A RESISTÊNCIA DOS MORADORES DE CANABRAVA E DA ALDEIA
VARGEM ALEGRE AO PROJETO DE COLONIZAÇÃO ESPECIAL DE
SERRA DO RAMALHO-BA*
Ely Souza ESTRELA
Doutora em História Social – PUC/SP
Professora Adjunta da UNEB
Departamento de Ciências Humanas – Campus V
A Represa de Sobradinho começou a ser construída em princípios de
1970. No período, o Brasil vivia sob a égide da ditadura militar implantada em
1964. Na presidência da República encontrava-se o General Emílio Garrastasu
Médici, um dos mais autoritários presidentes do chamado ciclo militar. Em
termos
econômicos,
o
Brasil
passava
pela
fase
denominada
de
internacionalização da economia e a construção da gigantesca obra estava em
total consonância com os planos elaborados pelo governo militar de criar obras
de infra-estrutura, voltadas para a viabilização do projeto “Brasil grande
potência”.
A formação do lago de Sobradinho provocou a submersão de enorme
faixa de terra propícia à agricultura, submergiu 26 povoados e quatro sedes
municipais — antigas vilas tradicionais — como Casa Nova, Sento Sé, Pilão
Arcado e Remanso e atingindo, aproximadamente 72 mil pessoas. Para alocar
os habitantes da zona rural dos municípios submersos, a Chesf (Companhia
Hidrelétrica do Vale do São Francisco), em convênio com o Incra (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária), implementou o Projeto Especial
de Colonização de Bom Jesus da Lapa, logo depois denominado Projeto
Especial de Colonização Serra do Ramalho.
As primeiras famílias da região de Sobradinho chegaram ao Projeto
Especial de Colonização de Serra do Ramalho, em março de 1976. Em julho
do mesmo ano chegaram outras levas. De modo que, ao final de 1977,
estavam instalados em Serra do Ramalho um pouco mais de 1.000 das 4.000
famílias localizadas na zona rural dos municípios atingidos. O Projeto foi
rejeitado pela população da área de Sobradinho.
O Projeto Especial de Colonização implementado pelo Incra em Serra do
Ramalho nasceu nos gabinetes da Empresa paulista Hidroservice. A área do
antigo Projeto compreende 257 mil hectares. Ela forma uma espécie de
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trapézio e foi dividida em quatro eixos latitudinais, a cada 6 ou 7 quilômetros
construiu-se uma agrovila. O Eixo 1 abriga as agrovilas: 1, 3, 5, 7, 9 e 11. O
Eixo 2 as: 2, 4, 6, 8, 10, 12, 13, 14, 15, e 16. O Eixo 3 abriga as de nos: 17, 18,
21 e 22. O Eixo 4 as: 19 e 20. Fora dos eixos, encravada no sopé do lado
oriental da Serra se encontra a agrovila 23. As Agrovilas 15, 16 e 23 estão
localizadas no município de Carinhanha. Todas as demais estão localizadas
em Serra do Ramalho, município criado em 1989. A nova organização espacial
foi criada obedecendo a uma articulação do rural e do urbano, ancorada na
divisão lote/agrovila, fator dos mais ilustrativos dos descompassos entre os
agentes planejadores do Estado e os beraderos sanfranciscanos.
A divisão dos lotes obedecia ao módulo rural de vinte hectares nas
glebas e cinco na área de reserva mais próxima ao lote do “beneficiário”.
Somente os terrenos irregulares ou alagadiços possuíam extensão acima do
padrão. Nesse caso, a área da reserva era proporcional à do lote. O Projeto
apresentava uma novidade: em vez de cada lote preservar certo percentual de
mata, “adotou-se um conceito inovador, que dava como coletiva a área de
reserva” (Bursztyn, 1988: 30). Havia duas grandes áreas de reserva, quatro
“reservas extrativistas”, localizadas às margens do Rio São Francisco, e
inúmeras pequenas reservas situadas nos interstícios das agrovilas.
Antes do Projeto Especial de Colonização não havia o território de Serra
do Ramalho, muito menos o município de Serra do Ramalho, criado em 1989.
Ele foi uma construção do Incra. O que havia era um acidente geográfico —
formado de serras de baixa altitude —, encravado na confluência dos Estados
da Bahia/MinasGerais e Goiás, localizado na região econômica do Médio São
Francisco, e vários povoados espalhados em duas áreas distintas: a beira do
rio São Francisco e a região serrana.
Não temos informações sobre o número de habitantes de Serra do
Ramalho antes do Projeto, inferências apontam para a existência de mais ou
menos 6 mil pessoas, concentradas principalmente nos povoados dispersos na
beirada do Rio. Dentre os “patrimônios” serranos, destacava-se o povoado
denominado
de
Ramalho.
Desse
povoado
do
Ramalho
nasceria
a
denominação Serra do Ramalho.
No passado, toda a margem esquerda do São Francisco — o chamado
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Além São Francisco — que vai do Rio Carinhanha ao município de Casa Nova,
pertencia à Província de Pernambuco. Antes da criação e implementação do
Projeto, a região era praticamente toda ocupada por uma vegetação complexa
— “Mata Caatingada”, Cerrado e Vegetação Hidrófila (Relatório do INCRA,
1994, p. 7) —, possuindo um reduto[1] de mata virgem contendo espécies
nobres, tais como o ipê, o cedro, a aroeira, etc[2]. Em relação às localidades rio
abaixo, o clima era (ainda é?) ameno e apresenta alta precipitação (Pierson,
v.1, 1972, p. 150). A terra era fértil para lavoura e pastos para o gado. Além
dos rios perenes — São Francisco, Carinhanha, Formoso e Corrente, na
encosta da Serra corriam riachos e córregos intermitentes.
No passado, a região era vista pelas populações sertanejas como uma
espécie de oásis, ao qual recorria grande parte dos flagelados das constantes
secas que acometiam o Nordeste[3], sendo considerada como menos árida,
recoberta por matas frondosas e ricas em espécies animais.
A região de Serra do Ramalho teve seu povoamento ligado à expansão
bandeirante.
Ainda outros paulistas se fixaram no Médio São Francisco e, na verdade,
as migrações para a área de Carinhanha e Juazeiro finalmente chegaram a tal
ponto que este trecho veio a ser, nas palavras de João Mendes de Almeida,
uma ‘verdadeira colônia de São Paulo’. Em princípios do século XVIII refere-se
que havia arraiais fortificados em Manga, Santa Rita (hoje Carinhanha) e Barra,
onde as famílias paulistas amplamente dispersas se reuniam, de vez em
quando, vindo de suas fazendas de criação (Pierson, v.1, 1972, p. 280).
Todavia, o povoamento efetivo esteve ligado à migração de flagelados
da seca vindos da Serra Geral e da Chapada Diamantina.
Estes três companheiros faziam parte do êxodo de retirantes de lá de
fora: Joaquim vinha de São Sebastião do Rio do Pires; Antônio Pina e João
Rodrigues da Mata saíram de Paramirim. Vieram fugindo da seca, da sede e da
fome; primeiro, vieram rompendo de pé e esbarraram na Gameleira dos Cocos;
assim, encostaram os três na Sambaíba de Carinhanha. (Souza, s/d, p. 34).
A produção estava ligada à pecuária extensiva e pertenceu ao antigo
morgadio de Guedes de Brito — Casa da Ponte. O procurador da herdeira da
sesmaria Joana da Silva Guedes de Brito, Manuel Nunes Viana, vivia em
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Carinhanha, da criação de gado e das atividades mineradoras. Na região
empreendeu feroz caçada aos índios e foi dali que partiu em direção às Minas
Gerais para enfrentar os paulistas, na chamada Guerra dos Emboabas. A
história oral registra a presença de indígenas na região:
Aqui tinha muito índio também; na serra, até hoje, tem muito escrito de índio;
nós já achou panela, pote, prato, cachimbo, tudo de barro cozido, enterrado
nesses matos. Os índios moravam qui, depois eles sumiram pro alto da serra.
Eu vi uma panela toda pinicadinha de unha, muito bonita: era uma aldeia deles;
a gente encontra escritos e desenhos nas pedras das grunas. Ali pro lado do
Morro Redondo, tem uma gruna com a porta fechada com uma parede de
barro; cheia de escritos nessa porta; ninguém nunca conseguiu quebrar pra
ver. Deve ter muita coisa de índio escondido lá dentro. Os índios povoaram
aqui e, depois, foram sumindo pra fora. No meio da rua, Olímpio, quando foi
fazer a casa, tirou um pote de terra, cheio de ossos de gente: os índios
enterravam os seus mortos assim: separavam as juntas todas e entulhavam
dentro de um pote. Esses sarcófagos e esses ossos a gente ainda encontra
enterrado por aí, é só caçar (Souza s/d, p.52-53).
É difícil precisar os grupos indígenas que viveram na Serra. Há registros
de que, ali, se refugiaram os valentes caiapós.
Os caiapós, entretanto, da margem esquerda, bem como os Rodelas
resistiram bravamente e não se renderam, preferindo fugir ou suicidar a se
entregarem à escravidão dos brancos portugueses. Eles se embrenharam
pelas matas adentro e para o alto da Serra do Ramalho e da Serra do Parrela,
no município de Montalvânia (Souza & Almeida, 1994, 31).
Após a submissão e o extermínio dos indígenas, as disputas de terras,
de poder político e de prestígio no vale do São Francisco passaram a envolver
os potentados da região. Os casos de violência envolvendo fazendeiros no vale
do São Francisco tornaram-se bastante conhecidos. A região que compreende
Carinhanha, Serra do Ramalho, Santa Maria da Vitória e Correntina foi palco
de um sem número de conflitos envolvendo os coronéis João Duque, Josefino
Moreira, Leônidas e Clemente Araújo de Castro.
Não é possível remontar a história da propriedade da terra na região
depois da fragmentação da sesmaria da família Guedes de Brito. Tudo indica
que algumas áreas caíram em comisso, isto é, voltaram ao domínio do Estado
em virtude de os concessionários não terem cumprido as condições da doação
(Silva, 1996, p. 97).
Há registros, contudo, da existência de grandes fazendas de gado e
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engenhos na área. Em todas havia a presença de posseiros e agregados[4]. Às
vezes, estes tinham o “primitivo”, isto é, documento lavrado em cartório
atestando a compra da posse na área da fazenda. A área adquirida nem
sempre era medida e demarcada. Em suma, o “primitivo” atestava apenas que
Fulano ou Beltrano havia comprado determinado valor em dinheiro de terra,
sem que a área fosse declarada e sem que houvesse, na maioria dos casos,
demarcação de seus limites. Era muito comum se falar que o Fulano de Tal
comprou 100 ou 200 mil réis de terra em tal ou qual fazenda. Lançar mão do
“primitivo” tornou-se arma comum para os posseiros reivindicarem seus direitos
seculares, mas também dava azo à grilagem, que a intervenção do INCRA
minorou.
No passado, a região que hoje compreende os municípios de
Carinhanha, Serra do Ramalho, Coribe e Feira da Mata, era erma,
freqüentemente usada para “coito” de bandidos e jagunços dos coronéis. O
isolamento era total. Com exceção da estrada de tropas que cortava Serra do
Ramalho, ligando Carinhanha a Santa Maria da Vitória, inexistiam vias de
comunicação terrestre (Pierson, 1972, p. 12. Tomo II).Os beraderos e
ribeirinhos usavam as barcas movidas a remo e a vela; quando partiam para os
centros maiores, utilizavam os vapores que aportavam em Sítio do Mato e
Carinhanha.
Na região econômica do Médio São Francisco, a população é,
predominantemente, mestiça, com fortes traços africanos. Os povoados de Rio
das Rãs, Pau d’Arco, Parateca, Araçá-Cariacá, entre outros, são constituídos
por comunidades quilombolas. Em meados de 1990, a população de Rio das
Rãs teve suas terras tituladas, constituindo-se na primeira comunidade
quilombola reconhecida oficialmente. Na margem esquerda, há remanescentes
de quilombolas nos povoados de Barra do Parateca e Boa Vista e acredita-se
que também nos povoados serranos de Capinão e Garrido, em Carinhanha.
Essa população praticava a policultura consorciada a outras atividades. Os
serranos viviam basicamente da agricultura de sequeiro (milho, feijão,
mandioca, mamona e algodão) e da criação de pequenos rebanhos — bovinos
e caprinos. Como em todo o sertão nordestino o rebanho é criado solto, as
cercas são utilizadas para delimitar o espaço da roça. Os habitantes dos
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brejos, além das culturas tradicionais de sequeiro como milho, feijão e
mandioca, plantavam também arroz, frutas e legumes. Os beraderos viviam da
pequena produção agrícola de vazante e da pesca artesanal.
Tanto o mobiliário quanto o vestuário eram rústicos. Em geral, fabricados
pelos usuários com artefatos produzidos ou extraídos na própria região.
Os patrimônios, como eram denominados na região os diminutos
núcleos de população, além da venda e de uma pequena capela,
compreendiam umas casas dispersas habitadas pela parentela. Quase todas
eram construídas em adobe ou pau-a-pique e cobertas de telhas fabricadas
nas olarias da própria região, ou de palha. Era na sede do povoado que os
padres procediam à “desobriga” e os fiéis promoviam festa, em geral, de
caráter religioso.
Quando, em 1975, o Incra procedeu à desapropriação da área para
criação do Projeto Especial de Colonização, as terras de Serra do Ramalho, de
acordo com Marcel Bursztyn (1988, p. 23), se concentravam nas mãos de
poucos proprietários e aproximadamente mil posseiros.
A
notícia
da
desapropriação
desagradou
aos
poderosos
que
reivindicavam propriedades na região. O ato desapropriatório deu azo a
pressões políticas. Durante todo o processo de desapropriação, o Incra esteve
sob intensa pressão dos políticos arenistas, das várias esferas[5].
O drama de Sobradinho atingiu em cheio os habitantes da Serra do
Ramalho. Os pequenos proprietários e posseiros foram tomados de surpresa e
de desespero. Para a população que vivia em Serra do Ramalho, os dias
subseqüentes à desapropriação foram de incertezas e angústia. Após a
publicação da lei de desapropriação, o Incra começou a agir na área. Os
funcionários do órgão se embrenhavam nos povoados, exigindo dos moradores
o documento da terra; examinavam-no e chamavam o proprietário para a
medição. Quando os moradores não apresentavam o documento de
propriedade da terra, eram avaliadas apenas as benfeitorias. Segundo XiqueXique[6], o Incra só reconhecia a “quinzenária”, isto é, os títulos de propriedade
registrados em cartório há mais de quinze anos. Certamente, a medida visava
deter a ação dos grileiros na área.
Os mesmos métodos manu militari aplicados em Sobradinho foram
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reeditados pelos técnicos do Incra em Serra do Ramalho. De acordo com o
relatório da CPT, o Incra alegava que o projeto era do governo e que não tinha
recursos para pagar altas indenizações, intimidando os desapropriados a não
reclamarem das avaliações. (Cordeiro, 1982, p. 15).
Na oportunidade, os técnicos do órgão avisavam aos desapropriados
que, a partir daquele momento, estavam proibidos de cultivarem roças, de
fazerem novas benfeitorias, permitindo-se apenas o plantio de lavouras de ciclo
curto. Mas as indenizações só começaram a ser pagas em 1977, quando as
primeiras agrovilas já estavam sendo ocupadas pela população de Sobradinho.
Os camponeses expropriados dizem que os valores que receberam a
título de indenização eram muitos baixos e que suas propriedades e
benfeitorias foram sub-avaliadas. Ao contrário dos deslocados de Sobradinho,
que receberam os valores em seus povoados, os expropriados de Serra do
Ramalho tinham que retirar a importância na sede do Incra, localizada na
capital baiana. Tal fato gerou descontentamento entre os expropriados, pois,
muitas vezes, a importância que receberiam dava tão somente para o translado
a Salvador. Inconformados, uns poucos desapropriados recorreram à justiça,
tendo que pagar, às vezes, honorários de mais de quinze por cento do valor
recebido. Desse modo, todos reclamaram das perdas e das mudanças
operadas em seu cotidiano pelo Projeto.
Durante o processo desapropriatório, o Incra deixou claro para os
pequenos proprietários, agregados e posseiros expropriados que poderiam ser
reassentados nas agrovilas, desde que obedecidos alguns critérios. Um deles
era que só seriam aceitos como “colonos” os indivíduos que tivessem idade
inferior a 59 anos. A medida era discriminatória, pois os originários de
Sobradinho que tinham essa idade receberam casas na agrovila. Por que os
expropriados de Serra do Ramalho não teriam os mesmos direitos? Era o que
perguntavam todos.
Diante dessas medidas, algumas famílias, de posse das exíguas
indenizações, partiram para São Paulo e Goiás, visando refazer suas vidas.
Outras mantinham expectativas favoráveis em relação ao Projeto. Acreditavam
que sua aplicação resultaria em benefícios. O entusiasmo parecia maior em
relação ao projeto de irrigação e à concessão de crédito agrícola prometidos
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pelos agentes governamentais. Tendo isso em vista, os desapropriados de
Canabrava, por exemplo, passaram a reivindicar a permanência no local,
visando se beneficiar das mudanças que o projeto promoveria na região. É isso
que se depreende da fala Xique-Xique do povoado de Canabrava: [...] aquele
comentário do projeto, que o projeto vinha, ia beneficiar, ia dar irrigração pra
todo mundo. Aí a gente ficamos naquela, mas ficamos aqui na ponta da
área.”[7]
Na medida em que o tempo foi passando, o desencanto em relação ao
Projeto chegou aos povoados. As reservas em relação à mudança para as
agrovilas aumentaram. Os primeiros a empreenderem resistência à mudança
para a agrovila foram os habitantes dos povoados situados à beira do Rio São
Francisco,
em
áreas
que, a
partir
da
implantação
do
Projeto, se
transformariam, segundo diziam os técnicos, em reservas extrativistas. Os
habitantes de Campinhos e Boa Vista, por exemplo, resistiram a toda investida
do Incra e só mudaram para as Agrovilas 8 depois de muitas idas e vindas.
Percebendo que o valor da indenização era irrisório e, portanto,
insuficiente para qualquer aquisição na região, uma parcela se rendeu às
evidências, resolvendo permanecer nos seus locais de moradia e aguardar
posição do Incra quanto ao local do reassentamento. A população serrana
reivindicava a mudança para as Agrovilas 15 e 16, situadas próximas de seus
povoados. Mas o órgão havia destinado as duas agrovilas para os colonos
sulistas.
Duas comunidades assumiram, vamos dizer assim, uma postura um
pouco mais organizada: os indígenas Pankaru[8], que reclamavam a
demarcação de área em Serra do Ramalho, e os habitantes do povoado de
Canabrava, situado às margens da nascente do Riacho das Pitubas (ANAI, s/d,
p. 2).
A pequena comunidade Pankaru localizada na Agrovila 19 compreende
um conjunto de 14 famílias, aproximadamente 60 pessoas, e é a mais pobre
dentre todas de um projeto que se acredita fracassado. É também a que menos
dispõe de equipamentos urbanos. Ela não é servida de Posto de Saúde, de
escola de ensino médio nem de transporte regular. O fornecimento de água é
precário e as estradas vicinais, no período das chuvas (outubro/novembro a
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fevereiro/março),
tornam-se
intransitáveis.
Na
antiga
aldeia,
distante
aproximadamente seis km da Agrovila 19, as condições de vida eram ainda
mais precárias: as casas eram de pau-a-pique e não havia escolas.
Acatando reivindicação dos índios, que sempre rejeitaram a vida na
Agrovila, em 1999 a Funasa (Fundação Nacional de Saúde) construiu um
conjunto de casas em área localizada "na boca da mata". As casas são de
alvenaria e têm três cômodos. Além delas, foram construídos uma pequena
Igreja e um Posto de Saúde. A escola para os primeiros ciclos do ensino
fundamental se encontra em fase de construção. No entanto, os índios
continuam vivendo entre a nova aldeia e a Agrovila 19, pois a Coelba
(Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia), em que pese as inúmeras
solicitações da Associação da Aldeia Vargem Alegre, até 2003, não tinha
instalado energia elétrica nas casas.
Remontar aos primeiros contatos dos atuais Pankaru com membros da
sociedade não-indígena é tarefa das mais difíceis, sobretudo quando não se
sabe sequer a qual tronco lingüístico ao qual eram filiados. Grupo étnico
recentemente diferenciado, os Pankaru ainda não contam com estudos
etnográficos, e documentos históricos versando sobre aspectos da história do
grupo são desconhecidos. É provável que a família do ex-pajé Apolônio Kinane
seja remanescente dos aldeamentos indígenas patrocinados pelas sucessivas
missões religiosas instaladas no Vale do Baixo e Médio São Francisco, entre
os séculos XVII e XVIII.
A representação da história contemporânea dos Pankaru é marcada por
descontinuidades, elaborações e reelaborações empreendidas pelo pajé
Apolônio e sua família, visando atender os interesses e as conveniências do
grupo. Os constantes deslocamentos do patriarca marcaram a resistência e a
luta pela territorialização, forjando a identidade familiar e grupal. Assim, a
etnogênese da comunidade Pankaru está fortemente entrelaçada à saga do
patriarca, o pajé Apolônio, falecido em 2002.
Segundo entrevista de cacique José Alfredo da Silva Pankaru[9], a saga
do pajé Apolônio teria começado muito cedo. Na primeira década do século
XX, adolescente, deixou o Lero — povoado onde teria nascido —, localizado a
seis léguas de Salambaia, região do agreste pernambucano. Depois de
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 11: Poder, Culturas,
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perambular por vários municípios de diferentes estados do Nordeste, travou
contato com os Pankararu da Aldeia de Brejo dos Padres, município de
Tacaratu - PE.
De acordo com o antropólogo José Augusto Laranjeira Sampaio,
já casado com D. Maria, uma alagoana que conhecera na Paraíba, decidiu
fixar residência nas proximidades da área indígena onde deixava a família
enquanto prosseguia suas viagens. De inequívoca origem indígena, eram
aceitos como 'parentes' pelos índios locais (1992, p. 3-9).
Alguns anos mais tarde, segundo Alfredo José Pankaru, Apolônio
desentendeu-se com o cacique e partiu em direção a Paulo Afonso - Bahia. Na
localidade, trabalhou, em princípios de 1950, nas obras da Usina Hidrelétrica
construída pela Chesf. Em seguida, partiu para trabalhar na Usina Hidrelétrica
de Correntina-Bahia, como vigilante. Encantado com a existência de mata
fechada na região da Serra do Ramalho, visando ali se estabelecer, retornou,
imediatamente, a Paulo Afonso para buscar a família.
No imaginário Pankaru, Apolônio Kinane adentrou a mata à procura de
uma comunidade indígena denominada Morubeca, que sabia viver nas
proximidades da Serra do Ramalho, município de Bom Jesus da Lapa-BA, com
a qual acreditava ter laços de parentesco. Quando chegaram à região, os
indígenas procurados já não se encontravam no local. Haviam sido expulsos
por grileiros, ganhando as picadas e estabelecendo-se segundo o informante,
em território goiano.
A chegada dos Pankaru à Serra do Ramalho coincidiu com a exploração
de minérios na região. No imaginário indígena, foi Apolônio quem descobriu
minério na Serra Solta (fluorita), em fins dos anos 50, recebendo em
recompensa do prefeito municipal de Bom Jesus da Lapa, Antônio Cordeiro,
área na qual havia se estabelecido, ficando a salvo das violências dos brancos.
Em princípios de 1970, o extremo sudoeste da Bahia tornar-se-ia palco
da ação de inúmeros grileiros. Conforme vimos, decreto presidencial, publicado
em 1973, declarava a região do Médio São Francisco prioritária para
desapropriação. A medida se fazia necessária por causa da desapropriação
não só da área da Barragem de Sobradinho, mas também da área onde seria
reassentada a população atingida. Diante da possibilidade de serem
indenizados, os grileiros começaram a atuar na região, tentando expulsar a
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 11: Poder, Culturas,
Conflitos e Violência no campo brasileiro.
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população local desprovida de título de propriedade. As terras devolutas
ocupadas pela família de Apolônio Kinane passaram a ser reivindicadas por um
grileiro proveniente de Pernambuco, que atormentava o indígena e sua família,
bem como os posseiros que viviam na área. Instalou-se em Serra do Ramalho
um clima de terror, pois, visando expulsar os posseiros, o grileiro ameaçava
derrubar e queimar suas benfeitorias, contando com a conivência das
autoridades de Bom Jesus da Lapa. Alguns anos depois, o grileiro “vendeu a
questão”, ou seja, passou as terras a um fazendeiro do sul da Bahia. Articulado
com as autoridades de Bom Jesus da Lapa, o fazendeiro utilizou a polícia
militar da Bahia para expulsar os indígenas. Depois de assaltarem a casa da
família Kinane, levaram presos Apolônio, um filho e dois genros para a
delegacia de Bom Jesus da Lapa. De acordo com informações obtidas juntos
aos indígenas, no meio do caminho, os prisioneiros foram levados para a sede
da fazenda e torturados pelos seus capangas com a complacência dos
policiais. Diante de tamanha violência, os indígenas resolveram partir para
Brasília à procura da Funai (Fundação Nacional de Apoio ao Índio). O contato
com o órgão, segundo Alfredo José da Silva Pankaru, mudou a perspectiva de
vida de seu povo. Informados de seus direitos em relação às terras de seus
ancestrais, retornaram à região de Serra do Ramalho, visando enfrentar o
grileiro e novas hostilidades foram registradas. Nesse entremeio, a região de
Serra do Ramalho fora escolhida pelo Incra para abrigar o Projeto Especial de
Serra do Ramalho, cuja finalidade precípua, como visto acima, era reassentar
os expropriados da área da Barragem de Sobradinho, tornando suas terras
ainda mais cobiçadas pelos grileiros ávidos em embolsar os valores da
indenização. Firme no propósito de ceder apenas vinte hectares a cada família
assentada, o INCRA sugeriu à FUNAI “remoção dos índios ou a sua
emancipação para que tenham direitos ao assentamento de acordo com o
disposto no Estatuto da Terra”. Os índios resistiram e, depois de idas e vindas,
os direitos dos Pankaru foram reconhecidos. Porém não receberam a área
reivindicada. Coube-lhes apenas uma área de aproximadamente mil hectares,
homologada em 1991, e um lote urbano de três hectares localizado na Agrovila
19, onde foram construídas 50 casas reservadas aos indígenas. Como os
Pankaru resistissem à fixação na Agrovila 19, algumas casas ficaram por
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 11: Poder, Culturas,
Conflitos e Violência no campo brasileiro.
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algum tempo desocupadas. Sem-terras provenientes de vários pontos da Bahia
tentaram invadi-las. Os Pankaru exigiram a intervenção do Incra. Entretanto, o
órgão não foi capaz de impedir que os "colonos" destruíssem as casas,
levando consigo telhas e blocos. Ainda hoje a área é disputada pelos indígenas
e um não-índio que afirma ter o título de propriedade do lote.
A história da resistência dos habitantes do povoado de Canabrava,
localizado no município de Carinhanha, apresenta alguns pontos de
semelhança com a dos Pankaru. Em meados de 1975, numa área
praticamente isolada e bastante dispersa que tinha por núcleo urbano o
pequeno povoado de Canabrava, viviam por volta de 196 famílias. No núcleo
urbano viviam aproximadamente 24 ou 25 famílias, todas aparentadas entre si,
num sistema de relações de parentela. No pequeno núcleo urbano localizado
próximo à nascente do Riacho das Pitubas, além da venda, havia um pequeno
grupo escolar e uma capela. Enquanto vários povoados vieram abaixo para dar
lugar às agrovilas, Canabrava, localizado quase no sopé da Serra,
permaneceu. Enquanto os funcionários do INCRA implantavam nas agrovilas o
regime do “cativeiro”, os habitantes de Canabrava tomaram uma decisão: não
aceitariam as medidas do governo. Eles reivindicavam lotes rurais acima do
módulo rural e sua permanência no povoado. As reivindicações foram
legitimadas e estimuladas pela ação da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e da
Diocese de Bom Jesus da Lapa. Ambas as instituições colocaram à disposição
dos desapropriados recursos humanos e materiais para que levassem adiante
a reivindicação da permanência em Canabrava[10]. Em 1980, os habitantes de
Canabrava lideraram o processo de criação do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Carinhanha.
Aí a gente ficamos... Veno a continuidade da agrovila e o
desenvolvimento, achamos por bem que não era viável pra nós aquilo. Devido
a nossos costumes. A gente... O costume era criar uma vaca, criar de tudo
para ajudar nossa sobrevivência na roça, porque a gente na roça tem de
sobreviver de tudo, né? E fumos vendo aquilo, achano que... Outra, que
desagradou muito nós que era daqui da região... porque vem gente de todos os
lados, do Norte... do Sul. Então aquilo deve... não combinou com os modos de
viver, né? Porque um sujeito do Paraná com outro do Pernambuco, acho que
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Conflitos e Violência no campo brasileiro.
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os modos são totalmente diferentes. Isso foi trazeno assim aquela preocupação
pra nós. Aí foi quando apareceu aqui na área o sindicato dos trabalhadores
rurais e outras entidades, a CPT. Aí foi clariando pra nós assim o nosso direito,
porque isso também já tinha sete anos que nós já tinha sido desapropriado. E
ficamos aqui assim naquela enrola pra fazer a agrovila, todo ano vinha um
diretor do INCRA aí da 9, nas época de plantar, de botar roça, eles vinha e
falava — Olha, vocês não põe roça, não pode plantar planta permanente. Aí o
pessoal foi desanimano. E aí a gente foi. Quando veio esse pessoal, aí foi
falano que a gente já tinha aqueles anos, que nós já tinha direito de reivindicar
um, mais uma terra. Aí nós foi nessa. Foi... se organizamos, fizemos reuniões
com o pessoal que abrangeu essa área. Nós pegamos uma área de 14 mil
hectares.[11]
O Incra rechaçou as reivindicações e o gerente-executor utilizou todos
os meios para dissuadir os moradores de Canabrava de suas reivindicações.
Lançou mão até da coação e da intimidação aos aposentados. Embora se
arvorasse em todo poderoso, não é possível dizer, com certeza, se o executor
tinha ou não poderes para promover tais fatos, contudo os cortes e atrasos no
pagamento da aposentadoria rural eram freqüentes em Serra do Ramalho, no
período da implantação do Projeto.
Em carta dirigida ao ministro da Previdência Nascimento e Silva, o
reassentado Moisés Evangelista da Silva reclamava do corte de sua
aposentadoria e pede explicação:
Sr. Ministro Nascimento e Silva venho saber se o direito do velho que tem 67
anos de idade não tem direito de receber abono? Da idade conforme os outros
tiveram e estão tendo. Mas eu fui sonegado e não tive esse direito. O direito
que tive foi quatro carnês em branco e está guardando para saber se está
certo e depois da vossa resposta, porque foram estas causas tenho mais cinco
meses perdidos de dezembro de 1977 a 1978. Só foi recebido de maio até
novembro de 1978 e para já está com dois meses, mês de novo sem receber.
Venho saber se estar tendo sabotage ou não. Pesso resposta e justiça porque
aqui tudo que o governo manda não se recebe nada, este o motivo que os
desapropriados da Barragem de Sobradinho estão voltando. E por estar
faltando à administração e falta de justiça neste progeto localizado neste
município de Bom Jesus da Lapa e todos os velhos estão nessa situação triste.
Pesso justiça se eu e os outros velhos que estão sentindo esta falta de justiça.
Sem mais de seu desamparo.
Em seguida, o Incra tentou subornar a principal liderança do movimento
de resistência. Quem fala sobre isso é Xique-Xique:
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Chegaram a mim oferecer cem hectaras para mim abrir fora. O pessoal lá
deles. Ofereceram aqui dentro de casa. Aqui...Não foi propriamente Mandou
uma pessoa. (...) ‘Diz que lhe dá cem hectaras para você deixar fazer as
agrovilas.’ Disse: Eu aceito. Só quero que o senhor me dê a forma deu sair
com meus parceiros, porque vocês vai embora e eu vou ficar conviveno com o
pessoal que vai ficar contra mim. Como é que eu vou conviver com esse povo?
Com meus irmãos, com o pessoal que é meu amigo? Depois, como é que vou
viver com eles até o fim da vida? Se o senhor me der a norma, eu aceito.
Uma parcela dos habitantes estava firme no propósito de não deixar o
povoado. Diante disso, o gerente-executor não recuou, propondo a construção
de uma agrovila justamente em Canabrava. A proposta foi recusada. A notícia
de que o Incra iria começar os trabalhos de abertura da agrovila no povoado se
espalhou e a resistência foi preparada. Souza retrata com leveza e humor o
acontecimento que provocou o recuo do Incra e marcou a vitória dos habitantes
de Canabrava:
A Canabrava deve desaparecer para dar lugar a uma Agrovila. Os tratores vão
chegar para derrubar as casas e as árvores. Todos devem desocupar a área...
Está determinado o despejo. A comunidade também toma sua decisão oficial:
Todas as mulheres e crianças vão ocupar pacificamente a ponte de
Canabrava. É o único caminho por onde o trator pode entrar. O trator pode
entrar, mas vai ter de passar por cima de nossas mulheres e de nossas
crianças. Homem enfrentar homem dá violência; mas trator e homem em cima
de crianças e mulheres é covardia!
O cenário está feito: a ponte tomada — todas as mulheres com seus filhos! Os
homens estão entrincheirados, na espreita. Muita tensão na Canabrava.
Angústia! Vontade de correr! Desespero e medo! Prá, prá, prá, Porarara, pá,
papá... Surge, no meio do mato fechado, um trator do INCRA, roncando o seu
ronco maldito. Está na hora! É hora! Mulheres vão compondo e pondo os
nomes... são os santos de sua especial devoção. Acossado, faz meia volta e
desaparece, novamente, no meio da floresta. Some tal qual a brisa do vento.
Não deixa nem saudade! Mas até quando? (Souza, 1991, p. 64).
Temendo um desfecho imprevisível, o Incra recuou. Porém, a luta do
povoado de Canabrava contra o Golias federal estava só no começo, exigindo
inúmeras reuniões com a mediação do Bispo de Bom Jesus da Lapa, na sede
do Projeto e, inclusive, em Brasília.
Em 1985, em plena Nova República, os moradores de Canabrava
receberam lotes três vezes maiores que o módulo rural e o direito de
permanecerem em seu povoado. Fechado o acordo entre os moradores e o
Incra, alguns dos desapropriados que haviam partido retornaram, sendo
contemplados nos mesmos moldes observados em relação aos que tinham
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permanecido.
Numa perspectiva de reforçar os antigos laços de solidariedade, uma
parcela dos moradores de Canabrava firmou um acordo rezando a
indivisibilidade dos lotes e a proibição de sua venda para pessoas que não
tivessem laços com a comunidade.
Mais tarde, o Incra construiu uma escola e um posto da Cobal; o último,
depois da “liquidação” do Projeto, passou às mãos da Associação de
Moradores.
Somente em 1992, os moradores de Canabrava receberam o título
provisório e o carnê para pagamento do lote. Segundo Xique-Xique, a maioria
pagou o lote sem grandes problemas, uma vez que os valores não foram
considerados altos, contudo, em relatório do Incra, de 1994, há referência ao
atraso de pagamento das prestações por parte de muitos “beneficiários”.[12]
As investidas do Incra para que aceitassem suas medidas arbitrárias,
segundo informações, geraram conflito entre os moradores de Canabrava. As
acusações de traição, de “dedo-durismo” e de covardia ainda causam mal-estar
entre a população. Por isso, Xique-Xique diz que, desde o momento em que os
funcionários do Incra pisaram o pé no lugarejo, instalou-se, ali, a malquerença
e a discórdia.
* Excerto da tese de doutoramento apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social do Departamento de História da Pontifícia
Universidade de São Paulo, em 2004, sob orientação da Profa. Dra. Maria
Odila Leite da Silva Dias.
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Ramalho. Brasília: 1994. (mimeog.)
RELATÓRIO DO INCRA. Relatório (Revisto e atualizado) da Comissão do ExPEC- Serra do Ramalho. Brasília: 1999. (mimeog.)
Notas
[1] Mais detalhes sobre o conceito de reduto, vide: Aziz Ab’Saber, Relictos,
redutos e refúgios, 2003, p. 145-146.
[2] Constatou-se, pela pesquisa do Consórcio, que mais de 70% da área de
todas as propriedades permanecem cobertas por matas.” Empresa
Hidroservice, Projeto Sobradinho. Estudo de viabilidade do Projeto de
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 11: Poder, Culturas,
Conflitos e Violência no campo brasileiro.
16
Colonização de Bom Jesus da Lapa, 1975, p. 88.
[3] Bem antes da instalação do Projeto, Souza identificou em Serra do Ramalho
várias pessoas nascidas no Estado de Pernambuco e em vários pontos da
Bahia.
[4] Levantamento executado pelo INCRA, antes da desapropriação da área,
revelou “que 38% dos agricultores são posseiros, 24% são proprietários, 19%
são agregados, 17% são simples ocupantes e 2% não declararam sua
condição”. Empresa Hidroservice, op. cit., p. 88.
[5] Para se ter idéia, o deputado Manuel de Almeida Passos Filho, em discurso
na Assembléia Legislativa da Bahia, rebateu alegação do INCRA de que todas
as propriedades da área desapropriada do futuro Projeto de Serra do Ramalho
eram cadastradas como latifúndios por extensão ou exploração (A Tarde,
30/4/1975, p. 5).
[6] Nome fictício. Entrevista concedida à autora,Carinhanha.
[7] Entrevista de Xique-Xique.
[8] Em fins de 1980, a comunidade Pankaru da Agrovila 19 mudou seu nome
deliberadamente, para diferenciar-se dos Pankararu que vivem no Estado de
Pernambuco. Segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, a mudança se
fez necessária porque os órgãos governamentais confundiam as duas
comunidades. Desse modo, as melhorias solicitadas pela comunidade da
Agrovila 19 eram, muitas vezes, encaminhadas para os Pankararu de
Pernambuco, reconhecidos secularmente pelas autoridades constituídas.
[9] Entrevista concedida à autora na, Serra do Ramalho.
[10] Durante o processo de resistência, os expropriados contaram com apoio
do advogado da CPT.
[11] Entrevista de Xique-Xique, Carinhanha.
[12] Relatório publicado em 1994 pela Comissão constituída pelo INCRA com a
finalidade de proceder aos levantamentos necessários para a efetivação da
emancipação fundiária do PEC-SR. Relatório da Comissão Coordenada por
Marcos Correia Lins, Brasília, dezembro de 1994, p. 41.
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Conflitos e Violência no campo brasileiro.
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