INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA CAMPUS BENTO GONÇALVES Luiz Gustavo Lovato INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS: BUSCA DE IDENTIDADE OU ADEQUAÇÃO AO MERCADO? Bento Gonçalves 2011 2 INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA CAMPUS BENTO GONÇALVES Luiz Gustavo Lovato INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS: BUSCA DE IDENTIDADE OU ADEQUAÇÃO AO MERCADO? Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso Superior de Tecnologia em Viticultura e Enologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia - Campus Bento Gonçalves, como requisito parcial para a obtenção do grau de Tecnólogo em Viticultura e Enologia. Orientador: Prof. Dr. Júlio Meneguzzo Bento Gonçalves 2011 3 Às pessoas com as quais estabeleci uma relação recíproca de ser família; aos meus amigos; aos mestres e orientadores; e à iminência de um futuro bom e longevo. 4 “Veio o criado espanhol com a bandeja de prata, vários licores, e cálices, e foi um bom momento para o Rubião. Ofereceu, ele mesmo, este ou aquele licor; recomendou afinal um que lhe deram como superior a tudo que, em tal ramo, poderia existir no mercado. Freitas sorriu incrédulo. — Talvez seja encarecimento, disse ele.” Quincas Borba, Machado de Assis 5 RESUMO Atualmente, a vitivinicultura brasileira, e por que não dizer o Brasil como um todo, engatinha no mundo das indicações geográficas (IGs), e tem a vantagem de ter assistido o fracasso e/ou o sucesso de outras denominações mais antigas. Observa-se também que a tendência mundial de consumo de vinhos mostra que, hoje, se consume cada vez menos. Porém, há uma busca, por parte do consumidor, por qualidade, tipicidade e credibilidade. Ou seja, se bebe melhor. As indicações geográficas, bem como outros tipos de denominações de origem, endossam uma aparente qualidade a regiões e vinhos. Este trabalho tem o objetivo de analisar o desenvolvimento das regiões vitícolas demarcadas ao redor do mundo ao longo da história, confrontando os motivos pelos quais surgiram. O que buscaram e buscam essas regiões: identidade ou adequação ao mercado? Para tal foi realizada uma pesquisa descritiva, envolvendo estudos de caso, história do vinho, normativas de legislações de denominações e comportamento do consumidor. O estudo indicou que a política de proteção industrial e econômica foi a real motivação para a criação das indicações geográficas. Enquanto a busca por identidade e tipicidade somente depois se tornou igualmente relevante. Palavras-chave: indicação geográfica, identidade, denominação de origem, consumo, mercado. 6 ABSTRACT Now, the Brazilian viticulture, and why not to say the Brazil as a whole, crawls in the world of the geographical indications (GIs), and it have the advantage of having attended the failure and/or the success of other older denominations. It is also observed that the world tendency of consumption of wines display that, today, the consumer drink less and less. However, there is a search, on the part of the consumer, for quality, typicals wines and credibility. In other words, the consumer drinks better. The geographical indications, as well as other types of origin denominations, endorse an apparent quality to areas and wines. This work aimed to do an analysis the development of the viticultural demarcated areas around of the world along the history, confronting the reasons for the which appeared. What these areas looked for and still looking for: identity or adaptation to the market? For such a descriptive research was accomplished, involving case studies, history of the wine, normative of legislations of denominations and the consumer's behavior. The study indicated that the politics of industrial and economical protection was to real motivation for the creation of the geographical indications. While the search for identity and typical wine only later if it turned equally relevant. Key words: geographical indication, identity, appellation of origin, consumption, market. 7 SUMÁRIO 1. APRESENTAÇÃO ............................................................................................................. 8 2. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10 3. UM BREVE RESGATE HISTÓRICO ............................................................................... 12 4. CONSTRUINDO UMA IDENTIDADE ............................................................................ 17 4.1 O terroir, o resguardo romântico e a ideia de pureza .................................................. 18 4.2. Paradoxo das classificações ........................................................................................ 20 5. O CONSUMO COMO GUIA ............................................................................................. 22 6. DISCUSSÃO, CONCLUSÕES E SUGESTÕES ............................................................... 25 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 27 8 1. APRESENTAÇÃO Sem muito esforço, pode-se ouvir em rodas de conversa dos viticultores no norte da Itália, que a peculiaridade é territorial. A valorização do nome de determinada região parece ser um belo adorno que tem a capacidade de inflar a vaidade e o orgulho de toda uma cadeia produtiva. Basta estar atento. Já na América Latina, as discussões acerca do tema “indicações geográficas” (IGs) surgem como um intento valoroso de posicionamento no competitivo mercado mundial de vinhos. Como se tudo o que possa ser reproduzido – o cultivo da cepa francesa Merlot na Serra Gaúcha, por exemplo – não tenha capacidade de tornar-se algo original e de identidade própria. Sendo assim, pode-se ainda crer em um vinho típico? Como se fosse uma contravenção à ordem, esta última, e aparentemente simples questão, fez suscitar tantas outras de tamanha e igual relevância. Outras passagens cotidianas e casuais auxiliaram de forma pontual na edificação da problemática. Os comentários aguçados de Marco Fedrizzi, agricultor com o qual convivi durante um período na Itália, moldavam, despretensiosamente, a ideia de terroir e das zonas aptas à produção de determinada variedade de uva ou de um produto de qualquer outra natureza. Fazia isso quando apontava um ou outro terreno onde a Teroldego da Piana Rotaliana, no Trentino, expressava mais, ou menos, seu potencial. Porém, o fator decisivo para o desenvolvimento deste trabalho intitula-se “paradoxo das classificações”, que consiste em um antagonismo estabelecido entre a classificação do vinho e o valor agregado ao mesmo. Ou seja, um vinho que não se adapta a determinadas normas de uma denominação de origem (DO), acaba por ter uma classificação inferior, enquanto seu preço e qualidade podem ser tão altos quanto os vinhos delimitados de qualidade superior protegidos pela legislação vitivinícola daquela região, justamente por não se enquadrarem nas tais normas. Esse modelo paradoxal está vinculado à construção de uma região demarcada, a partir do momento em que se questiona se a real motivação da criação da mesma é a busca por um vinho típico ou uma política protecionista e de adequação ao mercado. Não obstante, cabe observar que o comportamento do consumidor e as relações interempresariais de competitividade mercadológica tornam-se indissociáveis a partir do momento em que se percebe uma regulação da oferta pelas tendências da demanda. O modelo do vinho vem projetando uma incessante busca pela qualidade, ao passo que o crescimento em quantidade consumida é freado ano após ano. E essa tendência global de beber menos e 9 melhor, reflete na criação de novas regiões demarcadas e na adaptação de outras mais tradicionais. Uma vez que a indicação geográfica passa a ter, junto ao consumidor, conotação de credibilidade, tipicidade e qualidade. Atualmente, a vitivinicultura brasileira, e por que não dizer o Brasil como um todo, engatinha no mundo das indicações geográficas, e tem a vantagem de ter assistido o fracasso e/ou o sucesso de outras denominações mais antigas. Esse trabalho se propõe a analisar a evolução das regiões vitícolas demarcadas ao redor do mundo ao longo da história, confrontando os motivos pelos quais surgiram. E responder: afinal, o que buscaram e buscam as regiões vitícolas demarcadas: identidade ou adequação ao mercado? 10 2. INTRODUÇÃO Desde a segunda metade do século XVIII, quando o pombalismo - período entre 1750 e 1777, o qual teve o Marquês de Pombal, espécie de primeiro ministro, como figura chave do governo português (FIGUEIRA, 2006) - influenciou a criação da Companhia dos Vinhos do Alto Douro (MOURÃO, 2009), até os dias de hoje, a organização do setor vitivinícola através de políticas econômicas marca os preceitos do nascimento de uma indicação geográfica. A legislação brasileira trata a indicação geográfica como sendo um produto ou um serviço o qual a reputação, as características e a qualidade estão estritamente vinculadas aos atributos naturais e humanos de um determinado local, região ou país (BRASIL, 1996). Seguindo a linha de pensamento que propõe a supracitada definição de indicação geográfica, infere-se que, o fato de um determinado produto trazer estampado no rótulo alguma menção às origens do mesmo, sugere garantia de qualidade junto ao consumidor. No caso dos vinhos, o terroir – termo que exprime a interação entre os fatores naturais e humanos – é preponderante na qualidade percebida pelo consumidor que reconhece esse diferencial (AURIER et al., 2005). Todavia, a regulação das denominações, inicialmente desenvolvida na França, Portugal e Hungria, se orientava a determinar as fronteiras das áreas produtoras dos vinhos com prestígio internacional. E tinha como objetivo, também, evitar a imitação, a fraude e atitudes subversivas às normativas públicas que incitavam às boas práticas enológicas. Já no século XX, as denominações passaram a ter um emprego estratégico na concepção de vinhos de qualidade, para promover novos nomes no mercado (PAN-MONTOJO, 2009). Ao passo que os novos países produtores – tais como Estados Unidos e Austrália - procuravam escapar à regulamentação “engessada” das denominações europeias, ainda assim, produzindo vinhos de ótima reputação. O objetivo desse trabalho é analisar o desenvolvimento das regiões vitícolas demarcadas ao redor do mundo ao longo da história, confrontando os motivos pelos quais surgiram. Criaram-se a partir da busca de um vinho típico e genuíno? Ou foram utilizadas como aparato protecionista econômico para quem produz? Com qual apelo surgem as novas regiões demarcadas? 11 Uma análise dos motivos que conceberam algumas das tantas indicações geográficas mundo afora torna-se importante para o setor vitivinícola brasileiro, uma vez que o mesmo ainda engatinha na utilização dessas políticas de proteção intelectual e industrial. E que vem investindo na construção de uma identidade desde a concessão da indicação de procedência (IP) Vale dos Vinhedos em 2002. Apesar da busca por tipicidade e identidade, percebe-se que as tendências da demanda regulam o comportamento produtivo da oferta. Dessa forma, se estabelecem regras, por vezes, contraditórias e limitantes ao vinicultor, a um determinado território e à reputação de uma região. Os instrumentos utilizados na construção do texto baseiam-se em uma pesquisa descritiva de cunho cronológico e no estudo de caso das criações de indicações geográficas e/ou consórcios reguladores. Não limitando-se a citar exemplos específicos. A fim de simplificar e normatizar a utilização de termos e conceitos ao longo do texto, convém esclarecer a diferença entre indicação geográfica, indicação de procedência e denominação de origem, segundo a legislação brasileira: Indicação geográfica (IG): constitui-se por uma indicação de procedência ou denominação de origem. Indicação de procedência (IP): considera-se o nome geográfico da região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço. Denominação de origem (DO): considera-se o nome geográfico da região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos. Não há nível hierárquico entre IP e DO (BRASIL, 1996). Portanto, quando não houver necessidade de distinção, será utilizado o termo indicação geográfica para designar uma região vitícola demarcada. Além desse breve texto introdutório, a estrutura do trabalho procede da seguinte forma: i) Um breve resgate histórico; ii) Construindo uma identidade; iii) O consumo como guia; e iv) Discussão, conclusões e sugestões. 12 3. UM BREVE RESGATE HISTÓRICO Precisar o surgimento das regiões vitícolas demarcadas é uma tarefa difícil e complexa, a qual necessitaria uma obra de cunho específico para tal. De qualquer forma, o desenvolvimento do trabalho depende de um resgate histórico, mesmo que breve e aparentemente escasso, a respeito da origem e do consequente desenvolvimento das regiões vitícolas demarcadas e do conceito de indicação geográfica. A origem do conceito de indicação geográfica poderia remontar, formalmente, a 1883, com a Convenção de Paris. Porém, seria uma infelicidade ignorar os consórcios, associações, pequenas organizações de produtores e/ou as simples práticas de identificação de terrenos ligados à cultura da uva e do vinho, que têm início ainda na Antiguidade. Considerando apenas a identificação de origem de um determinado vinho, registros que datam de VII a.C. comprovam que gregos já identificavam os melhores vinhos com suas respectivas denominações geográficas. Existiram ânforas – recipientes de armazenamento então utilizados – que traziam inscritos o nome do local ou do produtor, ou ainda, símbolos que expressavam tais informações (INAO, 2005). Porém, existem historiadores que atribuem aos egípcios a criação das distinções, uma vez que os mesmos já “rotulavam” suas jarras de vinho, mencionando, entre outras informações, o nome do vinhateiro. Esta prática foi adotada pelos romanos e disseminada para outros produtos. É o caso dos queijos franceses, que têm como maior exemplo o Roquefort, cuja fama é propagada desde o século XIV (CALDAS, 2004 apud GLASS, 2008). Das distinções utilizadas na Antiguidade, passamos ao século XVIII, para citar a importância da criação de uma organização que regulamentaria a produção vitícola em Portugal com base na situação econômica enfrentada pelo reinado da época. Em artigo que analisa os efeitos da política de Marquês de Pombal sobre as exportações portuguesas no século XVIII, Mourão (2009) refere que a política comercial pombalina procurou a estabilização econômica através da substituição de importações passíveis de produção local e das exportações de produtos que obtivessem maior valor agregado, no caso o vinho. E num ensejo pode-se dizer que o Brasil - enquanto colônia portuguesa - serviu de motivação indireta para a criação desta que seria uma das associações pioneiras na regulamentação de práticas vitivinícolas, a Companhia de Vinhos do Alto Douro, que data do ano de 1756. 13 O dia 10 de Setembro de 1756 marca a data de reconhecimento régio do alvará criador desta companhia. Com esta iniciativa, esperava-se a regulação de um setor que pudesse competir como fonte alternativa de receitas face à quebra em potência das fontes tradicionais (entenda-se ouro colonial), desenvolver o setor primário português e, por fim, responder à valorização que o produto (“vinho de embarque”) tinha nos mercados europeus. (MOURÃO, 2009). A falência da extração aurífera colonial suscitou uma onda de valorização do setor primário, e logo recaiu sobre o setor vitivinícola, em especial a região do Douro, em Portugal, a fim de regularizar os métodos de produção, até então praticados indiscriminadamente, e aumentar o valor agregado das exportações. Tratava-se da ideia de uma associação, que tentava reunir o interesse de viticultores, vinhateiros, comerciantes e proprietários de adegas. Além de estruturar uma atividade que, antes desse marco, partia de pressupostos individualizados e com lógicas particulares e que, por vezes, eram controversos (MOURÃO, 2009). Já em 1855, um evento em Bordeaux, famosa região vitivinícola francesa, teve como objetivo classificar seus melhores crus. Nascia ali a primeira delimitação de território com caráter protecionista. O produto a ser protegido, nesse caso, era o vinho (INAO, 2005). Mesmo que ainda não houvesse um aparato legal que instituísse normas à criação de novas delimitações territoriais, esse evento fomentou a ideia de que atrelar o produto aos métodos de produção e identificar a origem do mesmo, serviria como ferramenta de distinção para aqueles determinados vinhos. E teria como consequência natural a construção de uma reputação e notoriedade perante aos consumidores e outrem. Ainda nessa época, a viticultura europeia experimentou profundas mudanças. Por volta de 1850, provavelmente buscando videiras resistentes ao oídio – “que na sua fase imperfeita corresponde à espécie Oidium tuckeri Berk” (GIOVANNINI, 2008) –, os viticultores passaram a importar e testar espécies de videiras americanas como forma de combate à moléstia. Não demorou muito e essas tais práticas vitícolas resultaram na infestação dos vinhedos europeus pela mais conhecida praga vitícola: a filoxera (Viteus vitifoliae). Na segunda metade do século XIX, a devastação dos vinhedos pela praga obrigou o replante daqueles por parte dos viticultores e conduziram a uma verdadeira reformulação da viticultura, principalmente no que diz respeito aos aspectos técnicos. Uma vez que a luta contra a difusão da praga levou ao desenvolvimento de normas, serviços, viveiros, estações vitícolas e escolas de viticultura ao longo do território europeu (PAN-MONTOJO, 2009). No período pós-filoxérico, o setor vitivinícola experimentou uma “industrialização” e viu surgir 14 instituições normativas e de regulação das práticas de cultivo da videira e de vinificação. As inovações na elaboração e identificação dos vinhos trouxeram consigo a diversificação dos mercados. Passou a haver uma distinção por parte da demanda entre vinhos ditos superiores e comuns. A definição dos diferentes tipos de vinho, bem como a criação de barreiras contra a imitação dos vinhos que obtinham maior prestígio, foi a principal motivação para que a França criasse, mais além – no início do século XX -, uma legislação específica de denominações de origem (PAN-MONTOJO, 2009). Porém, os instrumentos legais para o reconhecimento dos produtos de uma região demarcada surgiram na Convenção de Paris, de 1883, a qual tratava de propriedade industrial (GLASS, 2008). Anos mais tarde, o Acordo de Madri tratou do registro de marcas em âmbito internacional, além da coibição de indicações geográficas fraudulentas (CHADDAD, 1996 apud GLASS, 2008). No Acordo de Madri também se estabelece a criação das Indicações de Fonte - como por exemplo: “Made in Brazil” -, com o intuito de identificar o local de origem de produção (RANGNEKAR, 2002). Já no século XX, mais precisamente em 1947, o Office International de la Vigne et du Vin (OIV), formulou critérios que buscavam orientar a implementação de novas denominações de origem. Tais como: uma denominação de origem deve estar consagrada por certa reputação e/ou renome; Esse renome deve provir das características qualitativas do produto, as mesmas devem ser influenciadas pelas características do território (fatores edafoclimáticos e intervenção humana) (GLASS, 2008). Com o Acordo de Lisboa, em 1958, se estabelece a definição de denominação de origem como hoje é conhecida e reconhecida, inclusive, pela legislação brasileira. Significando o nome geográfico de um país, região ou localidade, que serve para designar um produto dali originado, cujos atributos se devem exclusiva ou essencialmente às características territoriais do mesmo. Gollo (2006 apud GLASS, 2008) colabora com um importante registro sobre o reconhecimento do termo “Indicação Geográfica” pela Organização Mundial do Comércio (OMC), fato ocorrido em 1994: Mundialmente, como marco legal, em 1994, a Organização Mundial do Comércio – OMC reconheceu o conceito de Indicação Geográfica. Em seu acordo TRIPs – Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights -, seção 3 (IG), artigo 22 a 24, a OMC define indicações geográficas como indicações as quais identifiquem um produto como originário de um território de país-membro, ou região ou localidade nesse território, quando uma dada 15 qualidade, reputação ou outra característica deste produto é essencialmente atribuída a sua origem geográfica (GOLLO, 2006 apud GLASS, 2008). No Brasil, o marco inicial da regulamentação e orientações a criação de IGs se dá no ano de 1996, com a sanção da Lei 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial), e cabe ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), executar em todo território nacional, as normas preestabelecidas (INPI, 2010). A evolução dos conceitos, definições e princípios de IGs e DOs ao longo da história, contou com fatos pontuais, formais e documentados. Por mais distintos que sejam os interesses das partes acordadas, há sempre um objetivo comum e unânime que leva à harmonia das práticas comerciais. Esse objetivo tratava-se e ainda trata-se da proteção econômica. Ou seja, utilizar a IG como ferramenta de desenvolvimento histórico-social e construção/afirmação de identidade, claro. Mas principalmente tornar aquele determinado produto mais atraente aos olhos do consumidor. Fazendo da IG um aparato distintivo e de adequação ao mercado. O quadro a seguir relaciona alguns fatos que contribuíram significativamente para a construção do conceito de indicação geográfica. 16 Quadro 1 - Marcos no reconhecimento legal das indicações geográficas. Evento Convenção de Paris Convenção de Berna Data 1883 1886 Acordo de Madri 1891 Lei sobre Fraudes e 1905 Falsificações em Matéria de Produtos ou Serviços (França) Decreto do governo francês 1935 Resolução do Office International de la Vigne et du Vin – OIV Acordo de Lisboa 1947 1958 Regulamentos: CEE n° 817 e CEE nº 823 1970 1987 Regulamentos CEE 2081 e 1992 CEE 2082 OMC. Acordo TRIPs 1994 Lei da Propriedade Industrial 1996 (Brasil) Resolução nº 075 do Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI (Brasil) 2000 Convênio entre o Ministério 2005 da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA - e o INPI (Brasil) Fonte: Glass (2008). Implicações Proteção contra falsas indicações de procedência. Determinação de padrões mínimos de proteção para produtos de diferentes nacionalidades. Estabelecimento de critérios para o registro de marcas em âmbito internacional, além de se coibir indicações geográficas fraudulentas. Proteção aos consumidores e às transações comerciais legais. Criação do INAO (Institut National des Appellations d’Origine), do Comitê Nacional para Vinhos e Aguardentes e instituição das AOCs Appellations d’origine contrôllée. Estabelecimento de uma série de princípios e condições mínimas para balizar as denominações de origem em se tratando de vinhos. Definição das denominações de origem, regulamentação do registro e proteção internacional. Estabelecimento de um sistema de definições e proteção sobre a designação Quality Wines Produced in a Specified Region. Proteção e regulamentação internacional das indicações geográficas, denominações de origem e certificações de especificidades de produtos agrícolas e alimentares. A OMC reconhece o conceito de Indicação Geográfica Legalização das normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função econômica, jurídica, técnica e social. Estabelecimento de normas para o encaminhamento de pedidos de reconhecimento de indicações geográficas, além de apontar outras necessidades legais para o pedido de registros. Consolidação do MAPA como instância superior e central no planejamento, fomento, coordenação, supervisão e avaliação das atividades, programas e ações de indicação geográfica de produtos agropecuários, inclusive no que se refere aos aspectos normativos. 17 4. CONSTRUINDO UMA IDENTIDADE Fazer de um conjunto de características próprias e exclusivas a alguém; a um produto; a uma determinada localidade e até mesmo a uma nação, algo que possa ser ferramenta de reconhecimento pelos outros. Ou, mais sucinto e objetivo, construir algo peculiar, de fácil reconhecimento, que se deve ao fato de deter uma identidade. No setor agrícola, a construção de uma identidade territorial torna-se imprescindível quando do desejo de notoriedade e estabelecimento de certa reputação ao saber-fazer local e às características inerentes à origem de produção. A preservação ou construção da identidade territorial dá origem à outra via motivacional para a criação de uma indicação geográfica. A de valorização histórico-social. E não somente uma ferramenta de política protecionista e de introdução ao mercado. Pois bem, é complexo entender o conceito de identidade territorial, que em muito se assemelha a outro mais comumente usado no universo do vinho, o de terroir. Alvo de diversas interpretações, esse conceito está focado na singularidade de realidades geográficas físicas e humanas de localidades e regiões. Dependendo do âmbito, “identidade” pode assumir o sentido de “cultura” ou “singularidade”. Essa interação sócio-cultural entre espaço geográfico e costumes presentes e passados molda uma identidade própria. Dessa forma, hoje, políticas públicas se voltam para estratégias de desenvolvimento a partir das especificidades territoriais. A interação existente entre os atores sociais e entre as diferentes representações que povoam um determinado espaço físico com fronteiras delimitadas, produz o saber e a cultura local, o que pode conferir identidade a determinado território (DULLIUS, 2009). Pode-se dizer que o que condiciona o desenvolvimento territorial são as normas e valores próprios de um povo, que agem como agentes modificadores do território. Dessa forma, propõe-se aqui um conceito de identidade territorial e terroir onde a natureza engloba, além das singulares características edafo-climáticas (solo, paisagem, clima), também a cultura empregada e a intervenção humana. Portanto, tudo isso se torna parte da natureza. Inclusive o homem. Uma vez que suas ações refletem diretamente na evolução (positiva ou não) de um território e no produto obtido a partir desse conjunto de práticas e métodos executados exclusivamente em determinada região ou localidade. 18 Há, além de uma preocupação com a identidade cultural de uma determinada região, o receio de uma possível banalização da produção de vinhos. Pode-se tomar como exemplo a utilização massiva das castas Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay e Sauvignon Blanc. Retoma-se, então, a busca por tipicidade e autenticidade do produto. Buscando-se castas autóctones - oriundas do território onde se encontram, sem resultar de imigração ou importação - ou que expressem um determinado terroir. A diferenciação dos objetivos da construção de uma indicação geográfica pode ter a seguinte formatação: a) Quando a estratégia é setorial, os objetivos econômicos conduzem a iniciativas de promoção do marketing do produto com valor territorial, onde a cultura é incorporada no produto e é levada para mercados distantes; e os objetivos sociais e ambientais direcionam iniciativas para enfrentar problemas específicos; b) Quando a estratégia é integrada (com uma perspectiva territorial), os objetivos econômicos levam a criação de um marketing territorial para o exterior, onde se busca atrair um fluxo de turistas ao lugar, em vez de fazer o produto viajar para pontos distantes; os objetivos sociais levam a (re) construção e promoção da identidade territorial na comunidade local, com o sentido de reforçar o sentido de comunidade, aumentar a confiança dos atores locais no valor econômico da cultura local e animar o desenvolvimento endógeno; os objetivos ambientais direcionam no sentido da promoção de um novo modelo de produção e consumo. (FONTE, 2006 apud FLORES, 2007). No entanto, em muitas localidades, as ações são mais voltadas a normatizar a elaboração dos produtos segundo os ditames da legislação sanitária, qualificando-os intrinsecamente, mas sem dar maior significância aos aspectos do ecossistema e do saberfazer associado àquela determinada região (DULLIUS, 2009). 4.1 O terroir, o resguardo romântico e a ideia de pureza Terroir. Esse termo francês carrega consigo ao mesmo tempo complexidade e simplicidade. A referência paradoxal se dá pelo fato de que o conceito espalhou-se ao redor do mundo e é empregado amplamente por técnicos, enófilos e estudiosos do vinho. O terroir refere-se somente aos aspectos físicos de uma IG ou de uma DO. Prega-se que o produto final da viticultura praticada em determinado território, deve ser uma expressão fiel dessa geografia, fazendo do vinho ou qualquer outro produto, um bem de alta qualidade e inimitável (BROUDE, 2004). A complexidade se encontra na dificuldade em reunir os atributos que 19 sejam realmente determinantes na construção de uma identidade. Já a simplicidade se traduz no produto já finalizado. Como se o simples fato de receber uma herança territorial e sóciocultural, desse origem a um vinho qualitativamente distinto. Hoje, promover a viticultura sobre as especificidades do terreno, está se tornando uma alternativa lucrativa principalmente para vinícolas privadas e de pequeno porte. E produz o que se pode chamar de “paradoxo das classificações”, que será tratado mais adiante. Produtores europeus, do Velho Mundo, vendo-se ameaçados pelo avanço crescente dos vinhos do Novo Mundo (descoberto há mais ou menos 500 anos), tanto no aspecto qualitativo quanto no de conquista de espaço mercadológico e do paladar dos consumidores ao redor do mundo, passaram a promover o conceito de terroir, escapando, por vezes dos regulamentos rígidos das denominações de origem e indicações geográficas. Todavia, essa busca de terroir se faz pela aquisição de vinhedos situados em áreas de AOC, numa conduta em consonância com seus princípios [...], e individualmente pela associação ótima de técnicas de produção e qualidades de solo ou de clima com meios tecnológicos e de organização do trabalho cuja modernidade é claramente enunciada. Em outras palavras, longe de estar ausente, a busca do terroir funda-se sobre princípios diferentes daqueles que presidiram o espírito das AOC (GARCIA-PARPET, 2004). O que significa que, em geral, a regulamentação imposta por uma IG pode ser rígida a ponto de limitar o potencial de competitividade dos produtores nela inseridos. O que de certa forma, pode ser interpretado como desvio de identidade. Partindo do pressuposto de que o espírito das Appellations d’Origine Contrôlée (AOCs) sejam presididos pelo ímpeto de proteção industrial e intelectual, e que visa a valorização da identidade territorial, funcionando também como ferramenta para introdução de produtos no mercado, é natural que novos produtores venham a modernizar determinadas práticas, rompendo, assim, o tradicionalismo que impera principalmente em IGs europeias. É dessa forma que Garcia-Parpet (2004) aborda, em “Mundialização dos mercados e padrões de qualidade”, essa controversa relação entre o resguardo romântico, venerado por apreciadores, e os processos de evolução tecnológica e desenvolvimento da enologia como ciência reconhecida. As ideias de pureza e genuinidade podem facilmente cair por terra, se em um momento de reflexão alguém pensar que preferências privadas (comportamento da demanda), podem levar ao falecimento da bagagem histórico-cultural de um território (BROUDE, 2004). 20 O conceito de terroir vai contra a globalização. Afinal, um terroir é o reflexo da influência particular de um lugar e das pessoas. Porém, mesmo com uma tendência nãointervencionista e de incentivar a máxima expressão da planta, manejando-a de modo a não “mascarar” as características intrínsecas a cada variedade, a maioria das IGs, inclusive as brasileiras, apóiam-se sobre a regulamentação das AOCs francesas. As quais obedecem a critérios que vão além da demarcação de zonas aptas à produção de uva: variedades de uva permitidas, produção por hectare, estágio ou não em barris de carvalho, tempo desse estágio, regras de rotulagem, etc. Portanto, a soma desses fatores resulta na influência e no reflexo da evolução eno-tecnológica sobre os métodos tradicionais e sobre o ego dos mais aficionados. Figura 1 – Ciclovia na Piana Rotaliana, no Trentino, Itália. 4.2. Paradoxo das classificações: apontamento para a criação de uma teoria informal Produzir um vinho a partir de práticas heterodoxas às regras impostas por uma indicação geográfica. Porém, não subvertendo, pelo menos na maioria das vezes, os métodos e procedimentos ótimos ao cultivo da videira e à vinificação da matéria-prima uva. Os 21 princípios estariam calçados no “desrespeito” às normas em vigência em determinada região, as quais podem limitar qualitativamente a utilização plena da potência de um território. Consiste em um antagonismo estabelecido entre a classificação do vinho e o valor agregado ao mesmo. Ou seja, um vinho que não se adapta a determinadas normas de uma DO, acaba por ter uma classificação inferior, enquanto seu preço e qualidade podem ser tão altos quanto os vinhos delimitados de qualidade superior protegidos pela legislação vitivinícola daquela região, justamente por não se enquadrarem nas tais normas. Tal rebeldia encontra explicação no interesse mercadológico e nas relações comerciais. Bem como, na vontade de produzir um produto genuíno, fugindo dos padrões de qualidade que engessam as articulações e imobilizam a criatividade dos produtores. São vários os exemplos ao redor do mundo que seguem a tendência de produzir vinhos que fogem à tradição, às vezes secular, da região em que estão inseridos. Pode-se citar como exemplo a região do Languedoc-Roussilon, na França, citada como a “Nova Califórnia”, justamente por trabalhar de modo que não o tradicional, com normas mais flexíveis (GARCIA-PARPET, 2004). Outro exemplo vem da Toscana. Os “supertoscanos”, na Itália, que na década de 1980 já faziam uso de técnicas modernas para o melhoramento do produto final (cultivo de variedades francesas, maturação do vinho em barris de carvalho, etc) e que criaram uma identidade própria e bem sucedida. São correntes de pensamento que remetem à viticultura e à enologia liberais praticados nos países ditos do “Novo Mundo”, tais como Estados Unidos e Austrália. Essa teoria convém apenas para vinhos que carregam consigo uma vangloriada reputação, e que possam representar o curioso “paradoxo das classificações”, quando um simples vinho de mesa pode ser tão caro quanto os que levam o nome da IG ou da DO no rótulo. Como escreveu Jamie Goode no livro “1001 Vinhos Para Beber Antes de Morrer” (BECKETT, 2008), enquanto comentava um vinho, justamente do Languedoc, que não podia utilizar o nome da AOC por fazer uso de uma variedade não permitida pelas normas da apelação: “Mas quem se importa com a classificação quando o vinho é tão bom?”. 22 5. O CONSUMO COMO GUIA Quem se importa com a classificação é a demanda. Seja ela esclarecida a respeito do tema indicações geográficas ou não. As IGs não refletem somente o interesse de legitimar os produtores de cada região, mas também o interesse dos consumidores, que detêm a capacidade de identificar tradição e qualidade em um rótulo (ADDOR & GRAZIOLI, 2002). As demandas da sociedade contemporânea revelam, como observa Dullius (2009), “um expressivo apreço pelo consumo de produtos e serviços que dialogam com histórias nostálgicas dos tempos antigos ou que interajam com a ‘natureza’”. O que demonstra que o comportamento do consumidor referente à valorização das indicações geográficas como ferramenta de distinção, é levada em conta em planejamentos de marketing, sejam eles de uma região ou de uma marca específica. Mesmo tendo como princípios do regimento a proteção contra fraudes e imitações. A partir do momento em que o consumidor reconhece a IG como garantia de qualidade e tipicidade, os produtores passam a oferecer ao mercado produtos com diferencial competitivo e de preço mais elevado (GLASS, 2008). O grau de percepção de qualidade por parte do consumidor, depende da experiência e da bagagem de conhecimento adquiridas pelo mesmo. O comportamento da demanda é complexo, no que diz respeito à escolha do vinho. O nível de conhecimento e a ocasião ditam, de forma geral, a escolha do produto (GLUCKMAN, 1990 apud GLASS, 2008). Bem como o preço, a variedade de uva e a origem do vinho. Dentre os inúmeros fatores que, juntos, dão forma ao comportamento da compra, está o do impacto das IGs sobre a escolha. São escassos os estudos sobre o tema, principalmente com consumidores brasileiros. Porém, as poucas pesquisas já realizadas, em sua maioria questionando enófilos (aficionados que possuem pelo menos algum conhecimento sobre vinhos), mostram que a identificação no rótulo de que determinado produto é pertencente a uma IG, tem alguma importância no momento da compra. Um estudo de Falcão & Révillion (2010), mostra que 62% dos enófilos consultados consideraram alta a relação entre a IG e a qualidade dos vinhos. Porém, 64% da amostra tem as IGs estrangeiras como mais confiáveis. Isso mostra que existe um nicho que valoriza a concepção de IG e identidade territorial. Porém, ainda são necessários esforços para solidificar a reputação das IGs nacionais. Esse estudo ainda mostrou que dentre os fatores que 23 conferem maior confiabilidade a uma IG, estão os aspectos edafo-climáticos, os quais se sobrepõem ao conceito geral de IG. Ou seja, para o consumidor instruído, o conceito de terroir, que atrela apenas o ecossistema ao produto final, passa mais credibilidade do que o conceito de identidade territorial, que inclui o desenvolvimento sócio-cultural e econômico de uma região. A inclusão de atributos que sejam valorizados pelo consumidor se constitui em uma forma de agregar valor a um produto, diferenciando-o dos seus similares. Desta maneira, os chamados produtos com denominação de origem se apresentam como uma forma de diferenciação, uma vez que associam ao produto características de qualidade que se relacionam com a região da qual provêm (GLASS, 2008). Glass (2008), em pesquisa junto a consumidores, mostra que quando indagados sobre a importância relativa à origem do vinho, 38% tem o produtor e a vinícola como garantia de origem. A indicação geográfica obteve apenas 25% das intenções. Essa outra sondagem, também realizada com consumidores brasileiros, mostra que a percepção de garantia de procedência, que uma IG oferece ao consumidor, pode provir de uma cultura atrelada ao conceito de identidade territorial. Ou seja, da oportunidade de vivenciar exemplos tupiniquins. Os quais, hoje, são escassos. Afinal, são apenas duas as indicações de procedência para vinhos no país: IP Vale dos Vinhedos (2002) e a IP Pinto Bandeira (2010). Portanto, o desenvolvimento das IGs no Brasil, deve passar por uma constante instrução da ponta da cadeia. O que significa: informar o consumidor. Os consumidores buscam, junto a uma IG, informações sobre os atributos do produto (características organolépticas, história e métodos de produção, etc.). Isso pode soar comercial, porém, traz consigo, também, uma justificativa social. Uma vez que diminui “assimetria de informações” (JOSLING, 2006), e favorece a divulgação por parte dos produtores. Por ter um conceito mais restrito, a denominação de origem pode ser entendida como mais autêntica do que uma indicação geográfica. A verdade é que ambas fornecem garantia de qualidade junto ao consumidor e incentivam a economia regional e até nacional, ao promover alianças e associações entre empresas de diferentes portes, todas reunidas pelo interesse em usufruir das vantagens econômicas, frutos do desenvolvimento territorial (TORTORELLI, 2010). A instauração de uma indicação geográfica abre uma discussão de princípios. Onde a busca ou preservação de identidade se confundem com adequação ao mercado. Onde existe o interesse de produzir um vinho ao gosto do consumidor e também a vontade em produzir algo 24 diferenciado, valorizando a tipicidade e as especificidades territoriais. Independente desse conflito de interesses, deve-se ter em mente que uma estratégia, seja ela puramente mercadológica ou unicamente baseada sobre o terroir e os fatores sócio-culturais de uma região, almeja continuidade, longevidade e viabilidade das suas ações. Isso pode resultar em um desenvolvimento sustentável, ou não. Em uma competição mercadológica, ou não. Em vinhos típicos ou comerciais. O quadro a seguir compara e caracteriza IGs e marcas comerciais: Quadro 2 – Comparação de proteção de marca comercial e IG Identificador Intenção Proprietário do direito Marca Comercial Identifica um fabricante Reflete a humana Um produtor criatividade Indicação geográfica Identifica a origem de um lugar Reflete o solo, o clima e “outras características” Propriedade dos produtores estabelecidos na área Associações detêm a proteção da IG: às vezes complicado por produtores Não pode ser vendida ou licenciada Registrada por autoridade pública: reputação necessária Empresas detêm a proteção judicial da marca: sem intervenção pública Pode ser vendida ou Portabilidade licenciada Declaração própria: não é Registro necessária reputação para o registro Alto para pequenos Baixo para pequenos Custo produtores produtores, mas não para grandes grupos Sem proteção contra Proteção contra mudanças e Extensão das proteções mudanças e traduções traduções Não pode conter uma IG Pode coexistir com marcas Conflitos comerciais, certificações e marcas coletivas Durante a vida do Até que as condições Duração proprietário permitam Fonte: Josling (2006), adaptado. Significado da proteção 25 6. DISCUSSÃO, CONCLUSÕES E SUGESTÕES O estabelecimento de uma indicação geográfica ou denominação de origem passa, obrigatoriamente, pela construção de uma identidade e de uma reputação. E ambas são moldadas com ações executadas durante um tempo e em um determinado espaço. Alguns têm fama de mau. Outros de secos ou adstringentes demais. Alguns são célebres pela benevolência. Outros pela austeridade e longevidade. Seja para humanos, produtos ou serviços, uma reputação se constrói a partir de um saber-fazer particular e de um fazer-bem distinto. E as indicações geográficas, pioneiras ou recém nascidas, trazem consigo esse propósito - que pode ser interpretado como um subproduto das políticas econômicas e de proteção intelectual e industrial - de valorizar o saber-fazer local, bem como as especificidades territoriais e o desenvolvimento e/ou preservação sócio-cultural. Este trabalho buscou responder a questões quase indissociáveis. Tais como desvincular processos produtivos de futuras estratégias mercadológicas. O que, atualmente, é, literalmente, inviável. Afinal, nenhuma indicação geográfica é criada, senão, para fortalecer e tornar competitiva a cadeia produtiva. Ficou claro, com a revisão bibliográfica de artigos que exploram principalmente o período mercantilista – onde importação/exportação e desenvolvimento econômico são prioridades governamentais –, que as primeiras organizações de produtores, ou mesmo estatais, que projetaram o modelo de indicação geográfica assim como ele é visto hoje, tiveram, primeiramente, o objetivo de proteção de bens e/ou serviços contra fraudes e imitações. O qual foi o primeiro passo na busca por qualificação dos processos e produtos, e também por vinhos genuínos (no sentido de que não podem ser alterados). Houve uma motivação passional pela preservação do que só pode ser produzido em determinado território. Mas, o motivo preponderante foi o de buscar proteção econômica. A formação do conceito de indicação geográfica passou por várias discussões até chegar ao formato atual. Sejam elas discriminadas em categorias, conforme a rigidez das normas vigentes, em uma simples “indicação de procedência” brasileira ou “vin de table” francesa, até a restringente “Denominazione di Origine Controllata e Garantita” (DOCG) italiana. A motivação inicial sempre foi a de estabelecer uma espécie de consórcio de produtores, do qual todos aqueles estabelecidos em um determinado território podem usufruir. E que o mesmo forneça proteção aos métodos e técnicas oriundas de um saber-fazer 26 tradicional e singular, que aliados às especificidades territoriais, resultem em um produto único. Os objetivos do trabalho foram alcançados no sentido de que responderam às questões que foram suscitadas quando da caracterização do problema. Concluiu-se que a motivação principal para a criação de associações que regulamentassem as práticas vitícolas e enológicas - mesmo quando eram bastante distintas de nação para nação, e quando o conceito de indicação geográfica ainda não era reconhecido pela OMC - foi a proteção industrial, intelectual e econômica. Somente depois, quando a demanda passou a diferenciar vinhos ditos superiores daqueles de baixa qualidade, foi que os produtores passaram a atrelar o conceito de terroir como estratégia mercadológica e como preservação ou busca de um produto singular e qualitativamente diferenciado. Sempre se buscou um vinho genuíno. Pode-se produzir, facilmente, um vinho genuíno, que não engane o consumidor e que não prejudique a saúde do mesmo. Porém, a elaboração de um vinho típico requer maior observação e análise de casos. Uma vez que a tipicidade de um vinho está muito atrelada ao comportamento da videira em determinado território, ao manejo exercido pela intervenção humana e à preservação da identidade e especificidades territoriais. Conclui-se também que a IG é uma ferramenta muito eficaz como estratégia mercadológica e promoção de nomes no mercado. E traz o benefício de agregar práticas nãointervencionistas, a ponto de estabelecer um desenvolvimento sustentável e de preservação do saber-fazer local. Porém, as discussões a respeito dos vários tratados que esclarecem as práticas comerciais permitidas ou não, e que regulamentam o uso de uma IG, são infindáveis. Respondem-se algumas questões e surgem outras, como por exemplo: “por que devo seguir as normas da IG se posso produzir um vinho melhor burlando as regras?”, “Se a legislação é rígida, limita avanços de melhoramento nos processos produtivos. Se é muito flexível, foge da busca de tipicidade e torna-se apenas uma marca coletiva com pretensões mercadológicas”, “O quê buscam as novas indicações geográficas brasileiras: um vinho genuíno ou um vinho típico e genuíno?”. São necessários mais pontos de vista a respeito do papel da identidade territorial em uma IG. Bem como, pesquisas que expressem, significativamente, o impacto de uma IG brasileira sobre os consumidores brasileiros. Deve-se harmonizar tipicidade, valorização do terroir e estratégias mercadológicas bem sucedidas. Regiões vitícolas demarcadas: busca de identidade ou adequação ao mercado? Adequação ao mercado, sempre. Busca de identidade, hoje, também. 27 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADDOR, Felix; GRAZIOLI, Alexandra. Geographical Indications beyond Wines and Spirits. The Journal of World Intellectual Property, p.865-897, 2002. AURIER, Philipe; FORT, Fatiha; SIRIEIX, Lucie. Exploring terroir product meaning for the consumer. Anthropology of Food, n.4, 2005. 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