condutas e posturas racistas e preconceituosas. Tal elemento inspira maiores dificuldades que essa geração tem em lidar e aceitar expressões positivas da negritude não referenciadas por um ideal de embranquecimento ou pela afirmação da diferença como um valor social positivo. Simone que vive constantemente o dilema de dialogar com a família sobre a diferença como riqueza e não como desigualdade, relata dois acontecimentos elucidativos daquilo que ela considera como uma questão de criação em 116 contextos sociais e históricos distintos em relação à aceitação de expressões identitárias negras. “eu lembro uma vez que ela (mãe) foi ao Banco do Brasil, ela chegou em casa da cidade, ela foi no Banco do Brasil e falou assim “Simone, você não acredita o que aconteceu no Banco do Brasil, você não acredita a pessoa que tava atendendo no Banco do Brasil, ela tava com uma roupa, sabe aqueles panos que você põe, sabe aqueles pano de chão, aqueles tecidos? É linho na verdade. “E com o cabelo desse tamanho, todo espigado, você tinha que ver a mulher que tava no Banco do Brasil atendendo” eu falei assim “mãe, tipo assim, isso é estilo assim, isso tem a ver com o estilo dela, mas tem a ver com outra forma de se inserir no mundo.”(Simone, 26 anos) “a minha tia, por exemplo, fala assim “há não, eu não gosto de preto, não tem jeito, eu não gosto de preto, mais eu adoro o Martinho de Vila, eu amo o Martinho da Vila, mas não gosto de preto” eu falei “Tia que isso, qual que é o problema, é uma pessoa como outra qualquer” “não, mas eu não gosto, pode falar, pode falar que é politicamente correto, eu não gosto, na verdade eu não gosto, eu não quero, nunca me relacionaria assim, pronto” entendeu, por mais que eu fale...”(Simone, 26 anos) Dessa forma é perceptível nos relatos que os entrevistados percebem o contexto atual que vivem menos aberto para expressões mais explícitas do preconceito racial, estando elas prevalentes na forma como os sujeitos socializados nas gerações anteriores encaram o lugar social dos negros. Essa constatação de maior violência nas expressões do preconceito racial não se mostram totalmente válidas quando nos aproximamos dos relatos que os entrevistados apresentam fora da perspectiva de comparação temporal. Quando relatam o efeitos do preconceito racial na ausência de uma tendência de comparação temporal a “sutileza” e sofisticação não é o que marca a forma como os relatos surgem e as expressões preconceituosas aparecem de forma tão explicita quanto aquelas que antes afirmaram estar localizada na infância ou na socialização dos pais. Simone, que reconhece maior abertura para expressões do preconceito em um passado em que o debate era menos público, relata duas situações em que a violência do preconceito racial como um mecanismo de subalternização e humilhação dos negros aparece em sua história recente. “Foi num dia, era uma obra ali perto do Minas Shopping, ai tinha, sei lá, um cara, sei lá o que era, ai tava passando, saí do metrô do Minas Shopping, tava passando pra pegar o 50, ai ele falou assim “bom dia” ai eu não respondi sabe, não, eu nem vi quem falou bom dia e continuei seguindo “bom dia princesa” aquelas coisas “bom dia princesa” ignorei. Eu sempre ignoro entendeu “bom dia princesa” ai repetiu 117 “bom dia” de novo, “bom dia” ai na terceira vez falou assim, eu não me lembro qual que foi a expressão mas foi: “não sei o que macaca!” Então não precisa macaca, alguma coisa assim, eu não me lembro qual foi a primeira frase mas tinha esse vocativo assim, macaca, entendeu, ai eu fique assim gente, eu fique assim, como é que pode, entendeu, mas é tipo assim, isso é usado pra ofender, pra deixar você lá em baixo mesmo sabe...”(Simone, 26 anos) Na minha família é muito forte assim o preconceito, principalmente eu e meu irmão assim, sabe, o meu irmão assim, se ele quer me ofender ele fala negra, preta, etc e tal, isso é muito forte, então assim, a estratégia que ele usa pra me colocar sabe assim por baixo é isso assim”(Simone, 26 anos) Bruna também relata as expressões de um preconceito muito explícito na forma como o irmão mais novo se relaciona com a família e colegas. “...meu irmão, ele tem 16 anos, e ele, nossa, e essa questão, todos os preconceitos que você imaginar ele aponta sabe, aquela coisa, de mulher não serve pra nada, nossa, quando eu tirei carteira foi um horror “nossa, mas você conseguiu tirar carteira? Eu nunca vi mulher ficar dirigindo” isso me incomoda mas não sei se é mais pra me irritar mas isso eu falo muito com minha mãe, que tá ligado a ela passar muito a mão na cabeça. A questão do preconceito de raça mesmo, pra ele é muito forte, do tipo, nossa, eu quase morro quando ele fala isso “eu não fico com menina preta não, você tá ficando doida?” Eu olho assim pra ele, sabe, e eu sou muito ignorante, então eu já começo a xingar, eu já tentei conversar muito então quando ele fala umas coisas desse tipo “Nossa, olha ali, você tá doida, olha o cabelo daquela menina!” ou vira pro meu irmão mais novo, o meu irmão mais noivo ele tem o cabelo mais crespo, ele é claro mas tem o cabelo mais crespo “Vocês daqui de casa tem cabelo tudo ruim e que não sei o que” e começa a ficar falando umas coisas dessa.(...)Tem uma menina na escola dele, que eu até conheço, que a gente chamou ela pra ser até catequista sabe, porque a menina é uma gracinha de pessoa mas na escola essa menina sofre um preconceito, e meu irmão é um deles, de todos os sentidos, ela assim, ela é gorda, bem gorda, ela é negra, ela não tem o hábito de arrumar, eu não sei se é desleixada, a menina tá com 16, 17 anos, vai com a roupa rasgada, sabe essas coisas que aí, não sei, aí o meu irmão pega no pé dessa menina de uma forma que aí quando eu to perto dele que a menina chega pra conversar eu fico até com vergonha. (...) ninguém aguenta ele lá em casa não, a gente acha que é fase, a gente reza pra um dia passar, é sério, com relação à família ele é o que incomoda mais, fala mesmo, fala da questão de cor, fala do nariz “mas o seu nariz é de preto, o meu é mais fino que o seu” essas coisa “o que eu não consegui, o que eu peguei da minha mãe tá bom, como eu fui o que mais peguei das coisas dela eu sou o mais bonito” isso aí lá casa com ele, com relação a isso, isso me incomoda demais.(Bruna, 25 anos) 118 Outro episódio que diante da comparação temporal que os sujeitos fizeram poderia ser considerado uma expressão de racismo clássico acontece com Ricardo em seu primeiro emprego em Belo Horizonte. E na sua trajetória de vida você percebe alguma experiência relacionada ao preconceito racial? Sim, mas tipo assim, não sei, porque as coisas confluem muito mas a única que eu me lembro assim, foi uma vez, eu arrumei emprego, assim que eu cheguei em Belo Horizonte já arrumei emprego de entregador de pão, na verdade eu trabalhava na padaria de faz tudo, mas no primeiro dia eu fui entregar pães numa loja, aí eu passando por uma moça eu falei assim “boa tarde” ela olha pra mim e fala “vê se te enxerga, como assim boa tarde” eu fiquei tão puto, que eu saí de lá da loja, (...) eu saí lá da loja, cheguei na padaria e falei tchau, peguei nem o dia que eu tinha trabalhado, eu já tinha trabalhado algumas horas e nunca mais voltei, não quis mais saber daquela profissão, eu senti muito aquilo, foi uma coisa que me incomodou muito, deu vontade de ir lá e sei lá, fazer qualquer coisa com a mulher, quebrar tudo, foi uma coisa muito paia, porque não é uma coisa que a gente vê no interior, que eu acabei de chegar aqui, arrumo um emprego, acontece esse tipo de coisa.(Ricardo, 27 anos) O que percebemos foi que o lapso temporal parece permitir a identificação da violência nas dinâmicas do preconceito no passado, e não no presente, no cotidiano. Quando o movimento de leitura do preconceito se dá em referência a uma dimensão temporal mais ampla o exercício que prevalece é relativizar o presente em detrimento do passado e em suas trajetórias pessoais mais atuais as referências aos impactos do preconceito se deram em meio a grandes sofisticações desse fenômeno mesmo com a presença de eventos tão explicitamente racistas e violentos em suas trajetórias. Como já discutimos o racismo no Brasil sempre se apresentou de forma ambígua e a luta contra essa especificidade tem sido desenvolvida no sentido de explicitar essa ambiguidade a partir do desenvolvimento de diferentes estratégias que possam jogar luz aos aspectos de invisibilização das dinâmicas raciais brasileiras. Nesse sentido tem se apresentado leituras do racismo e preconceito racial brasileiro que apontam para a sofisticação das dinâmicas raciais no sentido de descrevê-las como mais ambíguas e difusas. Essa sofisticação se articularia ao próprio estabelecimento de políticas de combate e enfrentamento ao preconceito, que por delimitarem consensos sociais e incidir de forma mais pontual na moralização de práticas racistas acabaram por impactar nas relações entre os sujeitos de forma a rearticular os discursos raciais. 119 A análise das trajetórias dos sujeitos entrevistados nos mostra um caminho de percepção parcialmente similar. Percebemos a persistência da produção de invisibilidade do preconceito em relação às incidências das classificações raciais e, sobretudo a continuidade de uma das dinâmicas mais características do preconceito racial brasileiro, a negação. No entanto essa negação não é mais de sua violência, tampouco a negação de sua existência, assim como o mito da democracia racial no faz acreditar (Guimarães, 2004b), mas sim a negação de sua atualidade. Essa aparente contradição nos relatos dos sujeitos coloca a negação do racismo sobre outra perspectiva, a temporal, que permite que acreditemos que o cenário de maior discussão e enfrentamento da desigualdade das relações raciais seja um dado presente desconectado de um passado já superado. Se antes negávamos o racismo pela afirmação dessa ideologia como algo do outro, de outra sociedade, hoje nos parece que o discurso da sofisticação das dinâmicas do preconceito tem atualizado a produção de invisibilidade sobre a permanência e reincidências das dimensões consideradas mais explícitas e violentas do racismo brasileiro. O discurso sobre essa sofisticação e silenciamento também se mostra presente na forma como os sujeitos percebem a dinâmica do preconceito na sociedade. Em sua maioria eles afirmam que alguns consensos sociais produzidos pela legitimidade atual do tema da violência das relações raciais tem produzido transformações sobre as expressões do preconceito racial. “Olha, se as pessoas, muitos ter informação de que tem uma lei que pune, por mais que ela não funcione, é informação né cara, ajuda no sentido assim “olha velho, tem uma coisa aí que tá sendo discutida, você nunca pensou nisso” sabe aquela coisa da pergunta, casamento inter-racial, tipo, nunca pensei nisso “oh, tem casamento interracial, o que que é? Entre duas pessoas de raças diferentes” tipo assim, se sai do invisível e vai pelo menos pra uma coisa visível assim, agora, que vai resolver, eu não sei se resolve não, assim, talvez possa resolver pra algumas pessoas assim, pra mim resolve muito pouco assim, mas eu acho que dá um pouco de legitimidade assim.”(Simone, 26 anos) Paulo ao comparar o racismo à homofobia demonstra uma leitura similar do preconceito racial. 120 “Eu acho que a fato da homofobia não ser considerada um crime ainda, isso possibilita o discurso muito mais, as pessoas ela não tem vergonha de falar, então assim, elas falam isso tudo porque sabem que não vai haver qualquer recriminação, isso ficou muito claro daquele caso do Bolsonáro na Band, ele saiu completamente do discurso racista e foi para o discurso homofóbico, que se fosse só o racista com certeza as consequências para ele seriam muito piores. Ele é esperto, que que ele fez, mudou o foco completamente, os gays em detrimento dos negros, eu falo isso muito claro que a questão ali era racial, aquela resposta dele, não era de orientação sexual, mas então eu acho que o fato de a homofobia ainda não ser um crime possibilita a discussão muito maior. As pessoas hoje em dia elas tem medo de serem racista apesar que eu não conheço ninguém que tenha sido preso por racismo nesse país enfim, acho que isso é muito engraçado né, as pessoas saem sempre pela tangente, falam que foi uma brincadeira, eu acho isso muito absurdo assim, eu tava vendo esses dias, um tempinho atrás, que o Diretor da Globo foi acusado de racismo, a desculpa dele que foi uma brincadeira, que ele sempre faz isso com os outros funcionários dele, enfim e ficou nisso, e a juíza aceitou, então pensando, tá, a lei existe só que ela não é efetivada perfeitamente, por quê? eu acho que o tema ainda é tão tabu assim que as pessoas elas não conseguem nem aprofundar muito assim, eu acho que isso é um grande problema, e estou pensando, eu acho que a lei ela foi muito importante, eu acho que, eu me pergunto se ela foi realmente importante, se ela apenas não silenciou as pessoas. Eu acho que ela silenciou as pessoas, mas as pessoas começaram a agir de uma outra forma, de uma forma menos, de uma forma silenciosa mas com efeito tão definitivo quanto, então não sei ainda até quanto à lei do racismo ela foi válida se ela não foi aplicada ainda, mas eu acho que foi ótimo por existir.” (Paulo, 25 anos) Se pensarmos no preconceito como uma dinâmica social que exerce a função de naturalizar as posições sociais de inferioridade, invisibilizando a dinâmica de subordinação racial, podemos em certa medida reconhecer a partir dos relatos desses sujeitos que essa dinâmica de invisibilização do racismo tem interagido com os posicionamentos dos sujeitos. Sofisticando-se a partir do estabelecimento de novos arranjos sociais que não mais permitem, ou permitem sob outros discursos, interações que explicitem as hierarquias fundamentadas na raça, mesmo que a violência dessas relações seja permanente. A mudança a qual fazemos referência não parece, portanto, significar estritamente um contexto melhor, mais harmônico ou menos violento. Essa visão da sofisticação não significa a superação do preconceito racial, mas sim a existência de mais elementos que possibilitam a interpelação das dinâmicas do preconceito racial explícito na sociedade atual, colocando esse fenômeno sob uma constante transformação que sob o discurso da sofisticação oculta a violência e desigualdade racial persistentes no país. 121 4.4. Enfrentamentos ao preconceito racial: As formas de lidar com o preconceito racial se mostraram diversas e envoltas por dilemas e conflitos nos relatos dos sujeitos entrevistados. Seguindo os mesmos padrões da luta histórica dos negros contra as formas de opressão a que foram submetidos na história da sociedade brasileira, construir enfrentamentos aos efeitos nocivos da perversa classificação racial brasileira não é tarefa fácil seja no estabelecimento de estratégias coletivas organizadas, como se dá no movimento negro, seja no posicionamento subjetivo diante do racismo. A partir dos relatos dos sujeitos apresentaremos nessa categoria suas formas de enfrentar os efeitos do preconceito racial. Pontuamos, portanto que nessa categoria os elementos presentes nas categorias anteriores se mostram profundamente correlacionados, uma vez que as formas de enfrentamento são também indícios do lugar social atribuído aos negros assim como se relacionam as formas de identificação, nomeação e impactos do preconceito na trajetória dos sujeitos. No entanto ela se distingue por apresentar o que os entrevistados relataram fazer parte de seu escopo de enfrentamento. 4.4.1. Cálculos no enfrentamento: Compreender o preconceito racial exige dos sujeitos leituras sobre as formas de enfrentamento e resistências que cabem em cada situação. As formas de enfrentar o preconceito têm intensa relação com as leituras que fazem de suas dinâmicas e com os dilemas envolvidos no complexo exercício de atribuir significação racial a eventos tão cotidianos. Mais do que se apresentar como uma intenção planejada, a decisão de enfrentar ou não parece depender dessa leitura. Como percebemos a partir da análise das leituras sobre o preconceito a consciência sobre suas dinâmicas se mostra intermitente nas trajetórias, assim como já pontuado por Nogueira (2006). As formas de enfrentar são variadas assim como são diversos os dilemas em escolher, a partir de cada circunstância, a melhor forma de agir. Nesse sentido o enfrentamento é perpassado por dois movimentos principais: o de analisar cada situação e o de mensurar os custos subjetivos delas. Certamente compreendemos que esses processos não são fruto estritamente de uma racionalização operacional, e os relatos dos 122 sujeitos não se apresentam de forma programática, como se fosse possível mensurar o fato e assim lançar mãos de uma estratégia pronta. Ao contrário os relatos de suas trajetórias evidenciaram o caráter maleável das dinâmicas do preconceito e as formas como apresentam aquilo que usam como estratégias demonstram que o aprendizado de experiências e interações pregressas possibilitou a articulação de estratégias que levaram em consideração a plasticidade do preconceito racial nas relações sociais assim como suas regularidades e funções próprias. Dessa forma diante dos amigos, parceiros e da família, relações que pressupõe uma alta vinculação afetiva, as expectativas sobre o outro impõe um limite na forma de lidar com o preconceito. Da mesma forma em outros contextos em que o horizonte de perdas subjetivas é alto, os enfrentamentos exigem mais cuidados e menos conflito. José relata esse dilema da seguinte forma “Uma situação onde você talvez não conheça a pessoa, ou conheça onde você não está no espaço institucional, onde você pode perder alguma coisa positiva, por exemplo, eu tenho um trabalho, eu preciso dele pra sobreviver, então se a minha diretora fala alguma coisa racista eu não vou diretamente falar “pô, deixa de ser racista, cara de pau” né, “deixa de ser racista cara de pau”Eu vou falar de um jeito, eu vou apresentar uma revista, eu vou falar “há, mas tem um programa que uma vez discutiu isso” eu vou usar um caminho pra falar pra ela as coisas né, porque se eu falar de outro jeito eu estou sendo na verdade é, eu não estou sendo inteligente, eu não estou usando uma estratégia, é uma questão de estratégia, agora, você está num debate, você está num espaço social público, ai quando o racismo aparece às vezes você tem que gritar sim, literalmente né, como quase uma bandeira, como uma manifestação mesmo de que tem que haver uma mudança, o racismo institucional mais direto, a manifestação é importante, quando é um racismo direcionado num bar, num banco ou em qualquer espaços públicos, eu acho ai eu concordo sim que um bom barraco tem que ser feito, eu acho que é uma questão de estratégia, você tem que saber ler a situação no momento, pensar que você tá num mundo cheio de regras, contextos, e que às vezes você vai perder, e também a discussão vai perdendo esse “x” entendeu isso é política né, é o manejo ai de lidar com isso.” (José,27 anos) A lógica imposta pelo preconceito requer, portanto que sujeitos dispostos a transformar a ótica do racismo, invistam energia não somente nos movimento de enfrentamento, mas também na elaboração de uma estratégia que não ponha em jogo o caráter positivo de suas relações. Exigindo a adequação de seus afetos e atitudes para empreender manejos diante do preconceito racial. 123 “Claro, por exemplo, se você tem uma relação afetiva com uma pessoa, você gosta, convive com ela, tem várias coisas em comum, ou seja, se é amigo, você é namorado ou alguma coisa, você não vai escrachar né, não na primeira vez, digamos, Pode chegar o momento que você vai ter que fazer, você vai ter que estourar né, há um sentimento nessa história evidentemente, coisa que machuca você, então você conhece a pessoa evidentemente você tem um espaço pra falar com ela de um jeito mais amigável, chamar a atenção dela pra essa discussão, pra que ela repense, pra que ela reveja, porque na verdade isso é um debate né. A pessoa na verdade ela pensa de um jeito, por mais que ela fale “eu não sou racista”, mas quando ela afirma uma coisa racista, quando ela tem uma atitude racista ou homofóbica ou sexista enfim, aquilo ali é um pouco da personalidade dela, da trajetória, do que ela foi ensinada e do que ela é, então isso tem que ser debatido de alguma forma né. Às vezes, normalmente, diretamente, mas é uma situação, uma novela, ai você coloca “isso não parece com a realidade né, racista pra caramba” né, então você tem uma estratégia diferente até porque você convive com essa pessoa né, eu penso assim, você tem que ter um manejo, como eu já disse antes, de acordo com também a forma com que é dita né, às vezes você conhece a pessoa, você gosta da pessoa, mas como ela falou, como a linguagem dela manifestou o preconceito, às vezes não tem como, você tem que ser mais firme no posicionamento, radical.(José, 27 anos) Os efeitos e custos do enfrentamento fazem o embate cara a cara a estratégia menos constante e mais conflituoso. Explicitar em uma situação o preconceito do outro ou combater de forma mais incisiva e menos harmônica os posicionamentos que possam refletir posturas e ideias preconceituosas é a expressão menos recorrente de enfrentamento, pois coloca em cena as relações do próprio sujeito e não um discurso social compartilhado por outros ou por um ideal de igualdade compartilhado. Nessa expressão o conflito se apresenta de forma mais evidente e os custos subjetivos são apresentados pelos sujeitos como mais fortes. Em uma situação em que colocou seu discurso de forma mais incisiva Rafaela conta que “Eu morava com uma menina, (...) ela fazia odonto, numa época que a FUMP fez, ela colocou critério racial pra você conseguir uma bolsa, não era exclusivamente não mas tava escrito preferencialmente, negro ou pardo. E essa menina puta assim, porque, ela era loura até, e fazia odonto, material muito caro e tal. Ela comentando lá em casa, ela morava comigo na moradia, que á FUMP tava criando uma divisão racial que não existe no Brasil. Assim, mas eu me arrependo de ter feito isso assim, me arrependo mais ou menos que em outras oportunidades que a gente conversou não sei se a questão não era ser assim, mas eu fiquei puta com essa menina, meu sangue ferveu assim, tipo eu falei: “O que? Você já olhou praquela porra daquela sua sala”. Principalmente odonto que é claro que é um curso muito elitista e né negro, eu acho que nem tem assim, “Você vem falar que a FUMP tá fazendo essa divisão?” Eu falei “essa divisão já existe há milhões de anos e tal” e ai ela ficou calada, não defendeu, saiu e foi pro quarto dela, e ai depois eu falei, gente, não era pra isso assim, eu podia 124 ter conversado com ela de outra forma sabe, mas ai ela nunca mais conversou sobre nenhuma questão polêmica comigo assim depois disso.”(Rafaela, 2 anos) “Porque você ficou arrependida Rafaela?” “Eu fiquei arrependida porque eu achei que se eu tivesse tentado conversar, eu acho que eu tava pensando que eu ia convencê-la, a verdade era essa, e que às vezes você não traz a pessoa, isso não faz a pessoa pensar sobre nada, tipo, tá louca, gritando, e ai se ela não pensa sobre nada ela não muda, não tem a possibilidade de mudar né, não é nem, todo mundo vai mudar, não tem a possibilidade de mudar. Se você não vem com argumentos, assim, eu comecei a gritar, tipo, falei palavrão, “a porra daquela sua sala, não sei, um lugar a menos naquela UFMG” então assim, tipo, e daí, gritei, gritei, e ela continuou pensando do mesmo jeito, hoje eu acho que eu sou mais tolerante do que nessa época, porque eu acho que foi um impacto tão grande. Isso é um sistema, tem todo uma coisa que faz com que as coisa sejam assim, que é construído, que não é dado, acho que quando meio que caiu a ficha disso eu fiquei revoltada com tudo assim. Hoje menos assim, eu sinto muito mas eu acho que eu tento conversar mais assim sabe, tentar esclarecer mesmo...”(Rafaela, 28 anos) O estabelecimento do enfrentamento exige, portanto que eles tenham que questionar as lógicas que os inferiorizam enquanto representantes de um grupo, sem, entretanto correr o risco de, por enfrentarem um tema conflituoso, serem taxados como pessoas desagradáveis ou construir animosidade com alguém com quem de alguma forma tenham um vínculo de dependência. São os sujeitos negros que nessa dinâmica devem tomar para si o lugar de compreender o posicionamento do outro, visto que seu posicionamento de enfrentamento frente ao silêncio e tabu racial será por vezes lido como inadequação. O lugar que está em risco no enfrentamento, em geral é o lugar daquele que “decide” por enfrentar. Essa relação fica explícita principalmente nas relações interpessoais em que a etiqueta racial é mais “refinada” (Pereira, 1996; Nogueira, 2006) e tal dinâmica revela como os efeitos da democracia racial articulados ao preconceito constroem lugares menos legítimos para a visibilidade do racismo no Brasil. 4.4.2. Formas de enfrentamento pela afirmação de um posicionamento: A partir da leitura das possibilidades de ler as relações em que se expressam o preconceito ou interações que tornam explícitos seus efeitos e articulações os 125 entrevistados demonstraram lançar mão de várias estratégias. A explicitação de seus posicionamentos em relação às relações raciais nos contextos em que estão presentes se mostrou como uma das maneiras mais presentes de enfrentar os efeitos do preconceito. Nesse sentido os sujeitos relatam que usualmente enfrentam o preconceito menos pelos seus efeitos mas mais a partir de uma posição de afirmação contra as ideologias que o sustentam. Isso acontece seja pelo discurso ou pela ação como forma de racializar os contextos em que estão e combater ou constranger discursos preconceituosos. Bruna e José revelam como lidam com isso no seu cotidiano. “...importante demonstrar a questão da importância de dar visibilidade à questão racial, à questão do preconceito, em toda pesquisa, em toda coisa que eu vou escrever, eu sempre tento puxar, por mais que não tenha diretamente a ver com o assunto jogar essa questão, pelo menos pra questionar as pessoas em relação a isso, porque é uma coisa que ficou em mim.”(Bruna, 25 anos) “Pra minha vida, na parte de profissão, eu tenho um discurso muito em cima dessas experiências, as discussões que eu faço são todas em cima desse discurso de emancipação, eu vou discutir cotas né, eu vou discutir homofobia, eu acho isso fundamental, não só chegar pro aluno “você tem que pensar assim, assim” eu to reproduzindo, eu quero realmente colocar esses tabus, digamos assim, essas coisas que parecem prontas pra discussão né, isso eu faço, até os conteúdos que a gente trata, recortes em cima dessa temática afro, dentro da minha profissão, o que digamos, dá pra usar, é isso, é também evidentemente um discurso que às vezes paira, algum discurso racista, homofóbico, posicionamento, não deixar o silêncio, tem que se posicionar né. Eu acho que esse posicionamento é importante e não ficar alheio às discussões, às manifestações, tá sempre pronto a se mostrar, porque a vida continua, você vai trabalhar, seguir sua vida, fazer suas viagens, crescer em muitos pontos né, mas a gente se torna uma pessoa ativa nessa discussão, não pode se sentir alheio, eu não me permito me sentir totalmente alheio, de jeito nenhum, mesmo que minha vida esteja direcionada hoje por lado profissional, pro lado familiar, toda trajetória que eu tive antes me mostra que evidentemente eu não posso só descansar no conforto mais, eu tenho que tá pronto pra atuar nessa discussão né e pronto também a rever discussões.” (José, 27 anos) Essa escolha, por explicitar o posicionamento nem sempre é um recurso utilizado como forma de instaurar uma transformação. Demonstrar um posicionamento também é estratégia mesmo quando os sujeitos não lançam mão do discurso, debate ou da visibilidade ao tema, e dessa forma se posicionar não necessariamente significa empreender alguma ação mais concreta. Paulo relata que seu enfrentamento se dá na 126 forma de um posicionamento no mundo mesmo que isso não implique em entrar em discussão ou conflito com alguém. “Acho que a minha pessoa, querendo ou não, ela é carregada de bandeiras, acho que é o discurso, o meu próprio posicionamento, ele é presente assim, então eu acho que, eu acho assim que eu faço militância sem ser aquele militante chato e tudo mais, então eu acho que militância ela ocorre em todos os lugares assim, você não precisa tá em lugar especifico, acho que já tá incorporado em mim, no meu discurso, então em cada pessoa que eu converso isso vai tá presente naturalmente assim, então todos os amigos que eu faço isso já é algo espontâneo assim, eu penso dessa forma e dessa forma, você aceita essa forma como eu penso, se aceita ótimo, se não, eu acho você não tá o suficiente pra ser meu amigo. “... eu até evito o discurso, discutir assim, acho que não sei se ia adiantar e tudo mais, mas eu percebo que querendo ou não às vezes eu passo pontuações assim, não entro no discurso assim, mas eu deixo clara a minha posição assim, e isso acaba modificando sem eu ter que entra em conflito em relação a isso.” (Paulo, 25 anos) E porque que você acha que às vezes não vai adiantar? “Na verdade, nem sei se não vai adiantar, na verdade eu tenho mais preguiça de ter toda aquela discussão assim, porque é uma história que já tão arraigada assim, que já faz parte da história dela, e mudar algo é algo difícil, infelizmente assim, e tem que ter uma disposição, tem que ter uma vontade, eu não sei se eu to afim de tá nesse papel sabe, assim, eu acho assim, eu acho que eu posso, essa é uma discussão que eu levo em vários lugares assim, mas eu tenho preguiça de ficar batendo na tecla o tempo todo assim, eu acho que eu prefiro agir paralelamente assim, acho que eu prefiro, eu gosto de agir pelo o meu exemplo assim sem ter que enfrentar o conflito, muitas vezes, eu acho que isso dá muito mais resultado, porque quando você entra em conflito as pessoas tendem muitas vezes a assustar e muitas vezes reproduzir algo que talvez elas não quisessem reproduzir assim, e quando você dá o exemplo você dá o exemplo e eu acho que ele é muito mais consistente assim, então eu prefiro trabalhar em cima de exemplo do que com o conflito em si.” (Paulo, 25 anos) Os entrevistados apontam que essa forma de encarar o preconceito transforma a maneira como os outros os veem e acaba por alterar a dinâmica de relações em que os indivíduos expressam seus posicionamentos preconceituosos. Ao falar sobre expressão de comentários preconceituosos José explicita que a reflexão sobre as relações que se colocam nesse contexto não são de exclusividade da pessoa que se propõe a enfrentar, mas também de quem expressa o preconceito. “ela calcula onde que ela tá, com quem ela tá falando, por isso que ela vela, por isso que ela fala o discurso que ela faz, ela falaria abertamente que é tudo feio mesmo, 127 ela calcula sim. Por isso que ela coloca ironia, ela dá risadinha pra parecer uma piadinha, porque a piadinha ela pode ser perdoada, é só brincar, descontrair, eu acho que ela calcula sim, com certeza, eu acho que é muito calculado, num espaço talvez familiar, entre pessoas que pensem como ela eu acho que ela pode meter o pau, eu acho que isso acontece muito numa rodinha de pessoas que pensem igual e aí começa.(José, 27 anos) O enfrentamento a partir da explicitação de seus posicionamentos sobre a questão racial parece transformar os elementos que estão em jogo na cena de cada relação, e suas presenças rearticulam as expressões preconceituosas na relação, tornando essa forma de enfrentar como mais produtora de constrangimento do que potencialmente transformadora de opiniões, segundo os entrevistados. Rafaela conta como sua presença nos espaços em que transita alteram o padrão dos discursos das pessoas, o que traz impacto, mas pode também abafar o conflito e o debate sobre o tema pela retirada de muitos dos posicionamentos dos sujeitos envolvidos na relação. “Mas você acha que assim, algum impacto né, desse aprendizado que você falou que você teve aqui, você vê algum impacto desse aprendizado nessas relações fora daqui? “Com certeza, teve e tem assim, é a questão de acontecer alguma coisa e ter espaço ou não pra você se colocar, alguma coisa nesse sentido que me incomoda muito, de preconceito, por exemplo. Talvez fora daqui eu to em espaços que role comentários, todo mundo ri e tal e eu não vou ter oportunidade de falar, não, a questão não é nem falar, eu acho que se rolar eu vou falar e discutir sobre isso sim, é uma questão de sentimento mesmo. De sei lá, de tá numa festa e tá achando que eu não to no nível das pessoas e tal, questão de sentimento, mais impacto em termos de relação tem sim, tem, até porque eu acho que as pessoas que convivem comigo por exemplo na Universidade, mil coisa que elas fazem e falariam onde eu não estou, quando eu estou elas não falam porque elas sabem que vai gerar problematização.” (Rafaela, 28 anos) “Que tipo de coisa, por exemplo?” “Há, tipo fazer piadinha com pobre, tipo rolar de rir, por exemplo. Teve um comentário com uma menina da minha sala na época que eu fui trabalhar no “x” e o pessoal tava comentando sobre questão de favela, não sei o que. Isso, ela jamais falaria isso na minha frente, porque ela falou que tinha muita curiosidade de ir mas ela queria chegar de helicóptero, descer, ver e subir sabe, de preferência numa capsula né, pra não sentir cheiro nem nada. Eu falei “o que?” E eu converso super com ela e eu sei que jamais ela faria esse tipo de comentário perto de mim, porque eu ia discutir com ela alguma coisa, isso não ia ficar. E ai todo mundo ka ka ka e achar o máximo isso sabe, porque ela falou no sentido de ser engraçado, porque isso minimamente você quer ser engraçado, você falar que você que ir numa favela conhecer, descer e tipo subir rapidinho, isso você ta contando de uma curiosidade e tal mas você tá fazendo uma 128 gracinha, então esse tipo de coisa eles não falam perto de mim. Eu acho que as pessoas que sabem como eu sou brava, e quem é da minha sala me vê assim. Porque eu tipo, empolgo muito pra defender alguma coisa sabe, mais politicamente corretas, na minha frente, eu acho que isso é um impacto assim sabe, às vezes isso é ruim porque a pessoa não se propõe a nem conversar sobre isso, não tem o debate.” (Rafaela, 28 anos) Outra forma de enfrentar o preconceito localizada na expressão de posições sobre as relações raciais no Brasil se relaciona a ações cotidianas de transformação das práticas que se fundamentam em lógicas de inferiorização dos negros. Bruna por exemplo empreende em casa a adoção de uma nova postura em relação à afirmação de uma estética negra positiva “Minha mãe olha duas crianças né, complementar renda e tal, e uma das meninas tem o cabelo mais claro, quase loiro, e todo enrolado, e a outra tem o cabelo liso e de franjinha, por sinal, essa outra de cabelo liso é minha prima, a outra é uma menina da rua. Aí minha mãe lava o cabelo das duas e deixa o da M. solto e o da G. ela vai lá penteia, penteia, enrola e faz um coque. Aí a G. fala assim “o tia, me deixa ficar com o cabelo solto igual o dela” aí ela “não, vai embaraçar seu cabelo todo, vai ficar feio. ” Ai aquilo eu lembro direitinho de mim, ai eu vou lá e solto o cabelo da G. Aí minha mãe fala assim “você vai prender o cabelo dela” ai eu falo assim “na hora que secar eu prendo, pode deixar (tom sarcástico)” Ai a G. fica, e balança pra um lado e balança pro outro, aquela coisa toda, e minha mãe não entende isso...”(Bruna, 25 anos) José, como professor de língua portuguesa, encara esse processo a partir do cuidado e vigilância sobre as expressões linguísticas cotidianas que reproduzem o preconceito. “...então é um discurso em que você pode repensar esses modos, expressões como denegrir né, eu sou da área da língua portuguesa, então essas expressões me preocupam né, essas expressões de que tem esse cunho de que o negro, o preto, a cor em si, é negativa, né “a situação tá preta” tudo isso eu procuro remexer nos meus discursos, atentar né.”(José, 27 anos) O enfrentamento a partir do estabelecimento da transformação de condutas e referências é expresso na dimensão mais individual, e nenhum dos entrevistados relatou participar de movimentos de resistência negra que tenham agendas coletivas propositivas para o enfrentamento ao racismo e preconceito racial. No entanto os 129 entrevistados veem nessas pequenas ações cotidianas um arranjo sensível às dimensões menos estruturais do preconceito que não poderiam ser combatidas somente por meio de uma política estrutural, mas pela inserção contínua de práticas que submetam ao crivo da visibilidade do racismo as dimensões reprodutoras de sua naturalização. 130 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao fim desse processo não tenho como não expressar a ambiguidade de dois sentimentos. O primeiro é aquele que expressa à alegria de, concluindo um percurso que muitas vezes me vi incapaz de terminar, me aproximar do arremate de um processo de dois anos de trabalho, que ora me parecem curtos ora me parecem tão longos. O outro sentimento, que entra em conflito com o primeiro, é a sensação de que o esforço de conclusão desse percurso teve imprecisões que não gostaria de ter expressas no tratamento que dei ao tema em questão. Afinal o contexto no qual me aventurei trata de um assunto que diz respeito a todos, mas afeta de forma diferenciada grande parcela da população brasileira, na qual me sinto representada, e que vive sob a incidência do racismo dilemas que gostaria de ter melhor representado. No entanto chego até aqui esperando contribuir com a interpretação sobre as dinâmicas e efeitos do preconceito racial na trajetória de jovens negros, contando que minha sensibilidade e aproximação do tema são parciais diante da complexidade daquilo que pretendi conhecer. Os obstáculos que se apresentaram ao longo desse caminho evidenciaram não apenas as dificuldades de se enfrentar os dilemas do racismo brasileiro, mas principalmente os entraves em desenvolver um olhar crítico e sensível a uma questão que se articula a história da sociedade brasileira assim como a histórias dos sujeitos. O maior desafio enfrentado foi lidar com essa questão a partir de uma relação tão próxima com ela. Nesse sentido o esforço foi construir um posicionamento que pudesse dialogar de forma crítica e autônoma com os registros da literatura da área assim como com as interações construídas com os sujeitos da pesquisa e com os relatos de suas trajetórias. Desde meu primeiro contato com a temática racial o movimento de lidar com as tensões envolvidas no debate sobre esse tema foram uma tarefa árdua e empreender o processo dessa pesquisa se mostrou um exercício instigante que deixa mais dúvidas e questões do que conclusões fechadas. Dessa forma o que apresentamos é uma perspectiva localizada sobre o que os sujeitos entrevistados apresentaram de seus percursos e uma tentativa de diálogo com o cenário de produção das relações raciais brasileiras assim como com a perspectiva e produção da psicologia social. Esse trabalho surgiu de uma inquietação, a inquietação de compreender as possibilidades de nomeação e enfrentamento ao preconceito racial brasileiro diante das atuais leituras desse fenômeno que o apresentam como mais sofisticado e ambíguo. De 131 um lado percebemos registros cada vez mais presentes de relatos de sofisticação do preconceito e rearticulações do racismo brasileiro e de outro convivemos com a persistência de uma classificação que incide sobre os negros de modo a disfarçar sua violência. Como as ideologias do branqueamento e a democracia racial têm se apresentando atualmente, superamos a representação do negro como inferior ao reconhecer publicamente o preconceito e racismo como parte estruturante de nossa sociedade? A afirmação de que o racismo brasileiro é atualmente reconhecido por essa sociedade é possível? A perspectiva de afirmação de transformação da dinâmica do preconceito racial brasileiro foi encarada como uma realidade a ser suspeitada nesse trabalho e foi diante dessa suspeita que decidi ouvir de sujeitos negros suas impressões. A construção do espaço para essa escuta foi formulada a partir de uma ideia de interação e diálogo sobre o problema de pesquisa. Essa escolha trouxe riquezas ao trabalho, mas também significou um difícil manejo das relações que se estabelecem entre sujeitos de pesquisa e pesquisador, sobretudo por que entres esses lugares existiu um espaço de partilha de histórias e vivências anteriores a pesquisa, o que inclui no trabalho um outro horizonte de expectativas sobre os impactos do preconceito na trajetória de cada um de nós, sujeitos de pesquisa e pesquisadora. Pretendi com esse percurso localizar as dificuldades em nomear o preconceito racial como uma dinâmica que tua sobre o campo das relações raciais, invisibilizando a hierarquia racial e seu caráter contingente e histórico. Partimos de uma concepção psicossocial desse fenômeno delineando análises sobre ele que extrapolassem as vivências de discriminações. Sobretudo o interesse era compreender possíveis transformações nas dinâmicas do preconceito racial no momento atual do debate racial brasileiro questionando suas sofisticações como resultados das transformações e visibilidade pública dos enfrentamentos às desigualdades raciais do país. Nessa empreitada a construção de categorias buscou deixar explícita a riqueza dos relatos dos sujeitos que permearam três dimensões: a dimensão da busca por reconhecimento, que marca o delineamento social de um lugar desprivilegiado e inferiorizado aos negros; as visões sobre dinâmicas e impactos do preconceito racial e as formas de identificação e visibilização do fenômeno e por fim as estratégias construídas pelos entrevistados como forma de enfrentar as expressões e efeitos do preconceito racial. 132 O que pudemos perceber é que distante do discurso de sofisticação das dinâmicas e efeitos do preconceito racial as trajetórias de negros e negras ainda são violentamente impactadas pela reprodução social da inferioridade negra em referências explícitas a associação da cor da pele ou de traços físicos à inferioridade. Como grupo ou como indivíduos isolados os negros tem suas relações marcadas pela violência e subordinação e os efeitos dessa lógica se reproduzem na persistência da estética branca como a beleza universalmente aceita e desejada e a negação da legitimidade das origens, trajetórias e histórias dos sujeitos negros entrevistados. A sofisticação das expressões do preconceito surge nos relatos, sobretudo em comparação ao passado, colocando novamente o preconceito racial em um horizonte distante e tal discurso parece inibir a percepção das persistências da violência do racismo. A presença de expressões “clássicas” de preconceito racial nos relatos dos sujeitos permite desconfiar que a sofisticação seja o novo registro das dinâmicas do preconceito, mas compreendemos que elas se expressam de forma discursiva e produzem uma realidade que parece invisibilizar a violência do racismo e afirmar um contexto mais harmonioso e menos conflitivo nas relações raciais atualmente. Dessa forma é o caráter de sutileza que prevalece nos relatos dos entrevistados mesmo em meio a violências tão marcantes do racismo. Compreendemos, portanto que o preconceito racial tem exercido mecanismos de naturalização do racismo sob o discurso de que o consenso social tem transformado as práticas e concepções racistas. As práticas de enfrentamento apresentadas pelos sujeitos nos mostram, portanto que os dilemas em visibilizar os efeitos e expressões de uma dinâmica tão presente no tecido social e estabelecer um posicionamento incisivo sobre elas exige como movimento a racialização das relações sociais e das trajetórias individuais. Seja por meio de uma experiência coletiva de partilhas de experiências seja pela adoção do discurso científico como forma de atribuir legitimidade às experiências de subordinação. As formas em que se dão os enfrentamentos também revelaram que explicitar um posicionamento que insira sobre a dinâmica das relações uma perspectiva de conflito impõe riscos subjetivos importantes aos sujeitos negros que são pouco partilhados socialmente, exigindo muitas vezes um recuo ou mudança de estratégias diante da expressão do preconceito. Certamente consideramos que o esforço em compreender o preconceito como um fenômeno que expressa as relações entre indivíduo e sociedade foi parcialmente 133 desenvolvido e algumas dessas relações não tiveram o tratamento e cuidado suficiente. Entre essas imprecisões destacamos as insuficiências que a ausência de uma leitura mais precisa das relações de poder expressas na dinâmica do preconceito poderiam ter contribuído as análises que realizamos, tendo essas ficado muitas vezes firmadas na explicitação de uma hierarquia racial que não foi devidamente trabalhada em suas minúcias e efeitos. Da mesma forma acredito que articulações das análises com os marcadores de classe e de gênero, que surgiram como importantes questões nos relatos dos sujeitos, poderiam ter contribuído com maior densidade na tessitura da produção dos efeitos do preconceito racial e as análises apresentariam maior complexidade de articulação com outras dinâmicas de hierarquização social que atravessam e dialogam com a hierarquia racial, principalmente quando a questão principal é a pergunta por sua invisibilidade. A articulação entre as categorias que emergiram nesse trabalho, a representação dos negros no registro da inferioridade, a leitura das dinâmicas e efeitos do preconceito e o estabelecimento de estratégias de enfrentamento nos mostraram que a luta contra o racismo é uma tarefa em andamento. Sua proposta precisa ser incorporada no registro que compreenda as articulações entre as dinâmicas micro e macrossocial, pois o racismo incide fortemente sobre as ambas, se fazendo perder no emaranhado de “não ditos” que constitui a vida em sociedade. Nesse sentido compreender o preconceito como uma dinâmica interativa, possibilitou ver nuances do racismo que não se expressam nas leituras que privilegiam a estrutura e tampouco naquelas interpretações que ao privilegiar o indivíduo isolado de seu contexto reproduzem uma leitura vitimizante dos negros. Os achados dessa pesquisa possibilitaram a emergência de novas realidades sobre a dinâmica racial brasileira mas também deixam fortes perguntas sobre as formas como o discurso antirracista tem sido incorporado no tecido social brasileiro e sobre os desdobramentos das escolhas de enfrentamento simbólico e institucional que a história nos fez construir. Essa pergunta permanece sem resposta nesse trabalho, uma vez que analisar o horizonte de possibilidades que o antirracismo tem produzido, exigiria outro olhar sobre a trajetória dos jovens negros entrevistados. No entanto pensar sobre as formas de enfrentamento permitiu fazer emergir da fala dos sujeitos algo que escapa da elaboração racial que construímos nessa sociedade. Algo não dito, quase impronunciável mas que aponta para o desconforto identitário da ambiguidade de 134 ser/não ser branco e ser/não ser negro. Algo que ainda não teve lugar de ser nomeado no processo de nomeação do racismo mas que em um breve futuro pode orientar novas perguntas a essa recente pesquisadora. 135 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Almeida. M. L. (2011). Universidade e desigualdade social: a difícil superação da falsa disjuntiva entre teoria e prática. Espacio Abierto Cuaderno Venezolano de Sociología, Vol. 20 No. 2, abril/jun, 2011, pp. 267 – 287. Araujo, J. Z. (Produtor, Diretor). (2004). 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Meu foco é investigar nas trajetórias de estudantes que participaram de programas de Ação Afirmativa aqui na UFMG como se dão as estratégias de nomeação, enfrentamento e resistência frente ao preconceito racial. Gostaria então de convidar você a participar da pesquisa sendo um/a das pessoas entrevistadas. As entrevistas serão realizadas a partir de sua disponibilidade e o anonimato será preservado se assim for de seu interesse. Caso você aceite meu convite podemos esclarecer outros aspectos e dúvidas relacionados à pesquisa. Espero poder contar com você nessa empreitada e aguardo sua resposta ao meu e-mail. Abraços Luciana Souza (Lu Souza) Belo Horizonte - 10/07/2011 143 ANEXO 02 – FICHA DE IDENTIFICAÇÃO FOLHA DE IDENTIFICAÇÃO DE ENTREVISTAS Número de identificação do entrevistado:_____ Número da entrevista:_____ Número da gravação:____ Data: ___ /___ /2011 – Local: _____________________________________________ Horário de início:_______: Horário de término:__________ Duração:______________ Dados do entrevistado (a): Nome: _______________________________________________________________ Idade: ______ Sexo: F( ) M( ) Raça: Preto ( ) Pardo( Estado civil (relacionamento):___ __ Tem filhos: Sim ( Estudou Ensino Fundamental: EPuF ( Estudou Ensino Médiol: EPuF ( ) ), Qtos:______ Não ( ) ) EPuM ( ) EPuE ( ) EPa( ) EPuM ( ) EPuE ( ) EPa( ) EPaB( ) EPaB( ) ) Graduação em curso:__________________________________ Período:_________ Formou-se em: _______________________________________________________ Profissão ____________________________________________________________ Pós Graduação ( ) Mestrado ( ) Doutorado ( ) 144 Tempo de participação no Conexões de Sabres :_______ Entrou em: ___ ___Saiu em: ______ Local de moradia:________________________________________________________ Reside com:____________________________________________________________ Classe social:___________________________________________________________ Outras atividades relevantes na formação:____________________________________ Permitiu identificação: Sim ( ) Não( ) e será identificado como:_______________ 145