UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local
Maria Regina de Souza Xavier
HISTÓRIA E MEMÓRIA: EXPERIÊNCIAS DE MIGRANTES
PARAIBANOS EM SERRA DO RAMALHO-BA (1970-1989)
Santo Antônio de Jesus-Ba
2011
Maria Regina de Souza Xavier
HISTÓRIA E MEMÓRIA: EXPERIÊNCIAS DE MIGRANTES
PARAIBANOS EM SERRA DO RAMALHO-BA (1970-1989)
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em História no Programa
de Mestrado em História Regional e Local do
Departamento de Ciências Humanas – Campus V
Santo Antônio de Jesus, da Universidade do Estado da
Bahia, sob a orientação do Profº Dr. Raimundo
Nonato Pereira Moreira.
Santo Antônio de Jesus-BA
2011
Maria Regina de Souza Xavier
HISTÓRIA E MEMÓRIA: EXPERIÊNCIAS DE MIGRANTES
PARAIBANOS EM SERRA DO RAMALHO-BA (1970-1989)
FOLHA DE APROVAÇÃO
Dissertação de Mestrado apresentada à comissão examinadora no dia 1º de novembro de
2011, pelo Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do
Estado da Bahia em Santo Antonio de Jesus.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Profº Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira
___________________________________________
Profº Dr. Charles D‟Almeida Santana
___________________________________________
Profª Drª Lídia Maria Pires Soares Cardel
Santo Antônio de Jesus-BA
2011
Dedico este trabalho à minha família.
Especialmente à senhora Jobelina, minha estimada mãe;
e ao Rogério, meu querido esposo.
AGRADECIMENTOS
A construção do presente trabalho só foi possível graças ao apoio e colaboração de
muitas pessoas queridas. Minha eterna gratidão a todos vocês que colaboraram na realização
deste sonho.
Meu agradecimento especial a todos os entrevistados, cujas memórias e experiências
de vida constituíram o objeto deste estudo, pela disponibilidade de tempo e pela confiança que
marcaram as nossas conversas, sempre regadas a cafezinhos, biscoitos e muita sabedoria.
Agradeço a Miguel Félix da Silva; Maria Ivonete da Silva; Maria Pereira da Silva; João Félix;
Antonio Joaquim Filho; Josefa Vicente de Moura; Joaquim Lopes Neto; Cosme Gomes de
Nize; Jonas da Silva; Brás Antonio da Silva; Adelino de Ornelas; Francisco Soares de Souza;
José Soares de Souza; Francisco Chagas dos Santos; Bernardo Gomes da Silva; Edilson
Ferreira da Silva e Dejanira dos Santos Coqueiro.
À Ely Souza Estrela (in memoriam), a quem sou imensamente grata pela orientação
recebida, pautada na amizade, dedicação, compreensão e incentivo, demonstrados durante o
desenvolvimento da pesquisa. E, estendo os meus agradecimentos também ao professor
Raimundo Nonato Pereira Moreira, pela atenção e disponibilidade em acompanhar a
conclusão da dissertação.
Aos professores do Mestrado em História Regional e Local, UNEB - Campus V,
Gilmário Moreira Brito, Ana Maria Carvalho, Wellington Castelluci, Maria das Graças de
Andrade e Suzana Severs, pelas leituras e discussões teóricas que enriqueceram minha
formação acadêmica e também humana. Às secretárias Ane, Consuelo e Vilma, pelo carinho e
presteza em esclarecer e resolver os assuntos mais burocráticos da Pós-Graduação.
Aos meus queridos colegas da turma 2009.1, Ednair, Marilva, Antônio, Priscila, Alex,
Moisés, Leila, Mayra, Maria de Fátima, Wadson, Oscar, pelos momentos maravilhosos que
compartilhamos dentro e fora da sala de aula. Guardo boas recordações de todos vocês,
especialmente de Gabriela, amiga desde a graduação, de Lielva, pelo convívio e
aprendizagem que me proporcionou; e de Wilma, pela atenção e zelo com que sempre me
recebeu em sua casa em Santo Antonio de Jesus. Eu os levarei comigo no coração para
sempre.
Aos amigos, Welma Avelina, Napoliana, Luciana, Luciene, Karolyne Gilberta, Adriana,
Eudes, Ailton; e aos meus professores da graduação, na UNEB - Campus VI, Nivaldo Dutra,
Marcos Profeta, Maria de Fátima Pires, Paulo Henrique Duque, Jairo Carvalho e Maria Lúcia
Porto; agradeço pela torcida e o carinho dispensado em todos os momentos.
Aos amigos de Serra do Ramalho, Erisvaldo, Vânia, Telma Hélia e Wésley Júlio, pela
disponibilidade em mediar alguns contatos com os entrevistados; e à Tia Celinha, pelo
carinho e pelas tantas hospedagens em sua casa.
À Paróquia São José Operário e à Prefeitura Municipal de Serra do Ramalho; à
Comissão Pastoral da Terra (CPT), e ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
de Bom Jesus da Lapa, pela concessão de importantes documentos históricos.
À minha mãe, Jobelina, ao meu pai, Antônio, agradeço a vida, a educação e o amor que
sempre demonstraram por mim.
Aos meus queridos irmãos, José, João (quem me acompanhou em várias visitas às
agrovilas), Gilvan, Bia, Dina, sou grata pelo incentivo, carinho e amor demonstrados em
todos esses anos de convivência.
Ao meu tio Toim, meu “irmão” mais velho.
Aos meus queridos sobrinhos, Anna Júlia, Raul, Miriam, Hannah, Ibrahim, Alice, Neiva,
Aline, Gabriel e Augusto.
Às minhas cunhadas, Florinda, Biza e Edilene.
Ao meu esposo, Rogério, pelo amor e companheirismo dedicados a mim desde que nos
conhecemos e decidimos compartilhar nossas vidas. Devo-lhe a realização deste sonho, pois
foi ele quem me convenceu da importância de ir buscá-lo. E este é só um sonho, entre tantos
outros, que ainda iremos transformar em realidade.
A vocês todos, por tudo que já compartilhamos e ainda iremos compartilhar o meu
“Muito Obrigado”.
Finalizando, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Campus V, pela oportunidade que me foi proporcionada de
realização do Mestrado, e ao CNPq pela concessão da bolsa de estudos.
[...] Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum. [...]
Carlos Drummond de Andrade, A ilusão do migrante.
RESUMO
O trabalho busca discutir experiências de migrantes nas agrovilas de Serra do
Ramalho-Ba nas décadas de 1970 e 1980. A partir da reconstituição das memórias e da
análise qualitativa das entrevistas realizadas com colonos, busquei compreender quais foram
os fatores que motivaram a migração para o Projeto Especial de Colonização, e de que forma
foi sentido o “encontro” pelos grupos de migrantes que chegaram à região no período, vindo
de vários estados brasileiros. O trabalho com a memória desses indivíduos possibilitou, ainda,
entender como se deu a convivência dos grupos no novo espaço, as relações sociais, as
soluções de sobrevivência, a adaptação e, se houve ruptura ou apropriação de novas culturas.
Foi muito relevante para a pesquisa o cruzamento das narrativas orais com a literatura
pertencente aos arquivos da Comissão Pastoral da Terra e do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária de Bom Jesus da Lapa, da Paróquia São José Operário e da
Prefeitura Municipal de Serra do Ramalho.
Palavras-chave: PEC Serra do Ramalho. Migração. Cultura. Identidade.
ABSTRACT
This work searches to discuss experiences of immigrants in agricultural villages of Serra
do Ramalho in Bahia in the 70´s and 80´s. From reconstitution of settlers´ memories and the
qualitative analysis of interviews done with them, I tried to understand what are the factors
which motivate them to immigrate to the Projeto Especial de Colonização and how was the
sense of „meeting‟ by the groups of immigrants who came from a variety of states in Brasil,
which ones arrived in the place at that period. Working with the memory of these individuals
also resulted in understand how were those groups´ companionship, social relationship,
surviving solutions, adaptation and also if there were any kind of appropriation or breakage of
new cultures at that new place.
It was so important the studies of oral narrative with the literature belonged to Comissão
Pastoral da Terra, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária from Bom Jesus da
Lapa, São José Operário church and the city hall of Serra do Ramalho.
Keywords: PEC Serra do Ramalho. Immigration. Culture. Identity.
LISTA DE TABELAS E ILUSTRAÇÕES
ILUSTRAÇÃO 01: Localização do município de Serra do Ramalho no Estado da Bahia......28
ILUSTRAÇÃO 02: Mapa da região do Baixo Médio São Francisco .....................................29
ILUSTRAÇÃO 03: Casa de Colono nas agrovilas .................................................................33
ILUSTRAÇÃO 04: Agrovilas de Serra do Ramalho ..............................................................35
ILUSTRAÇÃO 05: Mapa Político Municipal.........................................................................36
ILUSTRAÇÃO 06: Prédio da COBAL nas agrovilas .............................................................37
ILUSTRAÇÃO 07: Tanque d‟água nas agrovilas ...................................................................38
ILUSTRAÇÃO 08: Título de Propriedade Rural ....................................................................47
ILUSTRAÇÃO 09: Título de Propriedade Urbana ..................................................................48
ILUSTRAÇÃO 10: Reunião da Cooperativa de colonos de Serra do Ramalho ......................68
ILUSTRAÇÃO 11: Carteira de colono ....................................................................................71
ILUSTRAÇÃO 12: Localização do município de Santana de Mangueira no Estado da
Paraíba.......................................................................................................................................77
ILUSTRAÇÃO 13: D. Maria Ivonete com os filhos, Vânia e Nilson, e os sobrinhos, Carlinhos
e Neudinho ...............................................................................................................................79
ILUSTRAÇÃO 14: Tabela com os santos padroeiros pertencentes às agrovilas e povoados de
Serra do Ramalho...........................................................................................................111, 112.
ILUSTRAÇÃO 15: Corrida de vaquejada, Parque Joaquim Machado .................................116
ILUSTRAÇÃO 16: Corrida de vaquejada, Parque Joaquim Machado..................................116
ILUSTRAÇÃO 17: Corrida de vaquejada, Parque Joaquim Machado..................................117
LISTA DE SIGLAS
ARENA
Aliança Renovadora Nacional
CHESF
Companhia Hidrelétrica do São Francisco
CIRA
Cooperativa Serra do Ramalho
COBAL
Companhia Baiana de Alimentos
COMARCO
Companhia Maranhense de Colonização
CSB
Companhia do Sudoeste da Bahia
CPF
Construindo e Preparando o Futuro
CPT
Comissão Pastoral da Terra
DPO
Departamento de Projetos e Operações.
EMATER/BA
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia
FSESP
Fundação de Serviços de Saúde Pública
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
PEC/SR
Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho
PBCM
Província Brasileira da Congregação da Missão
PND
Plano Nacional de Desenvolvimento
POLONORDESTE
Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste
SEI
Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia
TDRs
Títulos Definitivos Rurais
UNEB
Universidade do Estado da Bahia
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13
2 MEMÓRIA DA MIGRAÇÃO. ........................................................................................... 27
2.1 CONTEXTUALIZANDO O PROJETO ESPECIAL DE COLONIZAÇÃO SERRA DO RAMALHO. .... 27
2.2 PROVENIÊNCIAS DOS COLONOS E AS FORMAS DE ESPACIALIZAÇÃO DESTES NO PEC/SR. . 54
2.3 COLONOS EM SERRA DO RAMALHO. ................................................................................ 65
3 COTIDIANO NAS AGROVILAS DE SERRA DO RAMALHO. .................................. 76
3.1 OS MEIOS DE SOBREVIVÊNCIA E AS RELAÇÕES SOCIAIS DESENVOLVIDAS NO NOVO ESPAÇO.
.............................................................................................................................................. 76
3.2 FRONTEIRAS: ESTRANHAMENTO E ACEITAÇÃO NO CONVÍVIO COM O “OUTRO”................ 95
4 PARAIBANOS E DEMAIS COLONOS EM SERRA DO RAMALHO:
MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E IDENTITÁRIAS. .................................................. 104
4.1 “CADA UM TEM SUA IDENTIDADE CULTURAL, MAS FOI BOM QUE SOMOU TUDO, NÉ”:
MIGRAÇÃO E A PRESERVAÇÃO DE IDENTIDADES. .................................................................. 104
4.2 “CADA TERRA TEM SUA TRADIÇÃO E A GENTE TEM QUE ACOMPANHAR”: A RECONSTRUÇÃO
DA FESTA DE VAQUEJADA. .................................................................................................. 113
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 125
FONTES ................................................................................................................................ 128
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 132
ANEXOS ............................................................................................................................... 150
13
1 INTRODUÇÃO
O desejo em realizar um estudo voltado às questões sociais de Serra do Ramalho
esteve presente desde o início da minha vida acadêmica; cidade na qual residi de 1988 a 2007
e, que agora visito ocasionalmente para rever parentes, amigos. Tal desejo começou a ser
efetivado no curso de Licenciatura Plena em História da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), já que nos foi solicitada a elaboração de um anteprojeto de pesquisa como atividade
avaliativa na disciplina Pesquisa Histórica I, coordenada pelos professores do Colegiado de
História do Campus VI, na cidade de Caetité.
Ter convivido por anos, em Serra do Ramalho, com pessoas oriundas dos mais
diversos lugares, com feições e ações tão singulares, sempre me estimulou a pensar o modo de
vida dessa população a partir também de minhas próprias experiências de vida, pois não
ignoro aqui o fato de ser eu também uma estranha entre eles, afinal, minha família também
migrou de Barreiro do Santo Onofre, município de Paratinga (Bahia), para Serra do Ramalho,
em 1988.
Nas minhas memórias reencontro acontecimentos e imagens simples do cotidiano,
como um desentendimento entre vizinhos, um jeito de falar, uma maneira de preparar um
alimento, enfim, comportamentos que me chamaram a atenção e me despertaram para refletir
sobre a realidade vivenciada pelos sujeitos históricos que habitavam aqueles espaços, assim
como as práticas sociais ali realizadas, que evidenciam modos, comportamentos, costumes
que moldam as experiências de vida e o cotidiano dos sujeitos entrevistados.
De algum modo, responder às questões levantadas neste trabalho é responder também
a essas minhas inquietações. Em seu livro Como se escreve a história: Foucault revoluciona
a história, Veyne (1998, p. 37) ressalta esse caráter subjetivo do trabalho do historiador, a
impossibilidade de se obter isenção total na escolha dos temas sobre os quais discutimos e
escrevemos.
[...] a história não é senão respostas a nossas indagações, porque não
se pode, materialmente, fazer todas as perguntas, descrever todo o
porvir, e porque o progresso do questionário histórico se coloca no
tempo e é tão lento quanto o progresso de qualquer ciência; sim, a
história é subjetiva, pois não se pode negar que a escolha de um
assunto para um livro de história seja livre.
14
Na ocasião, ter tomado conhecimento da obra da Profª Dra. Ely Souza Estrela foi, sem
dúvida, de suma importância para a construção da proposta do trabalho, visto que a autora
realizou uma extensa pesquisa sobre a população de Sobradinho, quando da construção da
barragem que provocou a submersão de suas respectivas terras, acompanhando a ida dessas
pessoas para o Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho (PEC/SR) e também o
retorno de muitos deles para os seus locais de origem.
O desenvolvimento do projeto de pesquisa veio somente com meu ingresso no
Mestrado em História Regional e Local uma vez que o contato com professores e colegas me
propiciou um amadurecimento do tema devido ao acesso a novas leituras e discussões
teóricas, contempladas pela linha de pesquisa Estudos Regionais: Campo e Cidade, e que
foram importantes para o trabalho, no sentido de buscar um novo diálogo com fontes diversas
e com uma nova abordagem que valorizasse temas antes ignorados pela historiografia
tradicional.
Uma vez rascunhado o projeto de pesquisa, o contato com os entrevistados se deu
através de mediações de familiares e amigos que residem em Serra do Ramalho. Por meio de
visitas e conversas, fui compondo um quadro de possibilidades de acesso a essas pessoas e às
memórias de suas vivências e experiências do passado.
Não posso deixar de falar em como foi o contato, a conversa com essas pessoas.
Sempre há certo receio, afinal, são pessoas mais velhas, humildes, e que acreditam não saber
de nada, ou pensam que o que sabem não será interessante, importante para a pesquisa. Isso se
evidenciou logo na recepção, nos gestos, no tom de voz, na disponibilidade em conversar;
situações que nos são colocadas exigindo de nós um bom “jogo de cintura” capaz de criar
uma atmosfera na qual o entrevistado se sinta seguro, confiante, e respeitado em suas
experiências de vida, ou seja, em suas memórias do vivido. Além de o pesquisador trabalhar a
fala do entrevistado, é necessária a atenção a essas outras formas de expressão.
Inicialmente, realizei uma pesquisa bibliográfica sobre o tema deste estudo, depois
recebi de amigos que moram em Serra do Ramalho textos sobre a história do município, e fui
compondo, a partir desse material, um memorial contendo alguns dados sobre a geografia do
lugar e de sua população de um modo geral. Só mais tarde, comecei a coleta de informações a
partir das entrevistas.
O meu interesse era o de entrevistar colonos, ou seja, trabalhadores que foram
cadastrados no Projeto de Colonização e que receberam lotes do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Pensando em contemplar a diversidade de pessoas que residem atualmente em de
15
Serra do Ramalho, nos modos de vida e cultura existentes na região, escolhi focar num grupo
específico de colonos, os paraibanos, motivada em saber como foi a migração para o Projeto
de Serra do Ramalho. Minha intenção foi partir desse grupo, da trajetória das doze famílias de
migrantes fixados na Agrovila 13 a partir de 1980 e, depois, relacionar aspectos de suas
vivências e de sua cultura com os dos demais grupos. Essas famílias são todas originárias de
Santana de Mangueira, município localizado na microrregião de Itaporanga, no estado da
Paraíba. O interesse em obter terras, somado à expulsão de trabalhadores de áreas onde
estavam ocorrendo tensões sociais por conta da modernização no campo, foram fatores
decisivos para este grupo ter vindo para a Bahia no período.
Desse modo, compreender o processo pelo qual se deu a adaptação desse grupo de
migrantes nas agrovilas, partindo da análise das estratégias de sobrevivência e da convivência
social entre eles, me possibilitou entender melhor as tensões e as diferenças existentes entre os
demais grupos que migraram para o Projeto de Colonização.
O recorte temporal abordado no trabalho compreende o período da construção da
Represa de Sobradinho em 1970, que resultou na criação do Projeto Especial de Colonização
Serra do Ramalho, até a emancipação deste em 13 de junho de 1989, pois a pretensão foi
sempre trazer à discussão aspectos relacionados à origem do Projeto, a representação que se
criou em torno dele, e o seu desenvolvimento a partir dos fluxos migratórios de colonos.
Entretanto, faz-se necessário ressaltar, aqui, que essa é uma demarcação operacional, uma
divisão cronológica, visto que o trabalho com memórias não comporta uma delimitação tão
fixa, por ser o tempo da memória fluído, oscilando e articulando presente, passado e futuro.
Portanto, a partir da articulação da memória dos colonos com outras fontes, busquei
compreender a diversidade de experiências dessas pessoas com culturas específicas,
abordando questões que me possibilitassem a apreensão de como eles sentiram a experiência
da migração, quais as causas e os motivos que foram determinantes para a partida em direção
ao Projeto de Colonização, e as condições de adaptação dessas famílias ao lugar, situações
que são colocadas pela própria dinâmica do cotidiano, da convivência entre grupos. Ressalto
ainda, que a perspectiva de compreensão para o conceito de cotidiano adotada neste trabalho é
a de Heller (1992, p. 20), onde: “A vida cotidiana não está fora da história, mas, no centro do
acontecer histórico: é a verdadeira essência da substância social”.
Aqui se encontra um ponto essencial do estudo proposto, que é a percepção de como
foi vivido e internalizado o “encontro” entre esses grupos de migrantes que por razões
diversas vieram para o Projeto, tendo que conviver com o “diferente” em suas várias
manifestações. Que sentimentos desabrocharam desse encontro que marcaram suas vidas,
16
suas memórias ao ponto de hoje ainda ser tão relevante em suas lembranças quando se narra
sobre o cotidiano desses primeiros tempos no Projeto? Sentimento de estranhamento? De
aceitação? Ou somente uma aparente “boa convivência”? O que dizer diante de frases como
“Isso só podia ser coisa de baiano”, ou “Baiano é trem de gente?”, e mais, “Não quero graça
com paraibano e nem com pernambucano”?
A existência desse tipo de restrições a esses grupos se apresenta de maneira velada,
não evidenciada em público. Mas, é importante ressaltar aqui que esse estranhamento entre os
colonos foi mais presente, e significativo, nos primeiros anos do Projeto de Colonização que
nos dias atuais, e não chegou a impedir o estabelecimento de relações sociais entre eles.
Em frases como essas está embutido o preconceito, já internalizado, em relação ao
“outro”. Mas, a diferença que leva ao pré-conceito não anula a possibilidade de aceitação em
outros casos, pois houve também a assimilação de outras culturas entre esses grupos, que
tomaram para si valores e costumes do outro. Assim, conforme Bhabha (1998, p. 20, 21), “a
articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em
andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em
momentos de transformação histórica”.
É pertinente explicitar também alguns conceitos que fundamentam esta pesquisa,
como, migração, história e memória.
A migração pode ser definida como mobilidade espacial de uma população dentro de
um espaço físico. Porém, o espaço desses deslocamentos não é apenas um espaço físico, mas,
conforme salienta Sayad (1998, p. 15), “ele é também um espaço qualificado em muitos
sentidos, socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente.” Conclui-se, então, que
a migração designa os deslocamentos dos indivíduos em seus territórios geográfico, social,
político e também cultural.
Deslocamentos são sempre determinados por mútiplos fatores de expulsão, na área de
origem, e de atração, na área de destino. Em estudo sobre o que impulsiona a migração
campo-cidade, Singer (1995, p. 38) considera que são os fatores de expulsão os responsáveis
pela migração interna:
Os fatores de expulsão que levam às migrações são de duas ordens:
fatores de mudança, que decorrem da introdução de relações de
produção capitalistas nestas áreas, a qual acarreta a expropriação de
camponeses, a expulsão de agregados, parceiros e outros agricultores
não proprietários, tendo por objetivo o aumento da produtividade do
trabalho e a consequente redução do nível de emprego (“enclosures”
na Inglaterra, o desenvolvimento da criação comercial de gado nos
17
Pampas da Argentina, a expropriação das terras comunais indígenas
durante o “porfiriato” no México, etc.); e fatores de estagnação, que
se manifestam sob a forma de uma crescente pressão populacional
sobre uma disponibilidade de áreas cultiváveis que pode ser limitada
tanto pela insuficiência física de terra aproveitável como pela
monopolização de grande parte da mesma pelos grandes proprietários
(o Agreste no Nordeste brasileiro, as comunidades indígenas nos
Andes peruanos e colombianos).
Mas, essa polaridade entre lugares de “expulsão” e “atração” não estabelece uma
relação tão clara, uma vez que é determinada pela dinâmica social. Um exemplo disso foi a
criação do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho no Médio São Francisco,
tida como uma região estagnada, mas que acabou revelando uma outra realidade ao atrair
populações para morar nas agrovilas.
A região econômica Médio São Francisco era considerada, por volta da década de
1970, como uma área pouco integrada, marcada pelo isolamento e dependência econômica em
relação a outros lugares. Tal situação começou a mudar a partir das intervenções
governamentais no Vale do São Francisco, que tiveram reflexos no seu desenvolvimento;
essas intervenções foram realizadas, sobretudo, nas “áreas de saúde, educação, transporte,
energia, controle da utilização das águas, desenvolvimento da irrigação, reflorestamento e
defesa dos interesses coletivos, inclusive pela desapropriação das áreas necessárias”
(ESTRELA, 2010, p. 19). Ainda conforme a pesquisadora Estrela (op.cit., p. 21):
As intervenções no Vale do São Francisco, com suas reverberações na
região em estudo – o Médio São Francisco na sua porção baiana –
efetivadas plenamente ou não, resultaram em profundas
transformações no espaço sanfranciscano, destacando-se: o
rompimento secular do isolamento da região, a ligação aos centros
mais dinâmicos do país, a urbanização, a formação de uma classe
média ligada aos setores de serviço e de uma burocracia de Estado.
No entanto, essas intervenções e o seu consequente desenvolvimento, ao tempo em
que traziam pessoas com as empresas para a referida região, também intensificavam a
expropriação de populações, delineando um quadro de grande mobilidade de populações no
interior da Bahia. Exemplo disso, foi a atuação da CHESF na área do São Francisco, que
levou à expropriação várias famílias devido à construção da barragem de Sobradinho em
1970, e que resultou na criação do Projeto de Colonização Serra do Ramalho para o
assentamento das mesmas.
18
Nesse sentido, trabalhos mais recentes, como o de Cavalcante (2011, p. 115) sobre a
memória de paraibanos que migraram para Irecê nas décadas de 1960-1970, demonstram a
dinâmica de fluxos migratórios existentes em outras regiões do estado da Bahia, desde 1960,
envolvendo trabalhadores nordestinos, atraídos pela grande produtividade agrícola existente
na região, conforme pontua a autora:
O contexto de produtividade agrícola que atribuía a Irecê o título de
“Capital do Feijão” funcionava como elemento propulsor ao trabalho
na agricultura. Por esse motivo, considerável parcela dos migrantes
que chegaram à cidade entrelaçou suas histórias de trabalho ao
ambiente rural.
As migrações, em sua maioria, são motivadas por fatores que resultam de
instabilidades políticas, econômicas, desequilíbrios sociais, demográficos e desastres naturais.
Entre esses vários motivos, discuto, em meu trabalho, aqueles que foram os mais relevantes
no fenômeno migratório ocorrido em Serra do Ramalho, entre as décadas de 1970 e 1980, que
estão ligados à questão político-econômica que envolve a má distribuição da terra, pois os
migrantes vieram, em sua maioria, porque não possuíam terra própria e trabalhavam em terras
de parentes, porque foram expulsos por fazendeiros, ou ainda, expulsos pela construção de
grandes projetos econômicos financiados pelo Estado.
Mas é importante ressaltar que, para além desses motivos, a migração resulta também
numa busca de condições que possibilitem a emancipação humana para que essas pessoas
possam ter uma vida digna. Nessa perspectiva, em última instância, a migração resultaria da
vontade do indivíduo em migrar. A migração voluntária difere, portanto, da migração forçada,
ou deslocamento compulsório, que é motivado por razões que estão fora do domínio dos
indivíduos e grupos. Segundo pesquisadores, este foi o caso das primeiras famílias assentadas
em Serra do Ramalho, oriundas de Sobradinho.
Singer (1995, p. 31,32) aborda a questão do ponto de vista das migrações internas;
segundo ele, “como qualquer outro fenômeno social de grande significado na vida das nações,
as migrações internas são sempre historicamente condicionadas, sendo o resultado de um
processo global de mudança, do qual elas não devem ser separadas”. O autor também
compartilha da opinião de que a industrialização é um fator determinante para que haja a
migração, pois esta, além de propiciar mudanças de técnicas de produção, consiste numa
“profunda alteração da divisão social do trabalho”, gerando desigualdades sociais. Portanto,
19
“uma vez iniciada a industrialização de um sítio urbano, ele tende a atrair populações de áreas
geralmente próximas”.
Sendo de ordem interna ou externa, a migração deve ser analisada como consequência
da organização social de uma sociedade que muda e se re-desenha de acordo com as suas
necessidades. O vai e vem contínuo de pessoas retrata um país dinâmico, em constante
movimento. Só que, hoje, essa mobilidade se apresenta bem mais difusa e complexa, já que
não obedece somente ao eixo Nordeste-Sudeste1 como ocorria nas décadas de 1960 e 1970;
todo mundo migra em todo canto do país, e os destinos vão desde as grandes metrópoles, às
médias cidades ou até aos pequenos municípios. De qualquer sorte, não podemos perder de
vista que a mola propulsora desses deslocamentos são os interesses econômicos, que,
obedecendo aos ditames políticos, tendem a excluir, a explorar e a expulsar populações.
Sobre as causas e os motivos pelos quais as pessoas acabam migrando, Singer (op.cit,
p.52) esclarece que “convém sempre distinguir os motivos (individuais) para migrar das
causas (estruturais) da migração”. Isso porque o autor parte de uma noção de migração como
“processo social”, em que não é o indivíduo a “unidade atuante”, e sim o grupo. Desta forma,
ele acaba por privilegiar as análises estruturais, “macrossociais”, em detrimento das chamadas
análises psicologizantes, centradas nos sujeitos, abordagem privilegiada neste trabalho.
Trabalhando a temática na perspectiva da migração campo-cidade, Durham (1984, p.
39) considera que são as transformações econômicas, resultantes da industrialização, que
constituem o fator orientador dos movimentos migratórios, ou seja, “todo o deslocamento
interno da população se orienta para as regiões mais profundamente atingidas pela introdução
e expansão do capitalismo industrial”.
Para Durham (Ibid, p.32), a migração rural-urbana entre as décadas de 1940 e 1970 se
dava, sobretudo, devido ao crescimento das cidades, tendo nos estados de São Paulo, Rio de
Janeiro e o Distrito Federal os destinos mais certos, já que estes exerciam o papel das
chamadas “áreas de atração” da população. Ela parte do entendimento de que, “como se trata
dos estados mais urbanizados, mais industrializados e, inclusive, de agricultura mais
desenvolvida, não resta dúvida que a migração interna se apresenta como um capítulo do
desenvolvimento do capitalismo industrial e agrícola no Brasil”. Ao pensar a migração de
forma tão unilateral, a autora deixa de valorizar a própria dinâmica no interior dos
movimentos migratórios, que age não só por razões de ordem econômica, mas também de
ordem social relacionadas a direito, valores, acesso e cidadania.
1
Esse fluxo migratório para o Sudeste, principalmente para o Rio de Janeiro e São Paulo, já vinha desde a
década de 1950, com o processo de industrialização do país.
20
Trabalhos realizados a partir da década de 1970 ampliaram as discussões sobre o tema
da migração, centrando a análise nos efeitos das migrações em seus desdobramentos regionais
e locais, sobretudo em relação ao sujeito que migra, contrapondo-se, assim, à questão
estruturalista, na qual aspectos como a trajetória e a experiência do migrante têm, na maioria
das vezes, menor relevância que as condições estruturais que levam à migração. Ressalto,
como exemplo dessa historiografia pós-1970, trabalhos como o de Estrela (2004) sobre os
desalojados de Sobradinho, o de Guimarães Neto (2002) que discute a política de colonização
presente em projetos na Amazônia, o de Santana (1998) sobre migração no Recôncavo
Baiano, o de Marques (2000) a respeito da luta pela terra dos assentados nas fazendas Retiro e
Retiro Velho em Goiás, só para citar alguns nomes.
Essa mudança de abordagem na literatura sobre migração propiciou a compreensão do
“por que” de tantas idas e voltas desses indivíduos a partir da percepção das tensões, dos
aspectos relacionados à adaptação e à organização desses grupos nesses espaços de
deslocamentos. Nessa medida, esses novos estudos vieram a acrescentar outras possibilidades
de análise à literatura estruturalista.
Para compreensão desse processo migratório, analiso as memórias desses migrantes
através da reconstituição de suas experiências. Parto da noção de memória que nos é dada por
Ricoeur (2007, p. 111) de que “[...] a memória é o presente do passado”, cuja potencialidade
ultrapassa o tempo presente, o tempo da vida individual, promovendo um encontro entre as
memórias individuais e as memórias coletivas de onde a representação do passado vivido se
emana.
Cabe, sobretudo, à história a tarefa de investigar e compreender o passado através dos
indícios de um tempo que se foi, mas que continua vivo na memória, nos fragmentos que
restaram desse tempo. E mais, cabe ainda à história e à memória zelar para que essas
referências não se percam, transformando-as em conhecimento histórico capaz de elucidar e
dar sentido à nossa vida. Assim, segundo Le Goff (2003, p. 419):
A memória, como propriedade de conservar certas informações,
remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, ou que ele representa como passadas.
A atualização das informações passadas realizada pela memória de que nos fala Le
Goff, só é possível através do encontro de nossas lembranças com as representações que
formam nossa consciência atual, que nos leva a repensar e a refazer as experiências do
21
passado. Desse modo, segundo Bosi (1994, p. 46,47), a conservação do passado acontece
porque:
[...] a memória permite a relação do corpo presente com o passado e,
ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações.
Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes,
misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,
“desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A
memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e
ativa, latente e penetrante, oculta e inovadora.
Nesse esforço de conservação do passado, as pessoas idosas se revelam como
testemunhas fundamentais dos processos históricos, ricas em experiências que acumulam
através dos anos e das vivências. Sobre as possibilidades que as lembranças das pessoas
idosas podem acrescentar aos nossos estudos, ressalta Bosi (Ibid., p. 60):
Nelas é possível verificar uma história social bem desenvolvida: elas
já atravessaram determinado tipo de sociedade, com características
bem marcadas e conhecidas; elas já viveram quadros de referência
familiar e cultural igualmente reconhecíveis: enfim, sua memória atual
pode ser desenhada sob um pano de fundo mais definido do que a
memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum
modo, ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente
que a solicita muito mais intensamente do que a uma pessoa de idade.
O século XX foi marcado por inúmeras transformações no campo da história,
sobretudo, pelo aprofundamento das discussões acerca das complexas relações existentes
entre a história e a memória, o que separa e vincula, ao mesmo tempo, esses campos do
conhecimento. Esta reavaliação resultou do empenho dos historiadores em questionar a visão
tradicional sobre esses campos, onde a memória tinha a função de representar os
acontecimentos e à história cabia apenas refletir a memória.
Faz-se necessário pontuar que, a relação existente entre a memória e a história é
marcada por diferenças; enquanto a primeira recupera a história vivida, a segunda, dedica-se à
problematização e produção do conhecimento, conforme esclarece Pinto (1990, p.206):
História e memória, apesar das aparentes semelhanças, como é
insistentemente repetido, diferem. O substrato de ambas talvez sela
igual: o passado. É, em primeiro lugar, a ele, passado como
22
temporalidade, que remetem a construção da memória ou a operação
histórica. A dissonância entre os dois fazeres, porém é grande: a
memória tecida sobre um determinado evento ou conjunto de eventos
dificulta a percepção histórica que se pode ter desses episódios, refaz
o itinerário de atribuição de sentidos, constrói um fato oferecendo
explicação coerente a episódios na origem desconexos. Constrói-se,
assim, a memória histórica que do apelo individual atinge dimensão
coletiva. Memória histórica que (re)cria o passado, operando
temporalidade como textualidade, fundindo referências que
estabilizam o presente.
A mudança exigia dos historiadores maior atenção aos elementos como a seleção, a
interpretação, a distorção, o silêncio, elementos constitutivos da realidade a ser investigada, e
que revelaram a complexidade da memória e da história. A memória apresentava-se, então,
como um campo de múltiplas possibilidades interpretativas para o conhecimento histórico, ou
conforme Dosse (2004, p. 184):
Durante muito tempo instrumento de manipulação, a memória pode
ser considerada em uma perspectiva interpretativa aberta em direção
ao futuro, fonte de reapropriação coletiva e não simples museografia
isolada do presente. Supondo a presença da ausência, ela permanece o
ponto de contato essencial entre passado e presente, desse difícil
diálogo entre o mundo dos mortos e o dos vivos.
Assim, no caso da memória, essas novas perspectivas abriram outras possibilidades,
neutralizando as críticas em relação à subjetividade e veracidade, uma vez que a
intencionalidade de quem depõe sobre algo não é mais desqualificada, considerada como um
problema, mas como mais um recurso para o trabalho do historiador, revelando-lhe outros
tantos significados. Le Goff (op.cit., p.109) nos faz notar que mais importante que falar dos
silêncios da historiografia tradicional é “fazer o inventário dos arquivos do silêncio e fazer a
história a partir dos documentos e da ausência dos documentos”.
Nesse contexto, também se abriram novos espaços para o estudo do presente, do
político, da cultura, passando-se a valorizar o papel do indivíduo no processo social,
resultando num estímulo para o uso da fonte oral como instrumento que possibilitava uma
melhor compreensão da construção das estratégias de ação e das representações de grupos ou
indivíduos nas diferentes sociedades. Dessa forma, a narrativa oral começou a ser entendida
como linguagem e também como uma prática social, que se forja na experiência vivida.
Sendo uma representação do passado, a memória é também uma construção social.
Halbwachs (2006, p. 72) trabalha a memória como “fenômeno social”, considerando que a
23
memória do indivíduo depende de como este se relaciona socialmente com outros grupos,
sendo de convívio ou de referência, como a família, a escola, a Igreja, etc.
Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às
lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que
existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o
funcionamento da memória individual não é possível sem esses
instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não
inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. Não é menos
verdade que não conseguimos lembrar senão do que vimos, fizemos,
sentimos, pensamos num momento do tempo, ou seja, nossa memória
não se confunde com a dos outros.
Portelli (1997, p. 16), considerando a memória como processo e não somente um
depósito de dados sobre o passado, afirma que, embora o ato de relembrar seja pessoal, a
narrativa só se faz na experiência social:
[...] a memória é social, tornando-se concreta apenas quando
mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo
individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de
instrumentos socialmente criados e compartilhados. [...] Assim, a
história oral tende a representar a realidade não tanto como um
tabuleiro em que todos os quadrados são iguais, mas como um
mosaico ou colcha de retalhos, em que os pedaços são diferentes,
porém, formam um todo coerente depois de reunidos – a menos que as
diferenças entre elas sejam tão irreconciliáveis que talvez cheguem a
rasgar todo o tecido. Em última análise, essa também é uma
representação muito mais realista da sociedade, conforme a
experimentamos.
Assim, as distorções da memória, a intencionalidade de quem depõe sobre algo não
são mais um problema. Agora, a atenção deve voltar-se também para os silêncios, o “nãodito”, como elementos constitutivos da realidade a ser apreendida. Se tomarmos esse
pressuposto para uma reflexão atualizada do método da história oral, devemos considerar que
um de seus principais alicerces é a narrativa. Um entrevistado não pode falar de algo sem que
isso seja narrado, transmitido a alguém, e para contar, ele transforma aquilo que foi
vivenciado em linguagem, selecionando os acontecimentos de acordo com um sentido, com o
que lhe é mais significativo ou que ficou gravado na memória (ALBERTI, 2004, p. 77).
Na reconstituição da memória dos colonos de Serra do Ramalho, faço uso
primordialmente da fonte oral, como via de acesso às experiências desses migrantes,
resultantes de sua convivência com diversos grupos em sociedade; também recorro à
24
investigação da literatura pertencente aos Arquivos da Comissão Pastoral da Terra, do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e da Paróquia São José Operário, além
dos acervos fotográficos, de particulares e da Secretaria de Educação do município, referentes
ao período correspondente ao recorte temporal contemplado nesta pesquisa. Esses diversos
tipos de documentos (cartas, fotografias, relatórios, documentos pessoais – carteira de colonos
e carteira de associado da Cooperativa –, levantamentos paroquiais, mapas, e a oralidade,
entre outros) são ricos por articularem experiências significativas e por elucidarem as relações
entre os diversos grupos, bem como as estratégias individuais e coletivas.
O uso da fonte oral se fez viável também mediante a própria problemática, já que não
se têm muitos documentos escritos que poderiam responder adequadamente ao recorte
temporal e aos objetivos pretendidos com o presente estudo. Também elegi a fonte oral, pela
possibilidade que ela viabiliza à reconstituição das histórias de vida dos sujeitos históricos,
em que as experiências vividas pelo entrevistado fornecem elementos, informações, versões e
interpretações sobre o tema abordado na pesquisa, como sugerem Ricoeur, Le Goff, Portelli,
Khouri e tantos outros.
Diferentemente de outras fontes históricas, a fonte oral permite um diálogo constante
entre entrevistador/entrevistado, o que requer o desenvolvimento de métodos que garantam
apreender dos processos de visão e de consciência os elementos que possam ser incorporados
na escrita da história, já que não interessa fazer somente um relato de memórias e sim uma
análise dentro do propósito de nosso estudo. Nesse sentido, Ricoeur (op.cit., p.131) nos
lembra algo importante:
É essencialmente no caminho da recordação e do reconhecimento,
esses dois fenômenos mnemônicos maiores de nossa tipologia da
lembrança, que nos deparamos com a memória dos outros. Nesse
contexto, o testemunho não é considerado enquanto proferido por
alguém para ser colhido por outro, mas enquanto recebido por mim de
outro a título de informação sobre o passado.
Por sua vez, Khoury (2000, p.116,126) chama atenção para a questão de termos
consciência da historicidade de nossas produções, partindo de uma compreensão de história
como processo de disputas de forças sociais que envolvem valores, sentimentos e interesses,
nos alerta para que analisemos as narrativas orais atentos aos processos de visão, de
interpretação e de mudança.
25
Como historiadores comprometidos com a realidade social,
trabalhamos momentos, processos e lugares da experiência social,
procurando compreendê-los em sua singularidade, explorando-os de
maneira relacionada na dinâmica social mais ampla. [...] Portanto,
precisamos criar uma consciência sobre a historicidade do que
produzimos, consciência que é formada na nossa vida diária e na
prática profissional. [...] Temos estado atentos a processos de visão
expressos de modo direto, indireto ou metafórico; a estados de ânimo,
explícitos ou encobertos, em problemáticas específicas, com vistas a
identificar diferenças e tendências nas relações entre os sujeitos
sociais.
Esses cuidados são essenciais, pois somos também os construtores da fonte oral.
Devemos nos lembrar sempre de que não estamos à procura da “verdade”, mas de evidências
que nos auxiliem na explicação de um determinado fato histórico. Sendo assim, é preciso
evitar a emissão de julgamentos em nossas pesquisas, essa não é a nossa tarefa, pois estamos
lidando com a memória de grupos, com aspectos de vida dessas pessoas. Ao trabalhar com a
fonte oral, é importante percebermos as narrativas em suas singularidades, nunca
homogeneizando essas experiências, como se elas partilhassem das mesmas visões sobre
determinado período, pois, embora se manifeste no social o ato de lembrar, de recordar, é
sempre uma atividade particular do indivíduo.
É sabido que, através das narrativas orais, assim como de outras fontes históricas, não
atingimos o conhecimento total do passado. Entretanto, mais do que simples versões do
passado, as entrevistas e os depoimentos produzem conhecimentos que nos auxiliam na
compreensão da realidade. O uso das narrativas orais se torna imprescindível para a história
regional e local, principalmente se for a única fonte disponível para determinadas pesquisas.
Sobre a singularidade da fonte oral, Samuel (1989, p. 230) considera que:
Há verdades que são gravadas nas memórias das pessoas mais velhas e
em mais nenhum lugar; eventos do passado que só eles podem
explicar-nos, vistas sumidas que só eles podem lembrar. Documentos
não podem responder, nem, depois de um certo ponto, eles podem ser
instigados a esclarecer, em maiores detalhes, o que querem dizer, dar
mais exemplos levar em conta exceções, ou explicar discrepâncias
aparentes na documentação que sobrevive. A evidência oral, por
outro lado, é infindável, somente limitada pelo número de
sobreviventes, pela ingenuidade das perguntas do historiador e pela
sua paciência e tato.
Ressalto ainda que o cuidado com as fontes escrita e iconográfica também foi uma
constante e se revelou de extrema importância para o desenvolvimento deste projeto, assim
como nos lembra Ladurie (1997, p. 12): “Todo estudo histórico deve ou deveria começar por
26
uma crítica das fontes”. É fundamental a análise do conteúdo, a verificação de todos os
detalhes e informações presentes nas fontes históricas, tendo sempre em vista que as fontes
nos revelam fragmentos, vestígios de uma realidade vivida fundamentais para o entendimento
da história. A leitura das fontes históricas exige um exame mais minucioso de suas
informações, que, segundo Dias (1995, p. 14), “[...] se escondem, ralas e fragmentadas, nas
entrelinhas dos documentos, onde pairam fora do corpus central do conteúdo explícito. Tratase de reunir dados muito dispersos e de esmiuçar o implícito”.
Na realização desta pesquisa foram realizadas dezessete entrevistas, que expõem
vivências e experiências que vão dando vida aos capítulos desta dissertação, a partir das
recordações, das memórias compartilhadas por todos os entrevistados que contribuíram para a
construção deste trabalho. O estudo se fez, principalmente, a partir das narrativas orais de
colonos que residem nas agrovilas de Serra do Ramalho. Desse total de entrevistados, apenas
quatro são mulheres, donas de casa residentes nas Agrovilas 13 e 15.
Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, Memória da
Migração, faço uma contextualização sobre a criação do Projeto Especial de Colonização
Serra do Ramalho, abordando também os problemas que levaram à descaracterização desse
Projeto. Abordo a questão da política agrícola empreendida pelo INCRA, principalmente em
relação à maneira como foi recebida e internalizada pelos colonos. Estudo os grupos de
migrantes que vieram para as agrovilas, sobretudo sobre as causas e os motivos que os
impulsionaram a migrar, além de analisar como se deu a distribuição deles nas agrovilas.
No segundo capítulo, Cotidiano nas Agrovilas de Serra do Ramalho, empreendo uma
aproximação do cotidiano dos grupos de migrantes, de seus modos de vida, para compreender
como se davam as relações entre eles, como foram forjadas as estratégias de adaptação e
sobrevivência nesse processo de apropriação e ressignificação de novos hábitos culturais.
Estudo ainda as tensões nascidas a partir do encontro entre os grupos, das relações de
alteridade estabelecidas na convivência cotidiana dos colonos.
No terceiro e último capítulo, intitulado Paraibanos e demais colonos em Serra do
Ramalho: manifestações culturais e identitárias, identifico alguns referenciais de cultura
dessa população, ressaltando as práticas reconstruídas por eles no Projeto de Colonização e
que hoje eles preservam como parte significativa de suas histórias de vida, já que, ao
vivenciar o processo de migração, o migrante não é desligado por completo de sua “cultura de
origem”, conforme Sayad (1998). Assim, ao refazer suas tradições culturais, eles se sentem
acolhidos numa ambientação que lhes é familiar, reforçando seus laços afetivos e identitários
entre os grupos.
27
2 MEMÓRIA DA MIGRAÇÃO
Criado com a finalidade de assentar a população desapropriada devido à construção
do Lago de Sobradinho na década de 1970, o Projeto Especial de Colonização Serra do
Ramalho começou a atender famílias de migrantes de diversos estados brasileiros a partir de
1980. Essa flexibilidade por parte dos administradores em receber outros assentados se deve a
não adaptação dos primeiros colonos ao lugar e a política agrícola empreendida pelo INCRA,
instituição responsável pela implantação do Projeto.
Diversos também foram os motivos que levaram os migrantes até as agrovilas. Seja
com o objetivo de obter a terra própria ou um trabalho, todos os colonos tiveram muita
dificuldade para se adaptar a nova vida, estabelecer novas relações com os demais grupos
sociais e buscar estratégias cotidianas que assegurassem a sobrevivência deles no novo lugar.
2.1 Contextualizando o Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho.
O município de Serra do Ramalho localiza-se a Oeste2 do estado da Bahia, na região
econômica denominada Médio São Francisco, tendo como municípios limítrofes: Bom Jesus
da Lapa, Carinhanha, Malhada, Santana e São Félix do Coribe3.
2
Microrregião Homogênea - 101, Chapadões do Rio Corrente, situando-se entre as coordenadas de 13º15‟ e
14º00‟ de Latitude e 43º15‟ e 44º00‟ de Longitude WG. In: Relatório final dos trabalhos para emancipação do
Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho - PEC/SR, Brasília, dezembro de 1994, p.10.
3
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=293015#>. Acesso em: 31 de
maio de 2011.
28
Ilustração 01: Localização do município de Serra do Ramalho no Estado da Bahia.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Serra_do_Ramalho_%28Bahia%29
O referido município resultou de um projeto de colonização, o Projeto Especial 4 de
Colonização Serra do Ramalho, criado pelo INCRA em 13 de maio de 1975 com o objetivo
de reassentar cerca de 4.000 famílias5 da zona rural dos municípios atingidos pela construção
da barragem de Sobradinho6 em 1970. São eles: Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado e
Remanso, todos pertencentes à região econômica do Baixo Médio São Francisco (conforme
mapa abaixo).
4
Para o INCRA, o projeto era tido como especial por estar subordinado diretamente ao órgão central em Brasília.
Conforme dados do INCRA, desse total, somente 1.600 famílias se cadastraram no Projeto de Colonização, e
cerca de 1.400 foram realmente instaladas na área do assentamento.
6
A Represa de Sobradinho constitui-se num lago artificial formado no Rio São Francisco, com área de 4.500
quilômetros quadrados e capacidade para 37,5 bilhões de metros cúbicos de água.
5
29
Ilustração 02: Mapa da Região Econômica Baixo Médio São Francisco.
Fonte: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Dinâmica sociodemográfica da Bahia: 1980-2000.
Salvador: SEI, 2003, v.II.
Com base em dados do relatório7 do INCRA, depois de concluírem os trabalhos de
pesquisa e de seleção da área para o reassentamento das famílias expropriadas de Sobradinho,
ficou decidido que a região próxima ao Rio São Francisco, situada à margem esquerda do rio,
era condizente com os planos da criação do Projeto de Colonização, portanto:
Em 25 de abril de 1975, foi assinado pelo Exmo. Senhor Presidente da
República - Ernesto Geisel, o Decreto-Lei 75.658, que declarou de
interesse social para fins de desapropriação dos imóveis rurais
situados nos municípios de Bom Jesus da Lapa e Carinhanha, no
Estado da Bahia, compreendidos na área prioritária para fins de
reforma Agrária, assim declarada, pelo art. 1º do Decreto nº 73.072, de
1º de novembro de 1973 e ampliada pelo art. 1º do Decreto nº 74.366,
de 07 de agosto de 1974, abrangendo uma área de, aproximadamente,
257.500 hectares, cujas confrontações e limites são os seguintes:
“Partindo do ponto 1, situado na margem esquerda do rio São
Francisco, em direção a montante numa distância aproximada de 79
km até o ponto 2, situado próximo ao povoado de Barra da Parateca;
daí reflete à direita e segue por uma linha ideal com rumo aproximado
de 88ºSO, numa distância aproximada de 34 km até o ponto 3, situado
no rio Verde; daí reflete à direita e segue por uma linha ideal com
rumo aproximado de 12ºNE, numa distância aproximada de 70 km até
o ponto 4, situado no eixo da BR-349; daí reflete à direita e segue pelo
eixo da BR-349, numa distância aproximada de 38 km até o ponto 1,
onde iniciou.
7
Relatório final dos trabalhos para emancipação do Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho PEC/SR, Brasília, dezembro de 1994, p. 3.
30
Vale ainda lembrar que, nesse período, este ficou conhecido como Projeto Especial de
Colonização de Bom Jesus da Lapa, devido a pertencer a esse município a área escolhida pelo
INCRA, cidade situada a 42 km da sede. De acordo com dados do relatório8 de 1994, depois
de concluída toda a demarcação da terra, e devido às alterações que o Projeto foi sofrendo
para atender ao número de famílias de sem-terras que chegaram de outras regiões do país a
partir de 1977, a área do Projeto já abrangia o total de “258.483,39 ha”, sendo “191.488,70
ha” pertencentes ao município de Serra do Ramalho e “66. 994,69 ha” pertencentes ao
município de Carinhanha.
Não demorou muito para que se iniciasse o povoamento9 na área desapropriada para o
assentamento. Na pesquisa realizada acerca da população expropriada de Sobradinho
intitulada Três felicidades e um desengano: A experiência dos beraderos de Sobradinho em
Serra do Ramalho-Ba, Estrela (op. cit., p. 151) afirma, com base em dados do INCRA, que:
As primeiras famílias chegaram ao Projeto Especial de Colonização de
Serra do Ramalho, em março de 1976. Em julho do mesmo ano
chegou a segunda leva. Nos meses subsequentes chegaram várias
outras levas, de modo que, no final de 1978, estavam instaladas em
Serra do Ramalho as 1.400 famílias das 1.600 cadastradas. As
primeiras eram provenientes do povoado de Intãs e foram instaladas
na Agrovila 5. Depois chegaram várias famílias oriundas de BemBom, Pau-a-Pique, Barra da Cruz e dos povoados dos demais
municípios que tiveram suas terras submersas pela Represa.
Baseada em pesquisadores do fenômeno migratório, a autora denomina o
deslocamento vivenciado pela população atingida pela barragem de Sobradinho como um
deslocamento compulsório, pois não resultou de uma decisão deles mesmos em deixar seu
local de origem, apontando algumas das características que distinguem este tipo de
deslocamento dos demais.
Assim, o deslocamento compulsório deve ser classificado em função
de suas causas: decorrentes de conflitos militares ou de perseguições
étnico-religiosas e decorrentes de projetos de infra-estrutura. As
vítimas desses deslocamentos são denominadas também em função da
motivação: o termo refugiados refere-se aos perseguidos por
problemas étnico-religiosos ou por conflitos político-militares e
8
Relatório final dos trabalhos para emancipação do Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho PEC/SR, Brasília, dezembro de 1994, p. 4.
9
Atualmente, Serra do Ramalho conta com uma população de 31.637 hab., conforme dados do Censo 2010 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: http://www.todospelaeducacao.org.br/
educacao-no-brasil/numeros-do-brasil/dados-pormunicipio/municipio/ba/serra-do-ramalho. Acesso em: 21 de
março de 2011.
31
deslocados, desterrados ou ainda desabrigados para os que perderam
seu local de moradia e de reprodução social em função dos grandes
projetos, que resultaram na construção de obras de infra-estrutura.
Para uma melhor compreensão acerca da criação desse Projeto de Colonização no
estado da Bahia, não podemos analisá-lo apenas em âmbito local, mas numa abordagem mais
ampla que dê conta do contexto social no qual o Brasil se encontrava, e que acabou
propiciando o surgimento de grandes projetos econômicos em várias regiões do país, o que
resultou em expropriações de trabalhadores rurais, em muitos estados brasileiros, das áreas
destinadas a essas construções.
No início da década de 1970, o Brasil vivia sob o regime militar, no governo do
general-presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974); esse período é considerado como o
mais violento da fase ditatorial, devido à forte perseguição aos grupos opositores e devido à
censura aos meios de comunicação, revistas, jornais, rádio e televisão. Do ponto de vista
econômico, o país crescia com baixas taxas de inflação e com incentivos fiscais a projetos
para a indústria e a agricultura exportadora, vivíamos o chamado “milagre brasileiro”.
Temos nesse período investimentos em grandes empreendimentos, a exemplo de
construções de grandes rodovias como a Cuiabá-Santarém e a Transamazônica, a Ponte RioNiterói, usinas nucleares como as de Angra dos Reis, e também usinas hidrelétricas como a de
Itaipu10, entre outras obras. Dentre esses projetos ambiciosos do governo estava o da
construção do Lago artificial de Sobradinho no estado da Bahia. Parte dessas obras foram
financiadas com capital estrangeiro e faziam parte do I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) para promoção do crescimento econômico do país.
Nesse sentido, a criação da barragem de Sobradinho atendia a esses objetivos da
economia nacional, e, no caso específico, a consequência deste empreendimento foi a
implantação de um projeto de assentamento para fins de Reforma Agrária sem um
planejamento adequado e que, em nenhum momento, levou em conta os interesses da
população envolvida no processo.
A construção da barragem pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco11 (CHESF)
correspondia aos planos do governo de criar obras que viabilizassem a expansão do setor
10
A respeito da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, Guiomar Inez ressalta que, “sobre a questão dos semterra, Itaipu indicou a agrovila de Bom Jesus da Lapa, que foi construída em função de Sobradinho; mas os
agricultores já tinham ouvido falar nela e sabiam que não era coisa pra se alegrar”. In: GERMANI, Guiomar
Inez. Os expropriados de Itaipu. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 1982, p.166.
11
Com a missão de produzir energia elétrica para o Nordeste do Brasil, a empresa é a maior geradora de energia
do país, com 10,7 mil megawatts de potência.
32
elétrico no Nordeste, já que nesse período o Brasil buscava se afirmar como uma grande
potência na economia mundial. Além do mais, segundo as agências governamentais, a
iniciativa traria muitos benefícios à região, gerando mais emprego e renda devido ao apoio e
subsídios que forneceria aos vários projetos de irrigação que seriam implantados na região.
Usando da publicidade, a CHESF, empresa responsável pela construção da represa,
buscou criar um clima de aceitação e otimismo, mesmo sem esclarecer os reais objetivos
relacionados à construção da barragem e o plano de transferência da população que vivia em
torno da área de construção do Lago de Sobradinho para o Projeto de Colonização Serra do
Ramalho, então apresentado pelos órgãos envolvidos como uma solução viável ao problema.
Assim, consta em relatório12 do INCRA que a referida Companhia:
[...] entrou em entendimento com o INCRA a fim de que, esta
Autarquia assumisse a responsabilidade de promover a identificação,
seleção, o reassentamento e prestar Assistência Técnica às famílias de
agricultores, que se encontravam na cota de inundação do futuro lago
de Sobradinho, situado nos municípios de Casa Nova, Remanso, Sento
Sé, Pilão Arcado, e Xique-Xique, todos no Estado da Bahia.
Através de 56 ações judiciais e do Decreto 75.658 de 25 de abril de 1975, o INCRA
desapropriou sete fazendas para utilização das terras na implantação do Projeto de
assentamento. Segundo relatório13 deste órgão:
Essas, foram avaliadas nos anos de 1975 a 1976, conforme Laudos
Técnicos de Avaliação, inclusive benfeitorias e culturas, constantes de
1.630 processos administrativos, abrangendo as fazendas primitivas de
Barra, Porto Alegre, Boa Vista, Palma, Volta de Cima, Pituba e Várzea
Grande.
Além do INCRA, órgão responsável pela administração geral do Projeto de
Colonização, a Associação Nacional de Crédito e Assistência Rural 14 (ANCAR-BA), depois
substituída pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia15 (EMATER/BA),
12
Relatório Final dos Trabalhos para Emancipação do Projeto Especial de Colonização Serra do RamalhoPEC/SR, Brasília, 1994, p. 2.
13
Idem. p. 9.
14
Esta empresa atuou na primeira fase do Projeto de Colonização, responsável pelo cadastramento e apoio
material aos desapropriados.
15
Empresa responsável em prestar assistência técnica aos produtores, na utilização de modernas técnicas
agrícolas e equipamentos, como máquinas, além de emitir a aprovação dos planos para os financiamentos.
33
e a Fundação de Serviços de Saúde Pública16 (FSESP ) colaboraram para a sua implantação,
que contou com financiamento do Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do
Nordeste17 (POLONORDESTE).
O Projeto de Colonização foi pensado no modelo de agrovilas, segundo o qual cada
família de colonos recebia um lote urbano com 1.200 metros quadrados e outro rural com 20
hectares. O lote urbano era entregue ao colono com uma casa pronta, constituída de sala,
quarto, depósito e terraço, obedecendo a um modelo já padronizado pelo INCRA, poderia ser
ampliada pelo morador, se assim o quisesse. Hoje, são poucas as casas nas agrovilas que ainda
preservam as mesmas características da época da sua construção, como na fotografia abaixo,
pois boa parte delas já sofreram reformas em suas estruturas.
Ilustração 03: Casa de Colono nas agrovilas.
Fonte: Maria Regina de Souza Xavier, fotografia de trabalho de campo realizado em 10 de dezembro de 2010, Agrovila 15.
Inicialmente foram construídas dezesseis agrovilas, subdivididas em dois eixos, para o
atendimento das famílias atingidas pela barragem de Sobradinho. As demais agrovilas só
foram construídas devido ao grande número de famílias de sem-terras que chegou à região a
partir de 1977, momento em que o INCRA passou a utilizar o Projeto de Colonização para
resolver conflitos ligados à questão da Reforma Agrária na Bahia e em outros estados
brasileiros.
16
Esta era a fundação responsável pelo atendimento médico nas agrovilas. Atuava com ações preventivas, de
assistência curativa e de saneamento básico em áreas carentes de qualquer infraestrutura urbana.
17
Programa do Governo Federal, criado em 1975, para fomentar a criação de polos de desenvolvimento, voltados
para o crescimento da produção e da renda, no interior dos estados nordestinos.
34
Sobre a formação espacial do Projeto de Colonização, Estrela (op.cit., p.143) concluiu
que esta se deu da seguinte maneira:
Em linhas gerais, os 257 mil hectares desapropriados pelo INCRA formando uma espécie de trapézio - foram divididos em quatro eixos
latitudinais; a cada 6 ou 7 quilômetros construiu-se uma agrovila. O
Eixo 1 abriga as agrovilas: 1, 3, 5, 7 e 9. O Eixo 2 as: 2, 4, 6, 8, 10, 11,
21 e 22. O Eixo 3 abriga as de números: 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18. O
Eixo 4, as: 19 e 20. Ainda no Eixo 4, mas encravada no sopé do lado
oriental da Serra, encontra-se a agrovila 23. As agrovilas 15, 16 e 23
estão localizadas no município de Carinhanha.
Além das agrovilas, o Projeto de Colonização também priorizou uma área coletiva
destinada à criação de gado, a Fazenda Companhia do Sudoeste da Bahia (CSB), além das
áreas de florestas com plantas nativas da região, as reservas; “havia duas grandes áreas de
reserva (uma era coletiva), quatro reservas extrativistas, localizadas às margens do Rio São
Francisco, e inúmeras pequenas reservas situadas nos interstícios das agrovilas (pedreiras,
lagoas, alagadiços, etc.) (Ibid., p. 147)”.
A representação cartográfica a seguir ilustra bem a descrição feita anteriormente, ou
seja, de como era a espacialização das agrovilas do Projeto de Colonização Serra do Ramalho,
com suas áreas de reservas florestais, e suas devidas localizações em relação ao Rio São
Francisco.
35
Ilustração 04: Agrovilas de Serra do Ramalho.
Fonte: MEAF-INCRA, 1985 apud ESTRELA, 2004, p.144.
No Mapa Político Municipal abaixo, pertencente à Prefeitura de Serra do Ramalho,
constam apenas as vinte agrovilas que constituem o município atualmente, não contando com
as agrovilas 15, 16 e 23, pois estas passaram a pertencer ao município de Carinhanha quando
da emancipação do Projeto de Colonização em 1989, limite que está representado no mapa
pela linha pontilhada.
Atualmente, além das vinte agrovilas, o município é constituído também por
comunidades e povoados, são eles: “Água Fria, Fechadinha, Barreiro Grande, Boa Vista,
Caldeirão, Palmas, Curral Novo, Mariápolis e Beira Rio, Mata Verde, Mineiros, Nova Posse,
Pambu, Passos, Pituba, Serra Solta e Barnabé, Tabuleiro, Tamburi, Taquari, Campinhos Reserva Extrativista São Francisco, Vargem Alegre - Pankaru”.18
18
Dados do Relatório do Projeto Construindo e Preparando o Futuro (CPF), “Levantamento da realidade nos
aspectos socioeconômico, político, cultural, ambiental e religioso dos moradores das agrovilas, comunidades e
povoados do Município de Serra do Ramalho - Bahia/BA”, Província Brasileira da Congregação da Missão
(PBCM), Rio de Janeiro, 2008/2009.
36
Ilustração 05: Mapa Político Municipal.
Fonte: Acervo da Secretaria de Educação, Prefeitura Municipal de Serra do Ramalho.
As agrovilas, além das casas dos colonos, concentrariam ainda a construção de
algumas edificações públicas, com fins administrativos ou atendimento comunitário. Ainda
sobre esta questão da formação do Projeto de Colonização, complementa Estrela (Ibidem, p.
145-146):
No plano de construção, além de concentrar as casas dos colonos, as
agrovilas abrigariam o comércio, a loja da COBAL (Companhia
Baiana de Alimentos), os serviços públicos, comunitários e religiosos.
Em relação aos equipamentos comunitários, o projeto implantou duas
novidades: a construção de lavanderias e refeitórios públicos em todas
as agrovilas. Mais tarde, os equipamentos perderam a sua função e, ao
que parece, foram, paulatinamente, sendo destruídos pelos próprios
moradores. [...] Pelo projeto, cada agrovila ocupava área de
aproximadamente quatro lotes, correspondente a um núcleo
habitacional com atividades urbanas, possuindo aproximadamente,
duzentas e cinquenta casas, dispostas em ruas paralelas e
perpendiculares ao eixo de sua localização. Todas as ruas guardam
distância razoável umas das outras. Entre uma rua e outra, existem
áreas coletivas que podem ser ocupadas por um campo de futebol,
uma igreja, uma escola ou árvores de grande porte. Nas áreas não
construídas, pastam a pequena criação e os animais de tração dos
habitantes, cujos lotes ficam distantes da agrovila.
37
Existem ainda algumas dessas construções de uso coletivo espalhadas por todo o
município. Em algumas agrovilas ainda é possível encontrar prédios antigos da Companhia
Baiana de Alimentos (COBAL), só que em ruínas. Na fotografia a seguir registramos o prédio
da COBAL na Agrovila 22, que ainda está em bom estado, talvez um dos poucos da região.
Sem atender a finalidade para a qual foi criado, ou seja, a de armazenação de alimentos e
realização de festas da comunidade, a construção representa só um prédio velho, abandonado,
servindo como encosto para lixos, como podemos verificar na imagem.
Ilustração 06: Prédio da COBAL nas agrovilas.
Fonte: Maria Regina de Souza Xavier, fotografia de trabalho de campo realizado em 22 de agosto de 2010, Agrovila 22.
O abandono dessas construções parece refletir o desencontro entre o modelo do
Projeto de Colonização e o modo de vida dos colonos, sobretudo por este tipo de projeto ser
pautado em uma concepção voltada para atender a uma infraestrutura comunitária, fruto de
uma idealização de que os trabalhadores rurais são, no geral, todos unidos, que trabalham em
mutirões. Enfim, são concepções que nascem de uma percepção homogênea do trabalhador
rural e de sua realidade de atuação, de modo que ele não é respeitado em sua singularidade,
não é visto como grupo específico, com uma organização social própria que está em contínua
transformação.
Woortmann (1990, p. 47), em estudo sobre a organização do campesinato brasileiro e
as relações de reciprocidade que permeiam nesses territórios (fazenda, comunidade, sítio e
38
colônia19), argumenta que, geralmente, “a “colônia” se divide em uma área comunitária
chamada “nosso”, e outra área dividida em lotes dos colonos, chamada “meu”.”
Porém, podemos empregar essas considerações no caso também das agrovilas de Serra
do Ramalho, onde espaços construídos para uso coletivo, como as lavanderias, a COBAL, os
refeitórios (usados para fornecer comida aos assentados de Sobradinho nos primeiros dias
após a chegada ao Projeto), tinham como objetivo atender toda a população em suas
necessidades, tanto físicas quanto sociais, já que eram também espaços de socialização. Mas,
ao cair em desuso, estas edificações públicas perderam totalmente o significado para os
moradores, que começaram a destruí-las.
Os tanques d‟água são outro exemplo de construção que atendia aos planos do Projeto
de Colonização de criar espaços de uso coletivo para as famílias nas agrovilas. Situados
acerca de dois quilômetros das ruas, estes tanques ficavam longe das moradias, dificultando o
acesso para os colonos, que pegavam água a pé. Por isso, era comum serem vistos moradores
utilizando as carroças (conforme a imagem) para carregar água, situação ainda comum nos
dias atuais. Na falta de água nos domicílios para beber e cozinhar, para realizar a higiene
pessoal, a limpeza da casa, dos utensílios domésticos e das roupas, os colonos recorriam aos
tanques d‟água para o abastecimento.
Ilustração 07: Tanque d‟água nas agrovilas.
Fonte: Maria Regina de Souza Xavier, fotografia de trabalho de campo realizado em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
19
Woortmann (1990) está se referindo ao modelo de colônia presente no Sul do país, as quais o autor define
como sendo “espaços de trabalho familiar num patrimônio”.
39
O discurso de progresso por trás dos planos da construção da barragem de Sobradinho
e da implantação do Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho convenceu parte das
famílias expropriadas, mas não foi capaz de prever os transtornos e danos que se
desencadeariam nesse processo de transferência da população.
Em nome de uma “modernidade” que traria benefícios à região, projetos econômicos20
como esse da barragem de Sobradinho, que contaram com financiamentos de governos para o
desenvolvimento de tecnologias aplicadas em suas construções, causam enorme impacto
social e ambiental, com efeitos destrutivos sobre as populações. Sobre esses efeitos, Martins
(1993, p. 63) relembra que:
Não se trata de introduzir nada na vida dessas populações, mas de
tirar-lhes o que tem de vital para sua sobrevivência, não só econômica:
terras e território, meios e condições de existência material, social,
cultural, e política. É como se elas não existissem ou, existindo, não
tivessem direito ao reconhecimento de sua humanidade.
Mas, a ocorrência desses efeitos sobre as populações atingidas não anula o que
Martins (Ibid., p.64-65) chamou de “resposta da vítima”. Para o autor, é fundamental que o
processo onde se dá esse encontro entre atores sociais diferentes, não seja pensado como
unilateral, porque há sempre reações, reciprocidade de consequências, ou seja:
Os grupos vitimados por esses programas lançam neles contradições,
tensões, desafios. A partir do momento em que essa interferência se
dá, ela não se efetiva apenas através da coisa física que é a barragem,
o lago ou a rodovia. [...] A reciprocidade do impacto se manifesta na
contradição do “outro”, que passa a mediar as relações sociais para
cada grupo envolvido no desencontro desse encontro.
Nesse sentido, o processo que gerou o deslocamento das famílias desapropriadas de
Sobradinho para as agrovilas de Serra do Ramalho foi marcado por tensões e choques de
interesses. Essa população estava ciente de que o Projeto de Colonização era destinado ao seu
assentamento, porém havia pouco esclarecimento sobre o que aconteceria com a vida dessas
pessoas a partir do momento da desapropriação.
Vítimas de um deslocamento compulsório, essas famílias resistiram em aceitar a
20
Martins (1993), em A chegada do estranho, discorre sobre o impacto social e cultural que esses tipos de
projetos causam nas populações atingidas. Segundo o autor, são “[...] projetos econômicos de envergadura, como
hidrelétricas, rodovias, planos de colonização, [...] que não têm por destinatárias as populações locais (1993, p.
62).”
40
condição que lhes foi imposta, a de abdicar de suas terras e refazerem suas vidas nas agrovilas
para atender aos planos do governo e das empresas responsáveis pela obra. Insatisfação maior
foi com as dificuldades que encontraram no assentamento, situação que eles denunciaram em
outras instâncias. Constam em relatório21 da CPT notas sobre um abaixo-assinado22 feito
pelos moradores do Projeto de Colonização reivindicando melhorias das condições de vida
nas agrovilas:
Na visita do presidente Figueiredo a Bom Jesus da Lapa, em 10 de
setembro de 1981, os colonos tiveram oportunidade de entregar
diretamente a ele um abaixo-assinado dos moradores das agrovilas 01,
02, 03, 04, 05 e 06, com 1 mil 185 assinaturas, denunciando a
“condição de penúria” em que vivem os colonos do Projeto. No
abaixo-assinado foram enumerados os problemas considerados graves
e que exigem uma solução imediata, como assistência médica,
energia, água, empréstimo bancário, lavanderias das agrovilas, escolas
e transporte escolar.
As dificuldades enfrentadas pelas famílias que foram assentadas no Projeto de
Colonização, a partir de então, não passaram despercebidas nem mesmo aos olhos do poeta
popular, como se lê em alguns dos versos do cordel Assim nasceu o PEC, meu lugar, de
Erivaldo da Silva Santos23:
21
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item:
“Drama de todos”, p. 28.
22
Este documento foi assunto também nos jornais da região e do estado, é o caso da matéria publicada no Jornal
Tribuna da Bahia - Salvador, em 11 de setembro de 1981, por ocasião da visita do presidente Figueiredo à
região. A matéria se intitula “Sindicato faz denúncias”. Vejamos: “O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
Bom Jesus da Lapa dirigiu ontem ao presidente Figueiredo um documento em que reflete a situação dos colonos
das Agrovilas do Projeto de Colonização Serra do Ramalho classificando uma condição de penúria para mais de
30 mil pessoas: “Fomos expulsos de nossas terras por grilagem - diz o documento - ou pelos grandes projetos e
viemos para Bom Jesus da Lapa em promessas de encontrar um pouco de conforto para nossas famílias, mas
quando aqui chegamos a realidade é bem diferente”. Entre as muitas denúncias estão: a falta de assistência
médica, onde só existem dois profissionais para atender a 30 mil pessoas, sendo obrigados os colonos a se
deslocarem para uma distância de 40 quilômetros para serem atendidos. Outro, ponto é a energia e água,
considerados os fornecimentos os mais precários. Os empréstimos para a lavoura, diz o Sindicato, foram
prometidos mas até agora não foram liberados “quando as primeiras chuvas já se aproximam”. Além da falta de
água nas casas, os chafarizes construídos estão imprestáveis para uso. Só existem quatro lavanderias, igualmente
estragadas e imprestáveis. “Nossas mulheres e filhas são obrigadas a caminhar duas ou mais léguas para lavar
roupas no Rio São Francisco.” Quanto ao problema de escolas, só existe um grupo escolar em cada agrovila e
apenas um ginásio para todas as demais. Quanto ao transporte escolar, este é feito em caminhões, juntamente
com materiais de construção e outras cartas (sic) num percurso de mais de 30 quilômetros. Finalmente, ao
referir-se o documento ao Eixo Três, recentemente entregue aos colonos e denúncias de que está sendo ocupado
por pessoas de outros Estados, muitos colonos “passando fome e dormindo ao relento ou morando em barracos,
construídos em lona ou plástico, enquanto o empréstimo para a lavoura, embora prometido, foi cortado, passando
os seus habitantes pelas mais extremas privações: sem luz, transporte, abastecimento, escola ou posto médico”.
23
Erivaldo da Silva Santos (Peruca) nasceu em Igaporã-Ba, atualmente mora em Serra do Ramalho-Ba, onde é
funcionário público e radialista, além de dedicar seu tempo a escrever folhetos e aos estudos sobre a cultura
popular.
41
Mas os marcos do progresso
Não demorou a chegar,
O homem com sapiência
Pode logo associar,
Com a construção da Barragem
Todo um povo de coragem
Foi mandado para cá.
Eram muitas as vantagens
Que foram oferecidas,
Largar tudo que se tinha
Buscando uma nova vida,
Enfrentar um caminho duro
Visando um melhor futuro,
Pois, era a única saída.
Muitos até desistiram
Procurando outro lugar,
Onde pudessem viver
Sem ter do que reclamar
Por causa das condições,
Mesmo porque nos sertões
Ninguém vive sem plantar.
Assim como explicitamos versos acima, a chegada ao Projeto de Colonização foi
marcada pelo descontentamento, pois as promessas se mostraram incompatíveis com a
realidade encontrada no lugar de destino, o que provocou revoltas nos deslocados, levando
muitos a desistirem de morar na região, trocando ou vendendo os seus lotes para irem embora.
Diante desta nova realidade, “todos alegam estar insatisfeitos e reclamam do abandono e do
descaso a que foram submetidos pelo INCRA e dizem sentir saudades do local de origem”
(ESTRELA, op. cit., p. 160).
Soma-se a isso o fato de que, para as famílias expropriadas que vieram de
Sobradinho, o impacto do deslocamento para as agrovilas foi marcante, já que tiveram de
deixar para trás todo um ambiente moldado a partir de seus modos de vida, e instalar-se num
lugar onde as relações sociais e afetivas que significavam as suas experiências de vida, foram
desfeitas.
Mudança que, conforme analisou Estrela (Ibid., p. 156), deixou os beraderos24 órfãos
24
Segundo Estrela (2004), o termo beradero designa todo indivíduo que tirava do rio, diretamente ou
indiretamente, o seu sustento.
42
de referenciais espaciais e também culturais, já que em Serra do Ramalho esses trabalhadores
tiveram que conviver com uma realidade muito diferente daquela em que eles viviam. As
consequências desse processo para a população expropriada foram:
No caso específico dos expropriados de Sobradinho, todas as bases
materiais, as relações e os referenciais simbólicos nos quais estava
assentado o modo de vida do beradero sanfranciscano foram
brutalmente
destruídos,
sinalizando
um
processo
de
desterritorialização e desenraizamento bastante pronunciado.
Em muitos casos, houve até o completo abandono das propriedades. Nesse sentido,
Marques (op.cit., p. 110), que realizou extensa pesquisa acerca da organização social de
trabalhadores nos assentamentos Retiro e Retiro Velho em Goiás, faz algumas considerações
pertinentes em relação ao trato e comercialização dos lotes por parte dos assentados,
afirmando:
Apesar de os assentados não receberem de imediato o título de
propriedade definitivo e estarem legalmente impedidos de negociar a
terra pelo prazo de dez anos, comercializa-se, com certa frequência, o
direito ao lote no assentamento à revelia do INCRA, dando origem a
um “mercado paralelo”. Curiosamente, este mercado conta com o aval
do INCRA, na medida em que o INCRA reconhece os direitos do
novo parceleiro. [...] Surpreendentemente, neste caso, é a própria
lógica de mercado que se rebela contra o espaço racionalizado por
meio da ação de certos sujeitos que rompem com a comunidade do
assentamento e optam por uma trajetória individual.
Com base na pesquisa de mestrado em Ciências em Desenvolvimento Agrícola,
intitulada Em terras (de) alguém - Estudo sobre as transformações no processo de
organização da produção de pequenos produtores num projeto de colonização, de Alencar
(1983, p. 18), conclui-se que não foi fácil, para as instituições envolvidas na execução do
Projeto de Colonização, conter a revolta de muitos desalojados, pois para eles a mudança para
as agrovilas de Serra do Ramalho significou também uma mudança de vida, de própositos, de
referenciais territoriais importantes.
A mudança de vida que significa esse Projeto, para cada produtor
desalojado com a construção da Barragem de Sobradinho não era
aceita passivamente, não tendo sido fácil para os técnicos da então
ANCAR/BA, hoje EMATER/BA, e do INCRA convencerem a eles de
que se tratava de uma mudança para melhor. Os problemas
43
institucionais de definição de local para o Projeto e de concorrência
para construção deixavam transparecer aos produtores a incerteza do
novo empreendimento. Como consequência dessas indefinições, a
transferência da população que se deveria iniciar entre outubro de
1975 e março de 1976 ficou prejudicada e somente a 28 de março de
1976 foram alocadas as primeiras trinta famílias.
De acordo com dados de relatórios do INCRA, entre os motivos apontados
oficialmente para a desistência de um número significativo de assentados, estavam: a perda de
parte da safra de 1977/78 em consequência das chuvas que inundavam as lavouras, a
existência de pragas, a não adaptação da população em um Projeto de Colonização com
caráter essencialmente agrícola, a não conclusão do eixo-par, dificultando a locomoção da
população, a precariedade da estrutura de serviços, e o encerramento da concessão do crédito
de implantação25, que era repassado pelo Banco do Brasil aos colonos.
Mas, não podemos deixar de evidenciar os motivos que realmente foram relevantes
para as desistências, na opinião dos colonos. Segundo eles, o que mais pesou na hora da
decisão foram a falta de condições materiais de sobrevivência, a subordinação ao modelo de
agrovila e política agrícola imposto pelo INCRA, além da água salobra e sem tratamento
disponível para o consumo, essas foram condições imprescindíveis para eles.
No que toca às famílias expropriadas de Sobradinho, essa questão de o Projeto de
Colonização ser essencialmente de caráter agrícola, e de ter sido organizado no modelo
lote/agrovila, separando o lote rural do lote urbano, gerou muito descontentamento e
reclamações entre eles. Segundo Estrela (op.cit., p. 160), isso ocorreu porque:
Em geral, o locus de morada dos beraderos estava situado nas áreas de
vazantes e, dependendo da estação, o agrupamento familiar se
deslocava em bloco para outros pontos da berada do Rio e até mesmo
para a caatinga bruta - no caso das enchentes altas. Contudo, o local de
produção e o local de moradia constituíam uma unidade indissociável;
o local da moradia podia mudar, mas ela era efetiva.
Sobre esse momento em que ocorreram muitas reclamações e desistências, o Sr.
Joaquim Lopes26 recorda-se de um vizinho que saiu às pressas da Agrovila 13. Segundo ele, o
homem estava desesperado com a realidade das agrovilas, sem dinheiro e desejando ir embora
25
De acordo com informações da Cartilha do INCRA, Vá viver melhor com sua família nas Agrovilas de Bom
Jesus da Lapa, o crédito de implantação correspondia a um salário pago ao colono a cada mês, desde sua
chegada até a primeira colheita, “Esse dinheiro será pago de volta ao INCRA, sem juros e a longo prazo”, p. 10.
26
Joaquim Lopes Neto, 64 anos, em entrevista realizada pela autora em 01 de maio de 2010, Agrovila 09.
44
com os filhos dali, deixando tudo para trás.
Eu tinha um vizim meu que me vendeu o quintal dele pra puder ir
embora, ele me pediu um dinheiro pra ele comer mais os filhos: „Você
me dá um dinheiro pra eu comer mais estes filho aqui, e você fica com
esse quintal de feijão?‟; aí eu fui e dei duzentos contos naquele tempo
era duzentos cruzeiros, fiquei sem o dinheiro da feira, mais peguei, o
homem desesperou-se pra ir embora.
Veem-se aqui, as muitas disparidades existentes nas condições de vida dos colonos que
residiam no Projeto de Colonização. O Sr. Joaquim Lopes é paraibano e migrou com o grupo
de famílias da Agrovila 13, em sua narrativa, conta sobre as condições de vida, as dificuldades
de adaptação que levaram muitas famílias a irem embora. Ele, assim como muitos dos que
vieram, contava com poucos recursos que trouxe da Paraíba; além de exercer a agricultura,
também criava gado. Isso explica também por que o Sr. Joaquim pôde ajudar a esse colono,
comprando o lote dele.
Os reflexos da não adaptação dos colonos ao Projeto de Colonização se evidenciaram
de várias maneiras; no trecho da narrativa citado se depreende que, no momento do desespero,
muitos deles criavam estratégias para conseguir partir com a família para outros lugares,
como que pressentindo que a vida ali poderia piorar, mesmo que isso significasse deixar para
trás os frutos do trabalho, como no caso do colono de quem fala o Sr. Joaquim Lopes, que
abandonou o seu lote já cultivado com feijão.
Assim, diante da exposição desses problemas e das desistências de alguns colonos, o
INCRA modificou a sua política, flexibilizando o Projeto de Colonização para famílias de
migrantes sem-terras de diversas regiões do Nordeste e Centro-Sul do país. Muitos vieram
porque, nas áreas onde havia conflitos agrários, o INCRA recomendava a vinda para as
agrovilas de Serra do Ramalho, e outros vieram porque souberam dessa flexibilização por
parte dos administradores.
Em relação a essa mudança de rumo na política do Projeto de assentamento, Alencar
(op.cit., p. 18), baseando-se em dados do INCRA, afirma:
Mesmo não havendo seleção para esses candidatos a colonos, porque
eram os desabrigados que precisavam ser realocados, houve uma
queda significativa de optantes e, já se registrava desistências. Com
isso, parte da capacidade instalada do Projeto ficou ociosa, e no final
de 1977 foi tomada a decisão de assentamento de famílias, agora
selecionadas, em outras regiões. O Projeto, criado especialmente para
os produtores cujas terras foram inundadas pela Barragem de
45
Sobradinho, até 1978 tinham apenas 36,5% de colonos com essa
origem, caindo esse percentual para 35,5% até julho de 1980.
Com relação ao processo de aquisição da terra no Projeto de Colonização, os lotes
foram repassados aos colonos, devidamente cadastrados, para que fossem pagos ao INCRA
em parcelas até a obtenção do título definitivo de posse da terra. Quando perguntado se
deveria ou não pagar pelo lote “doado” 27, o Sr. Miguel Félix28 relata:
Paga, a gente paga, após uns três, quatro ano, mais ou menos, vei uma
como uma taxa pra gente pagar, né, a gente ficou pagano naquela
época, a gente pagava parcelado, né.[...] Porque a gente antes de cinco
ano, eu, uns três anos mais ou menos, eu recebi o título provisório, em
cada agrovila foi premiado três pessoas, eu mesmo fui um. Eu recebi
um título provisório e após os dois anos eu recebi, a gente, todos nóis
recebemo os título definitivo e agora ali você pode registrar o título
como de fato o meu é registrado, você é dono, pode escriturar então,
como já tem muitas escrituras, e permanece seno o dono porque a
gente já tem, é registrado em cartório público.
A obtenção do título provisório da terra, assim como do título definitivo, gerava nos
colonos muitas expectativas, pois eles desejavam veementemente a chegada do dia em que
pudessem registrar em cartório que eram os donos da terra.
Nessa entrevista com o Sr. Miguel Félix29, pude notar o orgulho sentido por ele ao
relatar sobre sua vida camponesa, evidenciado neste trecho da narrativa: “Toda vida trabaiei
na agricultura. Nasci, como diz a história, e me criei nesse ramo. [risos] É meio fraco, mas...”;
suas lembranças das dificuldades pelas quais passou com a sua família, revelaram não só
sentimentos guardados, mas também, mostraram as múltiplas faces do cotidiano dessas
pessoas no Projeto.
Ao fazer uma avaliação dos problemas e dificuldades que marcaram a existência do
Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, o Sr. Miguel Félix argumentou ainda que esse
foi, antes de tudo, o resultado da falta de assistência do governo em olhar o lado dos
trabalhadores rurais. Para ele, a terra é sempre fértil, o que precisa é de bons projetos de
irrigação e de uma política agrícola que agregue o pequeno produtor, pois a política
empreendida pelo INCRA foi imposta aos colonos, não levando em conta a experiência de
27
O uso da palavra “doado” neste contexto se deve ao fato de esta refletir a maneira como muitos colonos se
referiram ao lote, talvez pelo preço mínimo que era cobrado para a sua aquisição.
28
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 12 de outubro de 2009, Agrovila 13.
29
Idem.
46
trabalho que esses indivíduos já possuíam. Essa consciência política e esse engajamento
demonstrados pelo Sr. Miguel é fruto do seu envolvimento com a comunidade, de sua
participação nas atividades da Igreja e associações de moradores da Agrovila 13.
De posse dos seus títulos definitivos das propriedades (ver fotografias dos
documentos), verifiquei que o lote rural custou ao Sr. Miguel Félix o valor de Cr$ 13.052,87
(treze mil e cinquenta e dois cruzeiros e oitenta e sete centavos), e o lote urbano no valor de
Cr$ 360,00 (trezentos e sessenta cruzeiros). Estes poderiam ser pagos à vista ou em parcelas,
conforme acordo feito entre o INCRA e o colono.
47
Ilustração 08: Título de Propriedade Rural.
Fonte: Fotografia realizada pela autora em trabalho de campo, 12 de outubro de 2009, Agrovila 13. Acervo particular.
48
Ilustração 09: Título de Propriedade Urbana.
Fonte: Fotografia realizada pela autora em trabalho de campo, em 12 de outubro de 2009, Agrovila 13. Acervo particular.
49
Para os primeiros assentados no Projeto de Colonização não foi difícil obter os
chamados Títulos Definitivos Rurais - (TDRs), pois a titulação dos lotes rurais e urbanos teve
início em 1980. Mas, com a nova realidade de ampliação do Projeto, começaram a surgir os
primeiros problemas em relação a isso, segundo relatório30 do INCRA de 1994.
No período de 1980 a 1984, a titulação já ultrapassava a meta inicial
prevista para o Projeto, que era atender a 4.000 (quatro mil)
beneficiários, porém, com a ampliação de novas agrovilas, essa
atividade ficou pendente de execução de várias tarefas para a sua
consolidação, principalmente pela falta de conclusão do plano de
parcelamento dessas novas agrovilas.
Toda a estrutura inicial do Projeto de Colonização foi se modificando, paulatinamente.
Primeiro, porque somente cerca de 1.400 famílias vieram de Sobradinho e foram assentadas
nas agrovilas já construídas e, segundo, porque, diante disso, o INCRA acabou abrindo o
Projeto de Colonização para famílias de outras regiões do Brasil, em sua maioria famílias de
sem-terras, ou, conforme definições do Instituto, eram os “novos beneficiários da Reforma
Agrária, que vinham à procura da nova Fronteira Agrícola”. Ainda conforme o relatório31:
No ano de 1977, o fluxo de transferência das famílias oriundas da área
da barragem, reduziu-se a zero. As transferências de famílias da região
da área de Sobradinho atingiram apenas 1.402 famílias. Destas,
desistiram 599, fator diretamente responsável pelo não atingimento
das metas estabelecidas. As causas principais foram: a ausência de
critérios na seleção das famílias, sendo muitas delas, assentadas sem
nenhuma tradição agrícola, costumes e padrões culturais, e ajuda
assistencial e financeira por órgãos e políticos contribuindo para a
resistência contrária à transferência das famílias para o PEC/SR.
De acordo com o relatório32 da CPT, Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus
da Lapa, ocorreram várias reuniões do Grupo Interministerial33 do PEC Serra do Ramalho, e
que foram decisivas na resolução dessa ampliação do Projeto de Colonização, que passou a
atender aos migrantes de outros estados brasileiros.
30
Relatório Final dos Trabalhos para Emancipação do Projeto Especial de Colonização Serra do RamalhoPEC/SR, Brasília, 1994, p. 16.
31
Idem, p. 20.
32
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item: “Um
novo papel para as agrovilas.”, p. 27.
33
Este grupo era composto por representantes dos Ministérios das Minas e Energia, do Interior, da Agricultura,
da SEPLAN, da CHESF, e do INCRA.
50
Não é mais a área onde se despeja a população desapropriada da
região de Sobradinho. É o projeto de colonização que recebe pessoas
de todos os lugares do país onde há conflitos de terra ou
desapropriação. Esta afirmação é feita em outras palavras, pelo
INCRA que diz que “a transferência está sendo limitada
exclusivamente ao atendimento dos egressos de focos de tensão”.
Essa suposta afirmação do INCRA de que os camponeses vindos de áreas com
conflitos agrários teriam prioridade no assentamento, é reveladora de um novo critério de
seleção para um migrante ser um colono do Projeto de Colonização. Há informações de que,
em alguns casos, o INCRA chegou a reservar agrovilas para determinados grupos de
migrantes.
Exemplos disso são o caso da Agrovila 15, que foi reservada para as famílias que
vieram de Itaipu, e também o da Agrovila 16, que, segundo o relatório34 da CPT, foi liberada
para seis famílias paraibanas que trabalhavam em fazendas pertencentes aos familiares do
executor do Projeto de Colonização, o Sr. Boileau Dantas Wanderley Filho35.
A agrovila 16 foi liberada para 6 famílias da Paraíba. [...] Curioso é
que todas essas famílias trabalhavam em fazendas de familiares do
Executor do Projeto, Dr. Boileau Vanderley (sic). Os antigos patrões
desses colonos eram os senhores Severino Bezerra Vanderley,
Neomarco Vanderley, Otacílio Vanderley e Antônio Bezerra
Vanderley, proprietários da fazenda “Sítio Caicu”, e o Senhor Flávio
Gomes Vanderley, proprietário da Fazenda Castelo.
Esses dados são bastante relevantes para a compreensão de como o Projeto de
Colonização acabou se tornando uma “válvula de escape” para minorar problemas ligados aos
conflitos de terras ocorridos em diversos estados do Brasil, envolvendo expulsões de
trabalhadores rurais decorrentes da ação de grileiros e de empresas capitalistas.
Convém trazer, neste momento, as palavras de Guimarães Neto (op.cit., p. 84): “como
no Estado Novo, os projetos de colonização planejados após a década de 1960, sob o regime
militar, ainda que sob condições históricas diferentes, visavam como estratégia o controle dos
conflitos no campo”. Dessa forma, “o Projeto Especial de Colonização da Serra do Ramalho
34
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item:
“Porque espalharam a notícia que a 16 seria liberada?”, p.53.
35
Esta não foi a primeira experiência dele à frente da organização de um projeto de colonização; na verdade, já
havia participado de outros projetos, como, por exemplo, o de Buriticupu no Maranhão, em 1973, uma parceria
do INCRA com a Companhia Maranhense de Colonização (COMARCO).
51
transformou-se num instrumento voltado para atender as necessidades da expansão do
capitalismo no país, seja pela construção de barragens, seja pela implantação de grandes
projetos agropecuários.” 36
Não sabemos se houve ou não envolvimento do Sr. Boileau Dantas Wanderley Filho
com as famílias de agregados das fazendas de seus familiares, citadas no relatório da CPT.
Não encontramos outros documentos, além do referido relatório, que mencionem essas
relações estabelecidas entre o executor e as famílias de colonos migrantes da Paraíba. Nas
entrevistas, muitos colonos defenderam as ações do INCRA na administração do Projeto,
negando a possibilidade do referido executor ter usado de sua influência para priorizar o
assentamento de determinadas famílias em algumas agrovilas, atuando em prol de
favorecimentos ou proteção de grupos.
Mas, é necessário evidenciar, ainda com base nessas entrevistas de colonos, que eles
também afirmam que já conheciam o Sr. Boileau desde a Paraíba, e que o fato de serem
conterrâneos facilitou bastante a aquisição das terras nas agrovilas, além de terem o apoio do
Sr. Boileau na vinda para o Projeto de Colonização.
Nesse sentido, o Sr. Francisco Soares37, que também é paraibano, deixa a entender, em
sua narrativa, que tão importante quanto a existência de parentes morando nas agrovilas, o
fato de ele já conhecer o executor influenciou na sua decisão de migrar.
No meu caso, eu emigrei pra 09 porque tinha outra família e o
fundador do Projeto também era meu conhecido, e com isso, fez com
que eu ficasse aqui, né. Já conhecia ele, então com isso, nós tivemo
mais facilidade, mais uma coisa de vim pra cá, né, e aí graças a Deus
me dei bem aqui e tô até hoje, acho que num vô sair mais.
Controvérsias à parte, com ou sem a influência do executor, o Projeto de Colonização
seguiu recebendo outras famílias de migrantes provenientes de outras regiões do país a partir
de 1977, movidas pelos mais variados interesses, fazendo do lugar um verdadeiro caldeirão
com povos de culturas diversificadas convivendo num mesmo espaço.
Em relação às causas e aos motivos pelos quais essas famílias migraram, eles dizem
respeito sempre à questão da terra, seja no caso dos expropriados que foram forçados a
deixarem suas terras em prol de interesses do Estado, seja no caso dos sem-terras, que foram
expulsos de fazendas no interior do Nordeste, e aqueles que nem terra tinham para trabalhar.
36
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item:
“Democracia é esquecida”, p. 10.
37
Francisco Soares de Souza, 60 anos, em entrevista realizada pela autora em 17 de maio de 2010, Agrovila 09.
52
Em entrevistas com colonos38 na Agrovila 13, no primeiro dia de contato com eles,
todos apontaram para um mesmo motivo que os trouxe para o Projeto de Colonização.
Segundo eles afirmaram, ficaram sabendo das agrovilas por um parente, que relatou sobre as
condições de obtenção de terras e a ajuda do INCRA aos colonos, e tiveram curiosidade em
conhecer o local. Em visita à região, gostaram do que viram e resolveram se mudar com o
restante da família. Dessa forma, há a formação de redes migratórias, onde a importância das
relações primárias entre os membros do grupo, envolvendo a questão da disseminação e
confiabilidade das informações são relevantes para a decisão de migrar.
Numa outra ocasião em que estive na Agrovila 13, enquanto almoçava na casa de um
dos colonos, a sua esposa se aproximou e começou a narrar a respeito da vida que levavam
em sua terra natal e de como tinha sido a vinda deles para o Projeto de Colonização. Ouvi-a
prontamente. Tensa, vez ou outra, ela olhava para a porta do quarto para ver se o esposo já
tinha despertado do cochilo. Percebi, então, o seu desejo de não ser vista por ele no momento
em que narrava suas histórias de vida.
A depoente começou narrando sobre as dificuldades que passava com sua família na
cidade de origem, contudo, na sua opinião, pior foi terem vindo todos para Serra do Ramalho.
Afirmou ter vindo contrariada e que chorou muito nos primeiros dias em que chegou às
agrovilas, sua revolta era porque eles tiveram que sair às pressas de onde moravam por causa
das ameaças de morte que seu esposo vinha sofrendo, o que os levou a vender os bens que
tinham a baixo preço. As ameaças começaram depois que ele se envolveu numa briga para
defender o primo, que também veio para o Projeto de Colonização na época; a partir de então,
a sua família também ficou sendo alvo de perseguições, inclusive o seu irmão morreu vítima
de uma emboscada. A morte do irmão foi o estopim para que eles se desfizessem de suas
terras e de seus bens e se mudassem para as agrovilas. O acontecimento, até hoje, não é muito
comentado entre eles, o que não anula a sua existência na memória dos que vivenciaram essa
experiência mais de perto.
Neste caso, verificamos que a motivação para a migração não foi a questão dos
conflitos de terras, mas a existência de conflitos familiares, criando rivalidades, rixas pessoais
e desavenças entre famílias, ameaçando qualquer tentativa de se ter uma vida tranquila.
A propósito, Durham (op.cit., p. 112-113) nos chama a atenção em relação aos motivos
que levam à migração. Convém ressaltar que a autora se refere à migração rural-urbana, tema
de seus estudos, mas que se aplica também para o caso da migração campo-campo, que marca
38
Minha opção em não citar os nomes, aqui, se deve ao fato de ser uma questão delicada, e em respeito à família
decidi preservar a identidade das pessoas envolvidas.
53
o processo migratório do Projeto de Colonização Serra do Ramalho. Segundo a autora, é
comum ouvir dos trabalhadores que eles migraram porque queriam “melhorar de vida”, sem,
contudo, conseguir precisar mais detidamente no que consistem as possibilidades dessa
melhoria de vida pretendida por eles. Muitas vezes, estas semelhanças presentes nas
narrativas sobre a explicação dos motivos que os levaram à migração, constituem um
elemento significativo para o entendimento da representação que o trabalhador faz de si
mesmo, da sua vida e da consciência social que tem. Assim, ao elaborar essa representação,
eles recriam aspectos da realidade vivida no campo, onde situações de dificuldades, por
exemplo, passam a ser vistas como permanentes. A migração seria, então, uma resposta a isso.
Nota-se que a imigração não decorre, em geral, de uma situação
anormal de fome ou miséria, desencadeada por calamidades naturais.
Ao contrário, a imigração aparece como resposta a condições normais
de existência. O trabalhador abandona a zona rural quando percebe
que “não pode melhorar de vida”, isto é, que a sua miséria é uma
condição permanente. [...] Há, evidentemente, inúmeros fatores que
influem na tomada de decisão: a perda da propriedade, a morte de um
membro da família e consequentemente desorganização do grupo
doméstico, a insistência de um parente que “está bem” em outro lugar.
Mas, fundamentalmente, a emigração decorre de uma situação
desfavorável que é vista como permanente.
Diversas são as causas e os motivos pelos quais famílias originárias de vários estados
brasileiros migraram para as agrovilas de Serra do Ramalho; vão desde o desemprego, a
oportunidade de melhorar as condições de vida, até a expulsão da terra de trabalho por parte
do proprietário. E no caso citado, vê-se que motivos de ordem mais pessoal, como intrigas,
ameaças e até mortes, também constituem fatores determinantes para a partida desses
indivíduos rumo a tantos outros destinos.
A migração, mesmo que de diferentes lugares, é uma situação comum a todos os
colonos, uma característica que os agrega. A chegada dos vários grupos de migrantes fez de
Serra do Ramalho um celeiro de diferentes culturas, um espaço que abriga uma população
assentada sobre uma multiplicidade de experiências e de relações expressas na vida que se
desenrola no cotidiano.
54
2.2 Proveniências dos colonos e as formas de espacialização destes no
PEC/SR.
No projeto original, estava estabelecida a construção de somente dezesseis agrovilas
para formação do assentamento com as famílias desapropriadas de Sobradinho.
Posteriormente, com a desistência de boa parte desses assentados, e com a abertura do Projeto
de Colonização para migrantes oriundos de regiões onde havia conflitos de terra, é que foram
construídas as demais agrovilas visando ao atendimento do grande número de pessoas que
chegavam ao local.
Registra-se a vinda de famílias migrantes de diversos estados do Brasil: Goiás, Minas
Gerais, Piauí, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Mato Grosso do Sul, Rio
Grande do Sul, além de vários municípios baianos, Candiba, Riacho de Santana, Igaporã,
Guanambi, Brumado e outros. Os migrantes que chegavam à Serra do Ramalho na época
eram sem-terras, entre eles havia posseiros que tiveram suas terras griladas, agregados e
pequenos proprietários, que se desfizeram de suas terras ou foram expulsos pelos patrões.
Referi-me aos migrantes como sem-terra com base na denominação desse grupo social
que nos é dada por Martins (1993, p.137, 138). Segundo o autor, podemos distinguir dois
grandes grupos de sem-terra:
[...] um, mais antigo, resultante de construções de barragens nos
grandes rios, como a de Sobradinho e a de Itaparica, no rio São
Francisco, no Nordeste. Essas barragens têm sido construídas por
empresas governamentais, já que o governo tem praticamente o
monopólio da produção de energia elétrica no país. Nesses lugares, os
trabalhadores em conflito com as empresas oficiais geralmente
posseiros, vivendo da agricultura e da pesca na beira do rio, praticando
uma agricultura de vazante, agricultura que aproveita as terras
fertilizadas pelo rio e que ficam a descoberto uma parte do ano. Têm
sido expulsos, já que as várzeas submergem, levados para lugares
distantes da água. Tais trabalhadores recebem indenizações
insuficientes pelas benfeitorias que tinham sobre a terra - roças,
fruteiras, cercados, casas. [...] A esse grupo, soma-se o número
crescente de lavradores sem terra própria para trabalhar, como os
meeiros, parceiros, pequenos arrendatários, filhos de pequenos
proprietários cujas terras são insuficientes para famílias extensas,
como geralmente são as dos colonos do sul. Eles constituem o outro
grupo de sem-terra.
Desses vários grupos de migrantes, uns vieram pelas notícias que lhes davam sobre as
agrovilas de Serra do Ramalho, alguém que visitava a área e sabia da proposta de “apoio” do
55
INCRA aos colonos; foi o caso do Sr. Miguel Félix39 e seus companheiros, eles vieram porque
souberam, por meio de um parente mato-grossense, que já estava assentado no Projeto e foi
visitá-los, contando que era um bom lugar para se viver. Inicialmente, eles vieram só conhecer
e decidiram ficar, fizeram as inscrições junto ao INCRA e depois foram buscar as famílias.
Outros ainda souberam das agrovilas através de meios de comunicação como o rádio,
por exemplo; foi o caso da família de D. Dejanira dos Santos40, moradora da Agrovila 15. Ela
migrou com sua família de Malhada de Pedra na Bahia, vieram para trabalhar em firmas que
atuavam na construção das agrovilas.
A gente ficou sabeno pela aquele pograma de Zé Beto, né, que ele
pegava no rádio e pedia pedreiro, carpinteiro pra trabalhar na região
de Bom Jesus da Lapa, beira do São Francisco. Aí meu marido era
carpinteiro, meu filho, e depois vei. Vei e conseguiu trabalhar, depois
de uns seis mês a família dele vei. Primeiramente moremo na Agrovila
05, na 08 tava construino em 76, e quando foi em 78 a gente já mudou
pr‟aqui de novo e aqui já ficou.
O grupo familiar formado por paraibanos que chegou a Serra do Ramalho em 1980 foi
considerável. Segundo o Sr. Miguel Félix, somente para a Agrovila 13 “foi doze família, tudo
família mesmo, de primo a irmão e, depois foi que vieram chegano os outros. Chegou aí um
ponto, daí a gente fez, como diz um orçamento, um balanço aí, só da família, só paraibano,
deu trezentos e poucas pessoas aqui”.41
Sobre esse aspecto da migração, Santos (op.cit., p. 92), em um estudo sobre migrantes
nordestinos em Rondônia nos anos 1970 a 1995, observou que a partida em grupo é comum
para áreas ainda em construção, o que se confirmou no caso dessas famílias de colonos
paraibanos, pois a convivência entre os familiares amenizou as dificuldades vividas nos
primeiros dias nas agrovilas, quando estas ainda não estavam aptas para serem habitadas:
A partida em grupos é um aspecto que nos chama a atenção nas
migrações rurais, ou seja, as migrações coletivas, que passam a se
constituir como uma forma de organização dos trabalhadores, um
modo de se sentirem seguros, de manterem laços de solidariedade. A
migração para áreas nunca antes habitadas, onde tudo está para ser
feito, tendo os colonos se instalado como pioneiros, exige que assim
se organizem os agricultores.
39
Miguel Félix da Silva, 70 anos, entrevista realizada pela autora em 12 de outubro de 2009, Agrovila 13.
Dejanira dos Santos Coqueiro, 76 anos, entrevista realizada pela autora em 12 de dezembro de 2010, Agrovila
15.
41
Miguel Félix da Silva, 70 anos, entrevista realizada pela autora em 12 de outubro de 2009, Agrovila 13.
40
56
De acordo com as narrativas e os dados do Planejamento Paroquial e Comunitário
realizado pela Paróquia São José Operário no ano de 2005, as primeiras doze famílias vindas
da Paraíba que se assentaram na Agrovila 13 tinham como “chefes” os senhores: João Batista
Félix42, Miguel Félix da Silva, Brás Antônio da Silva, João Félix Neves, Alcebíades Félix,
José Batista, Joaquim Manoel, Jonas Nunes, Sebastião Inácio, Antônio Joaquim, José
Antônio, Agamenor Antonio. Dos colonos aqui apresentados, dois já faleceram, mas, seus
filhos ainda moram na Agrovila 13, quatro migraram com as famílias para São Paulo, e seis
continuam morando na Agrovila 13.
Além da Agrovila 13, o grupo de paraibanos também se encontra alocado em outras
agrovilas, como na Agrovila 09, por exemplo. Nessa localidade, sede político-administrativa
do Projeto de Colonização, as ruas receberam nomes de estados (Rua Minas Gerais, Rua Mato
Grosso, Rua Paraná, Rua Bahia, etc.), por abrigarem colonos migrantes dos respectivos
estados. Uma das primeiras ruas da Agrovila 09 chama-se Rua Paraíba, não por acaso,
habitada por uma grande quantidade de famílias paraibanas.
Os motivos que trouxeram essas levas de migrantes para o Projeto de Colonização
significaram, em muitos casos, a garantia da obtenção de trabalho. Assim aconteceu com o Sr.
Francisco Chagas43, professor de geografia, que migrou, em 31 de dezembro de 1981, da
Paraíba para a Agrovila 09, onde mora até hoje. Ele me concedeu uma longa e rica entrevista,
onde ele relatou sobre a formação e desenvolvimento do assentamento até a sua emancipação,
enfatizando a atuação do INCRA e dos colonos no processo.
O Sr. Francisco Chagas, além de educador, é ambientalista, conhece muito bem a
região, o povo e sua história. Além disso, é muito interessado em desenvolver projetos que
ajudem na recuperação das florestas nativas, tão degradadas pela ação do homem nesses
muitos anos de ocupação das terras no município. Em suas memórias, lembra-se, emocionado,
de como tudo aconteceu, como acabou conhecendo as agrovilas.
Na verdade é... Eu terminei a minha faculdade lá e a dificuldade no
sertão é grande, a gente não tinha condições de arrumar um trabalho, a
gente dependia, digamos assim, do envolvimento ou da simpatia de
alguns políticos locais, né, que isso não foge à regra, continua da
mesma forma de trinta anos atrás. E aí não tinha como sobreviver, era
casado recente, tinha uma esposa, uma filha, aí eu tomei conhecimento
desse projeto especial de colonização chamado Serra do Ramalho
42
Na Paraíba, sua terra natal, o Sr. João Batista Félix se dedicou à política, sendo vereador pelo partido político
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), de 1966 a 1970.
43
Francisco Chagas dos Santos, 51 anos, em entrevista realizada pela autora em 15 de agosto de 2010, Agrovila
09.
57
quando já tinha muitos paraibanos aqui, inclusive eu tinha um excunhado que morava aqui. Ele veio pra cá em 79, aí ele falou que
tinha um projeto na Bahia que era muito bom e que eu ia gostar, da
situação, do espaço, né. Nós temos aqui uma floresta, o Rio São
Francisco, e a gente sertanejo quando vê água, mata, a gente fica
deslumbrado. Aí eu peguei e vim pra cá, a intenção nem era ficar aqui,
era parar aqui e seguir pra Rondônia pra trabalhar. Mas quando eu
cheguei aqui no final de ano, tava chovendo, e esse tempo era bom
aqui de inverno e eu fiquei encantado, é tanto que eu passei o mês de
janeiro de 82 todo, caminhando daqui pra beira do Rio, era no tempo
que o São Francisco era o São Francisco, não tava na situação que se
encontra hoje, né. Eu vim primeiro, aí no mês de maio de 82 minha
esposa vei pra cá.
Havia outras maneiras de se chegar ao Projeto de Colonização Serra do Ramalho que
não através da migração, em busca de terras ou melhoria de vida. Muitas pessoas vieram
transferidas por empresas contratadas para trabalharem na construção das Agrovilas. Foi
exatamente o que aconteceu com o Sr. Bernardo Gomes da Silva44, que chegou em maio de
1976, vindo do Piauí, sua terra natal. Não sabia ele que a vida ali lhe preparava uma surpresa,
o encontro com D. Helena da Silva, sua futura esposa. Ela tinha migrado no mesmo ano, de
Casa Nova, onde morava com os pais. Depois de casado, ele fixou residência na Agrovila 09 e
não voltou mais para o Piauí, adaptando-se muito bem ao novo espaço. Em 1981, entrou para
a equipe do INCRA, onde trabalha até hoje.
A ocupação das agrovilas se dava na proporção em que elas iam ficando prontas e pela
ordem de inscrição das famílias interessadas em ocupá-las. Isso explica em parte – já que há
contradições nas afirmações dos atores envolvidos em relação à forma de distribuição dessas
famílias –, porque as pessoas de Sobradinho se concentraram mais nas primeiras agrovilas, e
também por que as doze famílias vindas da Paraíba, numa única leva, foram assentadas na
Agrovila 13. Digo em parte, porque o fato de o assentamento das famílias de Sobradinho ter
se concentrado mais nas Agrovilas 01, 03, 05 e 07, se deve, provavelmente, à proximidade
destas em relação ao Rio São Francisco.
Em 1983, de acordo com dados do Departamento de Projetos e Operações do INCRA,
com exceção das Agrovilas 20, 21, 22 e 23, as últimas construídas, todas as outras contavam
com 4.899 famílias já assentadas. Restavam ainda cerca de 1. 075 famílias inscritas que
seriam distribuídas nas demais agrovilas.
Mas, é importante lembrar que as versões dos colonos, do INCRA e da CPT se
desencontram quanto a essa questão de como era feita a escolha das agrovilas e das moradias
44
Bernardo Gomes da Silva, 56 anos, em entrevista realizada pela autora em 22 de setembro de 2008, Agrovila
09.
58
e, consequentemente, da distribuição das famílias nesses espaços. Num trecho do relatório45
da CPT de 1982, lemos o seguinte:
O INCRA deu aos pequenos proprietários, posseiros e agregados, o
direito de ficar nas agrovilas, mas não respeitou a escolha deles, que
se inscreveram para morar na 15 e 16, que ficam próximas de suas
áreas de origem. O INCRA não atendeu a essa reivindicação e colocou
na agrovila 15 o pessoal de Itaipu, e guardou a 16 para o pessoal de
Ronda Alta, no Rio Grande do Sul.
Segundo o superintendente regional do INCRA em Bom Jesus da Lapa, o Sr.
Hamilton Félix dos Santos, eram os colonos quem escolhiam para qual agrovila eles queriam
se inscrever. Já entre os colonos, esta questão divide opiniões, uns admitem que tinham
autonomia para escolher onde queriam morar, outros afirmam que tudo era decidido pela
administração do Projeto de Colonização.
Questionada se havia ou não essa escolha por parte dos colonos, D. Maria Ivonete 46
respondeu: “Não, acho que já era marcado pelo INCRA. Mas desde lá da visita na 04 que eles
[referindo-se ao Sr. Miguel Félix e aos outros chefes das famílias paraibanas] preferiram essa,
a 13, que eles vieram olhar e gostaram daqui”. Afirma também que, se houvesse a preferência
por determinada casa e a família pedisse ao órgão responsável, era permitido que essa família
ocupasse o imóvel desejado.
Deixava. Mas era o INCRA que marcava porque Migué mesmo queria
essa casa da esquina e já o irmão dele não aceitou. „Não, eu quero a da
esquina‟, que é o cumpade Alcebíades que tá em São Paulo, aí depois
quando ele foi embora pra São Paulo nóis compramo a casa. Foi... Aí
depois cumpade Batista construiu a dele aí entre as duas casas, que ele
num tinha mais idade de pegar a casa do INCRA.
No trecho da narrativa, D. Maria Ivonete afirma que tudo era escolhido pela
administração do Projeto, ao mesmo tempo, confirma que os colonos tinham liberdade de
escolha. Essas contradições presentes revelam os processos seletivos pelos quais a memória
pode se submeter ao rememorar eventos passados, porque, conforme Portelli (2005, p. 44):
“As narrativas são o território da confusão, da ambigüidade, do múltiplo e da desordem; são,
em suma, o território de como estão realmente as coisas”. Para além da questão teórica, as
contradições revelam também a falta de critérios na distribuição das famílias pelas agrovilas
45
Item: “Parceleiros do Estado”, p. 17.
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
46
59
e, ainda, a não preocupação do INCRA em esclarecer aos colonos o funcionamento dos
mecanismos de organização utilizados por sua equipe administrativa.
Ainda em relação ao procedimento da distribuição dos lotes e casas, assim como o de
recepção que o INCRA dispensava a essas famílias recém-chegadas, houve muitas mudanças,
principalmente em relação aos primeiros assentados, os expropriados de Sobradinho, pois, a
partir do momento em que houve a abertura do Projeto de Colonização aos “egressos de focos
de tensão” 47, as transformações ocorridas fugiam por completo do controle da administração;
refiro-me à necessidade de construção de novas agrovilas e à comercialização de lotes e
outros imóveis entre os colonos, sem prestar contas ao órgão responsável. Com isso, os
poucos benefícios concedidos aos primeiros assentados foram extintos.
Ficou perceptível, nas falas dos entrevistados, que eles vieram na esperança de ter os
mesmos benefícios que tiveram os primeiros assentados do Projeto de Colonização, como a
ajuda de custo para as famílias até a instalação destas na área, maior facilidade na concessão
do crédito agrícola, o desmatamento de dois dos vinte hectares do lote rural e o fornecimento
de alimentação nos refeitórios para as famílias recém-chegadas.
Importante ressaltar que, a população de Sobradinho teve, sim, benefícios, mas tais
benefícios não eram para todos, somente uma pequena parcela das famílias expropriadas
usufruíram deles, o que explica as muitas reclamações entre os colonos oriundos dessa região.
Dessa forma, “embora o Projeto de Colonização de Serra do Ramalho tivesse caráter
especial, os deslocados compulsórios não foram dispensados do pagamento das benfeitorias
usufruídas” (ESTRELA, op.cit., p. 150).
Na memória de muitos colonos, ainda permanece certa indignação por não terem tido
o “acompanhamento” e ajuda do INCRA para a viagem e até se organizarem em suas novas
instalações. Vejamos o que relata o Sr. Francisco Soares48 sobre essa questão:
As pessoas que foram bem privilegiada, esses foi acima de tudo, foi as
pessoas da desapropriação da barrage de Sobradinho e o outro que
vieram do Mato Grosso que foi outra desapropriação lá, né, com a
inundação o governo deu toda assistência. À gente deu assistência,
mas foi bem mais pouca, nós não tivemo salário, num tivemo mais
terra desmatada como eles tiveram. Existia uma equipe para receber
essas pessoas, outras pessoas que eram da Barrage, já foram
desapropriada, eles tinha o acompanhamento, vinha com todas as
despesas paga por a equipe do INCRA. No meu caso, eu num fui
assim, eu num tive acompanhamento, mas fui bem recebido quando
47
Maneira pela qual o INCRA se refere nos relatórios aos indivíduos vindos de áreas onde havia os conflitos de
terras e desapropriações.
48
Francisco Soares de Souza, 60 anos, entrevista realizada pela autora em 17 de maio de 2010, Agrovila 09.
60
cheguei aqui na época, né, viemo em três famílias aí já tinha uma casa
pronta esperando pela gente, e daí dentro de trinta dias nós já fiquemo
todo mundo em suas casas, né, com suas propriedades.49 As agrovilas
e as casas, isso era escolhido pelo INCRA, né. Mas, como a Agrovila
13, por exemplo, foi a agrovila que chegou, as primeiras famílias se
assentaram na Agrovila 13 foram paraibanos, isso fizeram com que as
outra famílias emigrasse pra perto daquelas que já eram conhecida lá.
O Sr. Francisco Soares50 faz referência à chamada “equipe social”, grupo formado por
assistentes sociais responsáveis pelo acompanhamento das famílias vindas de Sobradinho. Na
verdade, essa equipe atuou no convencimento dos expropriados, buscando “cooptar todas as
pessoas que, de uma forma ou de outra, pudessem influenciar os atingidos, no sentido de
aceitar a opção Serra do Ramalho” (ESTRELA, op.cit., p. 126). Provavelmente, esta deve ter
sido a razão para o tratamento e os serviços prestados aos primeiros assentados terem sido
diferentes dos dispensados aos colonos que chegaram a partir de 1977, já que a não
desistência das famílias expropriadas de morar nas agrovilas significava o sucesso do Projeto
de assentamento.
Esse “imaginário” que foi criado em torno do lugar de destino, de como seria a vida
deles nas agrovilas resultou, sobretudo, da forma como a equipe do INCRA usou de
propagandas para atrair pessoas para se cadastrarem no Projeto de Colonização, criando
representações que não correspondiam à realidade. Em relação às promessas dos benefícios
que os colonos teriam no assentamento, consta no relatório51 da CPT de 1982:
Prometiam tudo. Os colonos tinham assistência médica, financiamento
do Banco do Brasil durante um ano, as mulheres teriam trabalho,
aprenderiam corte costura, artesanato, tapeçaria, todas as agrovilas
teriam água, luz, cooperativa, assistência técnica da EMATERBA,
transporte, estradas, todos os colonos teriam casa, lote rural com 20
hectares, o INCRA desmataria 2 hectares de cada lote, todas as
agrovilas teriam postos da COBAL, salão social, igreja, no projeto
teria uma área de irrigação para ser utilizada coletivamente, os
moradores teriam área para comércio, além de outras vantagens.
Essas benfeitorias foram implantadas no Projeto de Colonização, só que de forma
lenta e desarticulada, expondo os colonos aos mais diversos tipos de dificuldades, a exemplo
49
Nesse trecho da entrevista, o Sr. Francisco Soares de Souza faz referência a duas famílias que vieram com ele
na mesma viagem, a do Sr. Eriberto, casado com uma funcionária do INCRA e que hoje mora em Goiânia-Go, e
a do Sr. Natércio, que também migrou para Brasília-DF.
50
Francisco Soares de Souza, 60 anos, entrevista realizada pela autora em 17 de maio de 2010, Agrovila 09.
51
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item: “A
barragem já era de concreto e as agrovilas eram de papel”, p. 21.
61
da espera pela liberação dos créditos agrícolas fornecidos pelo Banco do Brasil, créditos que,
na maioria das vezes, eram liberados depois que já havia passado a época do plantio,
comprometendo a sobrevivência de famílias que viviam, diretamente, dessa produção.
Um exemplo de como o INCRA apostou alto na publicidade para atrair mais famílias
para o Projeto de assentamento, foi a criação da cartilha “Vá viver melhor com sua família
nas agrovilas em Bom Jesus da Lapa” 52, com vasta ilustração, contendo fotografias das casas
de colonos, roça com plantação de mandioca, alunos em sala de aula, mulheres lavando
roupas em lavanderias, mutirões cultivando hortas coletivas, feira popular de produtores
rurais, crianças jogando bola, enfim, cenas que apresentavam aspectos da vida do homem do
campo, em completa harmonia social. Além disso, continha esclarecimentos sobre as
condições e as exigências que deveriam ser observadas e cumpridas pelo trabalhador que
almejasse ser um colono.
Essa cartilha se destinava, principalmente, às famílias expropriadas de Sobradinho e
tinha como finalidade ressaltar as vantagens de se viver nas agrovilas, escamoteando os
muitos problemas existentes. Com linguagem simples e argumentos bem articulados, a
cartilha objetivava o convencimento das famílias, com frases como esta: “O Projeto de
Colonização Serra do Ramalho (as agrovilas de Bom Jesus da Lapa) espera você e sua
família. Lá, você vai continuar a ter casa, terra, as criações, a bodega e tudo o que precisa para
viver bem.”
As promessas e as garantias para “viver bem” nas agrovilas repercutiram em lugares
distantes. D. Maria Pereira53, paraibana, depois de ter se casado, resolveu tentar a sorte com o
marido e dois dos seus seis filhos no Mato Grosso do Sul, permaneceram lá por um ano e seis
meses. De lá, tomaram conhecimento da existência das agrovilas de Serra do Ramalho e
migraram na esperança de conseguirem um pedaço de terra para o trabalho e a moradia,
chegando à Agrovila 01 em 1979. Em 1992, foram morar na Agrovila 13.
Nóis viemo proque nóis saimo... que eu era paraibana, saí da Paraíba
fui pro Mato Grosso do Sul. Aí chegamo lá ficamo morando na
Fazenda, moremo um ano e seis mêis, aí o fazendeiro queria
desocupar a fazenda pra criar gado. Aí nóis fizemo a inscrição lá e
viemo aqui pro Projeto, trazido pelo Incra, viemo de ônibus trazido
pelo Incra.
52
Acervo da Comissão Pastoral da Terra de Bom Jesus da Lapa.
Maria Pereira da Silva, 73 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
53
62
Segundo o relatório da CPT, os migrantes que “vieram do Mato Grosso do Sul eram
posseiros e pequenos proprietários expulsos das terras nas quais trabalhavam pelos grandes
projetos que se implantaram na região”
54
. Nesse sentido, a história de vida de D. Maria
Pereira é significativa, pois ela teve que se mudar do Mato Grosso do Sul com a sua família
porque o dono da fazenda pediu que eles desocupassem a área para a prática da pecuária no
local. Assim, o Projeto de Colonização se firmou como a única saída para eles, além de
representar a possibilidade de realizar o sonho de ter a terra própria.
D. Maria Pereira55 é um exemplo das chamadas “migrações repetidas”, ou seja,
movimentos onde as populações que se deslocam nem sempre retornam aos seus lugares de
origem, mas, no percurso do deslocamento, migram rumo a outras direções. Esta é uma
característica que tem marcado os fluxos migratórios internos da segunda metade do século
XX no Brasil, a partir da década de 1970. Esses múltiplos deslocamentos permitem que esses
migrantes vivenciem diferentes experiências de vida, fazendo da instabilidade uma
companheira constante.
Menezes (op.cit., p. 451) ressalta que, diferentemente das migrações ocorridas nas
décadas anteriores, 1950 e 1960, quando os fluxos eram bem mais definidos em relação aos
lugares de origem e de destino dessas populações, a partir de 1970 começa a haver um
“crescimento da migração de retorno, que, na maioria das vezes, não se finaliza no retorno à
área de origem, mas se prolonga em outras etapas e/ou movimentos migratórios”.
Vale ressaltar, também, que as visões dos colonos em relação ao Projeto de Colonização
são diferentes. Para a população de Sobradinho, vítima de um processo de desapropriação, a
vinda para as Agrovilas trouxe muitos problemas e sofrimentos. Portanto, esses colonos não
compartilhavam a mesma opinião de quem viveu processos de expulsão, como ocorreu com a
família de D. Maria Pereira, que teve de deixar a fazenda onde trabalhavam.
Depreende-se da fala de D. Maria Pereira que sua família não foi a única que partiu
para as agrovilas no período. Outras famílias que também trabalhavam na fazenda vieram, ela
não sabe ao certo, mas “[...] foi três viagem que o INCRA deu, e duas viagem foi com seis
ônibus, vei tudo cheio”.56 Narrando sobre sua vida cotidiana no Mato Grosso do Sul e sobre a
saída de sua família da fazenda, ela afirma que:
54
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item:
“Democracia é esquecida”, p. 10.
55
Maria Pereira da Silva, 73 anos, entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
56
Idem.
63
O fazendeiro deu a fazenda pra nóis trabaiar, o que nóis prantasse era
nosso. Agora quando fosse pra sair..., nóis trabaiemo lá e não paguemo
nada ao fazendeiro de lavoura não. [...] foi, proque ele [referindo-se ao
fazendeiro] precisou, né, que ele não queria que morasse mais gente lá
e ele, pra prantar capim e pra criar gado. Aí nóis viemo embora, a
turma que tinha morando lá nessa fazenda o INCRA trouxe pr‟aqui, da
09, óia da 01 pra chegar na 10 ficou gente, uns ficou na 01, lá na 01
nóis fiquemo duas família.
Conforme narra D. Maria Pereira, depois da chegada, os anos que se seguiram, no
Projeto de Colonização, foram de muita labuta. Da mesma forma que na Paraíba e também no
Mato Grosso do Sul, em Serra do Ramalho sua família foi viver da produção agrícola,
praticamente uma produção de subsistência, realizada nas pequenas propriedades para manter
o sustento da família durante o ano. Além da agricultura, foi muito comum a prática de
criação de animais, como galinhas e porcos, para auxiliar na renda doméstica.
Olha fia,os primeiros anos que nóis cheguemo aqui, aqui não, na 01,
que nóis cheguemo na 01, nóis peguemo uns três ano bom de inverno,
nóis peguemo um lote que era mais cheio de arroz, nóis fizemo muito
arroz, nóis fizemo milho bastante, agora, no primeiro ano que nóis
cheguemo mesmo nóis num prantemo que deu só pra nóis comer
„malé-mal‟ né, proque não deu mais pra nóis fazer terreno. Nóis
cheguemo já no mês de julho, aí não deu mais pra fazer roça grande
ele [referindo-se ao marido] fez lá só um, só pra prantar um pouquim
pra num dizer que ficou sem prantar. Agora no segundo ano, nóis
fizemo bastante milho, bastante feijão, de arranca não dava, era só o
de corda prantava só pra comer mesmo. Agora, arroz, mamona e
milho nóis fizemo que deu pra vender.[...] Agora, você pranta num dá
nada pode se dizer, proque às veis inda dá um milhim outras vêis dá
um feijão, algodão quase que ninguém colhe, num pranta aqui. Miorou
pro lado de lá proque quando nóis chegamo aqui só era vereda, num
tinha estrada e já hoje em dia é tudo asfalto, asfalto não, como você
vê, é a buraqueira.
Em suas memórias, D. Maria Pereira57 nos fala do “ontem” e do “hoje”. A colocação
do tempo, em sua fala, se apresenta relacionada à questão da produção, contrastando “os
primeiros anos”, que eram anos bons de inverno e colheita, ao “agora”, um tempo em que
“pranta num dá nada”, um tempo em que não se produz mais como antes. Dessa forma,
evidenciamos as várias temporalidades que se entrecruzam, que se inter-relacionam no
processo de recordação realizado pela memória.
Esta relação entre os tempos da memória, passado, presente e futuro, é importante para
57
Maria Pereira da Silva, 73 anos, entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
64
compreendermos o discurso que nós, historiadores, construímos sobre a História, e que nos
remete à tradicional reflexão sobre a questão da objetividade e imparcialidade na escrita da
história.
Afinal, estaria o historiador livre das influências do seu tempo ao fazer a leitura do
passado? Bem sabemos que não existe neutralidade no ofício de historiador; para chegarmos
àquilo que Le Goff (2003) chama de “objetividade histórica”, são necessárias revisões,
verificações incessantes visando a uma acumulação de “verdades parciais” que mais se
aproximam da realidade analisada.
Na prática da pesquisa, perceber os processos através dos quais o narrador recorda,
seleciona e interpreta aspectos da realidade vivida, na reconstituição dos acontecimentos
históricos, não é tarefa simples. Somente um profundo conhecimento da fonte histórica e uma
compreensão de nossas convicções e do problema que queremos resolver, poderão nos
proporcionar um bom desenvolvimento do trabalho.
Diante da apresentação de tantos perfis de famílias que chegaram ao Projeto de
Colonização, podemos ressaltar que, mesmo esses migrantes apresentando suas trajetórias
particulares e suas motivações pessoais para a migração, não deixam de existir semelhanças
entre os grupos, já que estes guardam tradições e modos comuns em suas origens rurais,
trabalhadores que viam no modo de vida da roça e do trabalho com a terra a garantia da
continuidade da família.
Convencidos pela propaganda que se divulgou em relação às agrovilas de Serra do
Ramalho, esses migrantes deixaram familiares, bens materiais, enfim, toda uma vida
construída nos seus lugares de origem, pela possibilidade de realizar o sonho de ter o seu
pedaço de terra, ou a garantia de manter ou de ter um trabalho, visando obter condições
melhores de existência.
65
2.3 Colonos em Serra do Ramalho.
O Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho não privilegiava a participação
dos colonos nas decisões tomadas, tudo lhes era imposto de “cima para baixo”. Isso porque a
colonização, em forma de projetos implantados em diversas regiões do Brasil, a partir da
década de 60, tinha como objetivo desenvolver uma política de controle efetivo da terra e do
trabalho, favorecendo de maneira desigual as partes envolvidas nesses processos.
No que se aplica ao fenômeno migratório de Serra do Ramalho, evidenciou-se que a
defesa dos interesses, por parte do INCRA e dos colonos, gerou, em muitos momentos,
tensões. Guimarães Neto (op.cit., p. 94) assinala essa questão em seus estudos sobre a política
de colonização em projetos da Amazônia, demonstrando os vários interesses em jogo nesse
tipo de construção.
O projeto de colonização oferecia, desta forma, dois instrumentos
extremamente favoráveis aos empresários do setor: de um lado, os
incentivos fiscais e benefícios do governo carreando recursos para as
empresas; do outro, a força de trabalho dos colonos - verdadeiros
“peões da colonização” - incorporando valor à nova terra.
Segundo Marques (op.cit., p. 104), a política do INCRA para assentamentos de
Reforma Agrária se dá através de ações que viabilizem a distribuição da terra sob a forma da
“propriedade familiar”. A autora explica:
O processo de ocupação planejada coordenado pelo INCRA é
desenvolvido em três etapas: implantação, consolidação e
emancipação. Estas são precedidas pela fase de pré-assentamento, que
corresponde ao período que se estende do momento em que este órgão
se imite na posse da área e instala provisoriamente os beneficiários,
até a realização da demarcação e distribuição dos lotes.
Na chamada fase de implantação do Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho,
somente a equipe social participava ativamente no levantamento da situação econômica das
66
famílias, no cadastramento desses colonos e de seus dependentes, e no encaminhamento de
aposentadorias das pessoas idosas58.
A participação dos colonos só foi possível na fase seguinte, a de consolidação, já que
estes passariam a ter uma vida voltada mais para atividades sociais com a comunidade. De
acordo com o relatório59 da Comissão Pastoral da Terra:
Nessa fase, as associações ou grupos que surgissem entre os
moradores seriam cadastradas. O setor social procuraria conhecer a
capacidade desses grupos perceberem os problemas sociais, e
colaboraria com eles para a “implantação do desenvolvimento”, além
de facilitar a troca de experiência desses grupos dentro da área do
Projeto. Seriam incentivadas festas folclóricas e torneios esportivos.
Os moradores seriam orientados para escolher seus representantes
comunitários.
A fase da emancipação correspondia à finalização dos trabalhos relacionados à
infraestrutura, de responsabilidade do INCRA, que passaria, então, a administração das
agrovilas “a um grupo comunitário, que ficaria com o cadastramento atualizado do Projeto”60.
Vale lembrar que os idosos eram excluídos desse processo de colonização, pois,
segundo determinação do INCRA, para ser colono não se poderia ter mais de 59 anos de
idade. Além da idade, eram consideradas requisitos essenciais para aquisição da terra a
experiência de trabalho que o colono já tinha adquirido e a quantidade de membros
pertencentes ao grupo familiar. Também eram avaliadas as condições físicas dos
trabalhadores, que não poderiam ser portadores de nenhum tipo de doença contagiosa.
Quanto aos colonos expropriados de Sobradinho, primeiros assentados, ainda se
permitia aos idosos o recebimento do lote urbano com a casa para morar; aos colonos
migrantes assentados a partir de 1977, não foi permitido esse benefício, porque, quando o
Projeto de Colonização começou a receber famílias de outros lugares, o INCRA adotou
critérios mais rígidos para instalação destas na área. E por não oferecerem mais a mão de obra
necessária para a labuta no cotidiano do trabalho no campo, os idosos ficaram sob a
responsabilidade de seus familiares já assentados, sem o direito à terra. Restrições assim
trazem sérias consequências para a forma de organização familiar, especialmente no que diz
respeito à posição do pai na “hierarquia familiar”.
58
Essa equipe social, ou “setor social”, também procurava saber como os colonos vindos de Sobradinho viam o
Projeto, para informar ao INCRA sobre a receptividade das famílias; além de administrar a elaboração das
carteiras de colonos e de incentivar estes a se interessar pelos conhecimentos ensinados pelos técnicos agrícolas.
59
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item: “A
barragem já era de concreto e as agrovilas eram de papel”, p. 20.
60
Idem, p. 20.
67
A suposta participação dos colonos na vida social, durante a fase de consolidação do
Projeto de Colonização, na verdade, não anulou por completo o controle exercido pelo
INCRA sobre suas atividades. Ao tomar conhecimento da capacidade que os colonos tinham
de se organizar para gerir e resolver os seus próprios problemas, o Instituto buscava novas
formas de controle. Um exemplo é a cooperativa, CIRA Serra do Ramalho, onde o INCRA
conseguiu uma forma de penetração, nomeando um representante para se integrar na equipe
da instituição, mudando os rumos das discussões e decisões tomadas pelos colonos
associados.
Ao falar de sua experiência como representante, ou melhor, como presidente da
Cooperativa na Agrovila 03, o Sr. Adelino de Ornelas61, pioneiro na colonização, relata sobre
os descompassos existentes nas relações entre o INCRA e os colonos, assim como entre essas
instituições e as demais associações de bairros. Quando compreendeu o propósito de minha
visita à sua casa, foi logo relatando sua história de vida, com muita disposição e boa vontade;
durante a entrevista, o Sr. Adelino se exaltou ao falar dos problemas da Cooperativa,
demonstrando a vivacidade de sua indignação em relação ao assunto, depois de anos.
Natural do povoado do Bem-Bom, município de Casa Nova, o Sr. Adelino de Ornelas
chegou à Agrovila 04 em 1976, tornando-se, em 1978, o “primeiro colono a ser assentado na
Agrovila 09”. Sua história de vida se confunde com a história do município de Serra do
Ramalho, já que acompanhou todo o seu percurso até a emancipação, em 1989. Visitou o
Projeto de Colonização em setembro de 1976 e resolveu se mudar de vez com toda a família
no mesmo ano, vindo diretamente para a Agrovila 04. Logo, foi cogitado para ocupar o cargo
de presidente da Cooperativa dos colonos na Agrovila 03.
A fotografia de 1976 registra uma reunião de colonos na Agrovila 03, onde ficava a
sede da Cooperativa. Essa imagem é representativa da luta dos colonos em sua organização
para melhor discutir os seus interesses e os problemas relacionados ao Projeto de
Colonização. Os assuntos discutidos diziam respeito à produção agrícola e à comercialização
dos produtos cultivados na região, entre outros. Ao que parece, nesse momento, a sede da
Cooperativa ainda estava em sua construção, já que o espaço retratado na imagem, segundo
nos informou o Sr. Adelino de Ornelas, é do Grupo Escolar da Agrovila 03 - como eram
chamadas as escolas de Ensino Fundamental das agrovilas.
61
Adelino de Ornelas, 73 anos, em entrevista realizada pela autora em 04 de agosto de 2008, Agrovila 09.
68
Ilustração 10: Reunião da Cooperativa de colonos de Serra do Ramalho.
Fonte: Acervo da Secretaria de Educação, Prefeitura Municipal de Serra do Ramalho. Fotografia de acervos particulares.
O Sr. Adelino de Ornelas62 reconhece que os benefícios, recursos e equipamentos
conseguidos pela Cooperativa tiveram ajuda significativa do INCRA, mas que a autonomia da
entidade ficou comprometida diante da decisão do órgão em nomear um delegado para
acompanhar os trabalhos e as discussões junto aos associados.
Depreende-se de sua narrativa que foi grande o seu esforço à frente da Cooperativa
para defender os direitos dos colonos. Isso se evidencia, por exemplo, quando ele relata sobre
um episódio ocorrido durante a sua gestão, no qual ele diz não ter aceitado que um
funcionário, enviado pelo INCRA para trabalhar na Cooperativa, continuasse no trabalho por
suspeitar da sua conduta. O funcionário tinha sido enviado para lá como manobra política da
administração do Projeto, que, mesmo diante dos protestos do Sr. Adelino, não dispensou o
funcionário pois se tratava de “gente importante”; tratava-se do esposo de uma coordenadora
de um colégio do Estado na região.
O Sr. Adelino não aceitou essa situação imposta pelo INCRA e, aborrecido, rejeitou
atender a um pedido do Sr. Boileau Dantas Wanderley Filho para que assinasse algumas notas
para a liberação de verbas. O trecho a seguir é de uma conversa que o Sr. Adelino afirma ter
tido com o Sr. Boileau, na qual ele presta esclarecimentos sobre a rejeição feita ao executor.
É porque eu num mando na Cooperativa. Num tô mandano o senhor
botar ele pra fora. Tô mandano o senhor recolher ele da Cooperativa
pr‟aqui, que lá na Cooperativa eu não quero ele mais, se ele fosse
funcionário da Cooperativa ele já tava era na rua. Eu digo: Ó Doutor,
62
Adelino de Ornelas, 75 anos, entrevista realizada pela autora em 04 de agosto de 2008, Agrovila 09.
69
o senhor pode tapiar outro, mas a mim, o senhor me desculpe, eu vim
aqui atender o seu pedido... Pra o senhor não dizer que eu fiz pouco
caso do senhor, mas a minha solução é essa: ou ele ou eu, aí peguei e
vim embora.
O funcionário que é tão citado pelo Sr. Adelino de Ornelas 63 era o “delegado do
INCRA”, que representava este órgão dentro da Cooperativa. Todos os sócios e a diretoria
eram representados por colonos; apesar disso, as decisões eram tomadas quase sempre pelo
delegado, “que além de tomá-las, tenta convencer os membros da justeza delas”
64
, o que
criava muita insatisfação entre os colonos, que começaram a chamar a Cooperativa de
“explorativa”. Assim, diante dos inúmeros problemas que a instituição começou a apresentar,
de má gestão, ou a falta dela, e de denúncias de corrupção, “em 1985, a cooperativa sofreu
intervenção do governo federal, sendo fechada” (ESTRELA, op.cit., p. 166).
Outro fator que comprometia a livre participação dos colonos nas decisões de assuntos
relacionados ao Projeto de Colonização Serra do Ramalho dizia respeito à postura do INCRA.
Baseado em sua política agrícola, este órgão tinha a pretensão de transformar o Projeto numa
área de grande produtividade, meta que não era compartilhada com igual entusiasmo pelos
colonos. Estes nem sequer davam suas opiniões em relação aos planejamentos agrícolas. Tudo
era planejado pelos técnicos, que, muitas vezes, não levavam em conta a experiência desses
trabalhadores. Em relação a esses descompassos, próprios a esses tipos de assentamentos,
Marques (op.cit., p.96-97) considera:
De um lado, o INCRA visa a inserção das famílias assentadas no
sistema econômico em vigor a partir de uma intervenção concedida
segundo os parâmetros da racionalidade técnica e os valores da
ideologia moderna. De outro, os sem-terra visam tornar-se donos de
sua própria terra para realizar um projeto de vida pautado pela ética
camponesa. Tais projetos, sustentados por visões de mundo
divergentes, remetem a diferentes significados da terra, o que se
relaciona com conflitos e ambigüidades existentes no seio do processo
de Reforma Agrária. O que não impede a ocorrência de casos de
identidade de interesses e complementaridade entre estes dois atores.
Essa racionalidade da lógica econômica que visa à produtividade a qualquer custo, na
maioria das vezes, não respeita a liberdade do colono, que, segundo Woortmann (1990, p. 43),
“tem como uma de suas dimensões a autonomia do processo de trabalho, e do saber que a este
63
Adelino de Ornelas, 75 anos, entrevista realizada pela autora em 04 de agosto de 2008, Agrovila 09.
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item:
“Cooperativa ou explorativa?”, p. 41.
64
70
informa, transmitido de pai a filho”. O trabalhador rural quer ser reconhecido e respeitado por
sua experiência em cultivar a terra, experiência que o identifica ao modo de vida do campo e
que transmite aos seus descendentes.
Em seus estudos sobre o campesinato, Woortmann (Ibid., p. 12) rejeita a ideia de
estudá-lo a partir de uma perspectiva econômica, mas busca uma aproximação da sociedade
camponesa para tentar compreendê-la através do que ele chama de “campesinidade”, uma
espécie de “ordem moral” - um modo de ser específico a este grupo, ou outros grupos - que se
distingue da “ordem econômica”, que seria voltada, prioritariamente, para as coisas tidas
como mercadoria. Sob a ótica da moralidade, a terra passa a ser pensada em articulação com
as categorias família e trabalho, mudando o seu significado, que não é só o do trabalho e da
produção.
Nessa perspectiva, não se vê a terra como objeto de trabalho, mas
como expressão de uma moralidade; não em sua exterioridade como
fator de produção, mas como algo pensado e representado no contexto
de valorizações éticas. Vê-se a terra, não como natureza sobre a qual
se projeta o trabalho de um grupo doméstico, mas como patrimônio da
família, sobre o qual se faz o trabalho que constrói a família enquanto
valor. Como patrimônio, ou como dádiva de Deus, a terra não é
simples coisa ou mercadoria.
Essa mudança de significado se reflete numa mudança também de interesse pela terra
e, consequentemente, em seu manejo. Dessa forma, no Projeto de Colonização Serra do
Ramalho, o acesso à terra adquiriu diversos significados para os envolvidos no processo de
sua construção.
A depender de suas necessidades e de sua experiência agrícola, a terra significou, para
aqueles que foram expulsos de fazendas, a única possibilidade de continuar sobrevivendo;
para outros, como os que se desfizeram de seus pedaços de chão para tentar a vida nas
agrovilas, ou ainda os de Sobradinho que fizeram o deslocamento forçado, a terra significou a
esperança de dias melhores e de fartas colheitas. Já para o INCRA, aquela era mais uma área
que se destinava ao cumprimento de um decreto-lei que resolvia sobre a desapropriação e o
assentamento de famílias desapropriadas ou de sem-terras.
Assim, além de financiar a produção com o crédito agrícola, o INCRA também definia
a política agrária a ser desenvolvida no Projeto de Colonização, através de orientações de
como e quais produtos deveriam ser cultivados. Os dados do relatório da CPT mostram que a
meta era garantir a cada família “uma renda equivalente a dois salários mínimos mensais” e,
71
para atingi-la, o Instituto tinha que ter controle geral das atividades exercidas pelos colonos
em suas propriedades.
Esse controle da produção agrícola se deu, sobretudo, porque a representação criada
acerca do colono quase sempre está ligada à sua função no novo espaço. Sobre isso, convêm
lembrar as palavras de Guimarães Neto (op.cit., p.77); segundo a autora, “nesta representação
do novo lugar, o colono é sempre mencionado como o homem da terra, destinado a cultivar e
a ocupar produtivamente os novos espaços”.
Esses colonos traziam com eles uma carga de experiência que não correspondia à
política agrícola implantada no assentamento pelo INCRA, nem à introdução de mecanismos
e tecnologias modernas na agricultura que seriam implantadas pelos técnicos da
EMATER/BA. A justificativa do órgão era que a inserção das novas tecnologias traria mais
conhecimento para os produtores e maior produtividade para as plantações.
Para a produção agrícola, os colonos recebiam financiamento do Banco do Brasil, com
aprovação do pedido pela EMATER/BA; para isso, era necessária “[...] a elaboração das
carteiras dos colonos para que eles pudessem fazer o financiamento no Banco do Brasil.”
65
Deviam pagar o empréstimo seis meses após a data do recebimento. A seguir, fotografia da
carteira de colono do Sr. Adelino de Ornelas66. Além de servir para a identificação do colono,
era com este tipo de carteira que os colonos realizavam os créditos para agricultura junto ao
Banco.
Ilustração 11: Carteira de Colono.
Fonte: Fotografia de trabalho de campo, acervo particular do Sr. Miguel Félix, Agrovila 13.
65
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item: “Para
ser colono”, p. 19.
66
Adelino de Ornelas, 75 anos, entrevista realizada pela autora em 04 de agosto de 2008, Agrovila 09.
72
No relatório67 da CPT, consta que nem sempre esse era o caminho mais curto para
investimentos na lavoura; muitas vezes, a espera pelo crédito implicava muitos outros
problemas para a produção agrícola.
O atraso na liberação do crédito, que é feito exclusivamente pelo
Banco do Brasil, tem implicado sérios problemas para os agricultores
que, muitas vezes perdem a época do plantio porque o banco não
entrega o dinheiro no tempo certo. Não bastasse o problema do
crédito, os colonos vivem submetidos a um esquema de
comercialização que os torna dependentes dos intermediários, da
cooperativa ou das indústrias.
Esses tipos de apoio, o crédito agrícola, a ajuda de custo às famílias e o desmatamento
dos lotes, foram mais frequentes nos primeiros anos do Projeto de Colonização, especialmente
para os colonos de Sobradinho. Os migrantes que chegaram depois da ampliação e
reestruturação das agrovilas, não foram mais contemplados com essas benfeitorias.
Os alimentos que eram plantados correspondiam ao que os colonos cultivavam em
suas terras de origem, o que acabou diversificando bastante a agricultura na região e,
consequentemente, a forma e as técnicas empregadas nessa produção também. Além dos
produtos mais comuns, como o milho, o algodão e o feijão, houve também o cultivo de arroz,
mandioca, cebola, amendoim e mamona, merecendo destaque aqui a grande produtividade,
em 1983, de mandioca, que chegou a 22.000 Kg/ha, e arroz, 2.000 Kg/ha.
Em relação aos produtos que eram cultivados e às técnicas aplicadas na produção nas
agrovilas, consta no relatório68 da CPT:
Geralmente os colonos plantam milho, feijão, arroz, mandioca,
algodão, mamona e, alguns, cebola e amendoim. As técnicas
empregadas no trabalho agrícola são as mais rudimentares possíveis.
O trabalho manual é utilizado em todo o processo produtivo, inclusive
no desmatamento. A mão-de-obra familiar é responsável pela
produção, sendo que nas fases de desmatamento, plantio e, às vezes,
na colheita, os colonos mais estabilizados costumam contratar pessoas
das agrovilas mais carentes durante um certo período.
67
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item:
“Muitas dificuldades”, p. 11
68
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, Item: “O que
produz e como produz”, p. 58.
73
Conforme as entrevistas, os primeiros tempos no Projeto de Colonização foram bons
para a agricultura, pois a terra era bem mais fértil, com grandes reservas de matas, o que
tornava o solo mais úmido e propício para as lavouras. Em suas lembranças, D. Maria
Ivonete69 fala da experiência de plantar alimentos em volta de sua própria casa, já que não ia
para a roça com o seu esposo: “Eu plantava até inhame aí na beira da cerca e dava cada
cabeça de inhame, batatinha, tudo que plantou aqui dava, no tempo do inverno dava”.
Nas memórias do Sr. Francisco Chagas70, a palavra que melhor definiu esse período
foi “prosperidade”. Migrantes como ele ainda tiveram uma visão positiva em relação ao
Projeto, porque não sofreram uma migração dirigida como aqueles que vieram de Sobradinho,
e conseguiram também refazerem as suas vidas nas agrovilas, comprando lotes, investindo no
comércio ou atuando na política local, que foi o caso do Sr. Francisco Chagas e do Sr.
Francisco Soares, vereadores na Agrovila 09.
De início, tudo prosperava, foi bem mais fácil para a produção
agrícola. Era uma lavoura de subsistência, né, milho, feijão, arroz, o
pessoal colhia arroz duas vezes ao ano, tirava no mês de abril, maio, aí
brotava, né, o broto se chama soqueira, tornava colher lá pro mês de
agosto colhia arroz novamente. Hoje nem o feijão catador a gente
consegue mais, o milho que suporta essas estiagens, ele não tem mais,
né. Aí veio o algodão, foi a cultura, de início, onde o homem produzia
bastante, aqui era a média de duzentas arrobas por hectare.
Tal prosperidade se via também em outras instâncias, onde mesmo quem não era
produtor se beneficiava da situação, pois, além da força de trabalho familiar, empregavam-se
trabalhadores de outras agrovilas e municípios, quando havia muito trabalho para ser
realizado, como na colheita dos grãos. Segundo o Sr. Francisco Chagas,“ naquela época, além
de você envolver a sua família, o chefe, os filhos, desde o preparo do solo até pra colher, foi
uma época que até o município vizinho nosso, Bom Jesus da Lapa, se deu bem com isso
porque vinha gente de lá, né”71.
No geral, o tipo de produção e as técnicas empregadas no trabalho da roça eram
comuns ao homem do campo. O trabalho era essencialmente manual, com a utilização de
instrumentos como enxada, foice, facão, arados, e até tratores, diversificando conforme a
experiência dos migrantes. Para exercer as atividades na roça, o colono contava
69
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
Francisco Chagas dos Santos, 51 anos, em entrevista realizada pela autora em 15 de agosto de 2010, Agrovila
09.
71
Idem.
70
74
essencialmente com a sua família. Com raras exceções, contava com o auxílio de outras
pessoas, parentes, amigos ou trabalhadores assalariados.
Dados apresentados por Alencar (1983, p. 23) apontam que houve diversificação
quanto ao uso de técnicas modernas para a produção agrícola e que a recepção e utilização
dessas técnicas variavam conforme a região de origem do colono.
A diversidade de origens ilustra a existência de regiões sócioeconômicas no país na medida em que o envolvimento do colono com
os instrumentos de modernização é visivelmente diferenciado se
comparado com a região de onde ele veio. Neste sentido, a pesquisa
demonstrou que dos colonos que não utilizam, no momento, o crédito
rural, 97% são do Estado da Bahia. Ao considerarmos internamente as
regiões verificamos que dos que vieram do centro-sul do país, 93%
utilizam o crédito, para 33% dos originados da Bahia.
A produção era basicamente para o consumo diário, mas os colonos também
chegavam a comercializar, como nos conta D. Maria Pereira72 da Agrovila 13. Segundo ela,
“Teve um ano, primeiro ano, a gente vendia para o pessoal assim, pessoal que chegava
comprano, né. Teve o arroz mesmo, ele [referindo-se ao esposo] vendeu pra o rapaz da Lapa,
e já no outro ano nóis já vendemo pra Cooperativa”.
O Sr. Joaquim Lopes73 se desdobrou para conseguir encontrar estratégias de
comercialização da mamona na região, já que não conseguiu mais incentivos do INCRA para
a agricultura. Criado na roça, ele é um homem apaixonado pelo trabalho que faz: “Eu nunca
larguei , abandonei a roça não, as minha roça eu mexo até hoje”. Mesmo criando gado, era da
roça, do que plantava, que ele tirava o sustento para a família.
Nóis plantava feijão, milho, algodão, depois fui plantar mamona. A
gente vendia, eu fui arranjar um comprador de mamona sabe aonde, lá
em Santa Maria. Eu juntei minha mamona, e os trocadim que eu ia
arrumano eu comprava uns quilim pra revender pra ele.
Nota-se que a necessidade fez com que muitos colonos buscassem a acumulação dos
produtos que cultivavam, visando à sua comercialização no próprio município, ou fora dele,
fugindo à ideia de que toda produção agrícola familiar ficava restrita ao consumo da família.
Em relação à produção camponesa, Moura (op.cit., p. 55) considera que “o trabalho familiar
camponês abastece a casa de morada, alimenta seus membros, mas também é destinado a
72
73
Maria Pereira da Silva, 73 anos, entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
Joaquim Lopes Neto, 64 anos, entrevista realizada pela autora em 01 de maio de 2010, Agrovila 09.
75
lugares e pessoas exteriores a esta realidade. É grande a variedade de formas pelas quais parte
da produção camponesa escapa ao controle de quem a produziu”.
Sem ter a devida participação no planejamento agrícola e no desenvolvimento de
técnicas para melhorar a produção na região, na maioria das vezes, o colono se viu obrigado a
ter que “se virar” sozinho, criando mecanismos outros que garantissem a sua sobrevivência no
Projeto de Colonização. A atitude do Sr. Joaquim Lopes 74 de tentar comercializar a sua
produção de mamona nos municípios vizinhos, é um exemplo disso.
Foram iniciativas que resultaram, antes de tudo, da maneira como a política agrícola
empreendida pelo INCRA para o assentamento foi imposta aos colonos. Tudo já estava
planejado, não cedendo lugar às opiniões dos colonos nem às suas próprias experiências com
o manejo da terra e a prática da agricultura, que eles já estavam habituados a realizar.
Os problemas de relacionamento entre colonos e a administração do Projeto
agravaram ainda mais o quadro de dificuldades que se delineava no cotidiano nas agrovilas,
desde a sua formação, dificuldades que marcaram pra sempre a história de vida desses
indivíduos, conforme analisarei no capítulo a seguir.
74
Joaquim Lopes Neto, 64 anos, entrevista realizada pela autora em 01 de maio de 2010, Agrovila 09.
76
3 COTIDIANO NAS AGROVILAS DE SERRA DO RAMALHO.
As dificuldades de adaptação e sobrevivência marcaram o cotidiano dos colonos
nas agrovilas de Serra do Ramalho. Isto porque, os grupos de migrantes que chegaram ao
Projeto de Colonização no período não encontraram uma infraestrutura capaz de fornecê-los
serviços essenciais para se viver bem, como alimentação, água limpa e assistência médica de
qualidade.
Devido a precariedade de vida em que essas famílias viviam, houve o surgimento de
muitas doenças, ligadas à desnutrição, levando muitas pessoas à morte, especialmente as
crianças.
A superação dessa situação de dificuldades e incertezas de como seriam suas vidas
nas agrovilas dali em diante, só foi possível porque os colonos estabeleceram entre si relações
de solidariedade, assim como as de parentesco e compadrio, que amenizaram as contradições
que marcaram os primeiros tempos de vivência no Projeto.
3.1 Os meios de sobrevivência e as relações sociais desenvolvidas no novo
espaço.
Quando a gente chegou aqui num tinha nada, era tudo diserto, muito
sufrimento, num tinha nem comida. [...] E pra comer a gente tinha que
ir pra 10, pra 09, buscar ainda na cabeça, num tinha transporte, aí
quando era tempo da chuva, a gente saía vagano aí, passava um dia, de
um dia pra o outro pra puder chegar com a comida aqui, aí logo que eu
cheguei aqui eu ganhei um neném, fiquei naquele sufrimento, só
esperano o dia que a comida chegasse, misericórdia! Aí minha fia, sei
que nóis ficamo naquele sufrimento, roça era muito difícil tocar
porque era tudo diserto, tudo era no braço. Aí, por aí a gente foi
sofreno, foi trabalhano, foi levano a vida e hoje tamos aqui mais
melhor de vida, não rico [risos], mais dá pra gente comer.
A epígrafe que abre este capítulo, trecho da narrativa de D. Josefa de Moura75,
evidencia aspectos da realidade de miséria que caracterizava o Projeto de Colonização. No
período em que chegou com sua família, o assentamento ainda estava no seu início, faltava
infraestrutura adequada à moradia, infraestrutura capaz de oferecer as condições básicas para
75
Josefa Vicente de Moura, 53 anos, em entrevista realizada pela autora em 30 de novembro de 2009, Agrovila
13.
77
a sobrevivência deles no local.
Não foi somente a D. Josefa de Moura que buscou adaptar-se a essa nova realidade,
mas todo o grupo que migrou junto com ela, vindo de Santana de Mangueira (ver mapa),
município localizado no Oeste paraibano, com cerca de 5. 332 habitantes, segundo dados do
IBGE76.
Ilustração 12: Localização de Santana de Mangueira no Estado da Paraíba.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Santana_de_Mangueira.
O município de Santana de Mangueira faz parte da microrregião de Itaporanga, sertão
paraibano, composta por onze municípios: Boa Ventura, Conceição, Curral Velho, Diamante,
Ibiara Itaporanga, Pedra Branca, Santa Inês, São José de Caiana, Serra Grande e Santana de
Mangueira77. Devido ao baixo nível pluviométrico do estado da Paraíba, a seca é um aspecto
marcante neste município que, de acordo com dados do Atlas Digital dos Recursos Hídricos
Subterrâneos do Estado da Paraíba78, o município encontra-se inserido no chamado “Polígono
da seca”79.
Em relação aos aspectos referentes ao clima e a aridez do solo, o Sr. José Soares 80
relata: “Lá é um sertão muito brabo, a gente teve muita dificuldade de plantar, agora, as água
lá segura, onde tem uma baixada cê faz uma parede pra segurar, aqui não, aqui chove, vai
76
Censo 2010. Disponível em: http://www.censo 2010.ibge.gov.br/dados_divulgados/índex.php?uf=25. Acesso
em: 23 de agosto julho de 2011.
77
Disponível em: http://geografia.geral.sites.uol.com.br/h/m/b/pbit.htm. Acesso em: 04 de fevereiro de 2011.
78
Disponível em: http://www.cprm.gov.br/rehi/atlas/paraiba/relatorios/SANT168.pdf. Acesso em 04 de fevereiro
de 2011.
79
Território, reconhecido por lei, que abrange vários estados brasileiros sujeitos a intensos períodos de estiagens
durante o ano.
80
José Soares de Souza, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 18 de fevereiro de 2011, Agrovila 09.
78
embora”. Foi em razão da qualidade do solo que o Sr. José acabou se dedicando também à
atividade pecuária, começando a comprar e a vender gado na região. Mas, de um modo geral,
a maioria dos paraibanos se dedicavam à agricultura, e os produtos cultivados não eram tão
diferentes dos que eles cultivaram nas agrovilas conforme narra o Sr. Miguel Félix81:
O que a gente plantava lá era coisa comum mesmo, nóis plantava o
milho, o feijão catador, a fava que aqui chama é feijoa, o andu, você
conhece o andu? Pois é, a gente plantava também. Quando a gente
chegou aqui, mandioca a gente num plantava, continuamo só plantano
o milho, o feijão, o algodão.
O deslocamento das famílias de seus estados de origem para o Projeto de colonização
era feito nas mais diversas condições, as viagens eram feitas em ônibus e também caminhões,
estes últimos eram reservados para o transporte das bagagens.
Essas viagens chegavam a durar cerca de três dias seguidos, com pequenas pausas
apenas para dormir e se alimentar, pois essas famílias também traziam consigo crianças
pequenas. O trecho da narrativa do Sr. Miguel Félix82 evidencia essa experiência de
deslocamento em família:
Eu saí, no caso, eu atingi três dias, que eu saí à tarde, eu vim no
caminhão num sabe com um bucado de bagage, porque essa aqui
mesmo tá veinha, mas vei de lá [referindo-se à mesa], tem muitas
coisa que vei de lá, nóis num se desfazemo. Aí a gente trouxe minhas
coisinhas que tinha em casa, num era grande coisa, nóis truxemo num
caminhão. Eles vieram em duas caminhonete. Meu cunhado aí vei de
ônibus, mais outra família, eu vim, de caminhão com minha família e
a mercadoria, a mercadoria assim, vamos dizer que era os móveis,
móveis de pobre é uma mesa e uma cadeira [risos]. Saimo à tarde,
rodamo até tantas hora da noite, a gente dormiu em Juazeiro da Bahia,
no outro dia viajamo, nóis viemo dormir em Seabra, um posto pertim
de Seabra, era um rojão... Logo as estrada num era boa naquela época
há trinta ano, pode dizer, era ruim. Dormia no caminhão mesmo. Na
época eu vim com o motorista, só tinha Vânia e Nilson, os dois mais
velho, e eu mais a coroa [referindo-se à D. Maria Ivonete, sua esposa].
Aí no outro dia viajamo, chegamo aqui na 04, foi despejado todo
mundo na Agrovila 04 que aqui num tinha liberado ainda.
Os filhos do Sr. Miguel Félix citados nesse trecho da narrativa, Nilson e Vânia, estão
81
Miguel Félix da Silva, 70 anos, entrevista realizada pela autora em 12 de outubro de 2009, Agrovila 13.
Idem.
82
79
com a mãe, D. Maria Ivonete83, na fotografia de 1984, quatro anos depois da chegada da
família à Agrovila 13.
Ilustração 13: D. Maria Ivonete com os filhos, Vânia e Nilson, e os sobrinhos, Carlinhos e Neudinho.
Fonte: Acervo particular da família Félix da Silva, fotografia de janeiro de 1984, Agrovila 13. Coletada em trabalho de campo
realizado no dia 13 de junho de 2010.
Não bastassem as dificuldades enfrentadas durante o deslocamento, uma vez nas
agrovilas de Serra do Ramalho, esses novos colonos enfrentaram outros problemas,
relacionados à infraestrutura, administração do Projeto de Colonização, adaptação e
sobrevivência.
Ao chegarem ao Projeto de Colonização, as famílias de colonos tinham que superar
outros desafios, como o desconforto e a ansiedade da espera para ocuparem as agrovilas. O
grupo de famílias paraibanas, por exemplo, teve que ficar por alguns dias na Agrovila 04,
aguardando a Agrovila 13 ficar pronta e ser liberada para que eles pudessem se mudar para lá.
Essa espera podia durar meses. Há desencontros nas informações relacionadas ao
tempo durante o qual essas famílias ficaram esperando que definissem para onde iriam, ou
que casas iriam receber. Uns falam em trinta, quarenta, outros em sessenta dias. Sobre o
assunto, o Sr. João Félix84 relata:
Viemo direto pra agrovila quatro, depois da quatro viemo pr‟aqui. (...)
Porque o INCRA não tinha liberado ainda essa agrovila, né, aí agora a
gente vei pra 04 que tinha uns parente lá e nos deu apoio, né, pra gente
ficar uma família numa casa outra em outra, aí a gente ficamo lá mais
83
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
João Félix, 62 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
84
80
ou menos uns trinta, sessenta dia, uns trinta dia parece que foi, aí foi
liberado aqui e a gente vei.
As dificuldades eram de toda ordem. O abastecimento de água era outro problema para
a população que habitava as agrovilas. A escassez de água no Projeto de Colonização,
principalmente na época da seca, forçou os colonos a buscar soluções para o problema; além
disso, o fato de a água que abastecia as casas ser salobra também constituía um motivo para as
reclamações dos moradores. Os que tinham mais recursos, que possuíam carros, buscavam
água doce em Bom Jesus da Lapa, os que não tinham, se arranjavam como podiam.
Dona Maria Pereira85 se emociona ao recordar as dificuldades que passou junto aos
seus familiares na Agrovila 01, e como fez para enfrentar o problema da água. Essas
memórias revelam o descontentamento dos colonos diante da realidade encontrada nas
agrovilas. O que é lamentável é que nem todas as famílias insatisfeitas puderam retornar aos
lugares de origem, pois, na maioria dos casos, eles se desfizeram de todos os bens que
possuíam; não restando opções, a solução era recomeçar suas vidas:
As água lá [em referência à Agrovila 01] minha fia, era triste. Quando
nóis cheguemo lá tinha umas lagoa, era cinco quilômetro donde nóis
morava da agrovila dessas lagoa, e quem não queria beber dessa água
tinha que pegar lá também nessas lagoa, lavar roupa mesmo... A
primeira vez que nóis fomo lavar as roupa, roupa de cor, nesse tempo
tava com pouco tempo que pai tinha falecido, ainda tava vestino roupa
de cor [luto]. Tinha água na lavanderia para lavar, aí as menina
estendeu a roupa no costume lá que nóis tinha na Paraíba, né, e aguar,
na lavanderia era toda forrada assim, aí elas estendeu lá né e aguaram,
apois quando coisou o sabão não saiu não, ficou aquela roupa preta
toda manchada, aquelas mancha branca. Ali eu vi Geni [amiga] chorar,
acostumada com roupa só lavada na água doce, boa, né. “Saí do Mato
Grosso pra vim morar num inferno desse”, ela dizia mesmo assim,
“morar num inferno desse que nem água tem”, aí ela ficou, todo fim
de sumana ela botava a trôxa na cabeça e ia lavar nessa lagoa, cinco
quilômetro, ia de pé, mais ia. E ficou lavano roupa, até quando casou,
ficou indo lavar lá.
As reclamações sobre a qualidade da água que abastecia as casas nas agrovilas já
vinham desde o início. As primeiras famílias vindas de Sobradinho, também sofreram com
esse problema. Segundo Estrela (op.cit., p. 154, 155), a água foi motivo de descontentamentos
e revoltas entre a população:
Embora muitos reconheçam ter permanecido nas agrovilas pelo fato
85
Maria Pereira da Silva, 73 anos, entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
81
de ali haver água, a qualidade do líquido era e é considerada duvidosa.
Todos reclamam da água: água “saloba”. “Pesada”. Tão pesada que,
segundo entrevistas, forma no fundo das vasilhas uma espécie de
crosta branca. [...] Não bastasse a péssima qualidade, era comum faltar
água. Às vezes, os poços não tinham vazão para suprir as necessidades
da população; outras vezes, eram as bombas que apresentavam
defeito. Os responsáveis pela manutenção levavam dias e, às vezes,
meses para tomarem providências e as tensões eram latentes. Muitas
vezes, as queixas redundavam em discussões e desavenças.
Não havia água tratada, estradas, comércios, de forma que os alimentos tinham que ser
comprados em Bom Jesus da Lapa, cidade sede do município no qual se localizava o Projeto
de Colonização, ou ainda na Agrovila 10, onde havia uma loja da COBAL. Lá os colonos
encontravam produtos básicos de alimentação e higiene; se quisessem produtos mais
elaborados, tinham que se deslocar para fora do Projeto.
Na maioria das vezes, o deslocamento até esses lugares era feito a pé, a cavalo, ou
carroças, meio de transporte muito utilizado pelos colonos, tamanha a dificuldade em transitar
com carros pela região. Além do mais, eram poucas as alternativas de carros que eles tinham;
conforme relatório86 da CPT de 1882, “há uma linha de ônibus para a Lapa que só funciona
uma vez ou outra, não passa por todas as agrovilas e não oferece segurança aos passageiros”.
Nas entrevistas, fica perceptível que o sofrimento dessas famílias estava ligado diretamente à
falta de alimentos, situação que foi agravada pelo período de “chuvas”87 na região,
dificultando o acesso aos lugares para a compra de produtos para o consumo.
Após se cadastrarem no Projeto de Colonização, as famílias ficavam aguardando até
que fossem convocadas para irem ocupando as agrovilas que já estivessem prontas para
morar. O problema é que, usando como meio de pressão para que elas não desistissem, o
INCRA as estimulava para que assumissem logo suas propriedades, do contrário, outras
famílias seriam chamadas em seus lugares. Na maioria das vezes, as famílias de migrantes
ocupavam as agrovilas antes mesmo de terminada a construção.
Essa ocupação não planejada das agrovilas gerava muitos transtornos, e também
tensões, entre os grupos de migrantes que iam chegando ao lugar, pois a vinda deles era
antecipada por conta dessa demanda por terra, sendo que as agrovilas ainda não contavam
com a infraestrutura necessária para abrigar essas famílias. Um exemplo foi o caso da
Agrovila 18, onde as famílias ficaram amontoadas no meio do mato e tiveram que construir
86
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982. Item:
“Transporte: outro drama”, p. 39.
87
De acordo com os entrevistados, o período de chuvas na região compreende os meses de novembro a janeiro.
82
barracos de palha para morarem provisoriamente, enquanto a agrovila ficava pronta. Situações
como essa são “[...] problemas típicos de quem vive em regiões de colonização recente, onde
tudo está por ser organizado, o que faz com que a vida cotidiana seja marcada por muitos
conflitos” (SANTOS, 2003, p.108).
O Sr. Miguel Félix88 também relata sobre todos esses problemas que o Projeto de
Colonização apresentava, reforçando que se “comia mal”. Ele menciona, inclusive, as mortes
de quarenta e seis crianças89 ocorridas na Agrovila 13 no ano de 1981, resultantes da situação
de miséria em que essas pessoas viviam. Vômito, diarreia e febre alta eram alguns dos
sintomas que acometiam essas crianças, que faleciam em decorrência da falta de assistência
médica nos postos de saúde das agrovilas. Ele considera que o uso da água salobra e sem
tratamento, somado à má alimentação, foram causadores das enfermidades que vitimaram os
pequenos:
Era uma água... A gente aqui sofreu o que nem queria, porque aqui a
gente comia mal, teve época de eu ir fazer a feira na 10 de animal, de
pés, uma vez eu fui de a pés porque, com o carro na porta, que a gente
tinha um carro aí, só não pudia, que não tinha estrada, choveno muito,
muito e não dava pra gente ir de carro e eu fui de pés fazer a feira na
10 que tinha uma Cobal lá.[...] A gente se obrigava, num foi só eu, foi
diversas pessoas que às vezes você tinha o dinheiro mas num tinha o
que, aonde comprar, tinha que se obrigar a comprar na dez ou então ia
passar necessidade.
Mesmo tendo recursos para a aquisição de alimentos, o colono ficava preso às
condições estruturais, já que o Projeto de Colonização não contava com pontos comerciais em
todas as agrovilas para atendê-lo em suas necessidades, nem contava com estradas
pavimentadas que possibilitassem a locomoção de veículos automotores e de pessoas. Essas
experiências se repetem em muitas memórias narradas pelos colonos entrevistados no
desenvolvimento da pesquisa, são experiências que marcaram profundamente suas histórias
de vida.
Foi ao lado do marido, o Sr. Miguel Félix, que D. Maria Ivonete90 viveu esses “tempos
difíceis”. É com muita emoção que ela narra sobre como recebeu a notícia de que viria com
sua família morar nas agrovilas. Segundo ela, foram muitos dias de choro antes e depois que
88
Miguel Félix da Silva, entrevista realizada pela autora em 12 de outubro de 2009, Agrovila 13.
Episódio citado no Relatório da CPT/Goiânia, de junho de 1982, no item “Assistência médica: um problema
permanente”, p. 31. Faz referência à “morte de 45 crianças”, e não quarenta e seis como afirmou o Sr. Miguel
Félix.
90
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
89
83
chegou, porém reconhece, em vários momentos da entrevista, que foi bom ter vindo para o
Projeto e ter adquirido terra própria para a família cultivar, pois a terra em que eles
trabalhavam na Paraíba pertencia ao seu sogro, o Sr. João Batista Félix.
Minha fia... Eu sei lá. Eu chorava tanto e... Minha mãe, avó, separar
da minha família lá. Ah, logo quando foi pra nóis sair, ouvi dizer que
aqui era bom demais, eles passearam na 04 e disse que era seis mêis
de inverno. Vei um bando assim, vei o Migué, vei o finado Zé, vei
cumpade Brás, vei não sei se o finado Zé Galego, vei um bucado
deles, eles tinham uma caminhonete, aí vieram.
D. Maria Ivonete91 expressou ainda preocupação com a onda de desnutrição que
atingiu as crianças da Agrovila 13. Sua maior preocupação era que sua filha Vânia fosse mais
uma das vítimas da desnutrição que atingiu tantas crianças naquele lugar e que, somada a
outros fatores, levou muitas crianças à morte.
Ah, minha fia, e aqui morreu tanta criança desnutrida, Vaninha só não
morreu porque num tinha de morrer, mas ela só tinha nove mêis e
quando nóis cheguemo aqui, a sorte que ela mamava, mais se ela num
mamasse eu acho que ela tinha morrido, porque muitos morreu,
morreu quarenta e seis criança. É... e teve, dos outro aí, teve muitos ali
que morava na rua, eles só tinha o couro e o osso, aí morreu mais era
tudo desnutrido, é porque num tinha condições devido à água, quem
tinha condições não, mais quem num tinha...
Segundo dados do relatório92 da CPT, as mortes das crianças na Agrovila 13 se deram
num período de três meses, entre novembro de 1980 e janeiro de 1981. Eram crianças de
famílias recém-chegadas ao Projeto de Colonização, originárias de várias regiões do Brasil,
principalmente do Nordeste, e tinham entre zero e quatro anos de idade. Os dados denunciam
ainda a falta de ajuda financeira por parte do INCRA a essas famílias nos momentos em que
elas passavam por necessidades básicas, como a escassez de alimentos, já que os poucos
recursos que elas trouxeram na viagem tinham acabado e ainda estavam aguardando a
primeira colheita.
Abaixo, uma transcrição do levantamento das crianças mortas na Agrovila 13,
realizado pela CPT de Bom Jesus da Lapa em 27 de janeiro de 1981. A lista só contempla 42
91
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982.
92
84
crianças, devido às dificuldades que os membros da CPT tiveram para registrar os dados. De
acordo com os relatórios da instituição, os pesquisadores foram várias vezes às casas, mas não
encontraram os moradores, que estavam trabalhando nas roças, ou já haviam se mudado.
01
Edjane Florentina da Silva, morreu em 19/01/81, com 1 ano de idade, filha de Olivete R.
Gomes e Giovano Florentino Gomes, residente na rua C, casa nº 54. Foi medicada, internada e
recebeu alta em Lapa.
02
Gilson Rodrigues Gomes, morreu antes do Natal, com 1 ano de idade, filho de Josefa R.
Gomes e Cícero Francisco Pires, residente na rua C, casa nº 38. Também foi medicado.
03
Maria José da Silva, morreu em 12/1/81, com 2 anos de idade, filha de José Pedro e Severina
Antonia da Silva, residente na rua C. Foi medicada, internada na Lapa.
04
Marcones Alves Leite, morreu em 15/12/80, com 10 meses de idade, filha de Maria de
Lourdes de Jesus e Antonio Alves Leite, residente na Rua 0, casa nº 55. Foi medicada,
internada na Lapa e recebeu alta.
05
José Antonio da Silva, morreu em 19/12/81, com 9 meses de idade, filho de Antonio José da
Silva e Alice Maria da Silva, residente na Rua E, casa s/n. Foi medicada na Agrovila 9.
06
Rosineide da Silva, morreu em 18/11/80, com 7 meses de idade, filha de Teresinha Agda da
Silva e Pedro Cassiano da Silva, residente na rua E, casa nº 105. Foi medicada na Agrovila 9.
07
Herivalda, morreu no início de novembro/80 com 6 meses de idade, filha de José Herculano da
Silva e Maria da Silva, residente na rua E, casa nº 106. Foi levada à Lapa e não foi atendida
por ser feriado.
08
Daniel da Silva, morreu em 20/12/80, com 10 meses de idade, filho de Domingo Pedro e
Sebastiana da Silva, residente na Rua E, casa s/n. Foi levado à Agrovila 09, dois dias após
morreu.
09
Aparecida, morreu em setembro/80, com 5 meses de idade, filha de Helena Pinheiro da Silva e
José Luis da Silva, residente na Rua F, casa nº 148.
10
Cosmo e Damião, morreram com 1 ano de idade, filhos de Teresinha Melo da Silva e Cosmo
da Silva, residentes na rua E, casa nº 110. Foram medicados na Agrovila 9. Obs: Sabe-se que
houve uma outra morte nessa casa, uma criança de cerca de 2 anos. A criança morreu no mês
de dezembro.
11
Maria Aparecida, morreu em 18/12/80, com 3 anos de idade, filha de José Alves dos Santos e
Maria Alves dos Santos, residente na rua A, casa nº 17. Ficou internada 48 dias.
12
Alvaro Antonio, morreu com 4 meses de idade, filho de Maria do Carmo Ferreira e Vital
Ferreira da Silva, residente na Rua H, casa nº 213. Não levaram ao médico, por falta de
dinheiro para pagar passagem. (Mês de dezembro de 80).
13
Juvenildo Ramos de Souza morreu com 1 ano, filho de Irineu Rodrigues de Souza e Armezina
85
Ramos, residente na Rua H. Levaram ao médico na Agrovila 9 e não foi atendido. (Morreu no
mês de Novembro de 80).
14
Pedro da Conceição, morreu com 11 meses de idade, filho de Antonieta e Severino da
Conceição, residente na rua F, casa s/n. Morreu no mês de dezembro de 80.
15
Ecília Maria Mendes, morreu com 1 ano e 2 meses, filha de Alzenir Maria Mendes e Francisco
de Almeida, residente na Rua H. (Morreu no mês de dezembro).
16
José Ferreira da Silva, morreu em 3/12/80, com 1 ano e 6 meses, filho de Orlando Soares da
Silva e Devanete Ferreira, residente na rua A, casa nº 1. Foi medicado, mas não tinha dinheiro
para comprar os remédios.
17
Juvenal e Juvenço, morreram com 2 meses, filhos de Pedro e Maria, residentes na Rua H.
(Morreram no mês de dezembro de 80).
18
Edson Alves dos Santos, morreu em 19/10/80, com 3 anos, filho de Maria Alves dos Santos e
José Alves dos Santos, residente na Rua A, nº 17.
19
Maria Marlene dos Santos, morreu em 28/09/80, com 3 meses, filha de Rita Tereza dos Santos
e Antonio Paulo dos Santos, residente na Rua J, nº 25.
20
Luciana de Oliveira, morreu em 19/09/80, com 6 meses de idade, filha de Maria José de
Oliveira e João de Oliveira, residente na Rua E, nº 121. Não foi levada ao médico por falta de
condições.
21
Edna Gonçalves dos Santos, morreu em 26/12/80, com 1 ano, filha de Iracy Gonçalves dos
Santos e Evódio Teixeira dos Santos, residente na Rua C, nº 79.
22
Izaura Brito dos Santos, morreu em 17/12/80, com 1 ano, filha de Iracy Brito da Conceição e
José Gomes dos Santos, residente na Rua C, nº 62.
23
Luis Antonio e Maria Aparecida, morreram no mês de dezembro,10 dias de diferença de um p/
o outro, um com 2 anos e outro com 3 anos. Filhos de Antonio Luis e Maria José da
Conceição.
24
Elenir Alves dos Santos, morreu em 30/12/80, com 1 ano e 2 meses, filha de Durval Mendes
Medeiros e Maria Nilva Alves dos Santos, residente na rua G.
25
Adailton Alves Miranda, morreu em 09/12/80, com 5 meses de idade, filho de Manoel da Silva
e Severina de Brito, foi levado ao médico, mas não tinha dinheiro para comprar os remédios.
26
Maria Ferreira Souza, morreu em 23/09/80, aos 7 dias de nascida, filha de José Ferreira da
Silva e Oraldina Marques da Silva. Foi levada à Agrovila 9, mas os médicos não atenderam.
27
André, morreu em 23/12/80, com 2 anos, filho de Antonia e José Fernando, residente na Rua
G. Foi levado ao médico na Agrovila 9, mas não tinha dinheiro para comprar os remédios.
28
Maria José de Oliveira, morreu em setembro de 80, com mais de 2 anos, filha de Severino
Cândido da Silva e Josefa Inácia de Oliveira, residente na rua A, nº 15. Faltou transporte para
levar ao médico.
29
Maria Lúcia Neres dos Santos, morreu em novembro de 80 com 3 anos, filha de Maria de
86
Lourdes Neres dos Santos e Valdemir Moreira dos Santos, residente na rua J, nº 225.
30
Marilene, morreu com 1 ano e 8 meses, filha de Joaquim Antonio da Silva e Maria Antonieta
da Silva, morreu em dezembro de 80, por falta de condições financeiras para ser levada à
Agrovila 9.
31
Raimunda Neres dos Santos, morreu em dezembro de 80, com 8 meses, residente na rua J, nº
225.
32
Edilson Paixão de Jesus, morreu em setembro de 80, com 6 meses, filho de Zélia Antonia de
Jesus e Edivaldo Paixão de Jesus, residente na rua I, nº 238.
33
Cicero, Maria e Creuza, morreram, um com 1 ano, outro com 2 anos e 8 meses, a última com 4
anos. Filhos de Pedro Antonio dos Santos, e Sebastiana Ferreira dos Santos.
34
Na casa nº 227 da rua I, morreu uma criança com 1 ano e 6 meses em outubro 80. Filha de
Francisco e Francisca.
35
Manoel Timoteo Filho, morreu em novembro de 80, com 1 mês, filho de Maria José de Lima e
Manoel Timoteo, residente na rua I, casa 239.
36
Izabel Costa Prechedes, morreu em novembro de 80, com 3 meses, filha de Manoel Ramos
Prechedes e Eva Prechedes, residente na rua I, casa 233.
Nesse caso, ficou evidente que a situação de pobreza e de fome foi determinante para o
surgimento de doenças na população, especialmente nas crianças. Com o passar do tempo,
foram aparecendo os sintomas: febre, disenteria, inchação, vômito, ferimentos por todo o
corpo e emagrecimento progressivo. As mortes dessas crianças, na Agrovila 13, foram apenas
o caso de maior notoriedade, que, conseguiu chamar a atenção das autoridades para os
problemas que existiam nas agrovilas e que precisavam ser resolvidos com urgência. Mas, de
acordo com as narrativas dos colonos, existiram outros casos. Morreram muito mais pessoas
nas outras agrovilas cujos óbitos não foram registrados pelos órgãos competentes.
Junto ao descaso com o qual a questão foi tratada por parte de alguns segmentos da
sociedade, esse acontecimento permanece vivo na memória daqueles que o vivenciaram mais
de perto, ou seja, os familiares dessas crianças mortas.
Em todas as entrevistas realizadas com os moradores da Agrovila 13, a referência e a
lembrança dolorosa desse acontecimento são uma constante. Somam-se a isso, tantas outras
reminiscências93 de situações difíceis enfrentadas por eles e que por certo os marcaram
93
Conforme Thompson (1997), “reminiscências são passados importantes que compomos para dar sentido mais
satisfatório à nossa vida, à medida que o tempo passa, e para exista consonância entre identidades passadas e
vividas”. THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias. In: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC/S, Projeto História nº15,
São Paulo: EDUC, 1997, p. 57.
87
profundamente, tanto que fazem questão de recontar a todos como numa tentativa de reavivar
a memória para não permitir que isso ocorra novamente.
Situações como essa ocorriam porque os serviços sanitários e médicos do Projeto eram
bastante precários, não tendo as mínimas condições de prestar o devido socorro à população.
No caso dessas crianças da Agrovila 13, muitas ainda foram levadas ao posto de saúde, mas,
depois de atendidas, foram mandadas de volta para casa, e algumas morreram poucos dias
depois. Consta no relatório94 da CPT:
Poucas crianças foram levadas ao posto da agrovila 09, e lá o médico
disse apenas que elas tinham fome e mandou de volta para a agrovila,
sem o devido atendimento. Outros ainda, chegaram a levar as crianças
até a Lapa, mas quando voltaram à agrovila, alguns dias depois
faleceram.
No desespero para prestar socorro aos filhos, muitos pais buscaram ajuda em outras
localidades onde tivessem acesso a um melhor sistema de saúde. Foi exatamente o que
fizeram D. Josefa de Moura95 e seu esposo, o Sr. Antônio Joaquim96. Após a filha apresentar
os primeiros sintomas da doença, levaram-na para ser medicada em Bom Jesus da Lapa. Lá, o
caso não foi resolvido. Então, foram buscar socorro em Santa Maria da Vitória, onde também
não obtiveram resultados, partindo, finalmente, para a capital do estado. Em Salvador,
obtiveram algumas respostas para o que estava acontecendo com a sua filha e,
consequentemente, com as demais crianças das agrovilas.
Porque a médica me esclareceu algumas coisas. Aí a médica falou
assim, que era um tal de calazar, ou pegava de cachorro, às veis o
cachorro se deitava num lugar e o menino senta em cima, ou de poço
d‟água quente assim na rua, que quando chove tem muita, ou melancia
quente porque pega aquela melancia quente aí da roça aí você parte e
chupa. Mais, eu achava que essa maioria desses menino que morreram
deve ter sido mais ou menos isso porque era quase os mesmo sintoma,
dor de cabeça, ficava aquela barrigona grande.
No trecho da narrativa, o Sr. Antônio Joaquim faz referência à doença leishmaniose,
conhecida também como calazar, doença que é bastante comum em áreas rurais com matas
fechadas, já que é transmitida por um mosquito infectado pelo protozoário, causador da
94
Item: “Assistência médica: um problema permanente”. Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom
Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, p.31.
95
Josefa Vicente de Moura, 53 anos, entrevista realizada pela autora em 30 de novembro de 2009, Agrovila 13.
96
Antonio Joaquim Filho, 59 anos, em entrevista realizada em 30 de novembro de 2009, Agrovila 13.
88
infecção. Conforme aponta o depoente, a doença pode se desenvolver em cães e ser
transmitida ao homem.
Vê-se que bastava o esclarecimento sobre a doença e o uso de repelentes adequados
pela população para evitar a contaminação. Mas, faltava nos postos de saúde das agrovilas
uma equipe capaz de prestar o atendimento a casos de doenças, tais como a leishmaniose. No
máximo, resolviam-se nos postos de saúde casos simples como consultas rotineiras e
curativos, motivo pelo qual o Sr. Brás Antônio97 sempre se queixou. Morador da Agrovila 13,
em suas narrativas acerca das dificuldades que teve ao chegar ao Projeto de Colonização, seu
foco foi a falta de hospitais para a população, já que “tudo que precisava era na Lapa,
enfrentava uma balsa, e os primeiros [colonos] passava dois, três dias de cavalo para ir lá”.
O caso específico da morte das crianças na Agrovila 13 nos revela as dimensões dos
problemas que as agrovilas apresentavam aos novos migrantes. Estes problemas se devem ao
fato de que, ao passo que o Projeto de Colonização ia se expandindo com a abertura de novas
agrovilas por causa da demanda, a estrutura de serviços básicos existenciais não crescia no
mesmo ritmo, demonstrando, assim, as falhas de atuação dos órgãos especializados - o
próprio INCRA, a FSESP e a EMATER/BA - responsáveis pela construção e manutenção da
infra-estrutura necessária à habitação nas agrovilas.
Como esperar que essas pessoas se beneficiariam de ações preventivas de saúde se as
condições estruturais básicas de moradia ainda eram precárias? Segundo dados do relatório98
da CPT, “90% das casas das agrovilas não tem banheiro, lavatório, pia de cozinha ou tanque
de lavar; 80% das residências não tem filtro; 92% usam fossa seca; nenhuma agrovila tem
coleta pública de lixo, rede de esgoto, nem água tratada”.
Dessa forma, a memória relatada pelas pessoas que vivenciaram os primeiros tempos
do Projeto, vem sempre carregada de nostalgias, pesares, conformismos e também
resistências.
São relatos que evidenciam não só as dificuldades de sobrevivência, mas também o
processo de adaptação desses migrantes à região, sobretudo, as práticas sociais construídas
por eles nos novos espaços habitados. Lembro que a noção de espaço referida neste trabalho é
a adotada por Certeau (1994, p. 202) segundo a qual, “o espaço é o lugar praticado”, e que
este é configurado a partir das ações dos sujeitos históricos.
Nesse sentido, a memória é, portanto, inseparável da vivência da temporalidade, “a
memória atualiza o tempo passado, tornando-o tempo vivo e pleno de significados no
97
Brás Antonio da Silva, 74 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
Relatório Que solução é essa? As agrovilas de Bom Jesus da Lapa, CPT, Goiânia, Junho de 1982, p.6.
98
89
presente” (DELGADO, 2006, p. 38), ou, nas palavras de Dosse (2001, p. 67), “a memória,
supondo a presença de um ausente, continuará sendo o ponto de união entre passado e
presente”.
Para os migrantes que chegavam ao Projeto de Colonização, mesmo existindo um
ambiente que se aproximava do seu universo de relações construídas no lugar de origem, que
eram anteriores à migração, isso não anulava o sentimento de estranhamento em relação ao
novo espaço e aos novos padrões de vida com os quais teriam que conviver. Portanto,
habitando esse universo com o qual ainda não tinham se familiarizado,eles se sentiam, quase
sempre, desorientados nas suas ações.
Contando somente com as relações pessoais iniciais, seja com familiares, amigos ou
conhecidos, o migrante recém-chegado precisou ir se ajustando, aos poucos, às novas
condições de vida apresentadas no Projeto de Colonização.
Essas primeiras relações vão nascendo da convivência do migrante com as demais
pessoas no cotidiano, e servem de apoio para a sua adaptação ao novo espaço. São essas
relações que definem o ajustamento inicial do migrante ao ambiente e às pessoas, se
apresentando-se a ele como uma possibilidade de “reconstituição de seu universo” anterior à
migração. Durham (op.cit., p. 184) denomina-as de “relações primárias”:
Daí a enorme importância que assume inicialmente o grupo de
relações primárias. Não se trata, na verdade, de um grupo que possua
existência autônoma, mas de um grupo que é constituído pelo
imigrante e em torno do migrante, na medida em que ele mobiliza
conhecimentos e relações estabelecidas, direta ou indiretamente, na
comunidade de origem. O imigrante procura imediatamente parentes
ou amigos, na falta destes, apela para amigos de parentes, ou parentes
de amigos. E é na expectativa dessa necessidade inicial que ele
mobiliza previamente as relações pessoais que são o instrumento
principal do ajustamento.
As dificuldades de adaptação ao novo espaço, ou lugar de destino, se acentuam mais
ainda quanto maiores forem as distâncias e as diferenças deste em relação ao lugar de origem,
levando o migrante a se sentir desenraizado de seu modo de vida anterior. “Desenraizado”99 é
um termo apropriado por Santos (op.cit., p. 101, 102) para a análise das consequências da
migração sobre o indivíduo; segundo ele, “o processo migratório em si faz com que as
pessoas sintam-se extremamente desenraizadas, pois ocorre a perda completa de referências
99
Outros autores utilizam o termo “desterritorializado” para designar o processo, como, por exemplo, Haesbaert
(2005).
90
que são muito marcantes na vida das pessoas e que fazem parte de seu modo de ser e viver”.
O
relato
do
Sr.
Francisco
Chagas100
representa
bem
o
sentimento
de
“desenraizamento” provocado pelo deslocamento; para ele a migração representou muito mais
que uma mudança de lugar, foi uma mudança de vida.
Você sabe que é difícil, você perdeu a identidade, você saiu de uma
região onde você nasceu e criou-se lá, seus avós, e toda sua história, e
ter que deslocar com toda a sua família, vieram os pais, os filhos, uma
geração completa pra cá. Aí chega aqui tem um choque, o choque de
cultura mesmo, geográfico e cultural, é uma situação que só quem
viveu que entende.
Verifica-se nessa narrativa que o choque cultural se dá em decorrência do processo
migratório, em que o migrante, ao mesmo tempo que abandona todo um modo de vida
construído em seu lugar de origem, deixando para trás seus familiares, se prepara para
enfrentar os desafios e as dificuldades da adaptação colocadas pela nova situação.
Para o Sr. Francisco Soares101, a migração significa instabilidade, por não saber o
migrante como vai ser depois da fixação, quais serão os desdobramentos, além da dificuldade
de deixar a família.
O lugar de origem da gente, como diz, é aonde a gente enterra o
umbigo, né, [risos] sempre tem essas dificuldades, aqueles parentes, é
vó, é tia, pra você se deslocar assim, como no meu caso, eu nunca
tinha saído pelo mundo, com família a gente tem sempre um pé aqui
outro pra trás, será que vou me dá bem, o que que vai acontecer, né.
É notória a gratidão que uns sentem pelos outros, por aqueles que os ajudaram nos
momentos de grande necessidade. Bastava que algum colono tivesse com problemas para que
a comunidade se reunisse para discutir, ver quais as formas de colaboração a esta pessoa. De
certa forma, a situação da migração e das dificuldades os unia, havendo uma identificação
com a situação vivida pelo “Outro”. Em pesquisa sobre trabalhadores rurais do Recôncavo
Baiano, e como as relações de solidariedade são estabelecidas no cotidiano, Santana (op.cit.,
p.50) considera:
A ajuda mútua entre as famílias trabalhadoras penetrava todo o seu
100
Francisco Chagas dos Santos, 51 anos, em entrevista realizada pela autora em 15 de agosto de 2010, Agrovila
09.
101
Francisco Soares de Souza, 60 anos, entrevista realizada pela autora em 17 de maio de 2010, Agrovila 09.
91
cotidiano. Sob a matriz da informalidade camponesa, as práticas de
solidariedade generalizavam-se nas permutas mais simples de doces
por frutas, no empréstimo da foice ou auxílios espontâneos em
momentos difíceis em relação à saúde; no empréstimo de litros de
farinha ou de leite para as crianças cujo “pagamento” poderia ser com
um frango ou apenas com um “Deus lhe pague”; em doações em
dinheiro, a depender das circunstâncias.
As relações de solidariedade foram se forjando a partir da convivência e identificação
entre os grupos de migrantes, sociabilidades evidenciadas tanto na recepção dos “chegantes”
por aqueles que já moravam nas agrovilas quanto nos momentos em que compartilhavam
experiências, como, por exemplo, nos mutirões com a finalidade de construção de casas,
igrejas, ou ainda, nas colheitas das lavouras. Tais atividades os agrupavam em torno de um
determinado objetivo, onde se davam as mãos para vencer as intempéries da vida cotidiana.
Ao se recordar da noite da chegada à Agrovila 01, D. Maria Pereira 102 relata que o
cansaço da viagem foi recompensado pela recepção solidária de moradores que já residiam lá.
Aí a gente chegou mesmo devagar, não tinha nada, pra fazer uma
coisa de comida que trazia tava no carro, aí no outro dia foi que ia pra
venda pra comprar alguma coisa pra quem quis comer. Na noite que
nóis cheguemo, chegou um pessoal que é de lá mesmo da agrovila, né,
aí trouxe uma farinha, peixe, que naquele tempo o que o povo comia
era peixe, mais tinha peixe! Nessas lagoa que eu tô falano pra você
[em referência à lagoa que existia próxima à Agrovila, uma alternativa
à água salobra para lavagem de roupas e o consumo], nego passava
com cada peixão desse tamanho [gestos].
Mas a união entre as famílias de colonos não foi um sentimento que ficasse
circunscrito apenas aos laços de solidariedade, ela se desenvolveu também nas relações de
parentesco e de compadrio. Nas narrativas, existem referências à ocorrência de batizados e
também de casamentos no interior desses grupos familiares, ou seja, entre irmãos, filhos de
irmãos, tios, primos, vizinhos, amigos e conhecidos. Enfim, eram pessoas que tinham entre si
algum grau de parentesco, ou que fossem conterrâneos.
Em relação à Agrovila 13, por exemplo, é provável que o fato de os paraibanos
constituírem um grupo que migrou junto e que continuou junto, morando nessa agrovila, pois
suas residências se concentraram praticamente numa única rua, tenha facilitado o nascimento
dessas relações entre as famílias. Isso fez com que, por eles já terem convivido durante muito
tempo no lugar de origem, houvesse um fortalecimento das relações de solidariedade,
102
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
92
compadrio e parentesco, perpetuando-se mesmo depois do deslocamento para o Projeto de
Colonização.
A ocorrência dessas relações foi comum nas agrovilas. Muitos entrevistados fazem
referências em suas narrativas aos muitos “compadres” e “comadres” que têm em sua rede de
sociabilidade. Um exemplo é a D. Maria Ivonete103; num trecho (abaixo) da sua entrevista ela
explica quais são as relações de compadrio que tem entre os seus familiares, ressaltando que
essas relações nascem da tradição.
Sabe porque nóis chama cumade e cumpade, por causa que os
meninos, ói é assim..., meu segundo filho é afilhado de cumpade
Batista e cumade Rita [que são, respectivamente, sogro e sogra]. Esses
outro também. Eu sou madinha do menino de cumade Zefinha [sua
cunhada] aqui também. Aí Vaninha é afilhada de um irmão meu, meu
irmão mais véio. Aqui na família quase tudo é cumpade. É, porque o
cumpade João Félix [seu cunhado], nóis já somo cumpade porque eu
sou a madinha de Hernandes, o filho mais véio dele que mora na 09. E
eu não sou madinha legítima, madinha de fogueira, mais ele me
considera como madinha, né. Acho que isso é tradição que o povo
gosta, né.
Na narrativa se evidencia uma das formas mais antigas de sociabilidade existente no
universo dos trabalhadores rurais, as relações de compadrio, muito comuns entre as famílias
de paraibanos da Agrovila 13; assim, conforme Woortmann (1990, p. 33), “compadres são
concebidos como irmãos rituais (e, com grande frequência, são irmãos de sangue)”.
No presente trabalho, faço uso do termo “compadrio” como forma de estabelecimento
do parentesco espiritual entre compadres a partir do batismo cristão, mas, sobretudo, como
forma de estabelecimento ou fortalecimento de vínculos sociais e simbólicos entre indivíduos,
que podem ou não ser parentes consanguíneos. Mas, convém ressaltar que o termo carrega
muitos outros significados, que ultrapassam a questão da relação compadre/comadre,
simplesmente designando uma relação política, voltada para ações clientelistas e coronelistas.
Vainfas (2001, p. 126-127), em seu Dicionário do Brasil colonial (1500-1808), nos dá
algumas informações sobre como o termo “compadrio” adquiriu diferentes significados e usos
históricos:
O termo usado no século XVIII era compadrado, derivado do
compadrazgo castelhano, mas compadrio tornou-se a forma corrente
de se referir ao estabelecimento do parentesco espiritual entre
compadres, no momento do batismo cristão. [...] Padrinho e madrinha
103
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
93
se tornam, no catolicismo, pais espirituais do batizando, estabelecendo
parentesco espiritual com os pais carnais. Mas a utilização histórica do
rito transcende o significado religioso. [...] “Comadre”, por sua vez,
era indicado para nomear, familiarmente, a parteira, além da relação
dos pais com a madrinha. Relatos coevos aludem à extrema
importância dada na sociedade colonial às relações de compadrio,
havendo registro de parentes consanguíneos preferirem se intitular de
compadres, dado o prestígio desta relação. Apesar do termo padrinho
existir como referência às testemunhas do matrimônio, entre noivos e
testemunhas de casamento não havia parentesco espiritual e o
compadrio não se estabelecia de fato. No período colonial, o padrinho
também era referido no sentido de “protetor”, aquele que intercede por
alguém em certas cirscunstâncias. Muito comum foi o fato de escravos
fugidos procurarem um padrinho, no sentido de protetor, para
poderem voltar para o senhor. [...] Os padrinhos eram, via de regra, de
um nível social acima dos seus afilhados e sua escolha estava
determinada pelo contexto social da escravidão.
Santana (op.cit., p.51-52) nos dá uma rica contribuição para entender a importância do
compadrio nas relações sociais e na cultura dos trabalhadores rurais. Segundo o autor, “entre
as décadas de 1950 e 1970, o compadrio aparece como uma instituição profundamente
enraizada nas tradições rurais, mas com múltiplos significados”. A partir da análise do
compadrio nas relações entre trabalhadores rurais do Recôncavo Baiano, nesse período, o
autor conclui que “os trabalhadores do campo viviam envoltos em uma profusão de redes de
compadrio, integrando todos entre si no bojo da mais expressiva e tradicional forma de
sociabilidade: compadres de parto, de batismo, de casamento, de fogueira.”
No trecho da narrativa de D. Maria Ivonete104, evidenciam-se os tipos de compadrio
que foram mais recorrentes nas agrovilas de Serra do Ramalho: o batismo cristão e o batismo
de fogueira105, que, mesmo constituindo cerimônias diferenciadas em sua realização, ambas
recebem o mesmo respeito e consideração daqueles que se unem com tal propósito.
A solidariedade e a amizade entre pessoas que se estabelecem num princípio de
reciprocidade são elementos fundamentais nas relações de compadrio vivenciadas pelos
grupos no cotidiano. É por serem constituídas por tais elementos que as relações de
104
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
O batismo de fogueira de São João é uma tradição das festas juninas, típicas do Nordeste brasileiro, que
atualmente vem se perdendo no imaginário das populações rurais. Relato, a partir de minhas próprias
experiências de infância, como é realizado esse tipo de batismo. Para ser realizado, é necessário ter o
consentimento dos pais para o batismo. Assim, posicionados um em cada lado da fogueira de São João, no dia 24
de junho, padrinho e afilhado dão sete voltas ao redor da fogueira fazendo a oração. Primeiro é o padrinho quem
fala: “São João dormiu/São João acordou/ (nome do afilhado) será o meu afilhado/ Que São João mandou”.
Depois é a vez de o afilhado dizer: “São João dormiu/ São João acordou/ (nome do padrinho) será o meu
padrinho/ Que São João mandou”. E assim, encerra-se a cerimônia com ambos saltando a fogueira, e o afilhado
recebendo a bênção do padrinho. Ressalto, porém, que essa é uma das maneiras de se realizar o batismo de
fogueira, que muda de acordo com a cultura de cada povo, e cada lugar.
105
94
compadrio são essenciais para que o migrante se adapte melhor ao lugar de destino, pois,
segundo Durham (op.cit., p.72,73), as relações de compadrio nascem em meio à formação das
“relações primárias”.
Estabelecido em base voluntária, o compadrio de um lado assinala
relações preferenciais entre parentes, de outro estende os limites da
solidariedade interfamiliar, criando laços de parentesco ritual. O
compadrio permite, deste modo, validar e criar relações de parentesco.
[...] De um lado, o compadrio provê a criança de pais substitutos. De
outro, através da criança, estabelece entre compadres relações
semelhantes às entre irmãos.
O estabelecimento dessas relações foi fundamental para que os colonos se adaptassem
melhor à nova realidade, aos novos ritmos e padrões de vida colocados pelo meio social em
que viviam. Através das memórias narradas por esses colonos, evidencia-se que houve muitas
semelhanças na maneira como eles sentiram as dificuldades e as necessidades apresentadas
nos primeiros tempos no Projeto de Colonização; somado a isso, ainda tinham que lidar com
suas próprias limitações em compreender e aceitar o “novo”.
Mas, a nova situação e a instabilidade que ela propiciava é que os encorajaram a
enfrentar esses desafios, buscando soluções que amenizassem as desigualdades e contradições
existentes. As soluções apareceram, a partir do momento em que se fomentou entre esses
migrantes o nascimento de relações que os uniam em um determinado propósito, seja o de
solidariedade, de compadrio ou parentesco.
95
3.2 Fronteiras: Estranhamento e aceitação no convívio com o “Outro”.
Sendo de vários lugares e com modos de vida tão diversos, os migrantes do Projeto de
Colonização Serra do Ramalho tiveram que vencer outros obstáculos, ou seja, romper com as
barreiras da diferença, da desconfiança e do medo do desconhecido, sentimentos comuns
entre aqueles desbravadores. Tudo era novo. A incerteza de como seriam suas vidas nas
agrovilas dali em diante, de certa forma, é que os movia.
Somente a convivência é que os revelaria como iguais e, ao mesmo tempo, tão
diferentes em seus hábitos, comportamentos e culturas. Menezes (2007, p. 109) nos dá uma
definição interessante desse estado de mudança que o migrante atravessa ao migrar:
A migração abandona os valores que foram formadores, mas ao
mesmo tempo os carrega como tropa de choque para a nova situação.
Pessoas e lugares são deixados para trás. [...] Assim, o choque cultural
é inevitável no processo migratório, quando os pré-conceitos precisam
se abrir à revisão ou toda a personalidade deve se preparar para os
mecanismos de defesa frente à adaptação ou resistência à mesma.
Em entrevista, o Sr. João Félix106 nos revela facetas muito interessantes em relação a
sua convivência com as demais pessoas na Agrovila 13. Não me esqueço de que, durante a
entrevista, ele estava deitado tranquilamente em sua rede, num costume comum aos
nordestinos. Tive que aproveitar a sua disponibilidade em conversar comigo, em contar um
pouco sobre a sua experiência de vida, era domingo e ele estava em sua casa descansando.
Durante toda a entrevista, ele permaneceu ali, sem pressa...
Segundo ele, quando chegou ao Projeto de Colonização, gostou muito do lugar, mas
achou tudo muito diferente da vida que levava na Paraíba já que naquele novo espaço ele era
o “chegante” 107, e que só foi se acostumando à nova realidade com o passar dos dias e a partir
da convivência social.
Sim, é que nóis que chega a gente acha tudo diferente, um modo
assim, né, um ritmo de conversa dos outros, das propostas, assim de
primeiro a gente achava meio diferente, sabe? Mas, a gente vai se
habituano né, vai se acostumano com os hábitos de outra região e pelo
106
João Félix, 62 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
Em relação ao termo, José de Souza Martins escreveu: “chegante não é simplesmente quem chega, mas quem
chega para ficar, para se tornar membro do grupo, quem compartilha solidariamente e fisicamente o destino dos
que estão em busca de um lugar”. In: MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins
do humano. São Paulo: Contexto, 2009, p. 15.
107
96
menos do lugar a gente gostou de mais, né, pelo meno eu, e os outro
também acho que gostou porque quase todos ficaram, foi algum que
voltou.
Para se ter uma idéia, as relações estabelecidas entre esses migrantes nas agrovilas
foram marcadas por preconceitos, expressos, muitas vezes, em piadas e também nos
comportamentos e no tratamento que era dispensado ao Outro. O Sr. João Félix conta sobre
uma espécie de “marcação” que ele sofreu numa ocasião em que esteve muito doente108,
assim como os paraibanos de modo geral, segundo ele.
O Sr. João Félix109 não cita nomes, nem é muito claro nas informações sobre o que
realmente teria ocorrido, como se ainda temesse algum tipo de comprometimento. Ele
ressalta, em sua narrativa, que características da personalidade do paraibano, como a
sinceridade e o apreço em dizer sempre a verdade, muitas vezes, foram interpretadas pelas
pessoas de maneira equivocada, enxergando-os como pretensiosos e mudando o tratamento
social dispensado a eles.
Às vezes acontece muito, que existe, de qualquer maneira existe,
quando a gente chegou, a gente tem que falar a verdade, né, aqui
quando a gente chegou é, num sei, num vou falar quem porque
também a gente... Eu tive um problema de saúde, mais houve
marcação, é que o pessoal falava que “ah, esses paraibano só pensa
que é isso, só pensa que é aquilo”, que houve marcação houve, né, é
que a gente é um pessoal mais assim, quer dizer, que gosta de falar
realidade, num gosta de deixar nada escondido. Então, as pessoas...
Entende mal ou quer achar que o cara quer ter alguma coisa, porque
eu acho que a pessoa que é realista ele tem que falar a verdade, e
muita hora o cara às vezes é meio covarde, diga uma coisa, aí num
quer explicar, eu acho que a verdade dói, mas é dita, né. Que tinha
marcação, tinha, mas a gente conviveu com pessoas e foi se habituano,
né, e acostumano.
Esse estranhamento inicial com o lugar e com as pessoas foi sentido por boa parte dos
colonos, marcando significativamente as suas vidas. São relações que nascem do imaginário
criado sobre “o Outro”, “o diferente”, “o chegante”, numa relação de comparação ou de
108
Num outro trecho da entrevista, o Sr. João fala sobre qual era a doença que o acometia no período,
justificando-se por não se lembrar de como foi realizado o pagamento do seu lote rural quando o questionei
sobre a quantia cobrada pelo INCRA, dizendo: “[Não lembro disso não]. Eu tive um problema, uma doença que
é labirintite, parece, os médicos acha que é que dá muito esquecimento. Eu num lembro se pagou taxa aqui por
esses lote não. Se pagou também foi uma mixaria na época”.
109
João Félix, 62 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
97
oposição. Estrela (op.cit., p. 20) aponta que houve distinções entre os primeiros assentados e
os demais migrantes que chegaram depois ao Projeto de Colonização.
Para os moradores das agrovilas que ali se estabeleceram em primeiro
lugar – os provenientes das áreas submersas pela Represa de
Sobradinho –, os novos reassentados constituíram ameaça, criando um
clima de desconfiança e animosidade entre eles. [...] No imaginário
dos indivíduos provenientes das áreas submersas pela Represa de
Sobradinho, os demais nordestinos aparecem como violentos e
responsáveis pela desagregação de uma ambiência baseada na
solidariedade e união, que acreditam ter trazido dos barrancos
sanfranciscanos. Numa clara demonstração de relação de hierarquia,
os nativos de Serra do Ramalho desaprovavam o projeto e
responsabilizavam os indivíduos de “fora”, independentemente de sua
procedência, por tudo quanto de “estranho” e “errado” acontece nas
agrovilas.
Perguntada se, ao chegar ao Projeto de Colonização, estranhou o lugar e o modo das
pessoas que lá viviam, D. Maria Pereira110 disse que “sim”. O curioso é que em sua narrativa
ela reclamou da solidão, sentimento que não estava ligado diretamente à realidade dos
problemas que os migrantes assentados nas agrovilas enfrentavam, mas aos caminhos que sua
vida tinha tomado, no que se refere às suas relações com a sua família, em especial, a perda
do esposo e o casamento dos filhos, já que estes, depois que se casaram, foram embora “fazer
a vida deles”.
É, o que eu estranhei mais quando cheguei aqui, ainda hoje, sendo que
hoje aqui na 13 tá mais mió. Proque aí, como eu falei pra senhora,
minhas fia casaram e eu fiquei viúva, fiquei só, não tinha ninguém, né,
proque a derradeira que casou ainda ficou uns tempo dentro de casa
mais eu, mas o marido deu a veneta de ir pra São Paulo, aí foi pra São
Paulo, eu fiquei só. [...] Ah, a gente acostuma, só num acostuma muito
é com a solidão, né.” [A D. Maria mora sozinha, somente à noite é que
uma sobrinha vem dormir com ela. E ainda cuida da casa com presteza
e muita dedicação.] [...] ”Já me acostumei assim proque eu interto
muito na televisão, não é toda hora, que eu não sou de ligar televisão
toda hora, outra hora eu boto uma música, tô ouvindo uma música, já
tô mais acostumada. Aí aqui na 13 quando eu vim, pr‟aqui eu já vim
só, vendi meus lote, eu tinha um irmão meu que morava ali na Rua B
na casa que Aloísio mora, ele me ajudou muito, aí eu, quando vendi os
lote, dei o dinheiro pra ele comprar a casa e ajeitar a energia pra
quando eu vim pr‟aqui já ter energia, mas aí...fiquei aqui mais ele,
gosto muito daqui, eu gostava da 01 também proque lá tem muita
gente muito bacana.
110
13.
Maria Pereira da Silva, 73 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila
98
O sentimento de estranheza sentido pelos colonos diante das diferenças encontradas no
Projeto de Colonização, para além das contradições, revela o profundo sentimento de
pertencimento do migrante a sua cultura de origem. Por mais que ele já esteja integrado,
vivendo outra situação, ele permanece fiel às suas origens e traz na memória as lembranças de
suas raízes. Dessa forma, ele vive “a aparente dissociação entre estar aqui e sentir-se
pertencendo a outro lugar (MENEZES, 2007, p. 119)”.
Revelada em múltiplas formas e espaços, a diferença se apresentou em aspectos que
iam desde os comportamentos sociais, passando pela forma distinta de nomear as coisas, até
as comidas e as festas típicas, tradições culturais que foram trazidas pelos diversos grupos de
migrantes que chegaram ao Projeto de Colonização Serra do Ramalho.
No caso a seguir, a comida se constitui num fator de diferenciação de cultura. Em
entrevista, ao ser questionado sobre as diferenças entre os grupos com os quais conviviam nas
agrovilas, o Sr. João Félix111 apontou para a existência de uma “diferençazinha” em relação ao
nome e ao modo de preparo de alguns pratos típicos da Paraíba, exemplificando que o angu
que é feito lá é bem diferente daquele produzido “aqui” pelos colonos baianos.
Ele afirma ainda nunca ter ouvido dizer que baiano faz angu, ainda mais, do “modo
como deve ser preparado”, o que o baiano faz é o mingau. E assim, nos ensina a fazer a
receita do tal angu paraibano.
O angu é, põe a água pra ferver aquela quantidade certa, né, as
mulheres já sabe botar aquela quantidade certa e aí molha o milho e
faz a massa, como é o vitabem, sabe? Aí quando a água tá fervendo, aí
ela vai mexendo e colocando aquela massa, aí eles aqui chama
mingau.
Foi somente no final da entrevista que ele contou no que consistia a tal
“diferençazinha”, consistia no nome que é dado a cada prato, e na maneira como eram
preparados. Mas será mesmo uma questão somente de nomenclatura? O mingau e o angu de
milho, comidas citadas pelo Sr. João, constituem um mesmo prato?
A maneira como lidamos com os alimentos, como os preparamos, consumimos ou
comercializamos, constitui um outro fator de diferenciação que, às vezes, pode ser pequena e
simples, mas elas são responsáveis por legitimar comportamentos e modos específicos dentro
de determinados grupos. Portanto, o Sr. João Félix112 tem razão ao afirmar que o angu dos
111
João Félix, 62 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
Idem.
112
99
paraibanos nunca será o mingau dos baianos, ou o contrário, porque “[...] eles faz assim
diferente da nossa e tem várias comidas que a gente faz que é diferente das dele, entendeu?”.
Remetendo a um estudo do potiguar Luís da Câmara Cascudo sobre a culinária no
Brasil, o historiador Ronaldo Vainfas afirma que a culinária é um dos aspectos fundamentais
para se compreender a diversidade das culturas e povos. Assim, a relação que o homem
mantém com os alimentos estabelece íntima relação com a construção de sua identidade
(VAINFAS, 2001, p. 151-152).
D. Maria Ivonete113 aponta para as mesmas diferenças sentidas pelo Sr. João Félix.
Segundo ela, a sua adaptação ao Projeto de Colonização foi rápida, mas confessa que teve
dificuldades de se acostumar com alguns nomes de alimentos.
Diferente aqui só essa história deles falarem, né, em questão de goma,
que eles falam é polvilho ou tapioca. Outra diferença é que nem todos
num sabe desse tal de rubacão. O rubacão é uma comida que só nóis
fazemo [e nos presenteia com a receita], é assim, bota o feijão, né, o
feijão cozido, depois a gente bota pra frever, aí coloca o arroz dentro,
lava o arroz, né, e coloca, aí coloca todos os tempero, cheiro-verde, se
gostar, se tiver uma pimentinha de cheiro. Aí eu gosto também de
colocar uma natinha, colocar manteiga, manteiga mesmo que eu faço
em casa. [...] Eu gosto muito de colocar a nata no feijão de corda, no
de arranca não, o de arranca já é bom demais, que a gente já basta, né,
butar os temperim e óleo, coloca no óleo ali e passa o feijão, fica
gostoso. Mas, já o feijão de corda merece mais a gente colocar uma
natinha [risos].
O rubacão, citado por D. Maria Ivonete114, é um prato típico da culinária paraibana que
teve sua preservação garantida, pois os filhos dos colonos aprenderam a fazê-lo, mantendo
viva a tradição. Eles fazem questão de preparar o rubacão, principalmente nas ocasiões em
que se reúne toda a família, como forma de se sentirem mais próximos de sua terra de origem,
isso porque “comer não é um ato solitário ou autônomo do ser humano, ao contrário, é a
origem da socialização” (CARNEIRO, 2005).115
A receita de rubacão que D. Maria Ivonete116 nos apresentou, no trecho da narrativa
acima, é mais conhecida, devido a ter uma preparação mais simples; sendo à base de feijão e
de arroz a receita leva poucos ingredientes. Mas, há muitas variações para esse prato, com a
113
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, em entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
Idem.
115
CARNEIRO, Henrique S. Comida e sociedade: significados sociais na história da alimentação. Revista
História:Questões & Debates, Editora UFRP,Curitiba, n.42, p.71-80, 2005. Disponível em:
<http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/view/4640/3800>. Acesso em: 13 de março de 2011.
116
Maria Ivonete da Silva, 58 anos, em entrevista realizada pela autora em 13 de junho de 2010, Agrovila 13.
114
100
introdução da carne seca, do leite e do queijo, o que o torna mais incrementado e também
mais caro.
Muito consumido por trabalhadores rurais em alguns estados do Nordeste, o rubacão
também é conhecido como o baião de dois. Segundo o Sr. Francisco Soares117, um autêntico
apreciador do prato, a sua família prepara o rubacão da seguinte maneira: “é o feijão com o
arroz, e aí você bota leite, bota queijo, bota tempero verde e carne seca, né, tudo junto”. Além
do rubacão, o Sr. Francisco Soares nos conta sobre outros pratos típicos da culinária
paraibana, como o arroz de leite salgado e o mugunzá, “que é o milho descascado e cozido, e
aí faz com carne, faz com toucinho, come com leite; eles aqui num usa, né”.
Outro costume característico da culinária paraibana é o uso do leite na alimentação, e
também da nata do leite, usa-se em alimentos como feijão, arroz, peixe, maxixe, etc; de
acordo com os entrevistados, o leite dá o “toque especial” aos pratos, servindo também para
encorpar os caldos e ensopados, dando muita “sustança” para quem deles se alimenta.
Esses exemplos são bastante relevantes para a compreensão da cultura alimentar como
um elemento que agrega o grupo numa identidade, porque, a partir do conhecimento desses
hábitos e práticas alimentares, criamos possibilidades de reconstrução das peculiaridades de
cada povo e de cada lugar.
Um segundo fator de diferenciação cultural, nas agrovilas de Serra do Ramalho, é a
festa. Festa é entendida, aqui, como costume, espaço de socialização que possibilita a
integração de diversos estratos sociais.
É com entusiasmo que o Sr. João Félix118 se recorda do forró em que a sanfona e o
triângulo marcavam os passos nas festas da Paraíba. Ele faz uma comparação entre as festas
“antigas” e as de hoje, afirmando não se acostumar com a atitude de algumas pessoas
estranharem a participação de velhos nas festas, e nas agrovilas ele diz ter convivido bastante
com isso. Tais situações nunca aconteceram entre seus conterrâneos, tampouco em sua terra
natal, onde o forró é mais democrático, “é um descontraído encontro entre crianças, jovens e
adultos”.119
Sobre festa tem uma diferença grande, principalmente agora, né,
porque agora não existe mais forró, então, ali em tal canto tem um
forró, mais só que é totalmente diferente, porque também hoje em dia
117
Francisco Soares de Souza, 60 anos, em entrevista realizada pela autora em 17 de maio de 2010, agrovila 09.
João Félix, 62 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
119
Em relação aos costumes, as festas do período colonial “promoviam a criação de uma identidade, viabilizando
que adultos e jovens introjetassem valores e práticas coletivas”. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do
Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 233.
118
101
lá, desde que nóis chegou aqui que já era diferente, né, porque agora é
um negócio de uma lambada, num sei quê, um balançado, né, [risos]e
lá era forró mesmo de nego suar e dançava era todo mundo, véi, véia,
menino, todo mundo; já aqui se um véi sai dançano como eu gosto
muito de dançar, só não sei dançar, né, cumade [dirigindo-se à
esposa]. Aqui não, que o povo já tá acostumado comigo. Aí se tiver
num canto, se for dançar, o povo já fica: oxe! Que véi dançano, que
véi atrivido, inxerido, né.
Narrando, o Sr. João Félix120 faz uso das noções “antigamente” e “atualmente”, dando
uma ideia do tempo que está presente na memória. A utilização de tais noções lhe possibilita a
percepção, a reflexão e a compreensão do agora a partir do outrora, das transformações
ocorridas nesse meio-termo. Assim, ao narrar sobre as festas, ressalta as transformações
ocorridas nesta forma de entretenimento e diversão, mudanças relacionadas muito mais às
atitudes das pessoas que aos lugares onde elas acontecem.
A diferenciação cultural perpassa também pela compreensão do comportamento de
indivíduos em convivência numa sociedade. Nesse aspecto, o comportamento dos colonos no
Projeto de Colonização, como se evidencia na narrativa do Sr. Brás Antônio 121, morador da
Agrovila 13, levou, muitas vezes, ao surgimento da hostilidade entre eles. Ele foi incisivo ao
afirmar que, no início, “estranhava mais os baianos, por não dar atenção aos nortistas, parecia
ter uma cisma”. Mostrou-se apreensivo e um tanto desconfiado em relação às minhas
pretensões ao entrevistá-lo, por isso, não aceitou a gravação da narrativa, parecia não se
interessar em compartilhar suas memórias. No fim da entrevista estava mais tranquilo, à
vontade.
Já para o Sr. Cosme Gomes122, também morador da Agrovila 13, a convivência com os
colonos baianos sempre foi boa, além de ele ter gostado muito da terra nas agrovilas.
Estranhou um pouco as “normas” das pessoas, que ele considera que “é sempre diferente, né”.
Homem de poucas palavras e de respostas diretas, o Sr. Cosme mostrou-se bastante
disponível ao contar um pouco de sua vida. O estranhamento era revelado, muitas vezes, em
coisas bem simples, como o fato de o Sr. Cosme Gomes ter achado muito diferente os
trabalhadores levarem as suas marmitas individualmente para a roça, fazendo com que a
comida esfriasse, porque na Paraíba era diferente, se comia a comida quentinha, e “se a
mulher não pode fazer a comida e levar na roça, um homem faz e leva”.
120
João Félix, 62 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
Brás Antônio da Silva, 74 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila 13.
122
Cosme Gomes de Nize, 60 anos, em entrevista realizada pela autora em 29 de novembro de 2009, Agrovila
13.
121
102
O estranhamento se deveu, sobretudo, ao fato de que com a migração houve toda uma
mudança de vida do colono que se deslocou, desde que o seu mundo e suas experiências
anteriores foram aos poucos sendo substituídos por costumes diferentes. O encontro desses
grupos no Projeto de Colonização foi marcado por sentimentos que os levaram ao
desencontro, estranheza, desconfiança, hostilidade e, em alguns casos, à rivalidade, situações
que evidenciam que “a nossa sociabilidade dominante é demarcada e bloqueada por enormes
dificuldades no reconhecimento do outro, sua aceitação como outro, isto é, diferente, e igual”
(MARTINS, op. cit., p. 11).
O lugar que propicia esse encontro é a “fronteira”, é nela que há a imposição de
limites entre os territórios que estão em constante redefinição e disputa, ou seja, “a fronteira é,
na verdade, ponto-limite de territórios que se redefinem continuamente, disputados de
diferentes modos por diferentes grupos humanos” (Ibid., p. 10).
Discutindo ainda aspectos da multiplicidade da fronteira e tomando-a como “lugar
privilegiado da observação sociológica”, Martins (2009, p. 10-11) faz as seguintes
considerações:
É na fronteira que se pode observar melhor como as sociedades se
formam, se desorganizam ou se reproduzem. É lá que melhor se vêem
quais são as concepções que asseguram esses processos e lhes dão
sentido. Na fronteira, o homem não se encontra – se desencontra. [...]
a fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica.
Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira de civilização
(demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial,
fronteira de culturas e visões de mundo, fronteiras de etnias, fronteira
da história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do
humano.
Contudo, a existência desses desencontros não anulou a possibilidade de uma boa
convivência e o desenvolvimento desses grupos sociais no Projeto de Colonização.
A diferença foi também um fator de aproximação, de aceitação e também assimilação
cultural entre eles, permitindo que houvesse a coexistência, a circulação e a renovação desses
grupos no mesmo espaço, onde coabitaram a recusa e a aceitação. Dessa forma, é na dinâmica
do cotidiano, nas experiências compartilhadas, que a identidade apresenta a sua vinculação à
alteridade ou à igualdade, portanto “as identidades são constituídas por um mecanismo
contrastante de afirmação das diferenças e do reconhecimento das similitudes” (DELGADO,
2006, p. 71).
A convivência entre a “diferença” e a “aceitação” resultou numa grande diversidade de
manifestações culturais e identitárias que o Projeto de Colonização passou a abrigar após a
103
chegada de todos esses migrantes às agrovilas, diversidade que expressa a rica cultura que
caracteriza, identifica, e representa os vários grupos sociais que habitam o município de Serra
do Ramalho atualmente. Nesse sentido, finalizo com um trecho da narrativa do Sr. Francisco
Chagas123, que reflete muito desse “encontro” cultural entre os grupos de migrantes:
É, os paraibanos que trouxeram a cultura deles, a vaquejada, o pessoal
do Mato Grosso já tem a corrida de argolinha... As comida do mesmo
jeito, as comida à base de milho do pessoal do Nordeste, né, os daqui,
os barranqueiro daqui tem a alimentação à base da tapioca. E assim,
cada um tem a sua identidade cultural, mais foi bom que somou tudo,
né.
123
Francisco Chagas dos Santos, 51 anos, em entrevista realizada pela autora em 15 de agosto de 2010, Agrovila
09.
104
4 PARAIBANOS E DEMAIS COLONOS EM SERRA DO RAMALHO:
MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E IDENTITÁRIAS.
A riqueza cultural que Serra do Ramalho abriga, hoje, revela que a migração não
significa uma perda total da identidade para o indivíduo que migra, pois, ele carrega consigo
essas referências identitárias e culturais para a reconstrução, ou reterritorialização, das suas
tradições no novo lugar, que darão um novo sentido para a sua vida.
Dentre as manifestações culturais reconstruídas nas agrovilas pelos diversos grupos de
migrantes, a que mais se destaca é a Festa de Vaquejada. Trazida pelo grupo de paraibanos
que migrou para o Projeto de Colonização a partir de 1980, essa tradição constituiu-se num
elemento importante de coesão e adaptação desse grupo nas agrovilas, além de reforçar os
laços sociais, o sentimento de pertencimento e a identidade dos seus membros.
4.1 “Cada um tem sua identidade cultural, mas foi bom que somou tudo,
né”: migração e a preservação de identidades.
A migração traz, em maior ou menor grau, consequências para a vida do indivíduo
envolvido nesse processo. Analisando tais efeitos, do ponto de vista psicológico, sobretudo no
que se refere à questão da identidade, o autor Menezes (2007, p. 120) ressalta:
Seja qual for a razão para a migração, bem ou mal sucedida há nela
uma constante psicológica a ser lembrada: a perda. Perde-se a
referência territorial, aos valores culturais e as pessoas conhecidas.
Perde-se também a identidade - identitas que quer dizer „o mesmo‟ ou
„repetição do mesmo‟ como em identidem. A identidade do migrante,
assim como a de qualquer indivíduo é formada em momentos de crise
(crisis é oportunidade), quando se é forçado a escolher ou quando se
tem a oportunidade de escolher. [...] o cerne dessa identidade é, em
muito, determinado pelas imagens que lhe aparecem através do Outro,
dos seus semelhantes, dos que lhe são importantes, da herança cultural
e da consciência coletiva.
Em meio às perdas decorrentes do deslocamento está o chamado “desenraizamento”,
muito utilizado por alguns estudiosos, a exemplo de Daniel Francisco dos Santos (2003) e
Maria Aparecida de Moraes Silva (2004). Já Haesbaert (2005) utiliza outro conceito, o de
“desterritorialização”, termo bastante utilizado na geografia, para designar as mudanças
105
profundas que o deslocamento traz para a vida do migrante, nos níveis social e cultural,
especialmente em relação à sua identidade. Isso acontece, porque na migração o indivíduo
tem todo o seu “eu” desarticulado, onde suas múltiplas raízes: familiares, étnicas, regionais,
nacionais, religiosas, partidárias, ideológicas, culturais, sofrem deslocamentos (DELGADO
2006).
Entretanto, o deslocamento e a constante mobilidade de posições sociais que
desarticulam o modo de vida do indivíduo, têm também o seu lado positivo, no sentido de ser
para este uma possibilidade de realizar outras articulações dentro de novas estruturas,
buscando a sua integridade e criando novas identidades. Delgado (op.cit., p. 51) reforça essa
ideia ao considerar que:
O homem é um ser permanentemente em busca de si, de suas
referências, de seus laços identificadores. A identidade, além de seus
aspectos estritamente individuais, apresenta dimensão coletiva, que se
refere à integração do homem como sujeito do processo de construção
da História.
O conceito de desterritorialização, assim como o de território, carrega múltiplos
significados, pois pode congregar ao mesmo tempo as dimensões “físico-natural, econômica,
política e cultural” (HAESBAERT, op.cit., p.37), revelando-se num processo complexo e
diferenciado que exige que tenhamos uma percepção clara do fenômeno migratório do qual
estamos falando, das circunstâncias que o envolvem, qual o grupo e a situação social e
cultural desses indivíduos, o que não é assim tão simples, até porque a própria “entidade
abstrata denominada migrante é, na verdade, um somatório das mais diversas condições
sociais e identidades étnico-culturais” (Ibid., p. 38).
Dessa forma, a noção de lugar, assim como a de território, ultrapassa o sentido físico,
chegando a outras esferas do social, igualmente importantes para a convivência do indivíduo
em sociedade, ou, nas palavras de Silva (2004, p. 24, 25):
O lugar define o pertencimento social, o enraizamento em um
determinado território. Portanto, o território não diz respeito apenas ao
espaço geográfico, físico, mas também ao espaço simbólico, que
envolve com significados da cultura e da vida social ali existente. Há
uma simbiose entre natureza e o humano, de tal forma que uma não
existe sem o outro. A natureza é um prolongamento do humano,
portanto, é o complemento indispensável a sua vida.
106
Então, podemos falar de indivíduos que foram privados de seus territórios em vários
sentidos, conforme as dimensões da análise aplicada a cada estudo.
Aqui, busco inserir os colonos do Projeto de Colonização Serra do Ramalho em duas
dimensões apontadas por Haesbaert (2005), apesar de todas as outras estarem de alguma
forma articuladas a essas.
Primeiro, na dimensão físico-econômica, tendo a noção de território ligada à questão
do acesso, controle e uso de espaços por parte de membros de uma sociedade, conforme
definição dada por Haesbaert (op.cit., p. 36) com base na noção do antropólogo Maurice
Godelier.
Falar de desterritorialização no sentido da destruição do território
enquanto dimensão física, material, é válido para alguns grupos
específicos, como aqueles que têm no acesso e/ou na delimitação da
terra o seu meio básico, fundamental, de sobrevivência. Encontram-se
aí os indígenas, os sem-terra, os sem-teto, os atingidos por barragens,
obrigados a deixar suas terras pela pressão do modelo políticoeconômico segregador em que estão inseridos.
Ressalto aqui, no que diz respeito ao acesso e à permanência na terra, que a maioria
dos trabalhadores rurais que migraram para o Projeto de Colonização, a partir de 1976, só o
fez em razão da ação do Estado brasileiro e de sua política agrária de incentivo à
modernização da agricultura, que levou à expulsão do trabalhador do campo. Todos sofreram,
direta ou indiretamente, as consequências dessa ação, tanto os trabalhadores atingidos pela
construção da barragem de Sobradinho, e os de Itaipu, como os trabalhadores expulsos de
fazendas do Nordeste, localizadas na Paraíba e no Mato Grosso.
E segundo, na dimensão cultural ou simbólica, em que o território é pensado como
espaço de referência no qual ocorre a identificação dos grupos sociais. Assim, conforme
Haesbaert (Ibid., p. 37):
Podemos falar, então, de um migrante “desterritorializado” no sentido
cultural ou simbólico, na medida em que, destituído de seu lugar e de
suas paisagens de origem, ele se vê destituído também de valores,
símbolos, que ajudavam na construção da identidade. [...] Claro que
não é obrigatório que o indivíduo partilhe concretamente de um
território para que este “imaginário geográfico” tenha eficácia, mas
tende a haver, sem dúvida, uma mudança qualitativa nos referenciais
de identidade territorial quando se deixa um local, uma região ou um
país.
107
Podemos saber se há ou não um processo de desterritorialização do migrante a partir
do momento em que percebemos indícios de perda de referências identitárias, ou dos laços
identitário-territoriais, uma vez que, estando no novo espaço, ele procura criar mecanismos de
resistências, iniciando um processo de “reterritorialização” a partir de suas representações
simbólicas. Isso acontece, sobretudo, porque “nenhum indivíduo/sujeito sai das suas origens e
penetra em outros espaços como uma tábula rasa, pronto para absorver ou ser absorvido.
Muito pelo contrário. O migrante arrasta consigo suas bagagens materiais e simbólicas”
(CARDEL, 2003, p. 117).
Sobre essa questão da reconstrução da territorialidade, da identidade do indivíduo
migrante, Haesbaert (op.cit., p. 40) ressalta que:
[...] ao mesmo tempo em que se manifesta como um dos elementos
centrais do processo desterritorializador, é no campo simbólico ou das
representações que o migrante pode melhor se “segurar” a fim de
manter um mínimo da territorialidade perdida no decorrer de seu
deslocamento espacial. Sobram sempre “geografias imaginárias” que,
juntamente com outros elementos constituidores de sua cultura, podem
ser revividos/rememorados, reconstituindo assim a identidade do
migrante enquanto grupo.
Sendo um conceito polissêmico, a definição de identidade deve, portanto, levar em
conta que ela é sempre uma construção simbólica, construída a partir da maneira como
interpretamos a realidade na qual vivemos em termos de sua representação. É a identidade
também que nos fornece elementos, caminhos para que possamos saber quem somos e quem
são os outros indivíduos com os quais nos relacionamos em sociedade. Conforme definição de
Delgado (2006, p. 61-62):
As identidades são representações coletivas contextualizadas e
relativas a povos, comunidades, pessoas, já que a humanidade não é
genérica nem caracterizada por universalismo abstrato. Ao contrário,
encarna-se em expressões e formas originais e específicas, traduzidas
por identidades religiosas, de gênero, políticas, corporativas,
nacionais, culturais, partidárias, ideológicas. Não há identidade sem
alteridade, sem comparação. [...] Nesse sentido, as identidades, que
são também representações, constituem-se através da polaridade
eu/outro.
É importante pensarmos a identidade hoje não mais como algo fixo, determinado, mas,
uma identidade que tem uma historicidade, que se faz em consonância com as rápidas
108
transformações sociais que ocorrem nas sociedades modernas, que a torna cada vez mais
múltipla e complexa.
Autores como Stuart Hall, discutem o conceito da “identidade cultural”124
demonstrando que o processo de globalização do mundo contemporâneo resultou em
mudanças que colocaram “a identidade em questão”. A chamada “crise da modernidade”
resultou na fragmentação de concepções tradicionais, em questionamentos sobre a própria
noção de sujeito, com isso, houve um deslocamento do chamado sujeito pós-moderno, que
passou a não ser mais dono de uma identidade fixa, essencial e permanente, mas, um sujeito
descentrado, deslocado em suas referências (HALL, 2006).
No presente trabalho, a discussão do tema da “identidade cultural”, possibilitou
compreender a importância da reconstrução das tradições e manifestações culturais dos
colonos nas agrovilas de Serra do Ramalho. Em seu estudo sobre a migração caribenha para a
Grã-Bretanha no pós-guerra, Hall (2009, p. 28) considera:
Essencialmente, presume-se que a identidade cultural seja parte da
natureza, impressa através do parentesco e linhagem dos genes, seja
constitutiva de nosso eu mais interior. É impermeável a algo tão
“mundano”, secular e superficial quanto uma mudança temporária de
nosso local de residência.
Partindo desse pressuposto, não podemos pensar o desterritorializado como alguém
que teve uma perda de uma “experiência total” ou “integrada” do espaço. Para Haesbaert
(op.cit., p.37), esta é uma noção que está sendo questionada, “pois ela não passa mais por
territórios circunscritos e de fronteiras bem definidas, mas pela ideia de territórios
multiescalares e de territórios-rede ou em rede”. Isso quer dizer que cada indivíduo sente e
internaliza o processo migratório de maneira diferente, assim também acontece com a
“desterritorialização”, ou seja, varia conforme os grupos envolvidos, as relações culturais e
mesmo econômicas que alguns grupos mantêm nas áreas para onde migram.
Dessa forma, evidencio a posição de alguns depoentes que reflete muito bem isso, a
saber, os diferentes níveis de sentimento da “desterritorialização” entre os colonos
entrevistados, pois, ao vivenciarem a migração e a inconstância própria a essa situação, os
migrantes não perderam a sua identidade, mas, trouxeram consigo as referências identitárias e
124
Para Stuart Hall, as “identidades culturais - são aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso
“pertencimento” a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais.” In: HALL,
Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2006, p. 8.
109
culturais e, chegando ao Projeto, sentiram a necessidade de reconstruir suas tradições para dar
um novo significado às suas vidas.
Este sentimento de migrante “desterritorializado” para o Sr. Francisco Chagas 125, por
exemplo, sempre esteve ligado às suas memórias sobre a terra natal. Questionado se ainda
retornou lá, depois que veio morar no Projeto, ele narra:
Eu nunca nem fui, pra mim a Paraíba nem existe. Eu falo que eu sou
brasileiro, onde eu tiver, se eu for pro Rio Grande do Sul, eu vou
defender o Rio Grande do Sul, se eu for pro Pará, eu vou me adaptar
aos costumes dos paraenses. Aquela coisa, eu num vou carregar essa
cultura própria. A minha identidade eu já perdi, eu deixei lá, a minha
identidade cultural eu deixei lá.
Diz ainda que as suas memórias sobre a Paraíba já estão esquecidas, e atribui esse
esquecimento ao fato de “primeiro porque meus pais já saíram de lá também, minha família
todinha foi embora, estão tudo em São Paulo e outra metade tão aqui, moram quatro aqui. Eu
passo mais de dez ano sem ir lá, não tem como eu cultivar, se eu retornasse lá aí pudia até
ficar viva [referindo-se às lembranças]”.
Na narrativa se evidencia que o Sr. Francisco Chagas126 não se sente um
desterritorializado de fato, ao afirmar que, não importa onde estiver se adaptará aos costumes
do lugar. Ele demonstra certo desapego à sua terra natal, atribuindo à permanência da família
na Paraíba, a manutenção de laços identitários e afetivos que ainda mantém com o seu lugar
de origem.
Para os migrantes que chegavam às agrovilas de Serra do Ramalho tudo se mostrava
“novo” e distante daquilo que compunha a sua vivência anterior à migração. Longe de seus
lugares de origem, eles buscaram recriar, reconstruir parte do que lhes faltava, o que se
expressou na manutenção de suas tradições e manifestações culturais. De certa forma, isso
manteve as relações sociais e o sentimento de pertencimento entre os grupos. A questão da
identidade, nesse caso, “traduz um sentimento e uma convicção de pertencimento e
vinculação a uma experiência de vida comum” (DELGADO, op.cit., p. 71).
Nesse processo não há uma transposição de identidade, e sim, uma reconstrução que
une elementos do tradicional com elementos ligados ao “novo”, às vivências no lugar de
destino. Em relação a isso, afirma Haesbaert (op.cit., p.40): “Claro que a identidade em seu
125
Francisco Chagas dos Santos, 51 anos, em entrevista realizada pela autora em 15 de agosto de 2010, Agrovila
09.
126
Idem.
110
sentido reterritorializador não é simplesmente um transplante da identidade de origem, mas
um amálgama, híbrido, em que a principal interferência é dada pela leitura do que o “Outro”
faz do indivíduo migrante”.
A reconstrução desses elementos foi fundamental para a sobrevivência e adaptação
desses indivíduos ao Projeto, em muitos casos, foi o fator principal para a decisão de
continuar a viver no lugar. O Sr. Miguel Félix127, por exemplo, relata sobre a importância que
teve a criação da festa de vaquejada nas agrovilas para a sua adaptação. Perguntado se isso fez
com que ele se acostumasse a viver em Serra do Ramalho, afirma:
Sim, ajudou muito. Logo de início, quando eu cheguei aqui, aqui era
uma coisa esquisita demais, você acredita que eu tive a maior vontade
de voltar de novo pra minha terra, que, quando eu vim, eu truxe
cavalo, truxe a arreação toda, e num tinha vaquejada, eu digo „aqui pra
mim não ressuscita mais não‟... Diversão nenhuma existia, que
ninguém ouvia falar.
O estranhamento sentido pelo depoente está ligado também à ausência de aspectos
culturais que davam sentido às suas vivências no lugar de origem. Ao ser reconstruída na
Agrovila 13, a tradição da vaquejada trouxe para o Sr. Miguel Félix 128 um novo significado
para sua vida. No subtítulo seguinte, analisarei melhor a festa de vaquejada em Serra do
Ramalho; a escolha de tal tradição se deve ao fato de ser esta uma festa de grande expressão
no município e, principalmente, por ter sido uma cultura trazida pelo grupo de paraibanos que
migraram para o Projeto de Colonização na década de 1980.
São muitas as tradições e manifestações culturais que foram reconstruídas nas
agrovilas de Serra do Ramalho. Além da vaquejada e da corrida de argolinha, que são
tradições nordestinas que chegaram às agrovilas de Serra do Ramalho por meio dos grupos de
migrantes vindos da Paraíba, Pernambuco e Sergipe, existem muitas outras manifestações, por
exemplo, as de ordem artística, como os Grupos de dança, a Capoeira, e os tradicionais
artesanatos: tricô, crochê e bordado. E as de ordem religiosa, como o reisado, a Roda de São
Gonçalo, a Caretagem e Queima de Judas, as Festas Juninas, e os festejos dos santos
padroeiros.
Dentre as manifestações religiosas, as festas católicas de celebração aos santos
padroeiros são as de maior expressão, especialmente a festa de São José Operário, padroeiro
da Matriz na Agrovila 09. A festa acontece durante a primeira semana do mês de maio, com
127
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 12 de outubro de 2009, Agrovila 13.
Idem.
128
111
início no dia 01 em homenagem ao Dia do Trabalho. Em entrevista, o Sr. Francisco Chagas 129
narra sobre o momento em que os moradores decidiram qual seria o santo padroeiro da Igreja
Matriz, na Agrovila 09, sede do Projeto de Colonização, explicando, ainda, o porquê de o
nome dado ao santo ter sido “operário”.
Cada um tinha um santo diferente, cê vê que continua cada agrovila
com seu santo. O São José Operário, que esse santo a gente tentou
implantar, né, que eu participei nesse momento, era assíduo da Igreja
Católica e a gente criou o santo por conta disso, São José, que tem o
São José de 19 de março, e nós implantamos o São José Operário; por
que Operário? Porque nós, era tudo operário aqui, todo mundo
trabalhador, ou do campo ou servidor público municipal, nós que
criamo esse santo aí, é nosso padroeiro aqui. Mas dificultou, porque
cada um, meu santo mesmo é São Sebastião, fui educado nisso aí,
nessa cultura lá na minha cidade, nasci e me criei e cheguei aqui com
vinte e dois anos seguino esse santo. É tanto que todo ano eu vou pra
Boa Vista pra me lembrar, né. Eu ainda mantenho isso aí. Mais aqui a
gente criou o São José Operário pra poder congregar todos, congregar
o pensamento de todos, São José Operário, nome diferente. E deu
certo isso, foi bem, né.
A crença em diferentes santos não foi motivo de desagregação, mas de união em torno
de um objetivo: escolher o santo que representasse a Paróquia. Dessa forma, o nome
“operário” é significante para todos os membros da comunidade, já que referencia o
trabalhador em sua luta.
Em todas as comunidades, incluindo agrovilas e alguns povoados, há uma grande
diversidade de santos padroeiros celebrados durante todo o ano, conforme quadro abaixo.
SANTOS PADROEIROS
São José Operário
Santa Eulália
Nossa Senhora do Amparo
São João
São Sebastião
São Francisco
Santo Antônio
Nossa Senhora Aparecida
Nossa Senhora Sant‟Ana
129
COMUNIDADES E POVOADOS
Agrovila 09 - Matriz
Agrovila 09 - Matriz
Agrovila 05
Agrovila 07
Agrovila 02, Boa vista e Jenipapo
Agrovila 02
Agrovilas 11 e 22
Agrovilas 06, 08, 13,19 e 21
Agrovila 12 e Taquaril
Francisco Chagas dos Santos, 51 anos, em entrevista realizada pela autora em 15 de agosto de 2010, Agrovila
09.
112
Santa Luzia
Sagrado Coração de Jesus
Nossa Senhora da Conceição
Nossa Senhora de Fátima
Agrovila 14 e Palmas
Agrovila 10 e Campinhos
Agrovila 01
Agrovilas 03, 04, e Água Fria
Imaculada Conceição
Agrovila 15
São José
Agrovila 17
N. Senhora das Graças
Agrovila 20
N. Senhora do Perpétuo Socorro
Serra Solta
São Pedro e São Paulo
Barnabé
São Vicente de Paulo
Mata Verde
São Bartolomeu
Boa Esperança
São Francisco de Assis
Mariápolis
N. Senhora da Guia
Pituba
Ilustração 14: Tabela com os santos padroeiros pertencentes às agrovilas e povoados de Serra do Ramalho.
Fonte: Planejamento Paroquial e Comunitário da Paróquia São José Operário, Agrovila 09, 2005.
Os grupos de migrantes que vieram para as agrovilas a partir de 1977 contribuíram,
positivamente, para o enriquecimento cultural da região, resultando numa grande diversidade
de costumes, modos de vida e tradições que identificam a população que habita o município
de Serra do Ramalho.
113
4.2 “Cada terra tem sua tradição e a gente tem que acompanhar”: a
reconstrução da Festa de Vaquejada.
Eu venho dêrne menino,
Dêrne munto pequenino,
Cumprindo o belo destino
Que me deu Nosso Senhô.
Eu nasci pra sê vaquêro,
Sou o mais feliz brasilêro,
Eu não invejo dinhêro,
Nem diproma de dotô.
Patativa do Assaré, Inspiração nordestina (2003).
A vaquejada130 é uma prática bastante comum à cultura do povo nordestino. E foi
através de nordestinos que essa tradição veio para Serra do Ramalho. Foi essa população
especialmente o grupo de paraibanos que chegou ao Projeto de Colonização em 1980, que
buscou reconstruir a festa da vaquejada nas agrovilas, nos moldes como era festejada na
Paraíba. Hoje, o município conta com diversos parques ou “pistas”, que são os locais
construídos para realização da festa. Ao todo são 19 parques, sendo que 14 estão localizados
nas agrovilas e 5 deles nos povoados.
A origem da vaquejada está ligada à própria vivência do homem nordestino em sua
labuta cotidiana. As pegas de bois, ou “apartação”
131
, que se realizavam no campo com o
gado à solta e com vaqueiros devidamente paramentados com: perneira (calça), gibão
(jaqueta), chapéu (de couro), peitoral (avental), luvas e botas de couro, preparados para
enfrentar a caatinga na captura do animal desgarrado, são consideradas como atividade
precursora desta tradição popular tão prestigiada pelos nordestinos.
Cascudo (1980, p. 783-784), em seu Dicionário do folclore brasileiro, discute
algumas definições do que é a vaquejada:
130
Também considerada como uma prática esportiva, a Vaquejada foi contemplada pela Lei nº 10. 220 de abril
de 2001, que regulamenta a profissão de peão de rodeio. Diz a Lei em seu artigo 1º: “Parágrafo Único:
Entendem-se como provas de rodeios as montarias em bovinos e equinos, as vaquejadas e provas de laço,
promovidas por entidades públicas e privadas, além de outras atividades profissionais da modalidade
organizadas pelos atletas e entidades dessa prática esportiva”. Disponível em: < http://www.planalto.org.br/ccivil
_03/Leis/LEIS_2001/L10220.htm>. Acesso em: 16 de fevereiro de 2011.
131
O sentido empregado ao termo é o de separar o gado no campo pertencente a diversas fazendas.
114
Reunião de gado, nos fins do inverno, para o beneficiamento,
castração, ferra, tratamento de feridas, etc. Outrora, o gado do
Nordeste era criado, como no Sul, nos campos e pastagens indivisas.
A reunião anunciava a divisão, entrega das reses aos seus
proprietários, a apartação. Uma certa parte do gado era guardada ou
reservada para a derrubada, a vaquejada propriamente dita, o folguedo
de derrubar o animal, puxando-o bruscamente pela cauda, indo o
vaqueiro a cavalo. Correm sempre dois cavaleiros e o colocado à
esquerda é o esteira, para conservar o animal em determinada direção.
Emparelhado o cavaleiro com o novilho, touro, boi ou vaca,
aproximado o cavalo, o vaqueiro segura a cauda do animal dando um
forte puxão e, no mesmo minuto, afastando o cavalo. É a mucica ou
saiada. Desequilibrado, o touro cai espetacularmente, patas para o ar,
mocotó passou! Se não o derruba e o novilho alcança livrar-se, botou
o boi no mato, e há uma vaia estrepitosa. A vaquejada é festa
popularíssima no sertão e reúne grande número de curiosos.
Importante ressaltar que o autor imprime um ar de espetáculo à festa, que é apreciada
por uma multidão de “curiosos” que interage com os vaqueiros. A paixão e o entusiasmo são
características marcantes daqueles que se envolvem na realização desta festa popular.
O Sr. Miguel Félix132 fala a respeito da origem da vaquejada a partir de sua própria
experiência e vivência com essa tradição popular. Segundo ele, essa prática era conhecida
como a “pega-de-boi no mato”, atividade que sempre esteve presente em sua vida, desde sua
infância e também juventude, pois era realizada entre os seus familiares.
Antigamente as coisa era diferente, não tinha tanta estrutura como tem
hoje, né. Eu vou contar da minha época, só que da minha época
procurava o boi no mato, na solta aí, antigamente era largo os campo,
cê procurava, necessitava pegar um gado, juntar um gado, aí o gado
era brabo que era criado aí como bicho do mato mesmo. E você
procurava o gado e, quando encontrava, corria, botava o cavalo no
gado, pegava e arriava, aí botava a careta, chucaio, tem a pêa de pear o
boi também, tem a corda de passar e assim por diante. E arrea aquele
gado e vai reunino o gado em um curral grande ou então num cercado
até juntar todo gado. [...] Também acontecia, porque antigamente se
reunia bastante vaqueiro, né, aí saía de dois em dois, se dividia, se era
seis, era três duplas, vai um pr‟aqui, outro pr‟aculá e tal, e acontecia
na pega do boi de tá os seis junto.
Da antiga “apartação” do gado que era realizada nas fazendas como parte do trabalho
cotidiano do vaqueiro, paulatinamente, foi se desenvolvendo uma modalidade da vaquejada
de boi no mato com inscrições para organização das duplas que perseguiam o gado. O Sr. José
132
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
115
Soares133 narra sobre as características que marcaram essa prática por volta da década de
1960, a partir de suas vivências na cidade de Paulista, na Paraíba.
A primeira vaquejada que eu assisti na minha vida, foi em sessenta e
dois, uma das primeira vaquejada na minha região, num existia
prêmio,era só derruba de boi, quem derrubasse mais perto boi maior,
queda mais bonita. Comprava aquelas inscrição, era uma, era duas, era
três, o que pudesse, né, se corria o tanto que pudesse. Depois é que
apareceu os prêmio vino do Rio Grande do Norte.
Ainda não havia, nesse momento, o sentido de competição que permeia a vaquejada
no modo como ela é praticada hoje, que a acompanha desde o momento em que ela passou de
uma prática ligada a ações cotidianas do homem do campo para uma prática regulamentada e
com caráter esportivo e competitivo, que tem como finalidade principal a diversão dos
participantes.
Assim as festas passaram a ser mais atrativas para os vaqueiros, na medida em que
inseriram as premiações. São prêmios que variam de acordo com a organização do evento e os
patrocinadores, podendo ser troféus, medalhas, motos, carros ou em dinheiro.
Dessa forma, além de representar a cultura da região, a vaquejada foi, e ainda é, uma
maneira de trazer riqueza para o município, pois atrai um grande número de pessoas,
vaqueiros profissionais e admiradores do evento das cidades circunvizinhas, que visitam Serra
do Ramalho no período dessa festa, gerando lucro para o comércio local, hotéis, pousadas,
restaurantes, bares, supermercados. Como narra o Sr. Miguel Félix 134, “a vaquejada hoje ela é
uma fonte de renda, pra quem promove uma grande festa, um evento grande, ela é uma fonte
de renda”.
A corrida tem início com a chamada pública do locutor, depois a dupla de vaqueiros
sai em disparada, perseguindo o boi na pista de areia até conseguir derrubá-lo, puxando o
animal pela cauda, dentro de uma linha previamente demarcada. Cada vaqueiro tem a sua
função na disputa: um dos vaqueiros é o “esteirador”, que é responsável por pegar a cauda do
boi e dar para o parceiro, o “derrubador”, que tem a incumbência de derrubar o boi dentro da
faixa sinalizada com cal no fim da pista. As fotografias que seguem registram, numa
sequência, os momentos da corrida em que o boi é acossado e depois derrubado.
133
José Soares de Souza, 58 anos, em entrevista realizada pela autora em 18 de fevereiro de 2011, Agrovila 09.
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
134
116
Ilustração 15: Corrida de vaquejada no Parque Joaquim Machado.
Fonte: Jerri Ferreira Costa, realizada em 13 de junho de 2009, Agrovila 09.
Ilustração 16: Corrida de vaquejada no Parque Joaquim Machado.
Fonte: Jerri Ferreira Costa, realizada em 13 de junho de 2009, Agrovila 09.
117
Ilustração 17: Corrida de vaquejada no Parque Joaquim Machado.
Fonte: Jerri Ferreira Costa, realizada em 13 de junho de 2009, Agrovila 09.
Para que o vaqueiro tenha sucesso em sua atuação, é necessário que ele tenha um bom
preparo físico e muita experiência com montaria e adestramento de cavalos, conforme relatou
o Sr. José Soares135:
Não, não é só gostar que faz ser um bom vaqueiro. Primeiro tem que
ter dedicação, montar bem, porque tem gente que morre de andar a
cavalo e nunca aprende ser um vaqueiro, não entende do ramo, né.
Mas tem deles que é dedicado, você vai ensinano, logo, logo, ele
aprende a montar no animal como deve ser, que o mais importante é o
arreio do animal pra quem sabe mexer.
A preparação física é igualmente importante para o cavalo, na opinião do Sr. Miguel
Félix136, que faz uma comparação entre a força do vaqueiro e a do cavalo, como que uma
complementando a outra. Outro aspecto importante dessa preparação diz respeito à
vestimenta. Nesse momento fizemos uma pequena pausa, para que ele me mostrasse os
adereços de couro: colete, perneira, chapéu, casaco, que guarda com esmero.
Fazer física, muita física, é igualmente o cavalo, o vaqueiro tem que
ter, se o vaqueiro tá despreparado, ele num tá em condições de correr
135
José Soares de Souza, 58 anos, em entrevista realizada pela autora em 18 de fevereiro de 2011, Agrovila 09.
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
136
118
boi, ele tem que ter a física igualmente o cavalo, tem que tá preparado,
ele tem que tá muito bem municiado, bem calçado, espora, luva. E a
roupa tem que ter, bom, sempre a camisa pode ser qualquer uma, hoje
os vaqueiro tão usano mais as camisa do próprio parque, a calça
sempre é calça jeans, uma roupa forte, né, agora as camisa é diferente,
na minha época, quando eu comecei, a gente usava um terno
completo, calça e camisa, azuzinha, aí todos vaqueiro era com aqueles
terno.
O Sr. Miguel Félix137 é um admirador dessa manifestação cultural e nos conta com
orgulho sobre a sua vida de vaqueiro138, de “corredor de vaquejada”. Antes de começarmos a
entrevista em sua casa, ele fez questão de mostrar todos os troféus que ganhou nas
competições de que participou na Paraíba, Pernambuco, Ceará e Bahia, assim como o seu
uniforme de vaqueiro que leva o nome do Parque São João Batista, construído na Agrovila 13
em homenagem ao seu pai, o Sr. João Batista Félix.
Tudo se iniciou em Santana de Mangueira, sua terra natal, num parque que levava o
nome da cidade, o Parque Santana de Mangueira. Depois disso, o Sr. Miguel Félix 139 foi
ampliando os seus contatos, chegando a participar de vaquejadas em outros parques da região,
como o Parque Nossa Senhora da Penha em Serra Talhada e o Parque Dois Irmãos em
Caruaru, Pernambuco.
Em setenta foi a primeira vaquejada que eu participei na Paraíba. Em
setenta, eu tinha vinte ano. E participei, ainda hoje participo, não que
corro mais, mas gosto demais. Sobre a organização de um parque eu
sei. Eu participei na Paraíba, Pernambuco, Ceará e aqui na Bahia,
depois que eu cheguei aqui. Na época eu ganhava troféu, por sinal,
tem uns troféu aí ainda da época.
Não poderia deixar de evidenciar que, ao passo que ia narrando, o Sr. Miguel Félix 140
fez pequenas pausas, alternando com a tragada no cigarro momentos de silêncios que
refletiram bem a emoção que essas lembranças lhe traziam. Ele relembra com detalhes como
eram precárias a organização e a estrutura dos primeiros parques de vaquejada que conheceu
na Paraíba em 1970.
137
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
“Pastor de gado, guarda das vacas; cow-boy, rapaz da vaca, Vacher, pastor de bezerros, Rinderhirt, figura
central do ciclo pastoril. Sua atividade determina-lhe o individualismo arrogante, autonomia moral, decisão nos
atos e atitudes.” In: CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos,
1980, p. 783.
139
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
140
Idem.
138
119
Eles fazia aqueles parquisim mais era simples, uma coisa simples. Era,
na época, não era carro de som, era aquelas bocas de som que
chamava difusor,... Colocava lá a locução, iniciava a vaquejada e era
chamado o vaqueiro pela aquela boca de som, alto-falante como
chamava, né? E isso foi até muito adiante... e daí, de setenta começou
na Paraíba ela se espalhar, o pessoal fazia os parque, era coisa tudo
simples, não era de muito valor, muita estrutura não. Pra começar, os
parque era feito de madeira, de vara. Só existia só o curral e a área de
correr, e o circulo lá de segurar o gado. Isso foi a partir de setenta,
começaram a fazer os parque mais bem feito, de curral muito bem
feito, a locução fazia no palanque e tal... só que num tinha aquela
estrutura que também tem hoje... Cada dia que vai passano, vai se
organizano, vai ficano mais civilizado os trabalho, né. Daí foi
cresceno, cresceno...
O Sr. Miguel Félix141 foi o construtor dos primeiros parques de vaquejada da Agrovila
13, contando para tal empreitada com uma ajuda muito especial: “Eu fiz com minha família,
eu e meus filho, e com a ajuda de Deus, ninguém me ajudou em outra coisa”. Hoje, a agrovila
conta com dois parques, o Parque São João Batista e o Parque Dois Irmãos 142, construídos
entre 1984 e 1990, nos quais ele chegou a correr vaquejada nos dois primeiros anos. Sobre o
assunto, ele relata:
Primeiro eu fiz um, aí passei pra Brás mais Zé Galego, aí fiz outro,
esse outro eu demorei mais pra fazer, o que eu fiz, fiz em oitenta e
quatro o primeiro, aqui na Agrovila 13. Aí esse outro eu fiquei com
ele, eu passei pros meninos, entrou pra quinze ano que eu fiz. Todas as
duas foi eu que construí. Ainda corri vaquejada aqui. Só de início,
assim pra ir incentivano os menino, aí pronto parei, foi numa época
que meus menino é que corria, a turma aqui tudo, e eu fiquei só pra ir
organizano, aí parei, a Vanda[esposa] mais Vânia[filha] tamém era
uma reclamação: “Não, que eu já tava velho, não corresse mais”, eu
disse: “Não, eu vou atender o pedido de vocês, quem sabe vocês tão é
me agorano”[risos].
O principal parque de Serra do Ramalho é o Parque de Vaquejada Joaquim
Machado143, situado na sede do município, construído em 1989 pela prefeitura na Agrovila
09.
141
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
Depois que Sr. Miguel Félix vendeu o Parque Dois Irmãos, este passou a ser chamado Parque Nova Geração,
em homenagem aos jovens que continuaram a tradição da vaquejada, herdada dos seus pais, na Agrovila 13.
143
Conforme alguns entrevistados, este nome homenageia um velho vaqueiro que vivia na região, chamado
Joaquim Machado.
142
120
É nesse espaço que a festa é realizada todo ano, no mês de junho, mas, apesar de a
vaquejada acontecer somente em quatro dias, ela consegue mobilizar a população da cidade
durante todo o mês; e para os organizadores responsáveis pelo evento esse período de
mobilização é ainda maior, devido às contratações de pessoal para trabalhar na reforma e
limpeza do lugar, de bandas musicais para a festa, recolha de patrocínios para a premiação,
enfim, diversos afazeres que garantam o bom funcionamento das instalações e a diversão de
todos os participantes.
O Sr. José Soares144, que esteve envolvido com a construção desse parque bem no
início, como autor do projeto e organizador, demonstra descontentamento ao narrar como
tudo acabou sendo feito:
Boileau foi quem me convidou pra gente fazer essa vaquejada, eu
comecei no dia doze de maio de oitenta e nove, foi uma das primeira
vaquejada, deu muita gente, teve até um carro no primeiro lugar e
outros prêmio em dinheiro, e daí ficou muito falada essa vaquejada de
Serra do Ramalho, né. Mas, num foi feita a meu gosto como eu sabia
fazer, né, foi feito um negócio muito diferente. Era um negócio muito
luxuoso pra fazer, a prefeitura tinha como fazer, mas num quiseram
fazer, fizeram só as arquibancada, mas num era pra fazer daquele
jeito.
Essa tradição da festa de vaquejada, assim como das demais manifestações culturais
que os colonos recriaram nas agrovilas de Serra do Ramalho, é importante porque essas festas
e práticas culturais auxiliaram a adaptação desses indivíduos no lugar de destino. A
recomposição de elementos de sua identidade acaba por criar uma atmosfera próxima de suas
vivências no lugar de origem, situação que permitiu que eles se sentissem acolhidos em suas
relações com a comunidade. Nesse sentido, Haesbaert (op.cit., p.40) ressalta a importância da
identidade como um elemento fundamental no processo da reterritorialização:
A força da identidade entre muitos grupos migrantes é um dos
principais fatores responsáveis pela coesão mantida pelo grupo,
mesmo longe de seu território de origem. Isto faz com que muitos, ao
contrário do discurso corrente da desterritorialização, acabem se
envolvendo em processos claros de reterritorialização, ou seja, de
recomposição de seus territórios em outras bases, territórios estes
recriados por meio do amálgama proporcionado pela força das redes
mantidas no interior da dinâmica migratória.
144
José Soares de Souza, 58 anos, em entrevista realizada pela autora em 18 de fevereiro de 2011, Agrovila 09.
121
Por ser uma atividade que se realiza com a participação de muitas pessoas, a festa da
vaquejada acaba por reforçar os laços sociais, o sentimento de pertencimento e a identidade
do grupo. O envolvimento de toda a comunidade sempre foi fundamental para o sucesso na
organização da festa, como nos conta o Sr. Miguel Félix145:
Eu num tinha gado suficiente para isso, sabe, sempre eu tinha os
amigo que atuava gado, era Beu, era Zé Sergipe, Expedito e os menino
aqui, Brás, isso, me ajudava com o gado. Não era aluguel, os bois era
o seguinte, os bois eles adoava, emprestava, né. Eu nunca aluguei
gado porque era tudo meus amigo. Agora eu era responsave, era não,
sou, que qualquer um que promove ele é responsave pelo gado. Se o
boi cai e quebra a perna, aquele boi ali cê paga. Se hai qualquer
dificuldade sobre o gado, qualquer coisa, você é responsave.
A festa sempre teve um significado especial para a vida de muitos migrantes. No caso
do Sr. Miguel Félix146, a forte ligação que tem com a vaquejada vem de tradição familiar, já
que conviveu com isso desde sua infância, seu pai foi quem lhe ensinou essa prática, que ele
faz questão de ensinar aos mais novos.
Porque isso aí é uma tradição de família, porque a minha família, ela é
uma família que toda a vida, de quando eu me tornei gente que eu
conheci a minha família com essa tradição da vaquejada, que isso aí
de qualquer maneira é esporte, né. Muitas gente pode achar um
trabalho muito grosseiro, como de fato, mas quando a pessoa gosta, é
igualmente quem gosta de futebol, que tem gente que vem de família,
de tradição. E eu fazia não era tanto pelo lucro, é pelo prazer que eu
tinha de manter aquela tradição. Isso é muito importante, ensinar pros
mais novos, hoje eu deixei, mas ainda hoje eu oriento esses que, tem
deles que gosta de brincar, eu oriento e mostro a eles como é o
trabalho porque se você não tiver a prática, qualquer trabalho, você
não faz um trabalho bonito. A parte de zelar, tratar do animal, o
animal você tem que tratar ele, o cavalo e o boi, com carinho para
puder adestrar.
Para o Sr. José Soares147, que começou a correr vaquejada aos dezesseis anos de idade,
o significado dessa tradição está ligado à sua própria sobrevivência, às oportunidades que
foram aparecendo em sua vida. Foi com muita emoção que ele narrou sobre seu filho, Flávio,
que aprendeu com ele a correr vaquejada desde muito cedo.
145
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
Idem.
147
José Soares de Souza, 58 anos, em entrevista realizada pela autora em 18 de fevereiro de 2011, Agrovila 09.
146
122
Toda família minha gosta de vaquejada, de corrida de boi no mato e
corrida de vaquejada. Agora eu fui mais assim porque eu trabalhava
em fazenda, né, e tinha mais oportunidade e fui muito aquisitado na
região, aí por isso eu fiquei correno. Ensinei pro meu menino, que
começou com nove ano, nessa primeira vaquejada que eu fiz aí, ele
com nove ano já correu e foi a maior admiração da Bahia aqui foi o
que ele fez. Ele ficou correno e tirou um bucado de prêmio por aí.
Tudo que eu ensinei ele aprendeu, era bom de laço, era bom pra pegar,
era bom pra derrubar, era bom pra tudo, tudo ele sabia fazer.
O significado de tradição que essa manifestação cultural acabou incorporando, trouxe
para a vida desses migrantes a preocupação com a questão da continuidade dessa prática.
Assim, a solução foi ensiná-la às segunda e terceira gerações, filhos e netos dos pioneiros que
levam muito a sério a manutenção e o fortalecimento dessa cultura para o reconhecimento e o
respeito de sua cultura, enchendo seus pais de orgulho.
Um exemplo claro de preservação e dedicação é a família do Sr. Joaquim Lopes Neto
que organiza e também corre vaquejada unida; nas palavras dele: “Eu sempre corri e dos dez
filhos que tenho todos gostam de vaquejada, as mulher, os homem, a Lúcia corria, minha
menina, os meu menino todos os três montaram. Foi eu que ensinei tudo”.148
A reconstrução dessa festa, para o Sr. Joaquim Lopes Neto 149, se constituiu no
principal motivo para que ele desistisse da decisão de ir embora, retornar à sua terra natal,
Conceição do Piancó.
Quando a gente chegou aqui, a coisa que eu tenho forte é a vaquejada.
E quando eu cheguei, eu vim de lá do Norte, o povo só tinha vontade,
hoje já tem, quase toda agrovila tem uma pista e nós corre vaquejada
aqui. Quem começou aqui, foi nóis na 13. Aqueles primo meu, Brás,
Miguel Félix, aí nóis era apaixonado por a vaquejada, aí nóis já
fizemo corredor. Uns andou caino, se machucano, eu mesmo fui um
que levou umas machucada. Mas, toda vida eu corri, eu gosto de
vaquejada. Ah, se não tivesse funcionado aqui, eu tinha voltado, tinha
ido embora![risos]
Um aspecto relevante na fala do depoente é o de a vaquejada ser fortemente marcada
pela “agressividade”, característica que a revela como uma prática violenta contra os animais,
já que a queda do boi, no fim da pista de areia, pode resultar em lesões, fraturas,
deslocamentos e até amputamentos de membros, como a cauda ou as patas do animal. Todo
bom vaqueiro traz consigo, no próprio corpo, as marcas da “luta” travada com o boi na pista.
148
149
Joaquim Lopes Neto, 64 anos, em entrevista realizada pela autora em 01 de maio de 2010, Agrovila 09.
Idem.
123
Sobre esses riscos próprios da corrida, narra o Sr. Miguel Félix150, vítima várias vezes dessa
competição:
Eu já quebrei osso, quebrei costela, numa vaquejada que eu tive no
Pernambuco, em Bernardo Vieira, eu quebrei uma costela, e noutra
que eu quebrei a outra costela, porque às veis a gente baixa de mau
jeito na sela e acontece da costela pegar na maçaneta da sela e quebra
porque é dura, mas independente, caí diversas veis, cavalo caiu
comigo, mas nunca acontecia nada grave, graças a Deus não.
A diferença existente na forma como a festa era organizada lá na Paraíba e como foi
reconstruída nas agrovilas se evidencia na estrutura física dos parques, já que a estrutura
destes nas agrovilas é sempre menor, envolvendo poucas pessoas em sua organização. Mas, a
diferença se apresenta também nos ritmos musicais que embalam a festa, que acabou por
articular elementos da cultura local ao forró tradicional. Agora, ele se apresenta muito mais
“moderno”, com a inclusão de instrumentos eletrônicos no lugar do triângulo, da sanfona e do
zabumba, que marcavam o ritmo do baião, ou arrasta-pé, como é referido pelos nordestinos.
Registra-se a influência também das duplas sertanejas, cada vez mais presentes nas
vaquejadas, mas, na opinião do Sr. Miguel Félix, “música sertaneja não tem nada a ver com
vaquejada, isso é coisa que num compete uma coisa com a outra, e aqui tem”151. A presença
desses tipos musicais não fez aflorar nas agrovilas a tradicional presença dos vaqueiros
aboiadores, celebrando nas “cantorias”
152
a vida e o trabalho cotidiano dos vaqueiros com o
gado.
Essa descaracterização não diminui a importância dessa tradição, esses vaqueiros
sentem todas essas mudanças que acometem a festa de vaquejada, contudo as aceitam como
uma evolução que acompanha a própria dinâmica da sociedade. Mesmo assim, não deixam de
assinalar que os elementos são essenciais para a manutenção da tradição que conheceram e
vivenciaram durante tantos anos. Veja-se parte da narrativa do Sr. Miguel Félix153, onde ele
fala dessas “cantorias” tão comuns nas vaquejadas do Nordeste brasileiro, e ainda faz
referência a alguns vaqueiros aboiadores que conheceu.
150
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
Idem.
152
Folc. Uma das formas populares de manifestação artística musical que se circunscreve à zona sertaneja do
centro do Nordeste brasileiro. O acompanhamento é feito com violas e rabecas sem que dele participem
instrumentos de percussão. O interesse primordial não é o musical e sim o poético. Disponível
em:<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=cantoria>.
Acesso em 20 de abril de 2011.
153
Miguel Félix da Silva, 70 anos, em entrevista realizada pela autora em 09 de fevereiro de 2010, Agrovila 13.
151
124
Da minha época era o seguinte, a gente participava mais o vaqueiro
aboiador, que era aqueles que num vinha pra correr, mais no caso de
Vavá Machado, Manezim de Caruaru, Aloízio e Zé Luís, e assim por
diante, isso aí da minha época, o pessoal mais velho, né. Aí depois foi
surgino outros aboiador, e tem que ter essa participação e aqui num
tem, tem que ter aquela dupla pra animar a festa, o vaqueiro aboiador
anima a festa, aqui nunca participou, nunca teve um convite. Tem as
cantoria, tem também os forró, tem também aquelas toada de gado...
que o vaqueiro se sente bem, o povo gosta, quem participa é porque
acha bonito a vaquejada e acha bonito uma canção que tem alguma
coisa a ver com a vaquejada. Da minha época existia as dupla de
aboiador, de música sertaneja nunca existiu. Mas, tudo bem, diz que:
“cada uma terra tem sua tradição e a gente tem que acompanhar”.
Há uma forte identificação com as cantorias, ou com os aboios e também as toadas,
por elas expressarem nas letras aspectos da realidade do Nordeste, cantando ou poetizando
temas bem próximos da vida e do cotidiano do homem nordestino, como as aventuras com o
gado pelo sertão, a fome, a seca e a migração.
Portanto, a vaquejada acabou sendo acolhida por todos os outros grupos de migrantes,
houve uma grande valorização desta cultura na região e, hoje, ela expressa não só a identidade
dos paraibanos, mas também dos serramalhenses como um todo.
125
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A interpretação é sempre provisória e incompleta, inacabada, exatamente porque é também
determinada historicamente _ não só os seus critérios e orientação o são, mas, também, o seu objeto,
que se perde (e se ganha) na profundidade do tempo.
José de Souza Marins, A chegada do estranho (1993).
No presente trabalho, procurei analisar a história e a memória de migrantes
paraibanos, colonos no Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho-Bahia, memórias
que evidenciam as dificuldades de sobrevivência e o processo de adaptação dessas famílias ao
lugar, expressos em suas vivências e experiências, assim como em suas referências culturais e
identitárias.
O objetivo foi o de colaborar com a literatura sobre a migração interna no Brasil,
especialmente, sobre os movimentos migratórios que envolveram populações do Nordeste do
país, nas décadas de 1970-1980. Isso porque, durante muito tempo, os estudos sobre o tema
priorizou muito mais os aspectos estruturais geradores do processo migratório, do que a
memória e a experiência daqueles que o protagonizou.
Portanto, esta pesquisa valeu-se da memória para reconstituir a história da migração do
grupo de paraibanos para as agrovilas, demonstrando a diversidade de vivências, de
sentimentos, de estratégias, que enlaçam nas histórias de vida dos indivíduos que realizaram
deslocamentos nesse mesmo período, e que a historiografia não deu a devida visibilidade.
O Projeto de Colonização foi implantado pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), na década de 1970, como uma alternativa para o assentamento da
população rural que vivia nos municípios inundados pela construção da Represa de
Sobradinho, localizada no Vale do São Francisco, Bahia. Sua criação resulta, portanto, de
uma intervenção do Estado na vida dessas pessoas, por meio de grandes projetos econômicos
considerados necessários à modernização do Brasil.
Dessa forma, projetos como esse, se baseiam numa política que não leva em conta o
modo de vida da população para forçá-la à modernização. O que justifica, em linhas gerais, o
fracasso do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho. Por não haver um planejamento
126
adequado às reais necessidades dos colonos, nem uma valorização da opinião e experiência de
vida desses trabalhadores, é que muitas famílias abandonaram, ou venderam, os seus lotes.
Mas, é importante ressaltar, que o projeto foi um fracasso, sobretudo, para os
desapropriados de Sobradinho. As consequências do deslocamento compulsório na vida
desses indivíduos deixaram marcas profundas. As memórias são reveladoras dos
descontentamentos, reclamações, desistências, que se fizeram presentes em toda parte.
Entretanto, para os migrantes que povoaram as agrovilas a partir de 1977, a vinda para o
assentamento teve outros significados, mesmo tendo que conviver com as muitas dificuldades
existentes. Para o grupo de paraibanos, por exemplo, o Projeto significou a possibilidade de
refazerem suas vidas num outro lugar, de terem terra e trabalho para a família.
Os descompassos e os muitos problemas levaram a administração do Projeto de
Colonização a reestruturarem o assentamento, recebendo famílias sem-terras de vários estados
brasileiros:
pernambucanos,
paraibanos,
alagoanos,
sergipanos,
mato-grossenses,
maranhenses, entre outros grupos de migrantes. Assim, as agrovilas se multiplicaram, as
benfeitorias do INCRA se escassearam, e as dificuldades se instalaram.
As narrativas orais dos colonos, contemplados nesta pesquisa, evidenciaram que viver
nos primeiros anos do Projeto não foi nada fácil, pois além de vivenciarem o processo de
deslocamento, eles tiveram que se adaptarem ao novo lugar, que ainda estava em formação,
faltando serviços essenciais à sobrevivência das famílias, como atendimento médico,
fornecimento de água tratada e de alimentos suficientes para todos. Juntava-se a isso, a
necessidade de aprenderem a conviver com pessoas com hábitos e cultura diferentes dos seus.
O “encontro” e a convivência destes grupos sociais foram marcados por tensões, em que
a “diferença” levou, na maioria das vezes, ao estranhamento, mas, também, à aceitação, em
relação ao modo de vida do “outro”, onde as relações de alteridade reforçaram a necessidade
dos grupos de reconstruírem tradições culturais, visando estabelecer o sentimento de
pertencimento e fortalecer a sua identidade.
Aspectos da cultura expressos através de comportamentos, dos hábitos alimentares e das
festividades, refletem as diferenças e as fronteiras que marcam cada grupo em sua
singularidade cultural. Mas, não somente isso, esses aspectos revelam também as
aproximações e, porque não, assimilações de modos de vida, nascidas na dinâmica do viver
cotidiano.
Nesse sentido, a reconstrução da Festa da Vaquejada nas agrovilas, por exemplo,
constituiu-se um elemento de coesão muito forte entre as famílias paraibanas que migraram
127
para o Projeto de Colonização em 1980, permitindo o fortalecimento dos laços identitários
entre o grupo e, auxiliando na adaptação desses indivíduos no lugar de destino.
A riqueza de manifestações culturais que as agrovilas de Serra do Ramalho abrigam
atualmente é o resultado da persistência, da capacidade de adaptação e sobrevivência desses
grupos de migrantes no município.
Ao finalizar este trabalho, ressalto que existe uma ampla historiografia sobre migração
interna no Brasil, mas que ainda são poucos os estudos que abordam a temática sob o ponto
de vista da migração campo-campo, que pode ser mais estudada em trabalhos que valorizem a
pluralidade de experiências do modo de vida camponês.
Ao realizar estas considerações finais, espero ter provocado algumas reflexões
importantes para a compreensão das experiências e modos de vida dos migrantes em Serra do
Ramalho. Deixo em aberto outras tantas, que não foram contempladas em minha
interpretação, já que a minha intenção não foi a de esgotar o tema, mas a de levantar alguns
questionamentos e recolocá-lo sob outros pontos de vista, ampliando os horizontes e as
possibilidades de escrita da História.
128
FONTES
Orais
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Paraíba. Data da entrevista: 29 de novembro de 2009. Local: Agrovila 13, Serra do Ramalho,
30 min.
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Ramalho, 90 min.
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natural de Condado, Paraíba. Data da entrevista: 15 de agosto de 2010. Local: Agrovila 09,
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da entrevista: 22 de setembro de 2008. Local: Agrovila 09, Serra do Ramalho, 30 min.
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Mangueira, Paraíba. Data da entrevista: 29 de novembro de 2009. Local: Agrovila 13, Serra
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Bahia. Data da entrevista: 07 de setembro de 2008. Local: Agrovila 09, Serra do Ramalho.
129
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Paraíba. Data da entrevista: 13 de junho de 2010. Local: Agrovila 13, Serra do Ramalho, 30
min.
SILVA, Maria Ivonete da, 58 anos, casada, dona de casa, natural de Santana de Mangueira,
Paraíba. Data da entrevista: 13 de junho de 2010. Local: Agrovila 13, Serra do Ramalho, 40
min.
SILVA, Maria Pereira da, 73 anos, viúva, dona de casa, natural de Conceição do Piancó,
Paraíba. Data da em entrevista: 29 de novembro de 2009. Local: Agrovila 13, Serra do
Ramalho, 90 min.
SILVA, Miguel Félix da, 70 anos, casado, trabalhador rural, natural de Santana de Mangueira,
Paraíba. Datas das entrevistas: 12 de outubro de 2009 e 09 de fevereiro de 2010. Local:
Agrovila 13, Serra do Ramalho, 150 min.
SOUZA, Francisco Soares de, 60 anos, divorciado, ex-vereador do município, natural de
Paulista, Paraíba. Data da entrevista: 17 de maio de 2010. Local: Agrovila 09, Serra do
Ramalho, 110 min.
SOUZA, José Soares de, 58 anos, casado, pequeno produtor rural e comerciante, natural de
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131
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Silva, Agrovila 13, Serra do Ramalho.
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Serra do Ramalho, Bahia, Brasil, 19 jul. 1989.
Iconográficas
Acervos particulares de famílias de colonos, Serra do Ramalho.
Acervo particular de Jerri Ferreira Costa, Agrovila 09, Serra do Ramalho.
Acervos da Secretaria de Educação e Secretaria de Cultura, período: 1976-2000, Agrovila 09,
Prefeitura Municipal de Serra do Ramalho.
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132
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136
ANEXOS
ANEXO A: OS DEPOENTES.
Adelino de Ornelas - Chegou ao Projeto em 1976, vindo do povoado de Bem-Bom. O Sr.
Adelino foi pioneiro na colonização de Serra do Ramalho. Ele presidiu a Cooperativa de
colonos por vários anos, onde defendeu bravamente os interesses dos seus companheiros.
Inicialmente morou na Agrovila 03, sede da Cooperativa, depois se mudou com a família para
a Agrovila 09, onde reside até hoje.
137
Bernardo Gomes da Silva e Helena da Silva - O casal chegou ao Projeto de Colonização em
1976, ele vindo do Piauí, e ela de Casa Nova, Sobradinho. Depois de trabalhar nas firmas
responsáveis pela construção das agrovilas, em 1981 entrou para a equipe do INCRA, onde
trabalha até hoje. Na Agrovila 09, conheceu Dona Helena da Silva, sua esposa, com quem
teve cinco filhos, e onde mora atualmente.
138
Miguel Félix da Silva e Maria Ivonete da Silva - O casal chegou ao Projeto de Colonização
em 1980, vindo de Santana de Mangueira na Paraíba. Vieram com um grupo de famílias, doze
no total, para a Agrovila 13. Assim como na terra natal, nas agrovilas foram viver da
agricultura e da pequena criação de gado. O Sr. Miguel Félix, juntamente com sua família, foi
pioneiro na reconstrução da Festa de Vaquejada nas agrovilas, tradição que até hoje é
apreciada por ele, não mais como corredor, mas, como organizador da festa.
139
Josefa Vicente de Moura e Antonio Joaquim Filho - O casal chegou ao Projeto de
Colonização em 1980, com o grupo de famílias paraibanas. Juntos enfrentaram todas as
dificuldades que marcaram o início do povoamento nas agrovilas, resultantes da falta de
infraestrutura. Até hoje moram com os filhos na Agrovila 13, onde cuidam da pequena
criação de gado e da roça.
140
Jonas da Silva - Chegou ao Projeto de Colonização em 1980, junto com o grupo de
paraibanos, vindo de Santana de Mangueira na Paraíba. Foi com muito esforço que o Sr.
Jonas conseguiu superar as dificuldades financeiras e afetivas no processo de adaptação ao
lugar de destino. Atualmente mora com sua família na Agrovila13, onde vive da prática da
agricultura e da aposentadoria.
141
Joaquim Lopes Neto - Também chegou ao Projeto de Colonização em 1980, com o grupo de
famílias paraibanas. Residiu por dezesseis anos na Agrovila 13 e, atualmente, mora na
Agrovila 09. Com o Sr. Miguel Félix, foi também pioneiro na reconstrução da Festa de
Vaquejada nas agrovilas, ambos responsáveis pela construção dos parques de corrida da
Agrovila 13, Parque São João Batista e Parque Dois Irmãos. Ele participou de muitas
competições, mas hoje, só ajuda na organização da vaquejada. Tradição que foi ensinada aos
filhos, que ainda competem na região.
142
Francisco Soares de Souza - Chegou ao Projeto de Colonização em agosto de 1980, vindo da
Paraíba. Diferentemente dos outros colonos, ele estabeleceu residência na Agrovila 09, onde
foi agricultor e também comerciante por vários anos, depois entrou para a vida política em
1993, sendo eleito vereador por quatro mandatos. Atualmente não atua mais como vereador
do município, mas, ainda desenvolve ações nessa área.
143
José Soares de Souza - Chegou ao Projeto de Colonização em 1988, vindo da Paraíba. Por
meio do seu irmão Francisco Soares de Souza, teve informações sobre a vida nas agrovilas, e
decidiu também se mudar para a Agrovila 09 com sua família. Sem abandonar as atividades
com a agricultura, se dedicou mais à criação e ao comércio de gado na região. Apaixonado
pela tradição das vaquejadas foi o criador do Parque Joaquim Machado no município.
144
Francisco Chagas dos Santos - Chegou ao Projeto de Colonização no dia 31 de dezembro de
1981, vindo de Condado, na Paraíba. Desde então, mora na Agrovila 09, onde atua na área de
educação do município, como professor de geografia. Foi também Secretário de Educação
entre os anos de 1996 a 2000. Ocupou ainda uma cadeira no legislativo entre os anos de 2001
a 2004. Atualmente, dedica-se às ações ambientais de preservação do Rio São Francisco.
145
Dejanira dos Santos Coqueiro - Chegou ao Projeto de Colonização em 1976, vinda de
Malhada de Pedra, em Brumado. Na época, as agrovilas estavam em construção, com poucas
casas. Soube pelo rádio que o INCRA estava precisando de pessoas para trabalhar nas
agrovilas. Assim, seu esposo e seu filho que eram pedreiros, vieram para trabalhar. Depois, o
restante da família veio. Inicialmente, moraram na Agrovila 05, depois na Agrovila 08, e em
1978 se mudaram para a Agrovila15, onde residem atualmente.
146
Maria Pereira da Silva - Chegou ao Projeto de Colonização em 1979, vinda do Mato
Grosso do Sul. Natural de Santana de Mangueira, ela e sua família têm uma longa trajetória
de migrações. Vieram para as agrovilas na esperança de conseguir terra própria e porque
foram expulsos da fazenda onde trabalhavam. Inicialmente morou na Agrovila 01 e em 1981
se mudou para a Agrovila 13, onde reside até hoje
147
Brás Antônio da Silva - Chegou ao Projeto de Colonização em 1980, vindo de Santana de
Mangueira, com o grupo de famílias paraibanas. Desde então, mora com sua família na
Agrovila 13. Além de se dedicar à agricultura, o Sr. Brás participa das organizações das festas
de vaquejadas no município.
148
Cosme Gomes de Nize - Veio para o Projeto de Colonização Serra do Ramalho em 1980 com
o grupo de paraibanos de Santana de Mangueira. Morou na Agrovila 13 nesses trinta anos,
onde se dedicava à criação de gado e a roça. Atualmente, reside na Agrovila 09 com seus
familiares.
149
João Félix - Também veio em 1980 com o grupo de famílias do município de Santana de
Mangueira, na Paraíba. Pai de oitos filhos, ainda mora na Agrovila 13 com sua família, onde
se dedica à agricultura e à pequena criação de gado.
150
Edilson Ferreira da Silva - Natural do povoado do Taitê, na Bahia, chegou ao Projeto de
Colonização em 1981. Inicialmente foi colono na Agrovila 12 e hoje mora com a família na
Agrovila 09, onde pratica uma agricultura de subsistência.
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Maria Regina de Souza Xavier - Programa de Pós