1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL NEUMA MARIA DA COSTA XAVIER MULHERES DO CANGAÇO: UMA LEITURA SEMIÓTICA DO PERCURSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE JOÃO PESSOA 2013 NEUMA MARIA DA COSTA XAVIER MULHERES DO CANGAÇO: UMA LEITURA SEMIÓTICA DO PERCURSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba, na área de concentração Linguagens e Cultura, linha de pesquisa Semiótica das Culturas, como requisito para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profª. Dra. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista. JOÃO PESSOA 2013 23 Xavier, Neuma Maria da Costa. Mulheres do cangaço: uma leitura semiótica do percurso de construção da identidade / Xavier, Neuma Maria da Costa Xavier. - João Pessoa: [s.n.], 2013. 234f. Orientadora: Maria de Fátima Barbosa de M. Batista (UFPB). Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA. 1. Semiótica. 2. Cangaço. 3.Semiologia. I. Título UFPB/BC CDU: 81‟22(043) 24 TERMO DE APROVAÇÃO Tese intitulada MULHERES DO CANGAÇO: UMA LEITURA SEMIÓTICA DO PERCURSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE, defendida pela alunaNeuma Maria da Costa Xavier, para obtenção do Título de Doutor em Letras, na Universidade Federal da Paraíba, linha de pesquisa Estudos Semióticosda área de concentração Linguagem e Cultura e _________________________ no dia __________________, pela seguinte banca examinadora: ___________________________________________________________ Prof.ª Dra. Maria de Fátima Barbosa de M. Batista (UFPB) (Presidente – Orientadora) ____________________________________________________________ Prof. Dr. Expedito Ferraz Junior (UFPB) (Examinador) ____________________________________________________________ Profa. Dra. Marluce Pereira da Silva (Examinadora) ____________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Eugênia Malheiros Poulet (Examinadora) ____________________________________________________________ Profa. Dra. Marisa Nóbrega Rodrigues (Examinador) ____________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Nazareth de Lima Arrais (Suplente) ____________________________________________________________ Profa. Dra. Lúcia Maria Firmo (Suplente) 25 DEDICATÓRIA Às minhas filhas, Clarice e Beatriz que me ensinaram a ser feliz. A todos os meus alunos Com quem partilhei a teoria E com os quais aprendi Os segredos da Pedagogia. 26 AGRADECIMENTOS A Deus, pelo dom da vida, e pelo discernimento para descobrir o tempo das perguntas; A Clarice e Marlos, Beatriz e Thiago, responsáveis pelo combustível infalível: o “afeto”; A Marina, Luca e os bebês em gestação, pela alegria e inocência – energia renovadora; A Fátima Batista, paciência e sabedoria, no desdobramento, releitura e ajustes, nesta busca pelo fio condutor. Ao meu irmão Jalmeno: solidariedade no percurso operacional; Aos irmãos e sobrinhos, por perdoarem minhas ausências; A Adriano Moura e Márcia Carvalho: disponibilidade e atenção para as demandas; Aos irmãos e sobrinhos, por perdoarem minhas ausências; Aos amigos, porque acreditaram em mim. Ao IFPE, compreensão e apoio – ingredientes definitivos para a realização desta meta. 27 Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o Tempo das perguntas. José Saramago 28 RESUMO Propõe a fazer uma releitura do fenômeno do Cangaço, tomando como foco as mulheres do cangaço, cuja trajetória sociocultural pretendemos investigar, na tentativa de reconstruir o percurso das representações, entre o simbólico e o real, em busca de uma identidade. Com relação à base teórica, valemo-nos, em primeiro lugar, da análise semiótica de origem greimasiana, para focalizar as três etapas do percurso gerativo de significação: nível semântico profundo, estruturas narrativas e discursivização. Também buscamos apoio nas rupturas categoriais, preconizadas por Rastier. Finalmente, completamos nosso acervo teórico-metodológico com as diretrizes de Cidmar Pais, aplicando uma categoria analítica, denominada discurso etnoliterário. É deste discurso que se alimenta a literatura popular, transformando o sujeito-enunciador em um ser coletivo, no processo histórico da cultura. Quanto ao corpus, compõe-se de cordéis, em razão da prevalência de apelos míticos, que refletem aspectos cruciais da natureza humana. Amparados nessa linguagem alegórica, pretendemos reunir elementos que apontem o discurso como lugar, ao mesmo tempo, do social e do individual. Palavras-chave: Semiótica. Mulheres do Cangaço. Identidade. Cultura popular. 29 ABSTRACT Conduct a re-reading of the Cangaço (an erstwhile type of armed militia/ band of outlaws of the Northeast in Brazil), focusing on the women of the Cangaço, whose sociocultural pathway it is sought to investigate in an attempt to reconstruct the route by which they became represented, between the symbolic and the real, in search of an identity. Regarding the theoretical basis, first, use was made of the semiotic analysis of a Greimasian origin, in order to focus on the three stages of the route that generates meaning: the deep semantic level, narrative structures and constructing discourse. Support is also sought in the ruptures of categories, advocated by Rastier. Finally, the gathering together of theoretical and methodological issues is completed with Cidmar Pais‟s guidelines, by applying an analytical category, called ethnoliterary discourse. It is from this discourse that popular literature is fed, thus transforming the subject-enunciator into a collective being, in the historical process of a culture being formed. As for the corpus, this consists of cordeis (a Brazilian form of chap-book), because of the prevalence of mythical appeals, which reflect crucial aspects of human nature. By being grounded on this allegorical language, we intend to gather evidence which indicate discourse as a coterminous place of the social and the individual. Keywords: Semiotic. Women of the Cangaço. Popular culture. Identity. 30 LISTA DE ABREVIATURAS Dor = Destinador ___ Dor = Anti-destinador S = Sujeito __ S = Anti-sujeito Adj. = Adjuvante Op. = Oponete Ov. = Objeto de valor Ø = Inexistência semiótica PN = Programa narrativo Sg = Segmento 31 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 – Tensão Dialética entre Ser e Parecer ........................................................... 36 FIGURA 2 – Zonas Antrópicas.......................................................................................... 53 FIGURA 3 – Percurso narrativo dos sujeitos semióticos................................................... 92 FIGURA 4 – Tensão dialética entre herói vs bandido........................................................ 94 FIGURA 5 – Tensão dialética entre oprimido vs opressor................................................ 97 FIGURA 6 – Simbiose homem – terra .............................................................................. 103 FIGURA 7 – Percurso narrativo: mulheres do cangaço.................................................... 109 FIGURA 8 – Tensão dialética entre Redenção vs Vingança............................................. 112 FIGURA 9 – Estado de conjunção e disjunção do sujeito com o OV............................... 119 FIGURA 10 – Maria Bonita: entre conquistas e perdas.................................................... 123 FIGURA 11 – Tensão dialética entre Fidelidade vs Traição ............................................ 128 FIGURA 12 – Octógono dos termos Perdão e Castigo...................................................... 135 FIGURA 13 - Tensão Dialética entre Justiça e Barbárie........................................................ 139 32 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO............................................................................................................ 1.1 Apresentação ............................................................................................................. 1.2 Itinerário metodológico ............................................................................................ 13 13 16 2 BASE TEÓRICA: Semiótica e Cultura ..................................................................... 2.1 Semiótica: Percurso Histórico................................................................................... 2.2 Discutindo o Conceito .......................................... .................................................... 2.3 Níveis de estudo.......................................................................................................... 2.3.1 Nível Semiótico Profundo........................................................................................ 2.3.2 Estruturas Narrativas ............................................................................................... 2.3.3 Estruturas Discursivas ............................................................................................. 2.4 Percurso da Construção da Cultura ........................................................................ 2.5 Semiótica das culturas .............................................................................................. 23 23 27 33 35 37 39 42 49 3 SITUANDO O CORPUS ............................................................................................. 3.1 Cultura Popular: conceito, características, formas de expressão.......................... 3.2 Transmissão da Cultura Popular............................................................................. 3.3 O discurso etnoliterário............................................................................................. 3.4 Imaginário coletivo: um saber compartilhado........................................................ 3.5 O Cordel .................................................................................................................... 3.6 O Cangaço no Cordel ............................................................................................... 3.7 A mulher no Cangaço ............................................................................................... 56 58 64 65 68 72 74 78 4 ANÁLISE SEMIÓTICA DOS FOLHETOS DE CORDEL..................................... 4.1 LAMPIÃO: herói de meia-tigela – Manoel Monteiro............................................ 4.1.1 Preliminares ............................................................................................................ 4.1.2 Percurso da significação.......................................................................................... 4.2 O cangaço sustentado por coronéis - Varneci Santos do Nascimento................... 4.2.1 Preliminares ............................................................................................................ 4.2.2 Percurso da significação.......................................................................................... 4.3 Cancioneiro de Lampião – Nertã Macedo .............................................................. 4.3.1 Preliminares ............................................................................................................ 4.3.2 Percurso da significação.......................................................................................... 4.4 Episódio Sertanejo – Paulo Bandeira ...................................................................... 4.4.1 Preliminares ............................................................................................................ 4.4.2 Percurso da significação.......................................................................................... 4.5 A mulher e o Cangaço – Fanka ................................................................................ 4.5.1 Preliminares ............................................................................................................ 4.5.2 Percurso da significação.......................................................................................... 4.6 As Mulheres Cangaceiras Humanizaram o Cangaço – Kydelmir Dantas ........... 4.6.1 Preliminares ............................................................................................................. 90 90 90 92 94 95 96 98 98 100 101 102 103 105 105 108 113 113 33 4.6.2 Percurso da significação........................................................................................... 4.7 A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita – Manuel Pereira.................. 4.7.1 Preliminares ............................................................................................................. 4.7.2 Percurso da significação.......................................................................................... 4.8 Sombras do Cangaço – Susana Morais ................................................................... 4.8.1 Preliminares ............................................................................................................. 4.8.2 Percurso da significação........................................................................................... 4.9 Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás – JBARROS........... 4.9.1 Preliminares ............................................................................................................. 4.9.2 Percurso da significação........................................................................................... 4.10 Lampião vai ao inferno buscar Maria Bonita – Apolônio Alves........................ 4.10.1 Preliminares ........................................................................................................... 4.10.2 Percurso da significação.......................................................................................... 4.11 Lampião: sua vida e sua morte – Gilvan Santos ................................................... 4.11.1 Preliminares ........................................................................................................... 4.11.2 Percurso da significação.......................................................................................... 4.12 Virgínio: o juiz do grupo de Lampião – Gonçalo Ferreira da Silva.............. 4.12.1 Preliminares ........................................................................................................... 4.12.2 Percurso da significação.......................................................................................... 114 116 116 117 118 121 123 125 125 127 128 129 131 132 132 133 136 136 137 5 RESULTADOS ........................................................................................................... 140 6 CONCLUSÕES ........................................................................................................... 7 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 7.1 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................... 7.3 DOCUMENTÁRIOS.................................................................................................. 8 ANEXOS ...................................................................................................................... 144 148 148 155 156 13 1 INTRODUÇÃO 1.1 Apresentação O momento histórico-cultural do Brasil, em meados do século XIX, expõe um quadro de representações sociais que insiste em povoar o imaginário coletivo, gerando, em consequência, um universo referencial vulnerável à ativação de modelos estereotipados. São imagens e símbolos decorrentes muito mais das construções narrativas fabulosas do que de relatos históricos de teor racional. Essas simulações vão-se transformando em rótulos avaliativos, reforçados pela linguagem e alimentados por uma tradição messiânica. Eis um conjunto de fatores, por si só, responsáveis pela fabricação da realidade, e sempre mais influentes quando se trata de rupturas locais e temporais, que permitem construções reflexivas e éticas. Estas duas fronteiras (espacial e temporal) já são marcadas pelas tensões sociais: de um lado, o tradicionalismo agrário, representado pela oligarquia rural; do outro, as emergentes ocupações urbanas, com anúncio de novos estratos socioeconômicos. Assim, a sociedade nordestina tomou forma, preocupada muito mais com o poder do que com o desenvolvimento social e econômico. Esses fortes contrastes da realidade brasileira servem de ancoragem contextual, quando se buscam as causas da opacidade identitária, teoricamente, uma das contradições culturais, no período situado entre 1872 e 1930. Falamos em contradição pelo fato de se tratar de uma época, cuja proposta se baseava na busca da identidade nacional, sob a égide do mito fundador. As condições que mapeavam a formação daquele povo, porém, não favoreciam sua emancipação, em nenhum dos campos, seja político, econômico ou cultural. Para ilustrar tais referências, não podemos subestimar os movimentos sociais do campo, durante a Primeira República (1889-1930), um longo percurso através do qual se desenham movimentos caracterizados pela combinação de conteúdos religiosos com carência social. Ao lado do episódio de Canudos, desconstrução do discurso oficial, na voz plangente de Euclides da Cunha, também lembramos os causos centrados na figura do Padre Cícero Romão Batista, mais um meteoro histórico, de natureza messiânica. Finalmente, é a vez de lembrar a questão que servirá de pano de fundo para a nossa pesquisa – o fenômeno do CANGAÇO. Ainda hoje tatuado liricamente em objetos de barro ou em folhetos de cordel, o cangaço representou para Os Sertões nordestinos um evento de natureza dicotômica: enquanto para uns a figura de Lampião está associada ao paradigma de herói, como parte da 14 tradição do universo lendário-regional, para outros, constitui a lembrança de um tempo de banditismo sanguinário e cruel. Essa imagem ambígua de herói-bandido ficou conhecida por várias gerações, transposta para narrativas, em cuja trama foram construídas diferentes categorias alegóricas. A pesquisa a que nos propomos também pretende resgatar o fenômeno do cangaço, localizado em um Nordeste marginalizado, no momento em que a ordem pública começa a deitar seu longo braço para coagir o pari passu, que corresponde à prática de viver pelas armas. Data daí o emprego solto das expressões cangaço e cangaceiro, para malsinar um modo de vida incompatível com uma República que se pretendia “renovadora” (em que pesem as alianças entre coronéis e cangaceiros). Um retorno à longa transição das estruturas socioculturais nos proporcionará um reencontro com as vozes que protagonizaram a “invenção do Nordeste”. Esse evento, como tantas outras memórias históricas, atravessa a temporalidade da consciência, para se situar no tempo do discurso, por isso os causos nordestinos são tantas vezes romanceados e, em algumas reflexões, considerados “simulacro de verdade”. Como herança dessa vulnerabilidade contextual, a saga do cangaço passou por diferentes versões, conforme ratifica Vieira (2012, p.21), na sua obra “Coronelismo e Cangaço no Imaginário Social”. Essa presença marcante, no nosso imaginário social, não impede que seu ponto de vista histórico seja conhecido de forma distorcida, indefinida. Excessiva é a complexidade do fenômeno, que a historiografia do cangaço tem-se mostrado insuficiente para refleti-la. Não pretendemos, porém, tomar como foco o estudo do fenômeno, em si, na verdade, a delimitação do objeto da pesquisa recai sobre a inserção das mulheres, neste turbulento contexto. Algumas, certamente, atraídas pela aura de heroísmo e da aventura a que aludiam as narrativas orais. Muitas outras forçadas por circunstâncias adversas, roubadas ao convívio familiar, como foi o caso de Sila, cujo depoimento melancólico, no livro Memórias de Guerra e Paz , revela a penosa trajetória dessas mulheres: “Nunca imaginei, algum dia, sair daquele aconchego tão seguro e afetuoso da minha família [...]” (SOUZA, 1995, p.18). Seja por vontade própria ou por imposições eventuais, a história das mulheres no cangaço é marcada por turbulências, tangidas para as caatingas, condenadas à condição de nômades, pelejando por caminhos íngremes, menos pelo aspecto geográfico e mais pela dimensão psicológica. Como se já não bastasse a marginalização do bando, o vexame por que passavam os cangaceiros, elas sofreram duplamente, uma vez que herdaram, por um lado, a 15 rejeição da sociedade em relação ao cangaço e, por outro, as aflições agregadas pela condição feminina, a exemplo da privação da maternidade. Assim, as mulheres do cangaço foram duplamente amordaçadas: primeiro, em relação à macroestrutura (tensão entre a identidade individual e a de grupo); segundo, no campo da micro (identidade ameaçada por um discurso masculino hegemônico). Não resta dúvida de que são duas tensões dialéticas, com carga suficiente de condicionantes repressivos, para impedir a emergência de um memorial independente. Em face desse quadro de adversidades, como ter voz e autonomia para construir sua própria identidade? Os variados e expressivos adereços, que delimitaram a estética do cangaço, constituem representações personificadas pela cultura popular, ao mesmo tempo, reveladoras da resistente identidade coletiva. Essas imagens habitam o inconsciente e estão presentes nas relações intersubjetivas de enunciação e de enunciado que se manifestam, simbolicamente, através de mitos e magias. Dessa forma, no imaginário coletivo, as mulheres do cangaço se escondem sob uma cortina de fantasias, e essas representações comprometem sua individualidade, ou melhor, seu lugar social. Confirma-se tanto mais essa opacidade se levarmos em conta a influência do componente religioso, entranhado na alma, tal qual tatuagem na pele. Neste cenário messiânico, perpassado por valores e crenças medievais, os cangaceiros tentavam defender-se com orações que fechavam o corpo “Com as armas de São Jorge/ serei armado./ Com a espada de Abraão/ serei coberto./ Com o leite da Virgem Maria/ serei borrifado.” Por certo, podiam até livrar-se dos perigos de consequências físicas, mas não podiam fugir aos riscos das chagas de ordem social, histórica e existencial. As circunstâncias contextuais imbricavam de tal forma as fronteiras entre grupo e indivíduo, que era quase impossível situar desejos e valores singularizados. Reside aí a problematização: elas viviam entre a cruz e a espada. Carregavam o fardo decorrente da condição socialmente transgressora, e também estavam sujeitas àquela opacidade, determinada por ingredientes residuais, culturalmente impostos. Até mesmo o título de “rainha”, atribuído a Maria Bonita, é mais uma consequência da aura de herói, que acompanhava Lampião. Ele, condecorado tantas vezes, por medo ou respeito ou admiração. Ela, a Maria de Déa, já esquecida, um passado apagado e, tal qual o palimpsesto, reescrito tantas vezes, para servir às fantasias da oralidade. Partimos, pois, da hipótese de que, desde o momento em que as mulheres deixaram de ser referências exteriores ao bando e passaram a participar da saga do cangaço, herdaram a ambiguidade relativa à imagem do cangaceiro, uma dualidade já expressa neste texto: herói 16 vs. bandido. O preço também recai sobre a perda da “virtude feminina”, uma mistura de feição cultural com função histórica. A pesquisa foi direcionada a partir desse objetivo geral, que focaliza, em primeiro lugar, as condições contextuais do fenômeno, como macroestrutural, para depois situar as representações femininas. Nessa direção, propõe investigar a trajetória sociopolítica e cultural da mulher do cangaço, atuando nas dimensões históricas e, culturalmente construídas, entre o simbólico e o real, em busca de uma identidade. 1.2 Itinerário Metodológico O primeiro passo, seguramente, foi o levantamento bibliográfico que contemple a área de Linguagens e Cultura, especialmente os trabalhos de Rastier (2010), Batista (2004), Pais (2009), Barros (2010), Bakhtin (1993), Fiorin (2002), Machado (2007), entre outros. Entendemos que tal aporte teórico orientou minha descrição acerca do percurso dos sujeitos semióticos, assim também as trocas e conflitos de que é composta a natureza dessas representações e subjetividades. A abrangência do tema, com foco na ambigüidade identitária, implica uma simbiose de representações, em que estão imbricadas as noções de pessoa e de grupo. Essa multiplicidade de concepções exigiu uma análise em interface entre a Semiótica e a Cultura Popular. Procuramos, nesta última, uma sustentação para a base teórica, ao mesmo tempo, um apoio para a análise de símbolos e mitos. E por falar em cultura, permitam-nos um movimento retroativo para lembrar a ruptura entre o instinto natural e o fazer-humano, que vai redundar no universo cultural. Daí para as atividades semióticas é um salto lógico e continuum, já que se trata de atividades que manipulam linguagens, portanto produtoras de discursos sociais. Entendemos que a íntima ligação entre linguagem e cultura coloca-se como esteio deste trabalho, por isso, inevitavelmente, apresenta natureza interdisciplinar. Ora, se linguagem e cultura implicam-se mutuamente, não se pode questionar aí o diálogo entre a antropologia, a sociologia e a lingüística. Em relação à Semiótica, privilegiamos a vertente greimasiana, voltada para a função semiótica, a partir de um percurso gerativo que vai do nível mais simples ao mais complexo, passando por um nível intermediário, a saber: (1º) semântica profunda; (2º) narrativização; (3º) discursivização. 17 Na análise da estrutura narrativa, foram identificados os Sujeitos semióticos, realizando um percurso, em busca do seu Objeto de Valor, ora ajudado por um Adjuvante, ora prejudicado por um Oponente. Nesse patamar, são registradas as transformações por que passam os sujeitos quando transpõem a fronteira entre a potencialidade e a ação, ou seja, quando os valores modais passam de virtualizantes a atualizantes. Na estrutura discursiva, iniciamos pela análise das relações intersubjetivas de pessoa, espaço e tempo, de enunciação e de enunciado. Buscamos, na riqueza simbólica dos cordéis, a revelação dos principais arquétipos do inconsciente coletivo, a saber: o mito do herói em contraste com símbolos representativos do vilão. O cangaço e as mulheres que nele ingressaram escondem-se por trás dessa fumaça, provocada pela tensão dialética entre o paradigma do bem e o paradigma do mal. Em face da recorrência a elementos teóricos da literatura popular, prolongamos nossa análise num componente da Discursivização, que é a terceira fase do percurso gerativo de sentido. Trata-se da figurativização, uma instância do discurso que assume função representativa e pode ser entendida como ancoragem histórica (conjunto de índices espaçotemporais) responsável pela produção de efeito de sentido da realidade. Esses elementos concretos são necessários à unidade textual, à medida que materializam e trazem à superfície o universo das abstrações, localizadas na dimensão mais profunda do texto. Antes, porém, de explorar esse acervo teórico, tentamos criar um cenário para a discussão, espaço em que nos ocupamos com conceitos mais gerais, relativos à trajetória dos estudos acerca da linguagem. Assim procedemos a uma síntese conceitual que transita do paradigma clássico para as diretrizes referenciais dos tempos modernos. Esse percurso retomou concepções e eventos, numa sequência que parte da Antiguidade e se aproxima do moderno, para configurar uma trajetória histórica. A linguagem, enquanto propriedade constitutiva do ser humano, deve encaminhar outras discussões, entre as quais, as que se situam no campo da Semiótica. Confiamos nesse roteiro como esteira de natureza epistemológica mais abrangente, para depois introduzir temas de teor mais específico. Não ganhariam substância as investigações sobre o percurso da significação, sem se pontuar, na véspera, algumas questões em torno do funcionamento da linguagem, até porque seria um apoio para se chegar ao discurso. Após discorrer sobre a trajetória histórica, continuamos a abordagem teórica, procurando afunilar a discussão com tópicos situados em limites teoricamente mais estreitos, uma vez que agregam conceitos imbricados entre o campo do signo e o da significação. Entendemos que as descobertas, no campo da Semiótica, constituem consequência natural das 18 pesquisas iniciadas na Grécia antiga. Em face dessa constatação, conservamos, no mesmo espaço, as questões de base epistemológica, dedicadas ao exame dos modos de constituição e de produção do sentido, ao lado daquelas noções das quais se constitui o percurso greimasiano. Daí é que partimos para o item 3 do Sumário , ao qual atribuímos a função de “base de sustentação do corpus”. Nesta etapa, também escolhemos uma abordagem que parte de concepções mais gerais, por exemplo, Cultura Popular: conceito, características e formas de expressão, para depois delimitar as discussões, passando pelo Cordel, pelo Discurso Etnoliterário, até atingir o foco central, que é o Cangaço no Cordel, finalmente, as Mulheres no Cangaço. Como vimos, é neste espaço que vamos semear o adubo necessário à colheita de resultados, já que se trata de conceitos relevantes, portanto básicos, para a análise aplicada ao corpus. Como convém à estrutura convencional, reservamos para o último tópico os procedimentos analíticos. Nessa operação, debruçamo-nos sobre um conjunto de textos – um universo que contempla não só a problemática definida para o trabalho, mas, sobretudo, a base teórica escolhida para legitimar a tese. O primeiro viés se situa na crise da identidade, apoiado por conceitos que tentam explicar o universo simbólico da memória social. O segundo orienta a escolha das categorias que irão fornecer os elementos necessários à elucidação do problema. Nesta última parte da Tese – o lugar do encontro da teoria com a prática – procedemos à avaliação referente à pertinência dos objetivos e das hipóteses. Representa o espaço em que conferimos os objetivos à luz de uma amostragem, para apontar os resultados, com base nos recortes escolhidos para análise. O corpus do trabalho reúne doze cordéis, sujeitos a uma análise semiótica, com aplicação de categorias extraídas da base teórica. Independente desses recortes escolhidos para análise, comentamos outros folhetos e também depoimentos, e em todos devemos antever as marcas das representações do imaginário popular. Os cordéis analisados, e também os que serviram de reforço para a discussão da tese foram transcritos de diversas fontes, entre as quais, citamos: 1) O Cangaço na poesia brasileira, de Carlos Newton Júnior, Iluminuras: 2009; 2) Coronelismo e cangaço no imaginário social, Erivam Felix Vieira, Sirinhaém-PE, Ed. do Autor: 2012; 3) A mulher e o Cangaço, Fanka, Governo do Estado do Ceará: 1997; 4) Cordel Herói de meia tigela, Manoel Monteiro, 2ª Ed. Campina Grande – PB: 2011;5) Sombras do Cangaço, Susana Morais, Recife: 2006; Lampião e Maria Bonita no Paraíso, tentados por Satanás, folheto de 19 JOTABARROS; Lampião vai ao inferno buscar Maria Bonita, de Apolônio Alves dos Santos, folheto editado pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Os depoimentos, também usados como textos de apoio, foram transcritos de Wanessa Campos, A Dona de Lampião, Prefeitura da cidade do Recife, 2012; de Ilda Ribeiro de Souza (Sila), Memórias de Guerra e Paz, Recife: UFRPE, 1995; de um documentário da Rede Globo: “A Mulher no Cangaço”; de um livro de Lia Zatz “DADÁ: bordando o cangaço”, Editora Callis, 2004; finalmente, enviado por e-mail, da coordenadora do Núcleo de Estudos sobre o Cangaço (NEC), Rosa Bezerra. Continuando a exposição, queremos reiterar que o corpus foi estruturado mediante dupla direção: em parte, por pesquisa bibliográfica das quais extraímos as categorias analíticas; de outro lado, também por pesquisa bibliográfica, fomos colher as amostras, privilegiando-se as narrativas em cordéis, mas também com consultas a outros gêneros, como depoimentos e registros na mídia. A pesquisa de campo reuniu o material simbólico além de elementos messiânicos, através dos quais pretendemos chegar ao percurso gerador de sentido. Para a construção de um cenário familiar ao corpus, vamos buscar, em Bakhtin (1999), os elementos contextualizadores da Cultura Popular, por meio da qual se aprende que as imagens estão, fatalmente, presas ao sentimento da história e da alternância histórica. Para Bakhtin a palavra está revestida de uma natureza interdiscursiva, social e interativa, por isso o conceito de linguagem não está comprometido com uma tendência linguística ou uma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justamente na busca de construção do sentido, resvala pela abordagem discursiva. Os estudos sobre a linguagem, por representarem temas transversais, são absolutamente cúmplices quando se trata de relações socioculturais, mais precisamente, quando o tema se aproxima do campo da subjetividade. As paixões escondidas nas palavras, as noções de autoria, a alteridade, enfim, todos os traços discursivos serviram de pistas para chegarmos à legitimação da hipótese levantada: a crise da identidade feminina, especificamente, a ameaça à identidade das mulheres do cangaço. Essa aventura deve ir além do componente lingüístico, além do acaso biográfico, porque perpassada por valores culturais e existenciais. Ao ultrapassar esses limites sistemáticos, a compreensão abre-se para dimensões subjacentes, onde se opera com diferentes saberes. Sob diversos olhares, perseguimos essas respostas das quais dependerá a conquista de um certo objeto de estudo, que desejamos recriado e livre - a busca do sujeito e do seu lugar social. 20 Os textos selecionados, sejam depoimentos orais, memória da cultura popular, registros acadêmicos ou documentários, foram investigados exaustivamente, sempre à luz das rupturas categoriais previstas nas orientações teóricas em questão. Assim, a análise vincula-se à noção de cultura à medida que sujeita às zonas antrópicas de identidade, proximidade e distanciamento culturais. Por outro lado, também está presa a conceitos afins, transitando entre a Semiótica e a Cultura Popular – um abrangente acervo teórico capaz de dar conta não só de conhecimentos lingüísticos, mas, sobretudo, de ocorrências das interlocuções vivas da comunidade de falantes. A leitura e releitura, bem como o diálogo entre o teórico e o empírico, todo esse processo amparou as bases da intersubjetividade e do multiculturalismo. O acervo bibliográfico forneceu os subsídios necessários à problematização e respectivas causalidades e conseqüências, universo sistematicamente revisitado, de cujo recurso nos valemos, para agregar também leituras de assuntos correlatos. Esse conjunto de informações foi selecionado mediante o critério de um núcleo comum, uma espécie de mapa, que nos orientou rumo à descoberta do lugar social e da voz das mulheres do cangaço. Mais que isso: acreditamos que esse aparato nos permitiu a difícil tarefa de “juntar os cacos”, em busca de elementos elucidativos, capazes de nos conduzir à construção da identidade. Na tentativa de antever respostas às indagações, elegemos algumas categorias analíticas extraídas de todo o construto teórico discutido. Recorremos aos postulados da cultura popular, para identificar, através das escolhas, os sinais de pertencimento, os modelos do cotidiano cultural, enfim, as marcas de subjetividade. Assim, através das imagens e símbolos, típicos dos cordéis, tentamos reconstruir um perfil, senão com a limpidez desejada, mas que nos permitisse reunir uma seleção de indícios, que venham atestar essa propalada opacidade identitária. Não devemos abstrair desse elenco os traços messiânicos, até porque estão carregados de valores, que vão representar o conteúdo de que se compõe o imaginário coletivo. Trata-se de características típicas do gênero cordel, o qual dá visibilidade aos ídolos e fetiches, flagrados através do discurso etnoliterário, preconizado por Pais (2004). Aplicando o modelo da tipologia de Pais, confirma-se a prevalência da figurativização em todos os recortes analisados, significa dizer que o discurso etnoliterário não pode prescindir dessa linguagem alegórica para fins de ancoragem histórica, até porque esses apelos míticos refletem a necessidade do povo por imagens idealizadas, enfim, alimentam a fome popular por fantasia. 21 O universo da pesquisa consta de doze folhetos, iniciando-se o procedimento analítico por quatro recortes que discorrem sobre o fenômeno em si, o cenário geral, em torno de Lampião. Os demais cordéis tomam como foco a saga das mulheres, um acervo que nos fornece elementos específicos, para a elucidação da proposta. No primeiro quadro, entendido como cenário geral, privilegiamos dois vieses: partimos do contraponto entre discursos opostos, protagonizando a natureza dicotômica que marcou a literatura acerca do cangaço; o segundo viés se deteve no aspecto mitológico e no lirismo que figurativiza o enraizamento, ou seja, a simbiose entre o homem e a terra. Quanto ao acervo que canta a saga das mulheres, tentamos valorizar os traços que evidenciam os apelos míticos e simbólicos, para reforçar a hipótese da construção das representações femininas, sitiadas pela tensão entre a fantasia e a realidade. Assim, nessa segunda parte do procedimento analítico, selecionamos cordéis em cuja análise insistimos na investigação acerca da verdadeira identidade das rendeiras que tanto “ensinaram a fazer renda” e não conseguiram assumir a função histórica de protagonistas da saga das mulheres no cangaço. Amparados nesse acervo de concepções, imbricadas segundo um núcleo comum, reunimos elementos, para vencer a distância entre as hipóteses e a legitimação da tese. Tudo isso representou um grande desafio, até porque, em alguns momentos, o debate parecia esgueirar-se pelas trilhas da decifração, uma vez que se trata de uma pesquisa, inevitavelmente, inclinada para a análise e interpretação das formas simbólicas. A propalada linguagem alegórica, típica dos cordéis, a que tantas vezes recorremos neste texto, apresenta uma natureza polifônica, constitutiva do diálogo, independente da relação de acordo ou da situação conflitante, em que as várias vozes se encontram. A professora Osakabe (1991, p.7) refere-se a essa polifonia, não esquecendo de enfatizar a função principal dessa linguagem: Mas, ressalte-se, não se trata da linguagem vista como simples repertório, muito menos como conjunto de figuras de enfeite retórico; muito menos ainda como uma imaterialidade ideológica. Ao contrário, trata-se de uma linguagem entendida como interlocução e, como tal, de um lado, como processo, e de outro, como constitutiva (de) e constituída (por) sujeitos. Se a expressão significativa está contextualizada, o diálogo promovido pelo acervo de imagens e símbolos não vai comprometer a interpretação. O mais provável é que esse apelo a formas simbólicas venha a isentar o texto de um caráter racional, predominante nos discursos 22 não-literários, estes marcados pela austeridade racional, para dar vez e voz às referências sinestésicas, próprias do discurso etnoliterário. Por razões teóricas e metodológicas, acercamo-nos de temas que envolvem a complexa construção da memória social, daí a seleção do corpus com a predominância de cordéis. Sabemos que aí se encontra um suporte de apropriação simbólica de ações históricas, que buscam, como reflete a pesquisadora Melo(2009, p.71), “os efeitos da emoção no coletivo, totalmente diferente da fruição de textos dos romances burgueses em que a leitura é solitária e isolada”. Caracterizado por essa alegoria, tornou-se o cordel o mais fiel publicitário de Lampião, e assim procuramos a mesma cumplicidade em relação às mulheres. Fizemos do cordel um espelho através do qual captamos imagens, na busca de estratégias que nos ajudem a decifrar o enigma que está por trás da memória, do messianismo e dos elementos da cultura popular. Dessa forma, toda a atenção se fixa no contexto social e antropológico, de onde emergem as formas artísticas, um espetáculo semiótico, em cuja perspectiva sempre se destacará um cenário idealizado. A fim de dar conta dessas representações, imbricadas entre a macro e a microestrutura, tivemos que recorrer a uma base comparativa, em cuja construção opera-se um diálogo entre as partes e o todo. Trata-se de uma dialética segundo a qual só se pode pensar a unidade na diversidade, daí não ser possível isolar a saga das mulheres de um fenômeno mais amplo, com a mesma incidência de condicionantes históricos e culturais. Sobre essa historicidade atualizada e, na busca de uma releitura que privilegiasse os símbolos e mitos, valemo-nos do apoio de alguns estudiosos do cangaço, entre os quais SÁ (2011, p. 24), com sua reflexão sobre as narrativas orais: Criou-se, nesta direção, uma onda global de estudos críticos da memória histórica, versando sobre a construção da identidade individual e coletiva, por meio dos usos da memória nas suas múltiplas funções culturais, políticas e sociais, na narração do passado. Não há dúvida de que as tramas envoltas nessa figurativização abrigam a singularidade do momento, à medida que aninham todos os ingredientes religiosos e políticoideológicos, responsáveis pela construção da memória social. Nesse lugar, onde ocorre o encontro do individual com o coletivo, abrigam-se imagens que refletem as possíveis dispersões do “eu” e da alma, em direção ao mundo do desejo e da utopia. De posse dessas diretrizes teórico-metodológicas, bem como dos demais elementos significativos, explícitos ou subjacentes, tentamos reunir as ferramentas possibilitadoras de 23 aproximação e descoberta do amálgama que ameaça a identidade das mulheres do cangaço. Como referido, temos clareza do grande desafio, considerando estar o núcleo feminino imbricado num cenário maior, onde é tênue a fronteira entre o indivíduo e o grupo. 2 BASE TEÓRICA: SEMIÓTICA E CULTURA 2.1 Semiótica: Percurso Histórico Devemos partir da pressuposição geral de que a linguagem foi a inscrição humana no mundo, e nenhuma característica é tão inerente à espécie quanto essa que nos faculta a interação, que nos aprisiona ao outro naquilo que há de mais caracteristicamente humano. Essa relação do homem com a linguagem sempre foi alvo privilegiado de reflexão, de ciência e de filosofia. Enquanto chave do homem e da história social, constitui objeto de conhecimento particular, “suscetível de nos dar acesso não apenas às leis do seu próprio funcionamento, mas também a tudo o que releva da ordem do social.” (KRISTEVA, 1969, p.168). Os filósofos gregos foram pioneiros nas especulações e teoremas referentes à linguagem. A princípio, com estudos que subsidiavam as aulas de Filosofia, na verdade, a disciplina foi institucionalizada como “Filosofia da Linguagem”. Depois, vieram os compêndios, cujos objetivos estavam centrados na Retórica e na Argumentação. Se ali nasceram as primeiras preocupações com a linguagem, também desse berço vieram as vanguardistas peças com as quais manejavam com habilidade as formas de argumentação. E não poderia ser diferente, já que, em praça pública, os cidadãos gregos se aventuravam no exercício de defesa dos seus direitos democráticos. Ao mesmo tempo em que se ocupavam em preservar os monumentos literários, as pesquisas avançaram até as proposições sobre a relação da linguagem com a realidade, um desdobramento que, segundo Kristeva, atingiu, na Grécia, a sua forma mais perfeita. O célebre diálogo de Platão, Crátilo (apud KRISTEVA, p.155), dá testemunho dessas discussões filosóficas, inclusive, retomando certas concepções pré-socráticas acerca da propalada instabilidade para exprimir o real. Não há dúvida, pois, de que a “Grécia lógica” forneceu os princípios fundamentais segundo os quais a linguagem foi pensada até os nossos dias. Os latinos seguiram de perto a tradição dos povos helênicos e contribuíram, significativamente, para a expansão das pesquisas tanto de ordem filosófica quanto no campo da gramática. Os eruditos romanos se prenderam à universalidade das categorias lógicas, 24 preestabelecidas segundo a língua grega, e assim não mediram esforços para a transposição dessas teorias e classificações. Daí surgiram obras clássicas, entre elas, a de Varrão, que elaborou uma teoria exemplar sobre a linguagem, na sua obra De lingua latina, dedicada a Cícero (apud KRISTEVA, p.168). A preocupação com as questões linguísticas irrompeu, nos tempos modernos, porém com nuances mais direcionadas, contemplando funções, por exemplo, de demarcar e significar. Dessa forma, coube às teorias modernas agregar aos postulados clássicos valores específicos, migrando do campo filosófico para outras diretrizes epistemológicas, com a finalidade de ordenar e definir certos conceitos em torno do signo e da significação. São ambas noções orientadas segundo estruturas sociais, não atribuindo função às unidades da língua, quando fora de uma situação concreta de comunicação discursiva. Ao ultrapassar os limites do puramente lingüístico, esses dois níveis foram ampliados e passaram a ser entendidos como dimensões relacionais, atualizadas dentro do interdiscurso social. A preocupação com o plano histórico-ideológico perpassa os estudos sobre significação, inclusive por enfatizar a natureza interdiscursiva e interativa da palavra. Tomando como base esses pressupostos, passaremos a revisitar o panorama da semiótica no século XX, na tentativa de discutir aspectos da enunciação, da história, do discurso, enfim, dos sentidos na linguagem. As investigações, no campo da linguagem, como em qualquer outra área da ciência, passam por retomadas históricas por meio das quais se tenta a utilização de novas metodologias, para atender aos novos questionamentos. Assim, foram delineados os estudos da lingüística geral, no sentido em que a entendemos hoje, uma ciência relativamente recente: seu impulso e desenvolvimento datam apenas da primeira metade do século XX. Sua origem, entretanto, encontra-se na renovação dos estudos acerca da linguagem, com a apropriação de novos questionamentos os quais resultaram, no decurso do século XIX, na constituição da Gramática Comparada. Nascida no momento em que, em todos os domínios, desenvolvia-se um novo método científico, atingiu resultados notavelmente seguros, até porque forneceu fundamentos técnicos indispensáveis à estruturação de disciplinas afins. A Linguística Moderna, cuja paternidade se atribui a Ferdinand Saussure, fiel a seus princípios básicos (a língua é uma estrutura, uma rede de relações), apresentou-se inicialmente como uma lingüística do sistema, lingüística da “langue”, em termos saussureanos. Utilizando-se da célebre metáfora do jogo de xadrez, caberia ao estudioso descrever o tabuleiro, as peças de diversos tipos e as regras do jogo. Em termos lingüísticos, 25 isso significa descrever, num determinado estádio da língua, ou seja, sincronicamente, as unidades pertencentes aos diversos níveis. Foi assim que, durante o estruturalismo, a fonologia e a morfologia alcançaram avanços significativos. Com o advento da teoria gerativa (fundada na obra de Chomsky), a sintaxe veio a tornar-se o centro dos estudos lingüísticos. A semântica, timidamente a princípio, apenas como componente interpretativo, depois com maior vigor, foi acompanhando essa evolução. Por volta dos anos 60, com os postulados da Semântica Estrutural bem definidos, compreendeu-se o paralelismo entre o plano de expressão e o plano de conteúdo. O projeto de Saussure – uma teoria geral de sistemas de signos – denominado por ele de semiologia, representou o ponto de partida para que fossem fincados os princípios básicos da semiótica. Esses argumentos nos convenceram, afinal, de que as contribuições saussureanas não se limitaram a uma única área, foram além, porque favoreceram a convivência entre ciências do mesmo campo de conhecimento. A elaboração da nova ciência da semiologia geral deveria aproveitar o progresso dos conhecimentos na área de um dos seus ramos, a linguística. A relação entre a semiologia e a linguística seria, portanto, dupla: primeiro, as leis da semiologia geral são aplicáveis à ciência dos signos linguísticos; segundo, as leis da linguística são um guia heurístico na elaboração da ciência dos signos em geral (NÖTH, 1996 p.19). A validade desse caráter interdisciplinar pode ser justificada pelo fato do objeto de estudo não se desintegrar do tecido da totalidade de que é parte indissociável. São prerrogativas que apontam para um novo olhar, através do qual se leva em conta a relação entre a língua e seus usuários. Vai ganhando terreno, aos poucos, a lingüística pragmática, cujas diretrizes consolidam não só o sujeito-enunciador, mas também as condições que estão presentes no modo e lugar da enunciação. Os falantes deixam marcas de subjetividade, que são interpretadas pelos leitores, atentos ao fato de que as margens do dizer também dele fazem parte. Seguindo a linha desse raciocínio, o texto não pode se reduzir a um campo homogêneo. Considerando-se o diálogo permanente com outros textos, confirma-se a heterogeneidade constitutiva da linguagem, portanto a multivocalidade como traço essencial. Para Bakhtin (1999), a palavra está revestida de uma natureza interdiscursiva, social e interativa, por isso o conceito de linguagem não está comprometido com uma tendência lingüística ou uma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justamente na busca de construção do sentido, resvala pela abordagem discursiva. 26 Se analisarmos o texto sob a perspectiva de produção cultural, seguramente, esbarraremos em um campo de pluralidade, porque encontro de diferentes tipos de linguagens os quais se harmonizam de forma a construir fronteiras esponjosas. Aliás, a máxima da abordagem semiótica se assenta sobre essa visão combinatória de sistemas que se impregnam mutuamente (alguns falam em tradução da tradição), ou seja, compreensão do encontro entre culturas como uma experiência dialógica. Quando a linguagem verbal não for capaz de reproduzir o verdadeiro sentido do dito, quando não for capaz de manifestar com precisão o conteúdo, o poeta deverá recorrer aos sistemas secundários, com suas ferramentas atualizantes, as quais, aliadas à força da palavra verbal, vão proporcionar os aspectos necessários à troca. Acerca da incompletude da linguagem verbal, pronunciou-se Machado (2008, p.27) “[...] afinal, como explicar a codificação da literatura, da mitologia, do folclore, da religião, das artes em geral à luz de um único e mesmo processo ou conjunto de signos?” Porque podemos contar com outros sistemas modelizantes, além do sistema primário – linguagem verbal – tornou-se possível superar a incompletude do dizer, ao mesmo tempo, acercar-nos do significado de “Cultura”. Para dar conta dessa problemática, são necessárias ferramentas que contemplem as funções mais gerais, ligadas à ideia de formação ou transformação, até aquelas entendidas como artesanais, porque atreladas ao tecnicismo do “fazer”. O desdobramento coerente desse embasamento teórico levará ao conceito de “texto da cultura”, uma nova concepção de texto no campo científico. Além da “unidade de linguagem em uso”, defendido pela Lingüística Textual, o “texto da cultura” passa pelas ideias semióticas segundo as quais se constitui espaço de relações onde a codificação da esfera cultura modeliza o sistema como um texto. Para as investigações lingüísticas (até a década de 60), o conceito de texto está vinculado apenas à função comunicativa, porém, para a Semiótica das Culturas, mais do que codificação, pressupõe-se diálogo e interação, acrescentando-se, portanto, outras duas funções, a saber: geradora de sentido e mnemônica Lótman (apud MACHADO, 2008, p.31). Esse desdobramento dialoga com o princípio bakhtiniano de linguagem numa dimensão sociohistórica: além de produzir sentido, leva-nos à reflexão, à medida que contextualiza os dados ali retratados, trazendo ideias, anseios, temores, e expectativas de um grupo social. As ideias aqui reunidas devem tomar como base a noção de língua como forma de produzir atividades sociais e não como instrumento para produzir informações. Nessa linha de pensamento, a concepção de linguagem aqui trabalhada não poderá ser outra senão a 27 interacionista, portanto uma atividade construída sociologicamente. Reiterando, então, a força dessa faculdade que só ao homem compete, lembramos um axioma, sabiamente invocado pela voz do povo: “Quem tem boca vai a Roma” – daí podemos inferir, analogicamente, que, através da linguagem, o sujeito poderá alcançar metas inimagináveis, transpondo fronteiras não só físicas, mas também existenciais. [...] os outros se definem por palavras; elas estabelecem todas as nossas relações e nossos limites [...] Nossos sonhos são povoados de palavras; todas as nossas emoções e sentimentos se revestem de palavras. O mundo inteiro é um gigantesco bate-papo, dos chefes de Estado negociando a paz e a guerra às primeiras sílabas de uma criança [...] É pela linguagem, afinal, que somos indivíduos únicos: somos o que somos depois de um processo de conquista da nossa palavra, afirmada no meio de milhares de outras palavras e com elas compostas (FARACO; TEZZA, 1992, p.9). Mas esse encontro do individual com o coletivo, só ocorrerá mediante um arranjo sujeito à sobreposição de dois planos: o verbal e o não-verbal. Não fora essa estratégia metodológica de operar com a dupla funcionalidade, as imagens no cordel, por exemplo, soariam como um recorte que deu certo em função do contexto regional, jamais como o encontro de vozes ciosas por autonomia. Para reforçar, lembramos a alteração da natureza semiótica do signo, caso seja isolado da sua situação social. Essa é, portanto, uma característica sem a qual não será possível conferir significação ao texto. E é no limite do discurso que o homem se valoriza como sujeito que interage com outros sujeitos, em várias situações, definidas social e culturalmente. É nessa dimensão discursiva que se constrói a concepção de mundo dos seres humanos, no exercício da apropriação social da linguagem. Através dessas experiências culturais, os sujeitos se fazem a si mesmos e à história humana. Esse princípio pode servir como ponto de partida, para se compreender o percurso da construção da identidade. 2.2 Discutindo o conceito Ao se debruçarem sobre concepções desenvolvidas na Antiguidade, os teóricos modernos enfrentaram problemas em relação à natureza dos signos, da significação e da comunicação, na história das ciências. Os primeiros obstáculos tiveram origem nas noções confusas, entre as quais, destaca-se a diversidade de abordagem acerca do “sentido”. A primeira indagação seria definir os limites entre sentido e significação. 28 Sobre essa demarcação, Fontanille aposta em soluções baseadas no cotejo entre macro e microestrutura, ou seja, as relações entre o “local” e o “global”, os dois métodos de abordagem da linguagem, manifestados na forma de organização do sentido no texto. Assim entende que o sentido sugere, em primeiro lugar, uma direção. Essa é a condição mínima para que o interpretante possa caminhar – apoiar-se no que o teórico chama de morfologia intencional. Essa “tendência” e essa “direção” muitas vezes foram interpretadas, erroneamente, como pertencentes à referência. Na verdade, a referência é apenas uma das direções do sentido. Outras direções são possíveis. Por exemplo, um texto pode tender a sua própria coerência e é isso que nos faz compreender o seu sentido [...] (FONTANILLI, 2008, p. 31). A incompletude, como característica constitutiva da linguagem verbal, leva-nos ao risco de desvios que podem ser superados se levarmos em conta os sujeitos e a situação. Enquanto para o sentido o teórico designa o termo “direção”, para o segundo conceito – significação, ele propõe o termo “articulação”, para representar um processo de relação com o todo. São duas denominações coerentes, até porque pontuais, no que tange à compreensão daquilo que apresenta natureza mais ou menos abrangente. Podemos falar em mais geral, no caso da “direção”, e mais específico, se a função é “articular”. Entendemos, pois, que articular constitui oposição a sentido, já que implica a relação que uma significação mantém com outras, possibilitando a transposição de um nível de linguagem para níveis variáveis. É certo que o sentido também não pode fugir desse parâmetro relacional, porém “O sentido é, afinal, a matéria amorfa da qual se ocupa a semiótica, no esforço de organizá-la e torná-la inteligível” (FONTANILLI, 2008, p.31). Graças a essa circularidade, tornou-se possível aplicar ao texto a ideia de sentido como transcodificação, graças à ação da pragmática, o que significa falar em processo socialmente organizado. Arrais (2011, p. 29) acrescenta elementos importantes a essa discussão: Na busca pelo sentido, sem restringir seu universo a uma linguagem ou código específicos, a semiótica parte da observação dos signos e dos emaranhados de relações dos quais esses signos participam. Assim é que objetiva visualizar, flagrar algo, encontrar um vestígio de paradigma, de permanência [...], onde se imagina ver uma ordem, uma lógica. As recorrentes discussões sobre essas categorias, longe de parecerem perda de tempo, representam, na verdade, avaliação criteriosa, voltada para bases teóricas que irão sustentar não apenas os conceitos pertinentes ao entorno do signo linguístico, mas, sobretudo, o elenco 29 de teorias acerca da semiótica como estudo dos processos significantes em geral. Entre tantos estudiosos preocupados em delimitar tais espaços, devemos citar Nöth (1996). Nesta obra, o autor é enfático quando declara que pretende complementar seu trabalho anterior – Panorama da Semiótica de Platão a Peirce, publicado em 1995. Pelas considerações mais recentes, pode-se antever a dependência entre os postulados dos dois momentos dessa longa trajetória. A incompletude prevista por Nöth encontra respaldo nas valiosas contribuições de Peirce, que também se valeu da lógica grega para definir as categorias de que se compõe o signo. Em Platão, esse semioticista foi buscar a estrutura triádica– ónoma (nome), eîdos (noção/ideia) e pragma (coisa referente) – para discutir, inclusive, a questão da instabilidade decorrente da relação convencional entre palavras e coisas. Enquanto leitor assíduo dos semioticistas escolásticos, Charles Sanders Peirce idealizou o seu signo eminentemente triádico, com a seguinte composição: um objeto, a coisa referida, entendida como modelo mental; um representâmen, elemento que consiste em representar o objeto (um desenho, um retrato etc.); e um interpretante, tudo que é assimilado pela mente e decodificado, através de uma reação. No signo peirciano, vamos identificar, portanto, a representação de um objeto, ao mesmo tempo em que se cria um signo equivalente, na mente de alguém, que é o seu interpretante. Para tentar responder às indagações acerca do conceito de Cultura, teremos que recorrer, mais uma vez, a um método interdisciplinar perpassando o terreno da Antropologia Social, em interface com a Sociologia, um diálogo sem conflitos. E como há um consenso em torno da relação entre Cultura e Significado, juntem-se a esses campos as contribuições da Semiótica, cujo objeto se declina, por um lado, para o resultado de uma interpretação e, por outro, para signos não isolados, em direção a formações completas. A definição da semiótica é universalista e se apoia sobre uma ontologia das substâncias, subordinando o signo ao conceito. Nessa perspectiva dialógica, procuramos entender a Cultura como sistemas de símbolos que articulam significados, por isso não devem ser analisados em abstrato, ao contrário, convém interpretá-los como produtos de homens reais, com referência ao universo de significados próprio de cada grupo social. Cada realidade cultural tem sua lógica interna a qual devemos conhecer para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações por que passaram, até porque [...] a possibilidade de reconstruir e interpretar os processos sociais e os itens culturais não deve partir de critérios abstratos e gerais, produzidos pela visão 30 de mundo do observador, mas com critérios inferidos com base na realidade estudada (ARANTES, 1981, p. 37). Partimos do princípio de que Cultura não é ciência experimental à procura de leis, mas sim ciência interpretativa à procura de significado. E é, exatamente, essa busca de explicação, com um propósito avesso ao operacionalismo como dogma metodológico, que torna mais complexa sua teoria interpretativa. Tudo isso leva o pesquisador a recorrer a uma pluralidade de métodos para dar conta do conjunto de costumes coerentes, necessariamente integrados, os quais precisam ser vistos sempre em seu contexto e como partes inter-relacionadas. É uma troca à qual Rastier (2010, p.15) se refere da seguinte forma: Uma cultura não pode ser compreendida apenas do ponto de vista cosmopolita ou intercultural. Para cada uma, é o conjunto das outras culturas contemporâneas e passadas que desempenha o papel do corpus. Com efeito, uma cultura não é uma totalidade, porque se forma e desaparece nas trocas e nos conflitos com os outros. Essa abrangente exposição conceitual pode ser confirmada não só nos dicionários, mas também nos compêndios que discorrem, especificamente, sobre o tema. Esse acervo de informações conduz a um exercício teórico-dialético, por meio do qual são formuladas várias hipóteses, na tentativa de aproximação de uma peça conceitual coesa e coerente. Tomemos, por exemplo, a reflexão generalizante de Santos (2006, p.7), em O que é Cultura, coleção Primeiros Passos: “É uma preocupação em entender os muitos caminhos que conduziram os grupos humanos às suas relações presentes e suas perspectivas de futuro”. Dessa forma o autor nos coloca diante de um tratado antropológico-social, com vistas a uma projeção histórica, portanto diante de um tecido para o qual convergiram diferentes fios, em diferentes momentos. Em um ensaio, sob o título “Uma descrição densa”, Geertz (1989, p. 13-41) alerta para a dificuldade de se chegar a um conceito definitivo de Cultura e fala em “pantanal conceptual” ao aludir aos teóricos que se aventuram em criar amplos teoremas citando, como exemplo, “o todo mais complexo”, de E. B. Tylor. (GEERTZ, 1989). Sem subestimar sua força criativa, afirma que a proposta de Tylor confunde mais do que esclarece, porque falta à tese um teor mais especializado e, teoricamente, mais poderoso. Outros teóricos, situados no mesmo campo científico, reforçam a inquietação de Geertz, entre eles, Rastier (2010, p.12): “Com efeito, ao invés da generalização, a caracterização supõe uma ciência chegada à fase individualizante e que, por conseguinte, possa exceder a fase normativa.” 31 Ainda em Geertz (1989) vamos descobrir a confiança na orientação epistemológica de Kluckahohn, teórico que escreveu um capítulo, com cerca de vinte e sete páginas, para tentar definir o “Conceito”. Entre as onze referências elencadas, achamos importante destacar cinco, segundo o critério das que mais se identificaram com o princípio cliffordiano de “descrição densa”: (1) “o modo de vida global de um povo” / (2) “o legado social que o indivíduo adquire do seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir e acreditar”; (4) “um celeiro de aprendizagem em comum”; (5) “um precipitado da história”. Visualizamos, nos dois primeiros conceitos acima elencados, a tendência universalizante da cultura; o terceiro se atém aos valores e crenças de que se nutre a memória coletiva; o quarto vem responder às demandas do saber sistêmico e compartilhado; por fim, o quinto dogma se reporta à trajetória histórica de comum vivência. Embora cada um apresente sua singularidade, há um traço recorrente em todos os postulados: trata-se, exatamente, do sentimento de partilha, resultante do enraizamento sem o que não seria possível a construção histórica da cultura. A complexidade da construção desse percurso pode ser explicada à medida que se toma a análise antropológica como forma de conhecimento, diz-se de um olhar cingido pela pluralidade. Como já referido, o núcleo interior do sujeito não é autônomo e autosuficiente, mas é formado na relação com outras pessoas, responsáveis por mediar os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que habitavam. Convocamos Sangos (2006, p.8) para reforçar essa proposta: Cada realidade cultural tem sua lógica interna a qual devemos procurar conhecer, para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações por que estas passam. É preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com os contextos em que são produzidos. Essa discussão em torno do conceito de cultura deve, pois, imprimir um ordenamento das referências, no entender de Santos, elas devem ser explicadas a partir de duas concepções básicas. A primeira, mais genérica, diz respeito a tudo que caracteriza a existência social de um povo ou nação, ou então de grupos, no interior de uma sociedade. Quanto à segunda concepção, referimo-nos mais especificamente ao conhecimento, às ideias e crenças, assim como às maneiras como existem na vida social. É uma concepção segundo a qual a natureza e a realização individual são enfatizadas, a exemplo da cultura alternativa, na qual podem ser incluídas as instituições associadas, como lojas de produtos naturais e clínica de medicina alternativa. 32 Para se dizer, cientificamente, algo sobre o mundo, é necessário prescrever, com clareza, o campo conceitual que orienta a investigação. Assim, para se falar sobre o domínio e objeto da Semiótica, urge propor generalizações as quais, uma vez conceptualizadas, funcionam como princípios, para se chegar ao lugar das hipóteses. Assim, a pesquisa científica, à luz da Semiótica, deverá agregar uma cadeia de componentes conceituais que vai da referência mais básica, como o conceito de texto, passando por relações específicas, por exemplo, fronteiras e sistemas modelizantes, até a compreensão da semiose enquanto ação da linguagem em funcionamento discursivo. A complexidade do ato semiótico pode ser justificada pelas contradições próprias do estudo da língua, segundo o qual estão imbricadas, por um lado, as invariantes do sistema e, por outro, as enunciações discursivas e os contextos culturais. As primeiras, corporificadas nas dicotomias saussureanas, pautam-se pela centralidade do signo; as segundas, renovadas pelos estudos de Jakobson (2008), transformam-se em processo gerador da relação dinâmica da semiose. Como vimos, para a delimitação do objeto de estudo da semiótica, convergiram pesquisas de diferentes fontes teóricas, um coro de vozes em torno do qual se construiu um consenso: a semiótica recebe, enfim, o estatuto de ciência dos signos. Essa definição se inscreve em diversas correntes epistemológicas – da tradição lógica e gramatical, de origem aristotélica, passando pelas vertentes europeias, que provêm da linguística, até os seguidores da escola de Tartu. Um leque tão abrangente de teorias só pode desaguar numa ciência de natureza universal, apoiada sobre uma ontologia das substâncias, subordinando o signo ao conceito. Leve-se em conta, ainda, o fato de que as práticas semióticas não atuam com signos isolados, mas com formações completas, em operações relacionais, cujo resultado não poderia ser outro senão a soma de unidades significativas. Na opinião de Greimas (1975, p. 49), “o mundo visível, em vez de se projetar diante de nós como uma tela homogênea de formas, aparece como se fosse constituído de várias camadas justapostas ou mesmo superpostas”. Reside aí a tendência da escola francesa, a partir de Greimas, que vem agregar à doutrina de signos mais um componente, passando a ser entendida também como ciência da significação. E enquanto percurso, a significação vem gerar o universo de estruturas semionarrativas e discursivas, preconizado pelo teórico francês como percurso gerador da significação. A rede de correlações que liga a semiótica ao mundo natural não está sujeita à natureza dos objetos de investigação, mas ao método de abordagem que 33 transforma os objetos em referências significantes para o homem. Basta lembrar que o mundo extralingüístico não representa matriz absoluta, ao contrário, trata-se de lugar da manifestação do sensível, onde as ciências do homem afirmam a sua autonomia. Vejamos o que diz Rastier (2009, p.109) sobre o assunto: A linguagem é um meio e não uma simples faculdade: é por isso que, na filogênese, por mais longe que possamos ir, ela não aparece após o homem [...] Nem interna nem externa, a língua é o lugar do acoplamento entre o indivíduo e seu meio ambiente, porque os significantes são externos (ainda que reconstruídos na percepção) e os significados internos (ainda que construídos a partir de uma doxa externa). Como a linguagem faz parte do meio em que agimos, é em práticas diversificadas, das quais os discursos e os gêneros são testemunhos, que nos ligamos ao nosso meio ambiente. O reconhecimento de que o sujeito se constrói dentro dos sistemas de significado e de representações culturais os quais, por sua vez, estão marcados por relação de poder, nos permitiu desconstruir as categorias tradicionais do indivíduo, no caso em foco, a identidade feminina no Cangaço. Isso porque nos amparamos nos mecanismos constitutivos dos diferentes sujeitos, no campo social. Em face desses condicionantes, torna-se evidente que a episteme da significação passa a parâmetro especial, para se definir o objeto de estudo. Tratando-se do foco dessa pesquisa – Mulheres do Cangaço – a direção metodológica que queremos imprimir serve de ilustração para as ideias de “formações completas”, e “operações relacionais”, discutidas no parágrafo anterior. Não só porque, numa visão geral, constituem sujeitos semióticos em busca de uma função histórica, mas também porque, especificamente, sofrem os efeitos de uma dualidade: a tênue fronteira que separa o indivíduo do grupo. 2.3 Níveis de Estudo No momento em que falamos em percurso gerativo, significa dizer que alçamos ao nível da manifestação, esse patamar onde estão reunidos os dois planos: o conteúdo linguístico e o plano da expressão. É certo que essa separação constitui um simulacro metodológico, já que não existe conteúdo sem expressão e vice-versa. Ainda que se corra o risco da redundância, convém lembrar que o mesmo conteúdo pode se manifestar através de planos de expressão que apresentam diferentes naturezas: verbal, gestual, pictórica etc. As alterações ficarão a cargo dos efeitos estilísticos da expressão e das coerções do material. Na medida em que o plano de expressão não apenas veicula um conteúdo, mas recriao, novos sentidos são agregados pela expressão ao conteúdo. Fala-se em instabilidade de 34 correspondência entre os dois códigos porque o sentido é definido na relação. Tudo depende da intenção, relação estabelecida entre o trajeto a ser percorrido e seu ponto de chegada. São os efeitos estilísticos da expressão que dão ao texto sua beleza. Sobretudo quando se trata do texto poético, não pode o analista cingir-se ao plano do conteúdo, caso contrário, deixará de perceber a especificidade dessa tipologia e não apreenderá a “totalidade” do sentido nele inscrito (FIORIN, 2002, p. 35). A propósito dessa versatilidade nos planos de expressão, aproveitamos para inserir uma ilustração acerca do Cangaço. Para legislar sobre essa temática, constata-se que, quando o conteúdo é materializado em forma de historiografia, privilegia-se uma expressão mais formal, perpassada pela racionalidade própria do gênero. Se, entretanto, recorre-se à literatura popular, identifica-se um elenco de expressões marcado por traços messiânicos e mitológicos, bem ao gosto do discurso etnoliterário, com prevalência da figurativização. Trata-se de um perfil cultural em que as produções estão condicionadas àquele contexto histórico consagrado pela memória social, lá onde os fantasmas do medievo teimam em se perpetuar. O modelo semiótico não pode vacilar diante das potencialidades, emergentes nas reflexões acerca da construção do sentido. As balizas conceituais, prescritas nos princípios do percurso gerativo da significação, mostram ainda insuficiência descritiva diante das demandas provenientes da dinamização do modelo. As contribuições da sintaxe modal e narrativa esbarraram na incompletude da organização atuacional das personagens da narrativa. Não foi possível demarcar, com precisão, as fronteiras que separam os territórios dos atuantes e dos atores. Os primeiros decorrem de uma sintaxe narrativa, enquanto os segundos são identificados nos discursos particulares em que se encontram manifestados. O próprio Greimas (1977, p.179) reconhece essa instabilidade, quando afirma: “Percebeu-se, por exemplo, que a relação entre ator e atuante, longe de ser uma simples relação de inclusão de uma ocorrência numa classe, era dupla”. Com isso, o teórico quis mostrar que um atuante pode ser manifestado no discurso por vários atores, assim também o inverso é igualmente possível. Certamente, iremos constatar essas oscilações na aplicação das categorias analíticas, de origem greimasiana, uma análise semiótica, que pressupõe três níveis de especulação, a saber: estrutura fundamental (nível profundo) – é neste que surge a significação como uma oposição semântica mínima; estrutura narrativa (nível intermediário) – organiza-se a narrativa do ponto de vista de um sujeito; e estrutura discursiva (nível superficial) – a 35 narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação.“Explica-se cada uma por uma gramática autônoma, que apresenta seus participantes e as regras e leis que os regem” (BATISTA, 2009). A primeira é o ponto de partida do percurso gerador de sentido e diz respeito ao conteúdo semântico mínimo para se chegar à formação do discurso; no segundo patamar, entram em circulação as ações dos sujeitos em busca dos valores – um sujeito que realiza um percurso em busca de seu Objeto de Valor; a última é a fase que mais se aproxima da manifestação textual e corresponde às estruturas mais específicas, ao mesmo tempo, mais complexas e enriquecidas semanticamente. São três etapas que vão contemplar o caminho que a significação percorre do conteúdo até chegar à expressão – percurso entendido como produção de informação, ao mesmo tempo, recortes culturais de produção, transformação e reiteração de ideologia, pois só a totalidade do discurso (texto) pode dar conta da função semiótica. Lembramos aqui a referência a texto concebido na dualidade que o define, ou seja, objeto de significação e objeto de comunicação. Só dessa forma podemos analisar a totalidade, na qual estão imbricadas as condições referentes à sua estruturação interna, e também às relações entre essa estrutura e seu entorno. Se o texto é historicamente construído, sua análise não pode prescindir das determinações contextuais, ou seja, dos mecanismos enunciativos de produção e de recepção. 2.3.1 Nível Semiótico Profundo No nível das estruturas fundamentais, é preciso determinar a oposição ou as oposições semânticas com base nas quais se constrói o sentido e diz respeito ao conteúdo semântico mínimo, para se chegar à formação do discurso. Quando se diz que um texto fala de amor, de morte ou de liberdade, está-se examinando a sua organização fundamental. A partir dessa lógica centrada nos conflitos, é possível elaborar o octógono semiótico que representa a tensão dialética entre o ser e o parecer. A esse quadro de relações devemos mencionar a dêixis positiva (superior) e a dêixis negativa (inferior). Trata-se de um jogo axiológico que põe em evidência as condições positivas (eufóricas) e as negativas (disfóricas). Se aplicadas ao cangaço, as primeiras representariam as narrativas orais que permeiam o imaginário popular; as segundas se conformariam com os registros da memória oficial. É arriscado, entretanto, qualquer valoração caso o texto não se encontre dentro do seu contexto de situação. O octógono, embora padronizado, só pode ter indicadores de condição eufórica ou disfórica, quando representativo de situação concreta. 36 Figura 1 –Tensão Dialética entre ser e parecer1 As categorias semânticas, que estão na base da construção de um texto, mantêm entre si uma relação de contrariedade. São contrários os termos que estão em relação de pressuposição recíproca. O termo “cangaceiro”, por exemplo, a depender do contexto, pode suscitar o conflito – oprimido vs. opressor. Por outro lado, pode significar herói versus bandido. Os valores eufóricos ou disfóricos, no caso, estão inscritos no texto, mas podem variar de uma enunciação para outra, conforme seja a formação ideológica do enunciador. Sobre a matéria, Bezerra (2011, p. 26) discorre muito bem: Categorizar significa estabelecer valores positivos ou negativos, podendo definir algo ou alguém como “normal” ou “desviante”. Assim, o discurso de certos fundamentalistas, que pregam a excelência do martírio, valorizará positivamente a morte e negativamente a vida, ao passo que o discurso sobre a felicidade, como algo do aqui e do agora, possivelmente elegerá a vida como valor positivo e a morte, como negativo (FIORIN, 2002, p. 20). Convém distinguir a diferença entre a relação de contrariedade e de contraditoriedade. Sobre a primeira, já demos exemplos em parágrafo anterior, quando mostramos um par de palavras de marcas semânticas diferentes. Quanto a termos contraditórios, identifica-se presença ou ausência de um determinado traço: ao termo “bandido”, aplicando-se a ideia de negação, teremos o contraditório “não-bandido”. Por se tratar da etapa mais abstrata do funcionamento e da interpretação do discurso, cabe ao observador, no nível fundamental, chegar a determinadas conclusões, a partir do processo de inferenciação. Se nos reportamos aos cordéis sobre o Cangaço, é nessa etapa que 1 Octógono Semiótico presente no trabalho de Batista (2009, p. 2). 37 definimos as oposições de valores positivos ou negativos, dicotomia condicionada pelos valores ideológicos. 2.3.2 Estruturas Narrativas A segunda etapa do percurso, denominada estruturas narrativas, abriga em seu processo as ações e os actantes: são os sujeitos do fazer em busca de seu objeto de valor. Os elementos das oposições semânticas fundamentais transformam-se em valores e assim as narrativas simulam a história dos contratos e conflitos que marcam os relacionamentos humanos. Para mostrar a verossimilhança, existem dois elementos que atuam no percurso: o primeiro em favor da obtenção do objeto – o coadjuvante; o segundo é aquele que dificulta o desempenho do sujeito – o oponente. “Esse nível intenta reconstituir o fazer do homem que, ao buscar os valores para a sua existência sociocultural, transforma a história e o mundo”. (ARRAIS, 2011, f. 32). As estruturas narrativas contemplam duas dimensões, sendo a primeira denominada SINTAXE NARRATIVA – a relação do sujeito com o seu objeto é feita através do chamado predicado. Este transita entre duas categorias: a do SER (onde o sujeito apresenta a competência necessária para obtenção do seu objeto de valor); a do FAZER (onde o sujeito atua em busca do seu valor). Essa estrutura dual explica, por um lado, a concepçãode narrativa como mudança de estados, operada pelo fazer transformador do sujeito. Por outro lado, trata-se de narrativa como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário de que decorrem a comunicação e os conflitos entre os sujeitos. Fiorin (2002, p. 23) discorre sobre a sintaxe narrativa, para mostrar que, na realização desse percurso, há enunciados organizados hierarquicamente, formando uma sequência canônica estruturada em quatro fases, a saber: 1) a manipulação, em que o sujeito se vale de mecanismos para pressionar o outro a querer e/ou dever fazer alguma coisa; 2) a competência diz respeito ao potencial de que dispõe o sujeito – dotado de um saber ou poder fazer – para realizar as transformações; 3) a performance é a fase em que se dá a mudança de um estado a outro, quase sempre um estado de disjunção para um estado de conjunção; 4) finalmente, a sanção – o momento em que se pode constatar que a performance se realizou, ou seja, o reconhecimento do sujeito que operou a transformação: “é nesse ponto da narrativa, por exemplo, que os falsos heróis são desmascarados e os verdadeiros são reconhecidos” (FIORIN, 2002, p. 24). 38 Essa sequência canônica, em que os fatos se organizam hierarquicamente, não corresponde a uma sucessão temporal, mas a pressuposições lógicas. Por exemplo: nas narrativas dos cordéis, a manipulação se manifesta através da ativação de modelos que estão no imaginário. Pressupõe-se, então, que o resultado dessa provocação só pode ser a competência do sujeito para transformar um estado em outro. Após essa mudança, logicamente, vem a sanção, que é a fase em que se distribuem prêmios e castigos. No caso do cangaço, esses rótulos valorativos vão depender do ponto de vista ideológico da narrativa. Passemos agora para a outra dimensão das estruturas narrativas, tão importante quanto a anterior – a SEMÂNTICA NARRATIVA. É neste terreno que os valores são atualizados à medida que a relação entre o sujeito e seu objeto de valor sofre qualificação modal. Significa dizer que os elementos semânticos são selecionados e relacionados com os sujeitos, com a condição de estarem inscritos, enquanto valores, no interior dos enunciados de estado. Ao analisar esse nível da narrativa, torna-se importante lembrar que há objetos, cuja aquisição é necessária para a realização da performance – são os modais, aqueles cuja aquisição é necessária para a conquista da performance. Também há os objetos de valor com os quais se entra em conjunção ou disjunção, no processo de busca da performance principal. A definição desses valores só pode ser avaliada dentro de situações concretas, de acordo com a relação conjuntiva ou disjuntiva do sujeito com o seu objeto. Em relação aos determinantes do SER e do FAZER, alinham-se quatro modalidades previstas pela Semiótica: o querer, o dever, o poder e o saber. Quando esses componentes modais encontram-se no plano da competência, ou seja, quando instauram o sujeito, diz-se que são virtualizantes = dever-fazer e querer-fazer; no momento em que qualificam o sujeito para a ação, passam a atualizantes = saber-fazer e poder-fazer. A não ser na memória social, onde o povo se reconcilia com os seus fantasmas, arriscamos dizer que, nas narrativas orais sobre as mulheres do cangaço, a sanção vai estar sempre na ordem dos virtualizantes, sendo pouco provável a conquista dos atualizantes. Significa dizer que as mulheres do cangaço vão estar sempre em disjunção com o seu objeto de valor, se este for a independência, a liberdade para agir e escolher seus próprios caminhos. Essa diferença no modo de julgar as mulheres pode ser explicada pelas mesmas razões que determinam a avaliação do segmento masculino. Por um lado, as qualificações modais sustentam as denominações de paixões, como a hostilidade, o repúdio, a ofensa; no sentido inverso, os arranjos modais saltam para um estado de compreensão e solidariedade. O sujeito interpretante assume uma dessas posições de acordo com o lugar que ocupa e a formação ideológica. 39 Nessa perspectiva, os percursos das paixões complexas, no caso dessas mulheres, são definidos com base em qualificações modais dos sujeitos interpretantes. Daí a possibilidade do sujeito ocupar diferentes posições passionais, conforme o lugar da enunciação, podendo saltar de estado de tensão e de disforia para estado de relaxamento e de euforia e vice-versa. 2.3.3 Estruturas Discursivas Finalmente, vamos abordar o terceiro nível do percurso – DISCURSIVIZAÇÃO – este último é a fase que mais se aproxima da manifestação textual e corresponde às estruturas mais específicas, ao mesmo tempo, mais complexas, e enriquecidas semanticamente. Nesse patamar, as estruturas narrativas convertem-se em discursivas, passando para a instância da enunciação, lugar onde se integram os componentes que vão materializar o plano da manifestação. Exatamente nesse território é que se configura um contexto em que o sujeito instaura o discurso e se converte em sujeito histórico, social e ideológico. É aí que a enunciação mais se revela e pode ser reconstruída a partir das marcas que espalha pelo discurso. Para Diana Barros, “o sujeito da enunciação faz uma série de escolhas, de pessoa, de tempo, de espaço e de figuras, dessa forma, transfere para a narrativa as marcas discursivas” (BARROS, 2010, p. 53). Nesse patamar, devemos rever os postulados da teoria da Enunciação, segundo os quais a intersubjetividade é condição sinequa non da subjetividade. Isso quer dizer que o fundamento linguístico da subjetividade reside na atualização da linguagem, pois é nessa emergência que se determina o estatuto linguístico da pessoa. Na sua obra “Astúcias da Enunciação”, Fiorin (2010, p.41) fala com lucidez sobre essa interação: O eu existe por oposição ao tu e é a condição do diálogo que é constitutiva da pessoa, porque ela se constrói na reversibilidade dos papéis EU/TU. Para pontuar as relações intersubjetivas, devemos começar por esse estágio em que o locutor se coloca como sujeito,ao mesmo tempo em que estabelece uma outra pessoa. Esse é o momento essencial para que a linguagem se torne discurso e este, por sua vez, constitua-se lugar de instauração das relações de espaço, de tempo e de pessoa. No momento em que o eu se enuncia, assumindo o papel actancial, dá-se a transformação da linguagem em discurso. À categoria de pessoa atribui-se a denominação de actante da enunciação, enquanto a categoria de não-pessoa é denominada de actante do enunciado. 40 Ao se remeter como eu, em seu discurso, o actante da enunciação estabelece, ao mesmo tempo, uma outra pessoa, aquela que me diz tu. Eis os fundamentos da subjetividade, reunidos em torno do sujeito, reforçados por um discurso que determina ainda as instâncias do “onde” e do “quando”. Os mecanismos de instauração de espaço, tempo e pessoa são dois: debreagem e embreagem. Cabe ao primeiro incorporar o discurso da enunciação, ao liberar as marcas de subjetividade, através de elementos ligados à sua estrutura de base. Quanto à embreagem, fala-se em suspensão das oposições de pessoa, tempo e espaço, obtendo-se assim um efeito de identificação entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação. Seria válido falar em debreagem ao se tratar do gênero cordel, dado o predomínio da instância da figurativização, com o apelo ao discurso etnoliterário. Ao projetar, no momento da discursivização, elementos desprendidos da enunciação, o cordelista assume o papel actancial de pessoa, ao mesmo tempo em que cria um efeito de sentido de subjetividade. A função do interpretante exige uma posição de distanciamento das categorias de pessoa, tempo e espaço, sendo essa uma competência discursiva em sentido restrito. Ao mesmo tempo, possibilita ao sujeito da enunciação o exercício da figurativização, através do qual ele constrói o mundo e a si próprio, configurando-se aí uma competência discursiva em sentido lato. Focalizando, especificamente, o tópico “Semântica discursiva”, devemos reiterar a função que descreve e explica a conversão dos percursos narrativos em percursos temáticos e seu posterior revestimento figurativo. São duas categorias que contemplam, ao mesmo tempo, a necessidade de unir o plano do conteúdo ao da expressão, bem como a de produzir mecanismos capazes de transformar vozes dispersas em papéis sociais. O percurso gerativo do sentido, ao realizar os diferentes programas, atinge o patamar da discursivização, instância em que os actantes recebem um investimento semântico, para se tornarem atores. Essa busca de concretização do sentido vai agregando novos conceitos os quais vão classificar as manifestações, desdobrando-as em duas formas básicas de discurso: figurativização (remete a elementos concretos, existentes no mundo natural); tematização (remete a elementos abstratos, que explicam aspectos da condição humana). Conforme vaticínio da epígrafe desta tese, curiosamente, as respostas antecedem o tempo das perguntas. Entendemos ser uma relação semelhante à que separa os dois polos da Semântica Discursiva: Figurativização & Tematização. A primeira está no mundo da concretude, diante dos nossos olhos; a segunda, na dimensão conceitual, no espaço das abstrações, por isso sujeita ao processo da inferenciação. 41 É preciso tempo para que surjam as dúvidas. Estas só aparecem quando começamos a aprender; e este tempo assume sua função, quando o “ver” da operação perceptiva desperta o “olhar” da errância humana. Eis que chega o tempo das perguntas – o tempo em que o VER fisiológico é substituído pelo OLHAR investigativo, que supera a austeridade racional, para assumir a ordem da afetividade, na incompletude da condição humana. A instância de figurativização do discurso assume função representativa e pode ser entendida como ancoragem histórica (conjunto de índices espaço-temporais) responsável pela produção de efeito de sentido da realidade. Quanto ao percurso temático, de natureza puramente conceitual, reveste-se de função interpretativa, à medida que organiza, categoriza e ordena o mundo. São duas categorias distintas, porém não excludentes, não constituem uma dicotomia, antes se configuram como um continuum. A classificação decorre da dominância de elementos abstratos ou concretos e não de sua exclusividade. Os textos figurativos produzem um efeito de realidade e, por isso, representam o mundo, criam uma imagem do mundo, com seus seres, seus acontecimentos etc. Por outro lado, os textos temáticos explicam as coisas do mundo, ordenam-nas, classificam-nas, interpretam-nas, estabelecem relações e dependências entre elas, fazem comentário sobre suas propriedades (PLATÃO ; FIORIN, 1996, p.89). Enfim, nesse patamar da Semântica Discursiva, atravessamos funções e interpretações que vagueiam entre a natureza conceptual, no caso das qualidades e defeitos, e as figuras de superfície, que correspondem ao mundo natural construído. Do jogo entre figura/tema resulta a possibilidade de construção de um simulacro de realidade, como ocorre com alguns discursos, a exemplo do publicitário e do político, em que se recorre a estratégias figurativas de tal poder persuasivo, que são capazes de transformar “povo” em mero “espectador”. Por serem categorias com relação tão imbricada, não podem prescindir de análise mais cuidadosa quando da delimitação do percurso temático figurativo. Se um leitor não consegue ir além do nível figurativo, significa que não é capaz de ler com profundidade, ou não tem conhecimentos prévios para proceder a inferências, a fim de recuperar significados abstratos, subjacentes aos termos concretos. Mas, para se descobrir os temas, as figuras têm que estar organizadas num percurso figurativo, pois uma figura isolada não tem significado em si mesma. Como no texto tudo é relação, as figuras se organizam em rede. O discurso desenvolve-se num contexto sociocultural definido (relação espacial), desloca-se no eixo do tempo (relação temporal) e apresenta seus atores, que são representantes discursivos dos actantes concretizando-se na narrativa, através dos nomes próprios e papéis temáticos (BATISTA, 2009). Todos esses componentes representam uma 42 espécie de bússola, para orientar a operação interpretativa, sabendo-se que, a partir dessas marcas, não só o centro, mas também as margens do texto se revelam. Ao atingir essa etapa do percurso, o sujeito destinador vai ao encontro do destinatário, e este assume o papel de interpretante recuperando, através das escolhas do Dor, as idéias que estão subjacentes. Sem essa habilidade para fazer inferências, o leitor deixará de lado muitos aspectos da significação do discurso ou estará até mesmo impossibilitado de construí-la. A completa interpretação exige, portanto, que se relacione o texto com as condições sóciohistóricas de sua produção e de sua recepção. Figuras e temas são, portanto, dois termos categóricos que se completam na construção de programas narrativos e se confundem no processo da enunciação – seja revestindo esquemas narrativos abstratos com temas, seja valendo-se de elementos concretos para dar forma a enunciados ideológicos. Atuando dentro dos limites discursivos, esses dois procedimentos lingüístico-metodológicos acumulam valores imprescindíveis à construção do sentido, consequentemente, à construção do mundo pela linguagem. 2.4 Percurso da construção da cultura A trajetória da humanidade, sob a égide das condições espaciotemporais, foi escrita e reescrita durante séculos, por dezenas de gerações, todas ciosas por reter na memória os elementos mais típicos e marcantes dos acontecimentos que viriam a se tornar as raízes desse construto de pulverização do saber coletivo. A tradição oral foi delineando os diferentes ciclos da cultura, em movimentos espirais, porque sujeitos a um processo dinâmico de paralelismo ou convergência, de acordo com os dois fatores determinantes do discurso social, nas suas duas formas significantes: criado ou recebido. São dois modelos suficientemente aptos para explicar as transformações por que passa o corpo doutrinário enquanto herança dos antepassados. Esse primitivismo cultural, divulgado pela sabedoria sagrada, contempla os relatos sobre as origens, as histórias de deuses, segredos de caça e pesca, ritual das festas, enfim, tudo que supõe a segurança da perenidade histórica de uma coletividade. Dentro dos limites do criado, os fenômenos culturais se mantêm legitimados, enriquecidos que são pelos portadores e lugares privilegiados. Isso não garante à palavra fundadora o privilégio da estabilidade permanente, uma vez que a criação estará sempre sujeita ao eterno retorno. Quando falamos em movimentos espirais, referimo-nos à mobilidade como característica constitutiva do estatuto cultural, por si só, dotado de uma força renovadora que 43 o impele para trás e para a frente, numa busca constante de reatualização. Os teóricos se referem a esse movimento usando o título “historicidade atualizada”, para lembrar que, nesse processo de releitura, há uma essência que permanece, mas há aspectos que conferem à voz do poeta tonalidades adequadas a cada situação contextual. São essas adaptações que impedem a indiferença do contato, aguçando a sensibilidade sempre que tenta aproximar a poesia do seu interpretante. Por outro lado, sabemos que não existe Civilização original e isenta de interdependência, por isso esse universo estará sujeito às mudanças impostas pelos que recebem modelos e imagens de terra e gente alheias, em cujo celeiro farão surgir outras provas materiais, em áreas insuspeitadas e geograficamente separadas. Esses insumos, porém, antes de significar invasões, devem ser tomados como estímulos. Ora, tratando-se de cultura, não se pode pensar em sementes unitárias, mas em replantio de galhos, entendendo-se a imaginação humana e a prestigiosa ascendência da Imitação como processo inevitável e normal. É importante insistir na tese de que as categorias acima explicitadas, o “criado” e o “recebido”, não devem ser entendidas como uma tensão dicotômica, ao contrário, constituem uma dualidade em relação de continuum, já que representam um movimento salutar segundo o qual toma-se o passado para equacioná-lo em ressignificações, não para mumificá-lo em contextos excludentes. A Razão, de acordo com os princípios do Iluminismo, foi proclamada como “Razão pura” o que não deve ser transportado para o campo da Cultura, pois esta não é uma totalidade, como pretende o conservadorismo grupal. Sendo produto da sua história, está a Cultura, definitivamente, condenada ao pluralismo, afastando-se a idéia de que a aquisição mutila a unidade. Podemos ilustrar essa concepção insistindo na tese de que os aspectos culturais só podem ser avaliados, com legitimidade, quando trazemos para a discussão os fatos históricos contemporâneos ao contexto, caso contrário, as narrativas correrão o risco de intervenções e montagens que podem transformar a trama em simulacro da realidade. O Cangaço pode servir de referência emblemática dessa manipulação, como podemos constatar nas escolhas feitas pela mídia, quando se punha a serviço de determinados interesses. Os adjetivos mais recorrentes eram “estúpidos”, “brutais”, “feras”, “facínoras”, entre outros, todos carregados de forte tendência apreciativa, para que fossem associados a um modelo de organização absolutamente abominável. Existem, por outro lado, inúmeros trabalhos de releitura do Cangaço que primam pela contextualização, enfatizando claramente os fatores histórico-políticos, determinantes da 44 explosão desse movimento social nordestino. Nessas pesquisas prevalece um discurso que se contrapõe ao ideário oficial de “insulto à República”, título pejorativo, porém recorrente nas manchetes de jornais da época. Constatamos, nessas revisitas, a tendência para o diálogo com textos de épocas diferentes, um cotejo saudável e capaz de provocar olhares positivos sobre os fatos, trazendo novos elementos, para tornar consistentes os argumentos e mais legítimas as teses em questão. Muitos desses trabalhos resgatam, ainda que de forma mítica, a aura do heroísmo, criada no imaginário: “aquele que, por suas qualidades, ultrapassa os limites do sertanejo comum” (VIEIRA, 2012, p. 56). Essa dimensão mítica, tantas vezes agregada aos fatos históricos, é inevitável, já que o imaginário poético não aplica a lógica convencional e sim uma outra que situa os opostos no mesmo plano: Lampião, o Aquiles sertanejo, enfrenta, do outro lado, os deuses do Olimpo – simbolizados pelos coronéis. Em virtude da tensão gerada pelo confronto de forças, pudemos entender os labirintos dessa epopéia, sobretudo porque o tema em questão permeia os limites entre cultura e história. Essa multiplicidade de perspectivas e visões conflitantes, em vez de comprometer a natureza do fenômeno, antes, lhe confere mais consistência, por considerar as relações de causalidade. Eis, pois, um procedimento metodológico construtivo, já que a aprendizagem, enquanto resultado de uma orientação unilateral, acaba por introjetar uma visão distorcida da história. Assim como a “verdade”, em todo o percurso da saga humana, quando avaliada por um único ângulo, resulta sempre em concepções reducionistas, contemplando apenas uma evidência enunciativa. Para evitar esse maniqueísmo, a construção da cultura, como já dito, deverá atender a uma diversidade de pontos de vista, por uma questão de coerência, tentando conciliar a historiografia com o material retido na memória popular. O contraponto entre experiências conflitantes reduz, portanto, o risco de análises preconceituosas, que separam em departamentos estanques tendências culturais diferentes, ou seja, levantando muros, para que não seja possível a convivência do novo com o velho, do popular com o erudito, enfim, do criado com o recebido. A prevalência da palavra dogmática priva-nos de experiências pluriculturais: quanto mais recorremos ao esforço intersubjetivo, mais nos aproximamos de um universo dialético, onde as representações sociais conduzam à ressignificação dos fatos, consequentemente, à reconstrução e realinhamento dos saberes culturais. Isso quer dizer que, assim como o rio ganha força na queda, a discussão se aprofunda e agrega novos valores a partir das rupturas. 45 Só um coro de vozes dissonantes é capaz de criar novos modelos, deslocando a temática do lugar comum, para atingir uma dimensão mais expressiva. Nos itens anteriores, já exploramos conceitos os quais, direta ou indiretamente, apontam para a questão da identidade, sobretudo no tópico que se referiu às manifestações populares, com seus indicadores culturais responsáveis pelo processo de afirmação identitária. Impossível falar em cultura sem invocar ícones típicos da construção de significantes históricos, que vão compor a memória coletiva. Assim como falar em percurso da cultura é reconstruir narrativas com personagens territorializadas, ou seja, é recorrer ao topos onde reencontramos a função simbólica da terra enquanto elemento de identificação, cujos valores preservados na memória impedem a dissolução do indivíduo. É falar sobre o sujeito, em torno do qual circundam elementos enunciativos que só existem em situação relacional, no convívio com o Outro. Ao mesmo tempo, é falar da linguagem que, segundo Fiorin (2010, p. 11) representa “a passagem do caos à ordem”. Há quem diga que a linguagem é o lugar da instabilidade. Seja no encontro ou no desencontro, esse sujeito só sobrevive na relação social. Sabemos que a construção da identidade não é um processo autônomo, ao contrário, interage com as estruturas sociais, históricas e culturais que delineiam a identidade coletiva. Não se pode, por exemplo, discorrer sobre o fenômeno do Cangaço sem situá-lo em um momento histórico-cultural do Brasil, em meados do século XIX, para expor um quadro de representações sociais de que se alimenta a memória coletiva. São imagens e símbolos decorrentes muito mais das construções narrativas fabulosas do que de relatos históricos episódicos, portanto, com maior dependência da memória social do que da memória oficial. O desdobramento desse processo, como se sabe, resultou nas referidas simulações transformadas em rótulos avaliativos, reforçados pela linguagem e alimentados por uma tradição messiânica. Roberto Pedrosa escreve um capítulo sobre o fanatismo religioso no sertão – “O homem que reza” – inclusive, apontando no cancioneiro popular a recorrência ao tema. A religião, dogmática ou não, servia de forte suporte social e moral, mas, por vezes, era praticada com tamanho conteúdo de fanatismo e magia, que chegava a provocar enormes desequilíbrios naquela sociedade permanentemente fragilizada pelo poder dos coronéis e pelas longas estiagens (MONTEIRO, 2002, p. 44). Uma incursão nesse universo do imaginário social nos possibilitará uma reinterpretação e um confronto entre o discurso oficial e a memória popular, e nessa relação 46 do passado com o presente será possível descobrir as veredas que conduzem à formação da identidade de um sujeito ou de um grupo social. Nesse percurso de reconstrução do real, sobretudo, devem ser levadas em conta as demandas sociais e históricas, as quais constituem fatores determinantes nesse processo de delimitação de fronteiras e definição de subjetividades. Na sociedade moderna, sofremos o risco da alienação, quando se tenta substituir o particular pelo padrão. Esse mecanismo da globalização constitui ameaça constante, ainda mais quando se sabe que a memória social se inscreve em práticas concretas e intersubjetivas, fatalmente sujeitas à intencionalidade dos atores sociais. Essas reflexões nos convencem, portanto, de que não há nada mais coletivo do que a identidade pessoal, pois o sentimento de “pertença” em relação a uma comunidade está ligado, inevitavelmente, ao processo de personalização dos valores que a regem. Ao interagir com esse locus, caminha-se para a realização de um real cruzamento cultural, muitas vezes, sem o risco de reduzir o outro ao mesmo. Mas, lamentavelmente, pode ocorrer o contrário, com a estigmatização do “nativo”, o qual pode ser condenado ao isolamento ou à folclorização. Se é verdade que a cultura se ocupa da sujeição subjetiva, acentua-se a vulnerabilidade do homem na luta para manter a autonomia de esferas, como a da música, da literatura, das artes plásticas etc. Diante de um cenário de atividades isoladas, padronizadas, o que se espera é o modo de semiotização dominante, com indivíduos normalizados, sujeitos a sistemas de submissão dissimulados. Mas ainda há quem aposte na singularização existencial, que coincida com um desejo, com a instauração de dispositivos capazes de mudar os tipos de sociedade. Acreditamos ser possível desenvolver modos de subjetivação singulares, até porque vem crescendo o debate social em torno da construção da identidade. Alguns autores apontam caminhos para que este desafio seja vencido, entre os quais, citamos duas experiências já discutidas anteriormente: (1) a tensão dialética entre o popular e o erudito – segundo Burke, a descoberta do “povo” representa a própria territorialização, assim como a direção contrária representaria o isolamento do extrato popular, resultando na alienação e consequente desfiguração; (2) o jogo entre o pessoal e o coletivo significa a inserção do componente particular em um contexto mais geral – uma relação bastante complexa porque vai mexer, entre outras referências, com os segredos do inconsciente, que estão atrelados à construção do imaginário. 47 Daí não se pensar em identidade apenas no sentido de pessoa, unidade, mas com a conotação de função histórica. Nessa perspectiva, volta-se à temática da constituição de uma memória geradora de identidades, que permite a emergência de paradigmas teóricos e criativos. Entre tantos, devemos lembrar a força do título “terra”, unidade semântica que suscita debates acerca de nossa formação cultural. Assim não se pode analisar a saga das mulheres no cangaço fora dos contextos e injunções da cultura regional. Tomando-se Cultura como construção histórica, só mesmo uma operação interdisciplinar para dar conta de todos os conteúdos que estão no entorno da concepção de Identidade. Vamos buscar nas lições de sociologia e filosofia de Stuart Hall três definições importantes para um estudo mais aprofundado. A primeira diz respeito ao Sujeito do Iluminismo, teorema que se apóia nas bases da racionalidade, portanto em defesa de um indivíduo totalmente centrado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação. Trata-se de uma concepção individualista, cujo núcleo interior constitui-se em matéria contínua, idêntica a ele, ao longo da existência, como se divinamente estabelecidas, portanto não vulnerável a mudanças fundamentais. Muitos movimentos importantes no pensamento e na cultura ocidentais contribuíram para a emergência dessa concepção de entidade singular, distintiva e única, porém o peso maior recai sobre as revoluções científicas que “conferiram ao Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza” (HALL, 2003, p. 26). O ideário iluminista, centrado na imagem do homem científico, libertou-o dos dogmas, ao mesmo tempo, pôs diante dele a totalidade da história humana, para ser compreendida e dominada. Vamos focar agora a segunda categoria da classificação de Hall – Sujeito Sociológico – um título diretamente associado à concepção “interativa”, segundo a qual a interação é formada num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. A propalada relação que transita do mundo pessoal para o mundo coletivo reflete a crescente complexidade do mundo moderno, mostrando que esse “núcleo interior” não é autossuficiente e precisa mediar com os outros sujeitos crenças, sentidos e símbolos que constituem o universo cultural. Esse tal Sujeito Sociológico já nasce inscrito na lógica discursiva dos que o antecedem, portando já nasce contaminado, pior, condenado a sair de si mesmo para se projetar em identidades culturais, das quais deve internalizar significados e valores, tornandoos parte do ser-individual, como se a identidade costurasse o sujeito à estrutura exterior. Essa simbiose entre o “eu” e a sociedade pode ser explicada reconhecendo-se, por um lado, a 48 legitimidade de um “eu real” e, por outro, a vulnerabilidade desse sujeito ao ser modificado e transformado, para servir a novas práticas, nessa partilha contínua com outras identidades. Ante o quadro de condicionantes a que se submete o Sujeito Sociológico, já não se fala mais em pessoas de qualidade: o que se considera é a qualidade da cultura. Assim o sujeito é definido no interior dessas grandes estruturas e formações da sociedade. Pretendemos realçar aqui o papel da memória no estabelecimento de consensos e conflitos, no âmbito do imaginário social, e como a produção da memória intervém na construção da identidade social. A personagem Macabea, de Lispector (1997), pode bem ilustrar essa situação: o “interior”, construído de fora para dentro, mediante uma luta entre o mundo “pessoal” e o “público”. A dor fininha que perseguia aquela moça do interior simbolizava o conflito cultural, num ambiente de valores tão adversos, se comparados a sua timidez afásica. Macabea representa o protótipo da desterritorialização, um paradigma que supõe a perda de si mesmo, quando o indivíduo é posto fora do seu verdadeiro habitat. Finalmente, vamos conhecer a Identidade do Sujeito Pós-moderno, um novo paradigma que vai mostrar um sujeito fracionado, imerso num processo provisório e problemático. Na incompletude desse ser, vamos flagrar identidades às vezes contraditórias ou não-resolvidas, empurrando em diferentes direções de tal forma que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Nesse contexto, a identidade torna-se, segundo Hall (2003, p.13), uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Esse processo sem-fim de rupturas e fragmentações, para o qual muitos teóricos formularam o conceito de “deslocamento”, gerou uma realidade que exibe, no plano de extensão, formas de interconexão social que cobrem o globo e, no plano de intensidade, as constantes descentralizações, provocadas por forças fora de si mesma. Esses deslocamentos, segundo Hall (2003), não devem nos desencorajar, pois, ao mesmo tempo em que desarticulam as identidades estáveis do passado, podem abrir possibilidade de novas articulações, por exemplo, a produção de novos sujeitos capazes de recompor estruturas a partir da reedição e ressignificação de velhos teoremas. Dessa forma, as três categorias acima descritas vão mobilizar um acervo teórico que servirá de base e explicação para as transformações por que passam as sociedades, cujas práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas. Seja diante da ilusão de identidade estável e unitária, segundo o construto do pensamento iluminista, seja pelo 49 percurso ideológico da interação, ou ainda pelas mãos do sujeito fragmentado da pósmodernidade, em qualquer direção identitária, vamos, fatalmente, esbarrar no fantasma da incompletude porque, conforme Hall (2003, p. 38): A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre sendo formada. Na hipótese de associar o corte epistemológico desta pesquisa à teoria de Hall, poderíamos trazer para a história das mulheres do cangaço as duas últimas categorias: sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. Em relação ao sociológico, a identificação localiza-se no fato de estarem “condenadas a sair de si mesmas, para se projetarem em identidades culturais”; quanto ao segundo, o pós-moderno, o aspecto comum redunda no mesmo deslocamento, em que a identidade é “transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados, nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Como já referido, devemos entender que uma investigação acadêmica, com inserções no campo da construção de subjetividades, exige um olhar plural, que só a pesquisa interdisciplinar pode oferecer. Será, sem dúvida, um trabalho complexo à medida que recorrerá a um universo de conteúdos histórico-culturais significativos, com um teor existencial – um acervo de traços decorrentes de tensões sócio-estruturais, em determinada conjuntura. Se pretendemos revisitar o fenômeno do Cangaço, em busca da identidade das “mulheres” que ali se aventuraram, teremos que proceder a um retorno à longa transição das estruturas socioculturais, para um reencontro com as vozes que protagonizaram a “invenção do Nordeste”. Esse evento, como tantas outras memórias históricas, atravessa a temporalidade da consciência, para se situar no tempo do discurso, por isso romanceado tantas vezes e, em algumas reflexões, considerado “simulacro de verdade”. 2.5 Semiótica das culturas Há um consenso acerca da natureza epistemológica dos conteúdos ligados à Semiótica, em virtude das teses da maioria dos teóricos colocarem em destaque a tendência para a antropologia semiótica. As considerações em torno do objeto dessa ciência são fruto de uma 50 longa trajetória de reflexão, que passou pela tradição filosófica, com base nos postulados da Razão, até as modificações provocadas pela teologia cristã, privilegiando no homem aquilo que o punha em contato com o Ser, ou seja, a alma. Essas correntes, porém, se analisadas enquanto concepções isoladas, não responderão aos princípios intuídos em direção ao núcleo semiótico. Daí a escolha de referências de cada um desses fundamentos científicos, para não se fixar apenas no postulado teológico, tampouco na faculdade universal da Razão. Ao se deter no primeiro campo, corre-se o risco de omitir conteúdos da significação cultural das ciências sociais; na hipótese de privilegiar o segundo, estaria negando o caráter crítico da ciência, negando o fundamento da cultura enquanto produto da história. Embrenhada pelo caminho da significação cultural, a Semiótica alia elementos do positivismo lógico a um acervo que contempla a diversidade das línguas e a multiplicidade dos sistemas de sinais. Sem dúvida, aproxima-se das ciências sociais, ao mesmo tempo em que se inclina para uma antropologia histórica e comparada. Mas a natureza ainda não está tão definida, segundo Rastier (2010, p. 17), que faz a seguinte advertência: “a reflexão epistemológica sobre o tipo de verdade que produzem não foi conduzida a termo”. O autor, coloca com toda clareza, a dificuldade de se discutir a unidade das ciências da cultura e argumenta que, em relação à semiótica, não cabe, a exemplo do sociologismo durkheiminiano, atribuir um ponto de vista comum a todas as ciências sociais. Embora localizada neste campo, reconhece um próprio estatuto epistemológico, com outras formas de legitimação. Sua riqueza reside em duas diversidades: a das culturas, que as faz mover-se em tempos e espaços diferenciados e, para cada objeto cultural, a multiplicidade dos parâmetros não reprodutíveis que impedem qualquer experimentação no sentido estrito e afastam, ao mesmo tempo, o modelo das ciências físicas. Promovido à categoria dos observáveis, os fatos humanos e sociais permanecem como produto de construções interpretativas. (RASTIER, 2010, p.10). Toma como âncora o velho questionamento sobre o princípio ontológico que anula a autonomia da linguagem, entendendo-a como vertente da filosofia; por outro lado, propõe a redefinição do estatuto das ciências humanas e sociais, reconhecendo a especificidade e a autonomia relativa do mundo semiótico. A Semiótica, enquanto estudo da significação, que pretende dar conta do eixo das representações e do eixo das interpretações, pode afastar-se da filosofia transcendental, substituindo a Razão pelas culturas. Fadada a assumir função diferencial e comparativa, a 51 Semiótica das culturas teve que reconstruir conceitos, sobretudo o conceito de humanidade, até atingir um estatuto próprio, dentro da esfera das ciências sociais.“Com efeito, ela guarda uma vocação epistemológica: unir-se às ciências da cultura em torno dos conceitos de linguagem e de interpretação”( RASTIER, 2010, 2010, p. 64). A grande questão reside no fato de que a semiótica, na sua constituição, não pode conter-se dentro de um projeto totalizante, dadas as variedades de significação nos percursos interpretativos. Daí a necessidade de romper com as propriedades ontológicas da unidade, abrindo-se, como diz Rastier, para a “etiologia das sociedades humanas” (RASTIER, 2010, 64). Trata-se, pois, de superar o reducionismo do olhar sobre o objeto, contemplando, não diversos saberes, mas apenas um saber conceitual sistemático, de teor generalizante. Reforçamos aqui a tese do afastamento dos modelos das ciências físicas, considerando-se que as ciências da cultura são as únicas que podem dar conta do caráter semiótico do universo humano. A multiplicidade dos parâmetros não reprodutíveis impede qualquer experiência reducionista, no campo da cultura, até porque os fatos humanos e sociais permanecem como produto de construções interpretativas. Inclusive não se pode legitimar a tentativa de desconexão das bases que sustentam as “ciências humanas” e as “ciências sociais”, entendidas como um único campo de caracterização progressiva da humanidade. Esboça-se, então, uma antropologia da diversidade e não só a lingüística, mas também as demais ciências do entorno servirão como parâmetro para esse novo cenário científico. Voltados para a significação cultural das ciências sociais, todos esses saberes vão ultrapassar o estado normativo, gerando princípios que constituem uma referenciação de fenômenos singulares e irrepetíveis. Aliado a um programa de comparação, esse ponto de vista da diversidade resultou em problema científico, e sua contingência tornou-se significativa. A conseqüência desse direcionamento interdisciplinar foi a reconstrução do conceito de humanidade, fora da teologia dogmática e da biologia determinista. Aliás, um construto teórico que possa contemplar, ao mesmo tempo, o ponto de vista da dimensão individual da identidade e o ponto de vista da dimensão coletiva. No terreno da Semiótica, como já referido, estão agregados vários conceitos com denominações específicas. Entre estes, Machado (2007, p. 16) se detém no campo da Semiosfera, que designa o espaço cultural habitado pelos signos. “Nesse sentido, Semiosfera é o conceito que se constituiu, para definir a dinâmica dos encontros entre diferentes culturas”. A preocupação com essa particularidade teórica levou a descobertas importantes, no seio da Semiótica das Culturas. Com base nessa ideia de interdiscurso entre diferentes esferas, 52 merece destaque especial o diálogo entre Bakhtin e os seguidores da Escola de Tártu-Moscou, cujo núcleo comum reside no conceito de dialogismo. Nessa perspectiva, a linguagem, no seu funcionamento, não deve ser compreendida apenas como sistema de comunicação, porém, agregada a este, vislumbra-se outra atividade, qual seja, sua função como sistema modelizante. Essas duas tendências correspondem a funções que se implicam mutuamente, aliás, nas análises de natureza semiótica, os complexos conceptuais desempenham papel extremamente importante nos processos de produção da significação. Se assim não o fora, perderíamos de vista os critérios que Schnaiderman (1979, p.165) considera cruciais para os semioticistas em ação: (1) plano da avaliação – segundo o qual o mundo é apresentado de dentro para fora e não de fora para dentro; (2) plano espaço-temporal – da sintonia entre esses aspectos resulta a metalinguagem responsável pela cumplicidade entre o ponto de vista de quem descreve e a posição do observador. Esses dois pontos de vista serão contemplados sempre que se usam mecanismos capazes de superar a incompletude da linguagem verbal. Daí a necessidade de se investir na delimitação dos “sistemas modelizantes”, desdobrados em dois tipos: o primário e o secundário. O primeiro responde pela linguagem verbal, por ser dotada de estrutura; quanto ao segundo, explica-se através de outros sistemas de signos que estão em relação, como é o caso da literatura, do mito, da religião e da arte, segundo Machado (2007, p.29), “estes mantêm correlação com a língua, constituem linguagem, mas não são dotados de propriedades lingüísticas do sistema verbal”. Não se deve ter receio, entretanto, de falar em antropologia semiótica, já que não paira nenhuma dúvida quanto ao fato de que esse campo de conhecimento está incluído no universo das ciências humanas, através das quais se estudam as relações entre o homem e a sociedade. Para explicar essa ligação do global com o local, Rastier preconiza quatro rupturas categoriais, a saber: a ruptura pessoal (par interlocutivo EU/TU); a local (opõe o par AQUI/LÁ); a temporal (o AGORA, o RECENTE e o FUTURO PRÓXIMO ao PASSADO e ao FUTURO); e a modal (opõe o CERTO e o PROVÁVEL ao POSSÍVEL e ao IRREAL). Como desdobramento desses estudos, o referido teórico amarra outros conceitos e posições tão homólogas quanto refratárias, já que associa as rupturas aos deslocamentos sugeridos pelas zonas antrópicas: identitária, proximal e distal. As relações entre os dois quadros categoriais correspondem, exatamente, aos critérios de tempo, espaço e pessoa que se situam no entorno das práticas humanas e sociais. É uma associação que se impõe, já que as categorias se completam e se identificam para efeito de análise.Veja a tabela a seguir: 53 Z. Identitária Z. Proximal Z. Distal Pessoa EU, NÓS TU, VÓS ELE, SE, ISTO Tempo AGORA Espaço AQUI ALI LÁ, ACOLÁ,ALHURES CERTO PROVÁVEL POSSÍVEL, IRREAL Modo RECENTE, EM SEGUIDA Fronteira Empírica PASSADO, FUTURO Fronteira Transcedente Figura 2- Zonas Antrópicas (RASTIER, 2010, p. 23) Voltando à instância da Enunciação, seria legítimo associar o quadro das rupturas com as categorias de pessoa, tempo e espaço, preconizadas por Benveniste, retomadas por Greimas e Courtès, com a diferença de que estes teóricos centralizaram suas análises privilegiando a oposição conceitual entre subjetividade/objetividade. Na concepção rastieriana, as categorias são aplicadas com a finalidade de contemplar as rupturas referentes à oposição entre o global e o local, situando o indivíduo na relação com a sociedade, o que vale dizer: o homem e seu entorno. As representações produzidas pelos sujeitos semióticos são situadas em fronteiras e rupturas, uma tensão dialética da qual poderemos invocar o discurso como lugar, ao mesmo tempo do social e do individual. Os esforços empreendidos para o resgate desses componentes discursivos contaram com o apoio das pesquisas no campo da Semiótica das Culturas, particularmente, os conhecimentos agregados a partir da sistematização das zonas antrópicas. Para se ter mais clareza sobre essas conclusões, adiantamos que a retomada dos eixos de pessoa, tempo e espaço resultou, sem dúvida, no aprofundamento das discussões, sobretudo, nos campos cultural e antropológico. A análise das fronteiras situadas entre a zona identitária, a proximal e a distal trouxe de volta antigas preocupações acerca da tensão gerada pelo cotejo entre o comportamento empírico e as atribuições formais. Isso porque delimitou os espaços referentes às atividades espontâneas, às ações técnicas e aos atos socialmente organizados. Essa alternância de papéis obriga o sujeito a abandonar regras e modelos, para efetuar seu recorte crítico, nessa tensão situada entre a ordem do individual e do coletivo. Só assim a linguagem retoma sua função simbólica, à medida que promove a experiência da alteridade, legitimando-se como cultura interpretativa à procura de significado. A primeira categoria estende-se na zona identitária, e não entra na ordem do fazer; a segunda situa-se na fronteira entre a identitária e a proximal, e diz respeito aos relatos sociais explícitos; finalmente, a terceira estabelece um elo entre as duas primeiras zonas e a última – 54 a distal. Pela complexidade do intervalo, esses atos apelam para uma sanção positiva ou negativa, daí serem regulados por leis religiosas, jurídicas, científicas e artísticas. Acreditamos ter ficado bem clara a exposição em defesa da importância dos estudos acerca das zonas antrópicas, um investimento que contempla, ao mesmo tempo, os embates sobre empirismo, intuição e razão, além das conquistas nos campos cognitivo e filosófico. Todos esses elementos vêm convencer-nos da tendência interdisciplinar dos estudos semióticos que vão além do puramente lingüístico, na verdade, estendem seus tentáculos para a episteme antropológica, para a área cultural, enfim, contemplam os atos humanos e sociais. A exigência desse leque de investigações pode ser justificada, em primeiro lugar, pelo espaço proeminente que a linguagem ocupa, funcionando como centro de equilíbrio para todas as áreas de conhecimento. Em segundo lugar, lembramos as condições de emergência do semiótico, cujos referenciais se detêm na constituição própria do entorno humano, e para esse núcleo se inclinam sempre que estejam em jogo os condicionantes da construção do sentido. A ligação entre o local e o global constitui parâmetro para definir a relação entre o indivíduo e a sociedade, como já referido, entre o homem e seu entorno. Os sinais de pertencimento se inscrevem na correspondência entre as instâncias sociais e as instâncias lingüísticas, na evidente direção que liga a prática ao discurso. É bom lembrar que, embora tênues os limites entre essas dimensões, não há dúvida de que são dotadas de peculiaridades, dada a circularidade de versões, para a adaptação do sujeito enunciador ao lugar da enunciação. Nesse trajeto, em que se contemplam as condições de uso, surgem questões que só podem ser analisadas dentro de uma determinada competência. Por exemplo: só o homem é capaz de avaliar e refazer seus atos mediante um contexto pragmático. Se a praxeologia é a ciência da ação humana, Rastier tinha razão ao tentar interpretar a proeminência da linguagem através das rupturas, como se pode inferir do seguinte trecho: Em relação às linguagens dos animais, a particularidade das línguas reside, sem dúvida, na possibilidade de falar do que não está ali: a zona distal. No eixo da pessoa, isso permite falar dos ausentes. A homologação do distanciamento situa-os de preferência num outro tempo (ancestrais, posteridade, enviados por vir), em outros lugares e em outros mundos (heróis, deuses, espíritos). N o eixo do tempo, isso abre as áreas da tradição e do futuro; nos eixos do espaço e do modo, a da utopia (RASTIER, 2010, p.110). 55 O diálogo a que aludimos, no item anterior, vai encontrar respaldo e lucidez nas instâncias sociais e lingüísticas sobre as quais estabeleceremos as relações entre discurso (voz), gênero (prática) e texto (percurso de ação), a fim de explicar a natureza dos símbolos localizados na fronteira empírica, denominados fetiches, bem como aqueles situados na fronteira transcendente, os ídolos. Entre uns e outros, cremos poder investigar o percurso gerador de sentido que protagonizou as histórias das mulheres do cangaço. A cultura popular medeia a linha fronteiriça entre a zona identitária e a proximal, já que lida com elementos da ordem do fetiche (metonímia) e do ídolo (metáfora) os quais, associados, figurativizam ora o estrato metonímico da inteligibilidade, ora o estrato metafórico da transfiguração. Nessa espécie de “mosaico sígnico” é que o quadro de representações irá “territorializar e/ou desterritorializar” o locus no qual a crise da identidade feminina é problematizada. Se o nosso texto se propõe a fazer uma releitura do Cangaço, focalizando as figuras femininas, simbolicamente representadas, inevitável será discorrer sobre os fatores culturais, históricos e religiosos, responsáveis pela construção dessas imagens na memória social. Todo esse universo deve ser associado à dupla função: de estatuto de fetiche e de estatuto de ídolo. No terreno da metonímia, vamos encontrar os fetiches, figurativizados nos mais diversos adereços artesanais, de que se compõe a estética do Cangaço. Eles também estão presentes no signo-de-salomão, na estrela-de-oito-pontas, na cruz-de-malta, todos condicionados ao misticismo do mundo rural a que pertencia o cangaceiro. Muitas vezes estremecia à mercê de presságios, a serem interpretados adequadamente, a exemplo do mugido insistente do boi, uivo de raposa em noite sem lua, mergulho bisonho de gavião sobre o pasto, soluços de acauã etc. Lampião levava consigo, em saquinhos encardidos atados ao pescoço, inseparáveis, salvo nos momentos de amor, ao menos oito orações protetoras diferentes, impressas ou manuscritas: a de Nosso Senhor Jesus Cristo, a da Virgem das Virgens, a da Beata Catarina [...] (PERNAMBUCANO, 2010, p. 52). Da mesma forma, flagramos na música, na poesia, na dança, nas refregas, os atos de heroísmo, além dos títulos, todos esses símbolos metaforizados na ordem dos ídolos. Ao manipular os elementos simbólicos, Lampião criou seu próprio estilo, que lhe conferia uma aparência expressiva, mais revelação que ocultamento. Assim, reproduzia determinados valores do contexto sertanejo, destacando-se o desejo de fantasia, daí a recorrência a todos os 56 mitos que os fenícios tinham soprado para o Mediterrâneo, e os gregos difundiriam, poeticamente, pelo mundo. Acrescentamos, ainda, a propósito do ponto de vista do observador, que os fetiches e ídolos diferem quanto ao seu valor eufórico ou disfórico. A depender do contexto histórico e político-ideológico, tais rótulos de avaliação negativa ou positiva tornam-se reversíveis e contraditórios. Basta rever as oposições referenciais entre os que atribuem ao fenômeno a denominação de “banditismo sanguinário e cruel”, por um lado e, por outro, os que o associam ao contexto, como consequência de crise do Nordeste, naquele processo de centralização político-administrativa. Aos críticos implacáveis, que assumem o ponto de vista da memória oficial, os fetiches são interpretados com representações estigmatizadas; os ídolos são transformados em vilões, ou deslocados para a fronteira oposta, já que fazem uma leitura do cangaço como um movimento marginal. Resta aos historiadores, de olhar humanizado, analisar os fetiches e os ídolos como resultado de fatores e condicionantes de um cangaço que tem, nas formas simbólicas, um coadjuvante nas relações de dominação e poder. 3 SITUANDO O CORPUS Reiteramos aqui nosso propósito de contextualização dos recortes que compõem o corpus, inserindo-os em espaços socioculturais, até porque, sem essa ancoragem, haveria o risco de isolamento das categorias analíticas, as quais reclamam diretrizes teóricas, capazes de erguer pontes entre os cenários gerais e os quadros de representações específicas. Sendo assim, esses canais de ligação servem para legitimar a escolha das categorias, ao mesmo tempo, aprofundar a discussão, ao aliar as diretrizes semióticas ao panorama da cultura popular, de onde fomos colher as representações mítico-lendárias. Na esteira da tradição oral, vamos operar com as fantasias que, metonímica e metaforicamente, habitam as fronteiras não só do mundo óbvio, mas também do mundo transcendente. Os propalados fetiches e ídolos se manifestam através da voz dos poetas, para lhes conferir a autoridade necessária, ao mesmo tempo para garantir a coerência deste texto, onde o diálogo entre as ciências pode possibilitar a direção teórico-metodológica, com a consequente clareza das hipóteses. Ainda mais quando a temática se volta para a tensão entre o homem e seu entorno, convém discorrer sobre esse elenco de informações, que devem contemplar as condições de tempo, espaço e modo, condicionantes que aprisionam o ser humano a um universo de fatores 57 contextuais. As categorias acima referidas vão-se constituir aspectos determinantes, para o enfrentamento dos desafios: tempo hábil, espaço adequado e modo inteligente. Esses elementos estão imbricados, no processo de construção histórica, de tal forma que carecemos de uma análise combinatória, com diferentes linhas conceptuais, para dar conta dos resultados. Se não fornecermos as referências do percurso de construção da cultura, o percurso gerador da significação não poderá dispor dos componentes que se encontram comprometidos, na própria formação da trajetória histórica, possibilitando as rupturas entre o locus e o global. Não será possível, pois, dissertar sobre o cangaço sem recorrer aos fenômenos religiosos e culturais, sem falar dos mitos, por meio dos quais se construiu um saber compartilhado sobre o mundo. Pela boca, pela garganta de todos esses homens, pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos, revestida nisso de uma autoridade particular, embora não claramente distinta daquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio (ZUMTHOR, 1993, p.67). Dessa forma, expressou-se o gênio criador de tantas obras, focadas nos labirintos da tradição oral, entre elas, “A Letra e a Voz”, de onde nos valemos para um diálogo possível, em torno de princípios que tentam delimitar o campo específico da pesquisa, dentro de um contexto mais abrangente. Nesse palco maior, armado por Zumthor, fomos buscar o prazer da poesia que, segundo ele, traz o saber. O teórico fala da poesia que emana da voz poética – “uma força estabilizante que garante a sobrevivência do grupo social” (ZUMTHOR, 1993, p.139). Este macrocenário, com seus diferentes saberes, ornamenta-se com galhos da Antropologia, da Semiótica e, principalmente, da Cultura Popular. Neste último campo, fomos abastecer as categorias analíticas, à procura daquela “palavra”, que representa o elo entre o saber individual e o coletivo. Sem o domínio desses componentes, que podem explicar esse “laço social”, não conseguiríamos ultrapassar os limites das hipóteses, para a construção da tese. Todo o esforço, no sentido da construção dessa base, ampara-se no argumento de que não podemos perder de vista as diretrizes epistemológicas, cujos alicerces foram fincados na esteira de alguns tópicos importantes para esta pesquisa, a exemplo de memória social, imaginário coletivo, identidade etc. Esse universo conceitual, seguramente, nos amparou nessa retomada de valores, que perfazem um longo caminho, que parte do medievo e adentra 58 os becos e ruas da contemporaneidade. Isso se considerarmos a característica atemporal da ciência, ainda mais complexa torna-se a discussão, quando se trata do percurso da Arte. Poetas deslumbrados vêm declamando versos, para narrar os acontecimentos mais fantásticos, ou mesmo os causos mais corriqueiros, porque de fantasmas e caminhantes viveu o cangaço. Às vezes, narrando essa saga de forma descontextualizada, comparando-o a “um ninho de bandidos”; outras tantas contextualizando-o, como um movimento caracterizado pela combinação de conteúdos religiosos com carência social. Sejam quais forem os modelos estereotipados, as vozes individuais devem estar amparadas por um projeto de ordem universal, cujos fios são tecidos com a mais criteriosa coerência, a fim de que o coro, em harmonia, aponte o caminho, identifique o discurso. 3.1 Cultura popular Conceito, Características, Formas de Expressão A maioria dos autores consultados discutem o conceito de Cultura Popular com base numa perspectiva heterogênea, admitindo todos, por antecipação, a complexidade da matéria. É recorrente a ideia de que existem muitos significados e variados eventos que a expressão recobre. Alguns se prendem à tese de sentimento nativista, a exemplo de Burke (2010, p. 37) quando afirmava que “em 1800, os artesãos e camponeses tinham uma consciência mais regional do que nacional”. Outros recorrem à falsa dissociação entre o “fazer” e o “saber”, até para justificar que uns têm o poder sobre o labor de outros. Segundo Santos (2006, p. 15), “a maior parte do muito que já se escreveu sobre o tema, sobretudo no Brasil, pode ser entendido como tentativa de resolver esse paradoxo”. Há ainda os que se referem a “cultura popular” como “folclore”, alimentando nessa tese a idéia de “tradição”. Esse ponto de vista é veementemente rechaçado por muitos teóricos que não admitem que a Idade de Ouro da “cultura popular” pertença ao passado. Ao contrário, defendem o dinamismo de suas práticas, ao mesmo tempo, atribuem a razões políticas essa e outras definições preconceituosas. Vale incluir nesse elenco o conceito de “povo” enquanto segmento social dinâmico e conflitivo, atrelado a práticas direcionadas para o exercício da cidadania, no sentido de politização das massas. Segundo Brandão (1980, p. 129) o popular vincula-se à classe e à liberdade, ao mostrar que “o horizonte da educação popular não é o homem educado, é o homem convertido em classe. É o homem libertado.” 59 Essa acepção do termo “popular”, priorizando o aspecto sociopolítico, aproxima-se da teoria da Carnavalização, em que Bakhtin (1999, p.3) extrai a categoria “povo” dos romances de Rabelais, em cujas tramas pode-se atestar uma reformulação radical de todas as concepções artísticas e ideológicas, para se chegar à cultura popular. “Rabelais recolheu sabedoria nos provérbios, nas farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos” – assim ressoava a tese bakhtiniana acerca da literatura de Rabelais, cujo modelo fugia da estética burguesa, já que se prendia aos ritos e cultos cômicos enquanto literatura paródica, jamais comparada ao tom sério e feudal da época. Bakhtin (1999) soube como ninguém explicar a tensão dialética entre as categorias da cultura: “paralelamente às festas oficiais – carnavais, procissões religiosas etc – celebravamse as festas populares, os ritos cômicos”. Aquelas sempre ostentavam um rico cortejo, com referências cerimoniosas à Igreja ou ao Estado feudal. As festas populares, ao contrário, apontavam para outra visão de mundo – eram cultos cômicos que convertiam as divindades em objetos de burla e de blasfêmia. A teoria da carnavalização bakhtiniana acentuou as diferenças entre o caráter-oficial dos festejos públicos institucionais, de um lado, e, do outro, o riso do povo, baseado no princípio da vida festiva, no mundo dos ideais, experiência que permitia aos indivíduos estabelecer relações verdadeiramente humanas. O clima de festa emanava dos fins superiores da existência humana, fazendo desaparecer as relações hierárquicas, enquanto a praça pública se transformava em palco de um tipo particular de comunicação, inconcebível em situações normais ( BAKHTIN, 1999 p. 6). Paralelamente a essa discussão e, em consequência disso, devemos atestar a unanimidade dos estudiosos ao propalarem a natureza dinâmica dos fenômenos culturais, sobretudo, as tensões geradas por diferentes pontos de vista sobre Cultura. As primeiras divergências provêm da pretensa divisão entre o modelo “erudito” e o “popular”, uma discussão que se arrasta a partir da formação humana grega, inalada na poesia rural gnômica, que foi conduzida ao pé da letra pela tradição oral. Pouco depois, ouviam-se as vozes clássicas debatendo, em posições contrárias, sobre a tese de que a sabedoria popular antecede o saber científico. Aristóteles exortava a teoria em função de uma prática, ao contrário de Platão, que pregava a teoria da “ciência pura”. (CHAUÍ, 1994). De um lado, a racionalidade escolástica, revelada pelo encadeamento silogístico; do outro, o espírito contemplativo, amparado na defesa da justiça como fundamento básico. 60 Os tempos modernos assistiram de perto a espetáculos mambembes, oriundos dos grotões, ao lado de refinados concertos, aplaudidos por descendentes das mais altas cortes. Pelas mãos dos colonizadores, chegaram até nós as mais variadas manifestações artísticas, que suscitaram o sincretismo: convivem no mesmo espaço o samba, o maxixe, o maracatu, a ciranda etc. Daí falar-se tanto em multiculturalismo, uma proposta que se define na direção de uma democracia cultural, pondo por terra qualquer tentativa de hierarquização. Por ser o lugar privilegiado da cultura, essa diversidade se revela através da recriação de modelos, para impedir que sejam congelados os elementos de perfil tradicional. Desenvolvendo-se em processos históricos múltiplos, os significados culturais são compreendidos tomando-se como base referências do universo próprio de cada grupo social. Para reforçar a tese da dinâmica cultural, voltemos aqui à teoria bakhtiniana, em defesa do dialogismo, tendência segundo a qual a palavra, prenhe de respostas, já traz, constitutivamente, referências a outras palavras, nesse jogo do “já-dito”, em que a réplica será sempre solicitada e já prevista. Sant‟Anna (2003, p. 29) fala com segurança acerca dessa deliberada recorrência ao discurso do outro: “[...] quando digo outro, uso a acepção moderna: aquela voz social ou individual recalcada e que é preciso desentranhar, para que se conheça o outro lado da verdade.” A feliz possibilidade de releitura – paródia, estilização, pastiche – seja qual for a modalidade, promove a circulação de temas e tipos, como ocorre com as diferentes versões daquele matuto dotado de inteligência e astúcia capazes de torná-lo vencedor. Trata-se de Pedro Malasarte, com seus trejeitos picarescos, passando da literatura popular à erudita. Peloso (1996, 148) reconhece essa personagem na Espanha, nas obras de Quevedo e Calderón; em Portugal, com Leite de Vasconcelos, aparece também na narrativa popular, com o nome de Pedro das Malas-artes; no Nordeste brasileiro, circula na boca de vários estudiosos, como Sílvio Romero, Lindolfo Gomes, Câmara Cascudo etc. Na obra de Ariano Suassuna, “O Auto da Compadecida”, podemos atestar esse resgate de personagens excêntricas, bem ao gosto das figuras de Rabelais, segundo Bakhtin. Basta lembrar João Grilo, um tipo popular bem conhecido, famoso pelas mentiras que a ninguém faziam mal, conforme julgamento de Nossa Senhora. A cena do enterro do cachorro, com toda aquela trama envolvendo a ambição do padre e do bispo, é uma alegoria do domínio popular, circulando, de forma recorrente, na tradição oral (SUASSUNA, 1957). Da mesma forma, podemos reconhecer o cangaceiro ou a cangaceira, na literatura nacional ou nos cordéis, às vezes, com ares de fidalgo, refletido nas lentes de Benjamin Abrahão, mas também com feição truculenta, como convém aos registros guiados pela rédea 61 do discurso conservador. Não faltam versões de um Lampião bandido, malfeitor, capaz das piores atrocidades, do outro lado da linha, tantos outros devotam a essa personagem da história nordestina o mesmo respeito que se deve a um herói. A recuperação das formas da cultura oficial, no âmbito popular, não comporta sempre e necessariamente a aceitação dos significados e dos valores geralmente associados àquela cultura. Heróis, vilões e bufões, que emergem em uma determinada estrutura tradicional, constituem um sistema e iluminam os próprios modelos e normas, mesmo quando os inverterem, graças às potencialidades subversivas da imitação (PELOSO, 1996, p.147). Vale lembrar aqui a história de Jararaca, um cangaceiro que virou santo, versão assumida por Almeida (1981). A narrativa se reporta a uma luta armada entre o grupo de Lampião e defensores da cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, resultando na tortura e morte do cangaceiro de nome Jararaca. Seu túmulo virou local de peregrinação, onde as pessoas acorriam para pagar ou fazer promessa, ajoelhadas, com a mesma devoção com que se expressam diante de um santuário. Alguns pesquisadores mais sofisticados concebem essas manifestações culturais “tradicionais” como resíduo da cultura “culta” de outras épocas (às vezes, de outros lugares), filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas camadas da estratificação social. Nesse sentido, diz-se “O povo é um clássico que sobrevive” (CASCUDO, 1983, p. 16). Essa circularidade cultural vem atestar a vocação humana para as rupturas, sendo acompanhada, nos seus movimentos, pelas mudanças culturais, que podem apresentar vértice transcendente ou decadente, a depender dos hábitos e efeitos produzidos. Vejam-se os exemplos dos grandes pacifistas e suas estratégias, na tentativa de promoverem a cultura da Paz; levantem-se os dados estatísticos que atestam a redução dos preconceitos, diante da cultura da diversidade; finalmente, observem-se os movimentos sociais, organizados para combater a tirania dos líderes, como assistimos há pouco numa cruzada, chamada Primavera Árabe. Alguns pesquisadores mais sofisticados concebem essas manifestações culturais “tradicionais” como resíduo da cultura “culta” de outras épocas (às vezes, de outros lugares), filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas camadas da estratificação social. Nesse sentido, diz-se “O povo é um clássico que sobrevive” (CASCUDO, 1983, p. 16). A certeza dessa dinâmica cultural nos liberta do congelamento de modelos, do conservadorismo grupal, que tem como conseqüência a segregação de movimentos sociais que muito têm para ensinar, porque agregam valores, promovendo a atualização dos 62 arquétipos. Foi a tendência para a democracia cultural que nos premiou com espetáculos que aliam o erudito ao popular, cujos resultados se traduzem em novos conceitos, e novas propostas artísticas, que só enriquecem a dimensão social. Mais uma vez, fomos levados a tocar na pretensa dicotomia entre cultura popular e cultura erudita, para lembrar que constitui um problema já esclarecido, segundo alguns teóricos. Zumthor (1993, 118) fala dessa matéria com a segurança didática dos mestres, entendendo não mais se tratar de uma dicotomia, porém de um continuum: “a oposição do popular ao erudito remete, quando muito, aos costumes predominantes neste ou naquele momento e meio”. Esta separação não se sustenta se trouxermos exemplos que comprovam o método de natureza palimpsesta, por meio do qual se desenhou o roteiro cultural. Ariano Suassuna destaca-se com uma obra que vai dos cânones mais soberbos às manifestações populares mais autênticas. Essa mistura encantadora também temperou a poética de Fernando Pessoa, comentário de Almeida Garret e transcrito para Estudos em Literatura Popular II, em artigo do professor Saraiva (2010, p. 44) :“quero dizer e provar, no presente trabalho, que ao pé dessa aristocracia de poetas, andava, cantava, e nem com o desprezo morria, outra literatura, que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por esses invasores”. A referida dualidade entre as formas de cultura transpôs fronteiras e serviu de substância para muitos estudiosos da área, a exemplo de Câmara Cascudo. Em sua obra “Civilização e Cultura” este teórico enfatiza os limites entre o saldo da sabedoria oral na memória coletiva e o saber transmitido pela voz do ensino magistral, entendido como ciência indispensável e geral. Os dois extratos acompanham a vida normal do homem, não em posições contraditórias, mas com feições diferentes. As duas formas mantêm entre si uma intercomunicação viva, e podem ser identificadas a partir do exame de valores ocasionais. (CASCUDO, 1983). Na base dessa pretensa dicotomia, vamos encontrar, por um lado, um suporte de uma idealização romântica da tradição que é uma perspectiva frequentemente encontrada nas teorias de muitos folcloristas. Por outro lado, temos a concepção cujo foco recai sobre o que as culturas efetivamente são, ou melhor, sobre os processos através dos quais elas se constituem e o que elas expressam, e não o que elas foram, seriam ou deveriam ser. Para enfrentar essa dualidade entre “cultura popular” e “cultura letrada”, Câmara Cascudo vai buscar na mitologia grega duas referências para categorizar os dois polos: Castor humano e Pólux imortal. O primeiro é mais antigo e reina sobre o habitual, o comum; o 63 segundo mantém a soberania dos congressos, sob a égide das universidades, dos laboratórios e das bibliotecas. Enquanto um se prende à memória de caçadores e guerreiros, o outro destaca-se na voz dos magistrados, sob os auspícios das normas oficiais. Apesar dessa relação dialética, segundo o estudioso, são Diáscuros que se confundem numa profunda interdependência, uma vez que ambos têm bases universais e exigem, na mesma medida, a retenção memorial e a experiência adquirida a partir da sensibilidade e da percepção. A Cultura Popular é ancila, humilde sob o manto protetor da Etnografia, Antropologia Cultural e, ultimamente, da Sociologia e da Psicologia Social, e mesmo constitui o pedestre e democrático Folclore. Não compreende Pólux que o mesmo sangue de Castor lhe corre sob a borla e capelo doutorais (CASCUDO, 1983, p.679). Há uma concepção generalizada de que o trabalho intelectual é superior ao manual, e esse postulado tem carreado desequilíbrios sociais, como se pode observar na grande discrepância entre os salários de segmentos associados ao “saber” em relação aos que se ligam ao “fazer”. Aliás, o discurso oficial vem legitimando essa concepção, prova disso são os parcos investimentos nas escolas públicas e nos movimentos de cultura popular. Por isso a escolha dos teóricos dedicados ao estudo da cultura popular e, por extensão, curiosos em desvendar segredos em torno da memória e do imaginário coletivo. Buscamos a concepção de cultura popular como movimento de conscientização política e autoafirmação, em Burke; em Zumthor, a direção teórico-metodológica necessária ao processo de ressignificação; perseguimos em Bakhtin a teoria da carnavalização, para lembrar o riso ousado da dessacralização, a segunda vida do povo; finalmente, em Câmara Cascudo, tomamos conhecimento de um estatuto de conduta social e religiosa, não só criado, mas também transmitido através de séculos. O diálogo entre os quatro autores vem representar uma reunião de elementos que se completam numa polifonia com recepção ativa, em que o discurso se desloca da ordem do individual para o espaço coletivo, vale repetir, onde não há lugar para a interdição da fala. O resultado dessas leituras e da paráfrase realizada para este texto representa não só uma leitura mais aprofundada do tema, mas, sobretudo, o envolvimento afetivo por estarmos mais uma vez diante de uma realidade tão óbvia: o fato de que a cultura popular desempenha funções práticas no sentido de estreitar as relações entre a terra e o povo – entre o homem e suas raízes. 64 3.2 Transmissão da cultura popular No final do século XVIII e início do século XIX, o “povo” passou a ser um tema de interesse dos intelectuais europeus. À medida que surgiam termos novos para designar as “canções populares”, também proliferavam idéias novas, principalmente na Alemanha, onde as teses iluministas já não provocavam ecos, porque abafadas por um movimento em favor da reedição da antiga poesia. Por circular oralmente, acompanhado de música, o cancioneiro popular, segundo os artistas, conserva a eficácia moral não encontrada na poesia das pessoas cultas, uma herança mais frívola do que funcional. Muitos se debruçaram sobre esse gênero, comparado analogicamente às árvores, diziam que a poesia não era feita, mas crescia naturalmente, daí ser entendida como “a fonte que traz à superfície o que há de verdadeiramente original na alma do povo” (BURKE, 2010, p.36). O poeta Herder compilou um conjunto de canções entre 1774 e 1778, ao qual deu o nome de Volkslieder (canção popular), uma iniciativa que teve grande repercussão ajudando a divulgar a tradição oral, um universo que mereceu dos artistas o título de “tesouro da vida”. Eles defendiam que a poesia tivera essa força entre os hebreus e os gregos, em um passado remoto, portanto deveriam revolver as cinzas desse passado para extrair o sentimento nativista sem o qual nenhuma pátria poderia sobreviver. As idéias de Herder serviram de ânimo para muitos artistas e ecoaram de forma tão significativa que mereceram de Goethe o seguinte elogio: “Herder nos ensinou a pensar na poesia como o patrimônio comum de toda a humanidade, não como propriedade particular de alguns indivíduos refinados e cultos”(BURKE, 2010, p. 27). A obra dos irmãos Grimm também serve de exemplo dessa revolução silenciosa que impulsionou os poetas a resgatarem todo um acervo tradicional a que Burke se refere com o tópico “descoberta do povo”, porque emana desse berço natural e a ele retorna, para realimentar o seio da terra, como se fora matéria orgânica. Antes considerados “povos bárbaros”, cuja poesia era tachada de vulgar e grosseira, o segmento popular alçou ao poder, no período pós-renascentista, em forma de autoria coletiva, como “poesia da natureza”, porque expressava o que havia de mais singelo e natural. Todos esses autores se debruçaram sobre matérias no campo da cultura popular, ciosos por entender esse jogo entre o pessoal e o coletivo tanto que, nas suas reflexões, não pensaram em identidade apenas no sentido de pessoa, unidade, mas com a conotação de função 65 histórica. Até porque a aprendizagem decorrente dessas discussões não se detém no sucesso individual, porém no enriquecimento das experiências coletivas. Dessa forma, a releitura do patrimônio poético tradicional acaba por assumir significado político, passando a representar “movimento de autodefinição e libertação nacional”, como aconteceu na Alemanha, invadida por Napoleão, em que dois editores publicaram um livro de canções para o povo, com a finalidade de despertar a consciência nacional. Após serem lidos e declamados em teatros e praças públicas, os versos fizeram eco, nos mais diferentes espaços, com direito a diálogos com novas canções. Os efeitos logo foram notados: um crescente sentimento de união, em defesa dos direitos e da cidadania. Na Suécia, a coletânea publicada em 1811 adotava nomes “góticos” e trabalhava para o renascimento das antigas virtudes suecas. Burke lembra ainda as canções gregas de Fauriel, inspiradas pela revolta grega de 1821 contra os turcos; lembra também um programa de pesquisa sobre cultura popular, de um polonês, preso político por participar do levante de Kósciuszko, contra a ocupação russa. A releitura desses trabalhos instigou os estudiosos a buscarem a tradição, por isso a memória ocupa, desde o século passado, espaço privilegiado. A memória tem atravessado os discursos públicos sobre o passado, tornando-se um instigante campo de pesquisa interdisciplinar, por isso a ele recorremos, com o objetivo não só de resgatar informações, mas, sobretudo, estabelecer parâmetros comparativos. Nesta pesquisa, nossas reflexões partem desse resgate, focadas na presença viva da memória, para construir e reconstruir histórias plurais acerca do fenômeno social do cangaço. 3.3 O discurso etnoliterário A partir de 1978, as pesquisas científicas, no campo das ciências sociais, concentravam-se em temas que consolidavam concepções em torno das relações de enunciação e enunciado. Como desdobramento desse núcleo conceitual, outros componentes foram sendo agregados, entre os quais, o modo de existência e produção, além das estruturas de poder. Todo esse investimento teve como resultado a ampliação dos estudos discursivos, assim como a demanda de novos programas os quais se voltaram para a área da Semiótica, surgindo daí uma nova disciplina: a Sociossemiótica. Segundo Batista (2004), a Sociossemiótica está voltada para o estudo do processo de formação, transformação e acumulação da função semiótica, nos discursos sociais nãoliterários e nos literários produzidos socialmente. No diálogo com Pais (2004, p.175), buscamos elementos esclarecedores dos postulados em questão: 66 Esses universos de discursos são ditos sociais, porque, embora tenham, como é evidente, emissor e receptor individuais, caracterizam-se por enunciador e enunciatário coletivos, ou seja, um grupo ou segmento social, como um partido político, os legisladores, a comunidade científica, um grupo profissional etc. (PAIS, 2004, p.175). As referências às mulheres, na literatura de cordel, correspondem, exatamente, ao espetáculo semiótico que serve como ancoragem, na tentativa de se construir uma identidade cultural. Aliado a essa função representativa, recorre-se a um modelo semiótico que permita situar o discurso etnoliterário como coadjuvante, nessa colagem de elementos concretos, com o propósito de inferir um conteúdo subjacente, por si só, revelador de um lugar social. Fala-se, então, de um tipo de estrutura em que se evidencia o movimento de contínua aproximação ou distanciamento do Locutor, em relação ao nível de responsabilidade pelo dizer, o que caracteriza uma dualidade entre os enunciadores individual e coletivo. Esse movimento de determinação e indeterminação subjetiva explica por que o Locutor, para se representar como origem do que enuncia, é preciso que não seja ele próprio, mas um lugar social de locutor. O discurso etnoliterário caracteriza-se por constantes deslocamentos e rupturas actanciais, temporais e modais, com emergências que transitam do local ao universal. Esse jogo enunciativo mereceu a atenção de alguns pesquisadores, entre eles, Santos (2007), em um texto que discute “os sujeitos e os sentidos no espaço da enunciação proverbial”. Segundo Mônica, essa dualidade pode ser explicada da seguinte forma: “A voz coletiva está apoiada na ideologia, no “já-dito” e, através dessa formulação textual, ela se materializa linguística e enunciativamente, sendo representada/assumida pelo Locutor”. Tomando como base essa linha conceitual, vamos flagrar nesse componente tipológico preconizado por Cidmar Pais, um discurso que se afasta do documental à medida que não recorre a fatos históricos comprovados, mas recria outro tipo de memória povoada por imagens idealizadas. Enquanto os discursos documentais se apoiam na racionalidade, os etnoliterários se sustentam na historicidade, no caso, entendida como caráter duradouro da condição humana. É desse discurso que se alimenta a literatura popular, para dar conta desse fervilhar memorialístico, que tem como resultado o processo de busca e apropriação do imaginário. O diálogo com Pais (2004, p. 180) agrega elementos esclarecedores: Contribuem, assim, para o sentimento de sua permanência no eixo da História e para a configuração de uma identidade cultural, intuitivamente, ao menos, reconhecida pelos membros da comunidade em causa. Nesse sentido, levando-se em conta a sua continuidade no tempo, a sua presença nos dias 67 que correm, parece legítimo vê-los como documentos do pensamento e dos valores coletivos, imprescindíveis, portanto, para a compreensão do processo histórico da cultura. Ao institucionalizar essa tipologia, Pais dispensa atenção especial a uma categoria de discurso, em que o sujeito-enunciador é um ente coletivo. Em relação a tempo e espaço, apresenta características da ordem da atemporalidade e do não-lugar. Esse discurso, que predomina nos contos populares regionais, recebe do referido teórico a denominação de etnoliterário. Diferente dos literários, este dispensa a austeridade racional, para se situar na ordem da afetividade e da enunciação coletiva, daí a ideia de permanência como característica constitutiva. É deste discurso que se alimenta a literatura popular, para mostrar as marcas da oralidade, bem como as imagens e símbolos típicos dos cordéis, esse gênero que transcende o puramente dizível, e em que a imagem se torna um ser novo na linguagem. Assim, o discurso etnoliterário, preconizado por Cidmar Pais, afasta-se do documental à medida que não recorre a fatos históricos comprovados, mas recria outro tipo de memória povoada por imagens idealizadas. Esse componente tipológico foi sistematizado a partir de um estudo que divide os universos do discurso em literários e não-literários. Os primeiros são vistos como os mais antigos, pois sua característica principal é a verossimilhança, retomada da Antiguidade grecolatina, segundo a qual “a Arte imita a vida”. Os discursos desse plano seduzem o leitor/ouvinte e têm na função estética o elemento determinante de sua eficácia. Por outro lado, os discursos não-literários situam-se em pesquisas mais recentes, com base em uma vertente da Semiótica, como referido, uma nova disciplina denominada Sociossemiótica. Os discursos sociais, como são chamados, caracterizam-se por apresentarem enunciador e enunciatário coletivos, ou seja, Contrapõem-se à memória oficial, construída pelos historiadores, e recriam outro tipo de memória social. [...] repetidos, durante séculos, por pessoas muito especiais, os contadores, como os equivalentes a trovadores medievais, e as contadoras, como mulheres do Nordeste brasileiro, dedicadas a essa prática, tais textos são percebidos pelos sujeitosenunciatários-ouvintes como portadores de verdades gerais e universais (PAIS, 1994, p.178). O universo de discursos não-literários sociais, sustentado por segmentos sociais, caracterizam-se por estruturas de poder próprias, consequentemente, dominam seus 68 mecanismos específicos de argumentação/veridicção. Em face desse estatuto etnossemiótico, é válido defender que o critério de valoração desses discursos é a eficácia, diferente dos literários, que se sustentam na função estética. Embora tenha atendido a muitos aspectos de uma tipologia discursiva, a teorização prevista por Pais precisou ser ampliada para contemplar a literatura oral, assim chamada de literatura popular. Foi então que, no elenco tipológico, foi incluído o discurso etnoliterário, o qual se afasta do documental à medida que não recorre a fatos históricos comprovados, mas recria outro tipo de memória, como referido, povoada por imagens idealizadas. Enquanto os discursos documentais se apóiam na racionalidade, os etnoliterários se sustentam na historicidade, entendida como caráter duradouro da condição humana. O efeito de permanência, como característica constitutiva, confere a eles o estatuto de representantes de formas de humanismo. A base da eficácia desse discurso é exatamente sua função mítica, que lhe garante a compreensão do processo histórico, já que revela e sustenta um sistema de valores e crenças que integram o imaginário coletivo de uma cultura. Responsável por esse saber compartilhado, o discurso etnoliterário recorre a elementos cruciais da natureza humana, da alma, dos impulsos, da afetividade. 3.4 Imaginário coletivo: um saber compartilhado sobre o mundo A tradição cultural do Ocidente foi tecida, sobretudo, nos enredos das narrativas passadas de geração a geração, através da oralidade. Os protagonistas dessas sagas representavam as figuras mais influentes e emblemáticas das lições moralizantes e aí se projetavam os conflitos provocados pela experiência com demônios, por um lado, e, por outro, a felicidade proveniente da convivência com os anjos. Uns e outros se alternando e alimentando uma cadeia de estereótipos que têm origem na família e se prolongam nos grupos sociais, contando com a cumplicidade da linguagem, que se encarrega de disseminar. Essa recorrência imagética tem endereço certo: o imaginário coletivo, receptário de carimbos, como são entendidas as famosas tendências apreciativas, as quais, uma vez tatuadas, promovem a formação de condutas potencialmente capazes de promoverem intervenções na realidade. Forma-se, então, uma esteira de arquétipos, fortalecidos culturalmente, para promover a legitimidade, garantindo, ao mesmo tempo,a eficácia dos modelos previamente inscritos na memória social. 69 Dessa forma, o imaginário contém a memória resultante das interações entre os atores sociais, processos que se repetem “ad infinitum”. As suas referências simbólicas (mitos, ritos, símbolos, imagens etc.) possibilitam às comunidades a descoberta de respostas às suas necessidades (VIEIRA, 2012, p. 107). Considerando essa vulnerabilidade do ser humano, e a conseqüente influência da estratégica ordem de armazenamento das imagens no espaço da memória, poderemos compreender como se consolidam os valores que vão determinar o processo de construção e reconstrução do real. Assim é vista a realidade, através de “óculos sociais” que nada mais são que a forma singular de leitura e releitura de mundo, como resultado da interação por meio de um jogo de representações e imagens recíprocas. Muitos teóricos se apoiam na teoria da discursivização do mundo por meio da linguagem, para mostrar que não é um simples processo de elaboração de informações, mas um processo de reconstrução do próprio real. Nós descrevemos o mundo de acordo com os nossos olhos, por isso entende-se que, quando um sujeito interage verbalmente com outro, o discurso se organiza a partir das finalidades e intenções dos interlocutores. Ao produzir significados, a comunicação pode fragmentar a realidade, ao classificar pessoas e coisas, tornando-as visíveis ou invisíveis, atribuindolhes valores. O classificar, categorizar, rotular, pode levar à estigmatização de indivíduos ou grupos, seja política, seja socialmente (BEZERRA, 2011, p. 26). Dessa forma foi construída toda uma simbologia, armazenada na memória discursiva, e transferida daí para situações concretas. E quando essas representações se materializam, projetam uma carga ideológica capaz de perverter o real, o que significa dizer que as versões do mundo estão a depender das finalidades práticas dos enunciadores. Assim, o que julgamos ser realidade não passa de um produto de nossa percepção cultural. Como consequência de toda essa complexa cadeia valorativa, acabamos por nos convencer de que o saber sobre o mundo pode ser manipulado, porque conduzido pela vontade e pelas intenções dos atuantes. Todos esses acenos ganham destaque nas vozes sociais, ancoradas, entre outros mecanismos, nos recursos metalinguísticos, para conquistarem suas metas: a mudança de hábitos culturais. É certo que somente aquilo que representa um valor socialmente adquirido pode ser capaz de sobreviver, tomar forma e deitar raízes. Acreditamos, pois, nesses movimentos como o caminho para um mundo mais justo, consequentemente, um mundo onde os homens possam conviver em paz. 70 A propósito, o velho axioma “A voz do povo é a voz de Deus” vem confirmar essa crença na força popular, cuja propriedade de permanência se encarrega da construção histórica da cultura. É assim que a voz do povo escreve os causos do cotidiano, os quais vão tecendo as grandes sagas, registradas nos folhetos de feira e passadas de geração a geração. Os condicionantes desse labirinto da imaginação e da inventibilidade da cultura popular instigaram alguns estudiosos a revisitarem a história do Cangaço, sempre descobrindo novas substâncias para alimentar o texto, e este, em diálogo com outros, recria a velha saga com matizes diferentes. Lembro, como exemplo, o historiador Sá (2011, p. 15), o qual criou para o fenômeno o rótulo de “palimpsesto da cultura brasileira”, no sentido de que “é reescrito indefinidamente utilizando-se o mesmo material, mediante correções, acréscimos, revisões, deslizamentos.” Ao tentarmos acessar o real, mediante processos de pensamento, vamos descobrir que o mundo nada mais é senão resultado de percepções que envolvem a razão, a arte, a religião e os sentimentos. Todas essas dimensões são afetadas pelas constantes trocas, ocorridas durante o processo de interação social, por isso fazem parte do universo de representações do imaginário. Assim, não devemos conceber as imagens como passivas, ao contrário, no universo mental onde habitam, superpõem-se, alteram-se, transformam-se, à mercê de sentimentos e experiências. Por outro lado, também devemos estar atentos ao fato de que não lidamos diretamente com as coisas, e sim com os significados que lhes são atribuídos pela cultura, por isso convém levar em conta o potencial do imaginário, capaz de determinar as atitudes e preferências dos grupos. Vasconcelos (1999, p. 20) dá conta desse cadinho da imaginação, onde presságios e fantasmas se aninham. Trata-se de uma resposta de Lampião a Maria Déa: [...] não, moça,o meu nome faz medo a quem já vive com medo de alguma coisa, num é ele não, e nem sou eu que faço medo, é a própria vida das pessoas que faz com que elas tenham medo de alguma coisa. Da mesma forma que computamos o discurso adversário, no processo de demonização do cangaço, também devemos reconhecer os investimentos em favor de representações que agregavam valores positivos. Essa humanização do cangaceiro não se origina apenas nas crendices comuns ao catolicismo, provém, com mais firmeza, na demanda por justiça, um sentimento que nasce na penúria do povo. Daí a espera por um herói, aquele justiceiro que lhe devolva a esperança, uma espécie de compensação psicológica aos oprimidos, diante das camadas superiores opressoras. 71 Como podemos ver, entre tantas representações associadas ao cangaço, figuram, principalmente, aquelas motivadas por razões políticas e religiosas, amálgama de onde emergem os beatos, os santos, os bandidos e os heróis. Como conseqüência desses condicionantes contextuais, reforça-se ainda mais essa aura simbólica que transita entre a bravura e a maldade. O medo, então, rondava o homem do sertão. Mas não era medo dos vivos, seres de carne e osso, era medo dos mitos. Medo maior ainda da seca, como se ela fizesse parte do mito fundador do sertão nordestino. Os relatos da seca são deprimentes, que o digam os leitores de João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos e José Américo. O sofrimento secular, que a falta de chuvas tem causado ao sertão e aos sertanejos faz parte do imaginário nordestino: ele teme a seca, ele a “espera”, com medo da fome (BEZERRA, 2011, p. 56). Com o progresso da técnica, do final do século XIX ao século XX, deu-se a incorporação de múltiplas expressões sensoriais, que se intercambiam, proporcionando novas capacidades de percepção, classificação, interpretação e transmissão do conhecimento. Essas conquistas aprofundaram os estudos sobre a memória social, ao mesmo tempo, focalizaram imagens que a literatura de cordel se encarrega de imortalizar, no imaginário do nosso povo, imagens que compõem o cenário de um sertão carente, um espaço feito de espinho e pedra. Naquele mundão, onde a lama virou pedra e o mandacaru secou, rebentaram muitos movimentos de dimensão social, seguramente, desencadeados em conseqüência do desamparo de uma população, que tinha fome de pão e de justiça, portanto cidadão marginalizado dos bens de cidadania. As tramas tornaram-se mais complexas, quando se somaram aos componentes sociais os ingredientes religiosos. Quando o povo clama por um Messias, mais vulneráveis se tornam as estruturas sociais. Este é o quadro. A origem é a terra. O palco, também as terras. As terras escaldantes do sertão serviram de palco ao drama vivido pelo Nordeste, na segunda metade do século XIX, na longa fase cinzenta de transição entre a organização tribal ou de clã e a moderna sociedade capitalista, em fase de industrialização. E esta é a versão que deveria ser adotada por todos os que assumirem a função de divulgar tais movimentos, para que a recepção dos textos se projete em mundos imaginários, determinantes de um novo devir. 72 3.5 O cordel Sabemos que a origem do termo “cordel” provém da tradição oral, e foi conduzido até o Brasil pelas mãos dos colonizadores portugueses, segundo constata a Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Os folhetos logo caíram na preferência do público popular, até porque descobriu, naquela literatura, um universo imagético com o qual se identificava. Isso pode ser interpretado como a busca dos efeitos da emoção no coletivo, à medida que as narrativas focalizavam temas que já habitavam o imaginário coletivo, ou seja, tratava-se de histórias que alimentavam referências culturais e religiosas enraizadas. Não podemos esquecer que a literatura de cordel colaborou, decisivamente, na construção de mitos, seja produzindo uma “apologia ao cangaço”, seja efetuando uma “diabolização” do cangaceiro, ao esconder os motivos sociais do cangaço (BEZERRA, 2011, p. 75). Como correia transmissora de alguns valores culturais nordestinos, os cordéis trazem sagas reelaboradas e ressignificadas a partir da visão de mundo dos cordelistas. Dessa forma, “tornam-se suportes de uma apropriação simbólica de ações históricas de inclusão social, instituindo-se como força alternativa de uma ação pedagógica”(MELO, 2009, p. 71). Oriundos de Portugal, Espanha e França, os cordéis foram popularizados a partir do Renascimento, com o investimento em projetos que incentivaram os relatos orais. No Nordeste do Brasil, o nome foi herdado, mas a tradição do barbante não se perpetuou: o folheto brasileiro pode ou não estar exposto em barbantes, mas, certamente, estará sendo declamado nas feiras, onde o povo aplaude e participa desse tipo de festa literária. Os primeiros folhetos de trovador, no Brasil, foram impressos no final do século XIX. Leandro Gomes de Barros e João Martins de Atahyde são dois dentre os primeiros poetas; livrinhos de sua autoria continuam sendo reeditados, com direitos vendidos e revendidos. As tiragens totais acabam sendo difíceis de serem contabilizadas, calculando-se em milhares e milhares de exemplares. Um dos nossos patronos é o paraibano de Pombal, Leandro Gomes de Matos (1865-1918) que, mesmo chegando a ser preso e marginalizado pela prática que abraçara, escrevia de maneira crítica sobre política e sociedade e, sempre que tinha oportunidade, aproximava-se de um aglomerado de pessoas, para vender seus versos, deitados em livretos. (ARAÚJO, 2011, p. 199). 73 As narrativas adotam temáticas da ordem do cotidiano popular: o herói popular nordestino, os ritos religiosos, folhetos sobre acontecimentos, tragédias amorosas, enfim, todas as tramas que recorrem aos valores e crenças de que foi construído o imaginário. São famosos títulos como O cachorro dos mortos, Juvenal e o dragão, História da donzela Teodora, e outros de Leandro Gomes de Barros (Pombal-PB, 1865; Recife-PE, 1918); também Casamento e mortalha no céu se talha, História da princesa da Pedra Fina, Batalha de Oliveiros com Ferrabraz, Como se amança uma sogra, Rolando no Leão de Ouro, Os sofrimentos de Alzira, estes de João Martins de Atahyde (Ingá-PB, 1880; Recife-PE, 1959), entre outros. Além desses temas, devemos lembrar os protagonistas, os quais se assemelham às figuras colhidas por Bakhtin (1999, p. 3) , a propósito do contexto de Rabelais “na boca dos simples e dos loucos”. São recorrentes, nas narrativas orais, a linguagem dos cegos, dos bobos, dos anões e dos palhaços, um desfile de imagens tipicamente nordestinas, neste grande picadeiro, de celebração popular. E, se a ordem é culto ao povo, não poderiam faltar os folhetos sobre o cangaço, temática que serviu de inspiração a famosos cordelistas, inclusive ao grande mestre de Pombal, Leandro Gomes de Barros. Enquanto suportes de uma apropriação simbólica de vozes sociais, os cordéis não se limitam a entretenimento, mas vão além, porque agregam funções alternativas de ação pedagógica. Vejamos o que diz Drummond sobre essa matéria: A poesia de cordel é uma das manifestações mais puras do espírito inventivo, do senso de humor e da capacidade crítica do povo brasileiro, em suas camadas modestas do interior. O poeta cordelista exprime com felicidade aquilo que seus companheiros de vida e de classe econômica sentem realmente. A espontaneidade e graça dessas criações fazem com que o leitor urbano, mais sofisticado, lhes dedique interesse, despertando ainda a pesquisa e análise de eruditos universitários. É esta, pois, uma poesia de confraternização social que alcança uma grande área de sensibilidade (ANDRADE, 2012). E era nas feiras públicas, segundo Melo (2009, p.69), “uma espécie de esquina do mundo”, que as vozes respondiam ao desejo coletivo de grandes celebrações. Na “língua do povo”, os cordéis anunciavam as histórias de reis e princesas, sapos e bruxas, narrativas reveladoras de tensões e representações que atravessam diversas culturas. “Na feira, a poesia é anunciada como um pregão, que faz do cordelista um mercador de sonhos coletivos [...]” (MELO, 2009, p. 72) 74 Nessa exposição sobre o gênero “cordel”, merece especial reflexão o papel da xilogravura que ilustra a capa ou outros espaços. A conjunção do texto com essa ilustração resulta na dupla dimensão semântica, pois agrega à matéria-prima de natureza lingüística um vocabulário especial, criado pela mão do artista. Escolher riscos e traços, com a adequada profundidade e direção, equivale à escolha das palavras pelo poeta. Justifica-se a opção pelo cordel, sobretudo, em virtude do interesse e consumo desse tipo de literatura pelos segmentos populares iletrados os quais, através desses folhetos, têm acesso às informações mais importantes do país. A linguagem simples, versada e mítica facilita a memorização e a divulgação, nas feiras nordestinas, através da oralidade ou da música (repentista). O cordel, em função de seu caráter genuinamente popular, revelou-nos a visão que os segmentos letrados do povo tinham do cangaço, de Lampião e, sobretudo, das mulheres. Apesar de termos poucos cordéis que se referem especificamente à mulher, isto não nos impediu de tentar compreender qual foi a opinião popular, disseminada nestes folhetos sob a forma de poesia, em relação a essa mulher. É interessante notar como Lampião é tratado nestes folhetos, numa mistura de bandido e herói, criminoso comum e justiceiro, mortal e imortal. Enfim, esses são elementos necessários à mitificação do próprio personagem, considerando-se que o cordelista apreende um acontecimento e, numa linguagem popular, o transmite aos seus leitores. Não importa quão verdadeiros sejam os acontecimentos da História contados no cordel, interessa que é uma prática discursiva, nascida da reatualização da memória popular. 3.6 O cangaço no cordel Na introdução dessa segunda parte teórica, discutimos a tese segundo a qual a realidade é fabricada, e pretendemos aplicar essa concepção à problemática que envolve o fenômeno chamado “Cangaço” – um fato histórico em cujo contorno se debatem imagens e símbolos, construídos no universo mental. É uma trajetória permeada por tramas que envolvem, ao mesmo tempo, o senso-comum e o enredo historiográfico, nascendo daí a tensão de que resultam, como já referido, os saberes elaborados e partilhados coletivamente, com a finalidade de construir, reformular e interpretar o real. A historiografia registra o movimento no século XIX, mas a pena de Franklin Távora traz, de forma romanceada, a figura do bandoleiro pernambucano José Gomes, o célebre Cabeleira, vivendo em meados do século XVIII. Considerado o pioneiro desses campeadores, 75 sua presença legendária vem atravessando séculos, cantado e encantado nos versos dos poetas populares. Esse protagonista desenvolveu sua atividade, rica em peripécias, a ponto de criar uma subcultura, dentro da cultura sertaneja. Do ponto de vista sociológico, a história do Cangaço pode ser demarcada pela crise da sociedade patriarcal nordestina, com a dinâmica política da sociedade sertaneja, baseada nas contendas entre coronéis. Há, porém, uma sobrevivência de resíduos aconchegados no imaginário social, um caldo que se processou através da simbologia heroica, nas diversas formas de representação artística, predominantemente na literatura popular. Trata-se de um movimento caracterizado pela combinação de conteúdos religiosos com carência social, por isso cercado de estereótipos os quais definem sua natureza dicotômica: enquanto para uns a figura de Lampião está associada ao paradigma de herói, como parte da tradição do universo lendário-regional, para outros, constitui a lembrança de um tempo de banditismo sanguinário e cruel. A questão é que a imagem pública de Lampião foi criada com base mais no que foi escrito do que nos feitos reais. A transformação de criminosos em heróis, portanto, pode não ser carregada de sentido como talvez acreditássemos. Muito dela reflete a necessidade dos contadores de histórias de alimentar a fome popular por fantasia (NARBER, 2003, p. 169). Os dados fornecidos pelos folhetos de cordéis nos permitem essa interpretação, vez que, imbuídos de tal diversidade de elementos, devem esbarrar numa estética e numa construção social transfigurada, porque contraditória. Nas “Memórias de Guerra e Paz” de Souza (1995, p. 13), faz referência a essa contradição com o seguinte depoimento: Apesar do medo, as mocinhas da época tinham um desejo curioso de conhecer aqueles homens valentes, cuja história se espalhava em todo território brasileiro. Na verdade, era uma ousadia a ação daqueles desbravadores das caatingas, ao mesmo tempo, desafiadores das autoridades constituídas. O chapéu de couro de veado, varqueta, verniz e ouro, a cartucheira de ombro, o cantil com capa bordada são adereços que, mesmo fora do uso pelo cangaceiro, promovem a presentificação, porque simbolizam o cangaço. Segundo Pernambucano (2010), “o símbolo transita entre o mistério concebido para decifração e o mistério natural. Assim, o signo-desalomão” representa, por um lado, poder e proteção e, por outro, devolução das ofensas ao 76 pretenso ofensor. A cruz-de-malta mira os quatro pontos cardeais, na forma de orientação espiritual e geográfica, pela força que assume na representação de “terra”. São imagens que podem ser associadas, ao mesmo tempo, ao inconsciente imaginário, e também à dimensão real, no caso dos que conviveram com o bando. “Verdade seja dita, que muitas vezes encontramos obstáculos quase intransponíveis, para separar o real da fantasia e da lenda” (ARAÚJO, 1985, p. 376). Os diversos papéis atribuídos aos cangaceiros (justiceiro, guerreiro, jagunço, herói ou bandido) estão inscritos no imaginário popular, mais do que isso, estão tatuados, formando uma esteira de estereótipos, em cuja fonte se contamina a produção simbólica individual e é contaminada pelo ambiente social, numa intensa troca cotidiana. Não queremos afirmar aqui que esse círculo vicioso tenha provocado um divórcio total com a realidade objetiva, na verdade, defendemos a tese de que alguns fatores, a exemplo da religião, serviram de suporte social e moral para promover desequilíbrios, num terreno já tão fragilizado pelas relações de poder e pela adversidade da natureza. O cangaço revisitado se revela de suma importância para demonstrar não apenas os fatos e eventos históricos em si, mas uma percepção do passado, que certamente evidenciará os interesses, os anseios e as necessidades que estão presentes nas suas representações sociais (VIEIRA, 2012, p. 57). Vários historiadores, a exemplo de Hobsbawm (2010), elencaram algumas características que correspondem à concepção de bandido social, destacando desde o cenário histórico, com motivos suficientes para levá-lo a este tipo de vida, passando pela original vocação para ser justiceiro, até o estágio da folclorização. De acordo com esta interpretação, havia condições específicas para a aceitação do bandido social, ou seja, não podia ser simplesmente um criminoso comum, tinha que possuir motivos convincentes - como vingar uma ação sofrida - para justificar sua inserção no banditismo. Enfim, O banditismo social em sua concepção se reveste de “liberdade, heroísmo e o sonho de justiça”. Sabe-se que é um processo em curso avançado, esse da robhoodização do nosso cangaceiro, representação que se perpetua, porque faz parte de uma construção da memória social. Essa dimensão imagética conta com a cumplicidade da literatura popular, em face do reconhecimento sensato do que possa ter havido de pungência cultural sob a exterioridade de banditismo. “A cultura sertaneja abonava o cangaço, malgrado o caráter criminal declarado 77 pelo oficialismo – voz litorânea tomada como intrusa naquele meio” (PERNAMBUCANO, 2010, p. 46). O cangaço rompe as fronteiras de sua limitação, para abrigar-se num espaço nãoconvencional, bem como ao situar-se num tempo mítico. Já foi lembrado aqui o risco que correm os historiadores de se distanciarem do real, para atender a sede popular por fantasia. Assim, ao utilizarem fontes orais na composição de livros, acabam elaborando uma escrita épica, próxima da literatura de cordel. Nesse cenário, delineado nas complexas relações entre história, literatura e memória, as marcas do Cangaço podem aparecer, nas performances midiáticas ora com rótulos pejorativos, como “facínoras”, “monstros”, “feras”, ora em direção ideologicamente contrária, recebendo o título de “Rei do Cangaço” ou “Governador do Sertão”. Vimos, em várias matérias veiculadas pela grande imprensa, a dimensão ocupada pelo cordel na disseminação desse mito. Os vários articulistas destacaram o poder que os folhetos exercem sobre o imaginário popular, seja descrevendo Lampião como um bandido, seja descrevendo-o como herói. Essa dualidade ainda sobrevive e, como um estigma, acompanha os contadores de história e os analistas sociais: uns constroem suas narrativas a partir da utilização de símbolos da cultura, de casos de campo; os segundos se reportam ao passado, amparados em instrumentos pretensamente racionais, para reconstruírem os fatos históricos. Seja qual for a modalidade, os resultados vão sempre redundar em desfechos marcados por apelos simbólicos. Nos cordéis, por exemplo, podemos constatar a figurativização do mundo, onde se destacam figuras bíblicas e mitológicas. Seguindo as pegadas impostas pelas marcas de valores e crenças, vamos aos poucos separando a memória social da memória histórica: enquanto esta privilegia o gênero documental, aquela se prende ao cotidiano de um povo, com o que há de mais original e humano. E esta memória sobrevive, ainda que não possa ancorar-se na realidade política do momento, sobrevive alimentando-se de referências culturais, literárias ou religiosas. Sobrevive nos versos dos cordelistas, nas novas versões das antigas narrativas, que passam por um processo de ressignificação, porém mantendo um cadinho da história original. A paixão de que se reveste a palavra, nos prolegômenos dedicados à cultura popular, reanimanos a proceder a esta busca de referências sobre as mulheres do cangaço. Porque a vida dessas guerreiras está figurativizada nos folhetos, revisitada à luz do discurso etnoliterário, por isso valorizando a tradição acima da razão. 78 São causos que falam do cotidiano do cangaço como se fora de grandes sagas, em cenários nababescos. Os recorrentes apelos míticos emprestam a esses versos a necessária afetividade para alcançar o milagre da metamorfose: o sujeito-enunciador transformado em ente coletivo, no processo histórico da cultura. Em função do apelo ao sincretismo, na literatura de cordel, as referências às mulheres podem ser comparadas a um espetáculo semiótico, que serve como ancoragem, na tentativa de se construir uma identidade cultural. Aliado a essa função representativa, recorre-se a um modelo semiótico que permita situar o discurso etnoliterário como coadjuvante, nessa colagem de elementos concretos, com o propósito de inferir um conteúdo subjacente, por si só, revelador de um lugar social. Voltemos ao resgate da tradição poética, para lembrar o esforço do Ocidente na tentativa de traçar seu perfil macroestrutural, em busca de sua afirmação política, uma conquista que passa, necessariamente, pelo movimento de libertação nacional. A realidade é assim construída, tomando-se como base imagens que se localizam nas camadas mais profundas do inconsciente e daí emergem em projeções gradativamente personificadas, à medida que fortalecidas pelos fatores culturais. Nesse espaço discursivo, se instaura uma tensão entre transparência referencial e função poética, desvendando a atividade do autor-narrador, com efeitos metatextuais explícitos ou não. A realidade nordestina se transforma, desse modo, num espaço literário onde dizer a verdade sobre si equivale a uma ficção, uma autoficção (RIBEIRO apud GODET, 2001. p. 132). Todos esses textos põem em foco o aspecto simbólico do cangaço, movimento que parece ter sido criado para caber numa fotografia, tamanho o cuidado do cangaceiro com a estética e com o fascínio do traje guerreiro de que se servia. Todos esses símbolos, se expostos a uma interpretação humanizada, devem ser entendidos como fruto da constituição de lugares da memória, de onde se extrai uma rede de afetos, de reflexão e de esperança. 3.7 A mulher no cangaço Pretendemos registrar, neste espaço, algumas referências não apenas genéricas, mas também específicas sobre as Mulheres do Cangaço, informações das quais nos apropriamos, entre outras leituras, a partir da obra de Antônio Amaury “Lampião: as mulheres e o cangaço” (1984). Este autor foi um dos poucos que se animou a conhecer a atuação, o sofrimento, o 79 pensar e o viver das mulheres que foram envolvidas na voragem do drama, desenvolvido no sertão nordestino, nas décadas, entre 20 e 40, do século XX. Nesta obra, ele estabelece um diálogo com Dadá e se mostra impressionado diante da memória prodigiosa de que é dotada essa cangaceira. Dadá conta detalhes do cangaço, após a entrada das mulheres. Depois do ingresso de Maria Bonita, muitas caboclas aproveitaram e foram viver em coitos sabidamente seguros, amaziadas com cangaceiros. A depoente relata, inclusive, um entrevero entre Lampião e Maria pelo fato desta ter cortado os cabelos, “Foram dormir com a boca amarga do gosto da discussão azeda que mantiveram, ainda queimandolhe os lábios” (ARAÚJO, 1984, p. 218). Como já sabemos, a primeira mulher a ser admitida no bando de Lampião foi Maria, isso no princípio da década de 30. Fora rompido, então, o círculo no qual só era permitida a presença masculina. Após essa primeira aventura, novas sertanejas foram convocadas para as fileiras do “exército lampiônico”. Essa inserção só ocorreu, entretanto, na segunda fase da vida cangaceira de Lampião, depois da travessia pelo Rio São Francisco, em agosto de 1928. Dentre todas as cangaceiras, foi Maria Bonita a única a merecer dos vates caboclos a honra de ter sua vida descrita em versos, em um cordel feito especificamente com essa finalidade. Escrito por Antônio Teodoro dos Santos, o folheto de título “Maria Bonita, a mulher cangaço” foi impresso em 1963 pela Editora Prelúdio Ltda., sendo o primeiro e único a falar só dessa cangaceira (AMAURY, 1985, p. 194). Recentemente, fomos assistir ao lançamento do livro da jornalista Wanessa Campos – A Dona de Lampião (2012) – em cuja epígrafe descobrimos uma semelhança com o nosso trabalho: “Quem é essa mulher que surge no deserto, apoiada no seu amado?” (Salomão: Cântico dos Cânticos). Há dois traços aí que podemos nomear como representativos do nosso percurso investigativo: primeiro, a indagação “Quem é essa mulher?”– tantas vezes nos flagramos fazendo essa pergunta; depois, o fato de apoiar-se no companheiro. Campos reúne nessa apaixonada reportagem alguns fatos, em que se misturam diferentes sensações tátil-visuais. Essa composição sinestésica é usada como recurso para a apologia ao universo cultural, construído a partir do ingresso de Maria Bonita no cangaço. Os dois componentes da epígrafe nos lembram a grande incógnita que tentamos decifrar, tal qual a Esfinge do mito egípcio, que propunha enigmas aos viajantes. No caso dessas mulheres, a hipótese levantada é a de que elas se escondem sob o nevoeiro das narrativas orais, envoltas nos mesmos elementos míticolendários que fizeram do fenômeno do cangaço o palimpsesto da cultura nordestina. 80 A temática da obra de Campos está focada na figura de Maria Bonita, tantas vezes descrita de forma idealizada, por exemplo, quando lhe atribuem dois predicados determinantes, como a beleza e a inteligência. Essas e outras qualidades, segundo muitos escritores, enfeitiçaram Lampião, tanto que o valente cangaceiro cedia quase sempre aos pedidos da amada. Mulher tão forte e poderosa só poderia ser conhecida como a “Pompadour do Sertão”. Pompadour viveu no século 18, na França. Foi amante declarada do rei Luís XV e exerceu com plenitude sua influência na corte. E amava o rei tal qual a Maria cabocla do sertão baiano, que reinou absoluta nas caatingas sertanejas durante oito anos, introduzindo no cangaço o período mariadeano (CAMPOS, 2012, p. 48). Para reforçar a biografia dessa mulher, a autora recorre a trechos de jornais que se referem a Maria Déa como “cabocla de grande beleza, de lindo perfil, de curvas perfeitas [...]”. Por essas e outras, foi imortalizada como Maria Bonita. Campos (2012, p. 49) mostra, também, que alguns poetas, inspirados por tais dotes, deixaram seus registros na literatura de cordel, entre eles, o famoso Zabelê, mestre da poesia popular: Se não fosse (sic) essas caboclas Não tinha graça o Sertão Não brincava (sic) os cangaceiros Não havia Lampião. Com a obra “A Dona de Lampião” (Prefeitura do Recife, 2012), Campos faz uma apologia a Maria Gomes de Oliveira, ou Maria Déa, ou à Rainha do Cangaço, ou a Santinha, ou a Maria Bonita. Sim, porque há um elenco de nomes próprios e papéis temáticos dirigidos a essa mulher: “A mulata da terra do condor / Dominava uma fera perigosa ...”, nos versos de Otacílio Batista, citados no Prefácio de Marcus Accioly. Chamam a atenção os títulos dos capítulos, todos marcados por um teor míticolendário. O primeiro “Era uma Vez ...” já acena para a abertura de um conto de fadas. Distancia-se, porém, do plano idealizado destas narrativas, quando figurativiza o cenário do cangaço: “A estrada tem solo seco, estreita e parece não ter fim. Alguns trechos são de pedregulhos, e a vegetação de algarobas, macambiras, mandacarus esparsos, facheiros, típica sertaneja, lembrando os Sertões, de Euclides da Cunha [...]”. A descrição ganha um efeito de sentido capaz de convencer o destinatário. E essa manipulação está potencializada nas escolhas lexicais, um elenco de nomes que garantem, por si só, a inquestionável passagem do plano da palavra ao plano do mundo referencial. É essa 81 precisão lexical que imprime ao texto da jornalista ancoragem veridiccional, que força o leitor a uma viagem pelas veredas sertanejas. “A Sedução das Sedas”, “Maria Ousada e Requintada”, “A Pompadour do Sertão”, são outros títulos de caráter laudatório, que vêm, entre outras inferências, atestar a paixão da autora pela matéria em questão. Wanessa capricha nos epítetos, para dar ilusão de realidade, de forma a construir um lugar de plena realeza para a “DONA” de Lampião. Não são apenas os títulos, mas as fotografias, as referências bibliográficas, o diálogo com outros discursos, tudo isso para atestar o saber compartilhado e a construção da memória social. O universo figurativizado que Wanessa expõe aos olhos dos leitores também se encontra nos depoimentos colhidos, como o de Alceu Valença: “Maria Bonita é, sem dúvidas, um dos maiores mitos femininos que habitam o imaginário coletivo brasileiro”. Não faltou, à obra paginas 98 e 99, uma lista de mulheres que fizeram a história, às quais a autora atribui qualidades do tipo “mulheres fortes, decididas, mesmo numa sociedade machista, e com um detalhe marcante: nunca recuaram”. Em seguida faz um elenco de personalidades: Golda Meir, Indira Gandhi, Isabelita Perón, Violeta Chamorro etc. O último nome da lista é Maria Gomes de Oliveira – Maria Bonita, a primeira mulher cangaceira (Brasil, 1930). Esse cotejo coroa, decididamente, a homenagem feita no livro. O entusiasmo de Wanessa não para por aí. Espalha-se pelas referências acerca dos adereços dos candangos. Na grife criada por Zuzu Angel, uma produção exótica, que fugia da moda importada, para apresentar uma linha alternativa, utilizando rendas, chitas, tecidos estampados, pedrarias e renascença. Todos esses recursos, de que a jornalista fez uso, sejam os aspectos culturais, as analogias, os versos, os títulos, foram colhidos durante dois anos de pesquisa. E servem para convencer os leitores de que essa mulher está imortalizada na literatura, na música, na moda, no cinema, enfim, nas artes. “Maria Bonita rompeu paradigmas, virou musa, mito, e fonte de inspiração até hoje.” – continua Campos, a autora. A paixão escondida nesse depoimento nos faz lembrar o dialogismo bakhtiniano: “Não são palavras o que pronunciamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, agradáveis ou desagradáveis[...]” (CAMPOS, 1999, p. 95). Ouvindo a voz da jornalista, ancoramos na atmosfera do não-dito, lá onde são construídas as imagens, materializadas depois em experiências coletivas. O texto que acabamos de analisar não foi escrito em versos cordelinos, mas tem as mesmas características do discurso etnoliterário, situando-se na ordem da afetividade e da enunciação coletiva. A literatura popular se alimenta dessa linguagem alegórica, com forte 82 recorrência à figurativização, o que propicia a associação do mundo natural construído aos aspectos culturais subjacentes. Quantos anos nos separam da saga das mulheres no cangaço? Esse mundo figurativizado já povoa a memória, flutua nos depoimentos, nos folhetos de feira etc. Mas a inquietação das indagações só emergiu tempos depois, neste e em muitos outros textos que investigam a trajetória sociopolítica das mulheres do cangaço. A operação a que procedemos tenta casar as tramas, que nos apresentam aos olhos, disseminadas pelos cordéis, com as nossas inquietações. Esse e outros depoimentos nos trouxeram, finalmente, o tempo das perguntas. Algumas dessas perguntas foram suscitadas pelo depoimento da valente DADÁ, mulher de Corisco. Colhemos essas informações em um livro da filósofa e professora Lia Zatz, de título “DADÁ – Bordando o Cangaço” 2004. Com a permissão da autora e dos leitores, transcrevemos um trecho da última página (sem número): Seu nome verdadeiro era Sérgia. Seu apelido era Suçuarana, dado por um primo. Ela era a filha mais velha e cuidava da casa e dos irmãos, enquanto os pais cuidavam da roça e dos animais. Não foi à escola e queria muito aprender a ler e a escrever. Com doze anos, conheceu Cristino Gomes da Silva, cujo apelido no cangaço era Corisco, braço direito de Lampião. Corisco se encantou com a menina,pedindo logo ao pai dela que a guardasse, para que se casassem quando ela estivesse mais velha (ZATZ, 2004). Assim começa a saga de Sérgia Ribeiro, a Dadá de Corisco. Dos sete filhos nascidos no cangaço, apenas três vingaram: Maria do Carmo, Maria Celeste e Sílvio. Mesmo perdendo uma perna na trágica batalha que culminou com a morte de Corisco, Dadá continuou sua luta, bordando embornais e bordando sua vida. Trouxe as duas filhas para o seu convívio, mas o menino só veio a conhecer a mãe quando já se tornara rapaz. Trabalhava como costureira e continuou fazendo vestimentas paramentadas, como as que inventava no tempo do cangaço, e com isso conseguiu criar as duas filhas e ajudar a criar os muitos netos que teve. Dadá morreu em 1994, com quase oitenta anos. Lia Zatz coloca como epígrafe do seu livro um episódio, ocorrido na Bahia, envolvendo Dadá e o sociólogo Carlos Alberto Dória o qual, ao tentar uma entrevista com a ex-cangaceira, ouviu o seguinte desabafo: “Todo mundo para quem eu dou entrevista fica famoso: Jorge Amado, Glauber Rocha, Cacá Diegues. E a Dadá aqui, no sufoco. Costurando. 83 De hoje em diante, vai ser diferente. Só dou entrevista se pagarem. A paga é comprar uma bolsa do cangaço”. Segundo o sociólogo, o preço era alto, pelo menos para ele que, na época, era ainda estudante de ensino médio. Mas confessa que se virou e conseguiu a entrevista pelo valor estipulado por ela. Saiu dali vitorioso: com as informações desejadas e bem guardadas numa bela bolsa, bordada com capricho. Diz, ainda, que valeu a pena, sobretudo quando lê, com grande emoção, o livro de Zatz, escrito trinta anos depois do fato acima relatado. Na obra em foco, pudemos observar o mundo figurativizado de Dadá, com todos os componentes de uma realidade cultural complexa: ela procura superar as imposições do meio, entregando-se àquele amor sem limites. Essa mulher, assim como tantas outras do cangaço, tenta criar compensações para aquilo que a realidade não se propunha a dar. Foi Sérgia Ribeiro, enquanto conviveu com os pais; Suçuarana, no meio das brincadeiras inocentes, com os primos; depois, recebeu o apelido carinhoso de Dadá. Assim a chamava Corisco a quem, confessa, ter odiado muito, porém, após alguns anos de convívio, este estado de disjunção foi transformado em conjunção, conforme revelações à professora Zatz (2004, p. 39): É, eu pensava que o ódio que eu sentia por Corisco, a mágoa que trazia dentro do coração, eram tão grandes como o sertão, não iam se acabar nunca. Mas quem é que não acaba amando o homem que carrega a gente no colo pra gente dormir? Sérgia Ribeiro merece, pois, ser lembrada, nesta historiografia, sob pena de incorrermos na injustiça de omitir um quadro importante da hoste. Foi raptada pelo cangaceiro quando não tinha ainda treze anos completos. Viveu muito tempo torturando-se pela mágoa de ter sido violentada, mas Corisco soube conquistá-la, e os dois conheceram a felicidade só alcançada pelos que se entregam por amor. Os cangaceiros são unânimes em louvar a coragem desta sertaneja que viveu junto ao povo de Lampião e foi respeitada e amada pela cumplicidade em relação ao companheiro e ao bando. Assim atestam as palavras da escritora Fátima Menezes: Existiu, além de muito amor, cumplicidade, companheirismo entre estes dois. Foi Corisco quem ensinou Dadá a ler e foi no tiroteio comandado pelo tenete Zé Rufino que Dadá perdeu uma das pernas e perdeu também seu grande amor (MENEZES, 1994, p. 22). Colocamos nos Anexos dois registros, de onde colhemos os depoimentos de Sila e de Dadá. O primeiro foi transcrito da obra “Memórias de Guerra e Paz”,1995, cuja edição contou 84 com o apoio da UFRPE. O livro reúne depoimentos de teor tão elogioso, que chegam a significar uma apologia à mulher-Sila, como se pode conferir no prefácio de Sônia Lucena Marinho: “Ela é símbolo da verdade, do amor e da dedicação”. O segundo depoimento, colhido de duas fontes: um comovente Documentário, realizado pela Rede Globo – “A Mulher no Cangaço”, 1976 e, como já informado, do livro de Lia Zatz, sob o título de “Dadá: bordando o Cangaço”. Ambos apresentam, como enfoque principal, a situação feminina no movimento, mas a exposição de Zatz tem um recorte mais direcionado, enquanto aprofunda a vida e a atuação de Dadá. O documentário contempla a história de vida de várias cangaceiras, descrevendo as agruras enfrentadas no Raso da Catarina, a vida errante, enfim, todos os desafios que o Cangaço tem para oferecer. O cenário também prestigia a figura de Sérgia Ribeiro, a Dadá de Corisco, do ponto de vista da narrativa, uma mulher que superou situações-limite, ao lado do querido companheiro. Essas famosas cangaceiras, companheiras de Zé Sereno e Corisco, respectivamente, têm algo em comum, a saber: o ingresso involuntário no cangaço. Foram sequestradas e, só após um certo tempo de convívio, conseguiram sobreviver ao drama, no momento em que reencontraram a paz, ao se apaixonarem pelos cangaceiros seqüestradores. Essa linha divisória contorna, por um lado, o alívio da adesão, dessa vez, voluntária, porém, por outro lado, atrai o legado do sofrimento e do anonimato. Nestes textos, vamos verificar estratégias de argumentação/veridicção, com atenuantes mais racionais, já que não lidam, diretamente, com os elementos do inconsciente simbólico, como os folhetos. Mesmo assim, não deixam de invocar imagens reveladoras de rótulos valorativos, em relação ao papel social feminino. Impossível libertar-se dos preconceitos e estereótipos, quando se analisa o contexto geral, apontando-se para uma direção ideológica, no caso de se analisar o movimento como consequência de uma crise histórica e política. Reforça essa visão o depoimento da socióloga Rosa Bezerra, uma descendente de cangaceiro, de cujo livro “A Representação Social do Cangaço” o professor Erivam fala com respeito e admiração: “Rosa Bezerra consegue universalizar o tema, construindo sua narrativa a partir da utilização de símbolos da cultura, de casos de campo e de relatos de personagens remanescentes, entre eles, Generino Bezerra da Silva, seu pai, um dos protagonistas da saga do Cangaço”. Rosa coordena, na UBE, o NEC (Núcleo de Estudos sobre o Cangaço) um espaço para lançamento de livros, palestras e discussões. Participamos algumas vezes desses encontros, sobretudo quando os títulos eram provocativos, como a palestra do professor Erivam Felix 85 Vieira, que discorreu sobre a simbologia do Cangaço, um viés que dialoga com o corte da nossa pesquisa. O interesse pela temática nos animou a solicitar à escritora um depoimento sobre as mulheres do cangaço ao que ela, prontamente, atendeu, mandando por e-mail um belo texto no qual expõe sua posição sobre a matéria. Sua argumentação provoca nossa hipótese acerca da opacidade identitária, à medida que assume a posição de que as mulheres do cangaço são protagonistas, conforme podemos comprovar lendo o seguinte trecho do depoimento: “As diversas atitudes apresentadas pelas cangaceiras nos remetem a um tipo de préfeminismo, gestado na caatinga: sem obrigação de atividades domésticas, sem um lar para cuidar, sem filhos para criar. Dessa forma, a mulher no Cangaço ressignifica seu perfil psicológico, até então regido pelo modelo hegemônico de mãe e dona de casa [...]. A presença feminina no Cangaço, sem que fosse vítima de agressões físicas (exceção para o adultério), revela um tipo de família nômade em que a mulher era colocada em segurança durante as refregas, e demonstrando que as cangaceiras saíram da periferia de suas vidas, para se tornarem “sujeitos” de sua trajetória, não permanecendo como coadjuvante na história de outrem.” Esses depoimentos foram escolhidos com a finalidade de se fazer um cotejo com os cordéis que revelam a versão de Maria Bonita. O diálogo entre os dois gêneros gera uma tensão dialética, não pelo ponto de vista em relação ao cangaço, mas pelo deslocamento das rupturas de tempo, espaço e modo. Sila e Dadá amargaram, primeiro, a dor da desterritorialização, e o que representava o mundo óbvio para Maria, soava para as duas como desejo distante de se realizar. Como utopia. Após esse doloroso período de adaptação, reconciliaram-se com os amantes, consequentemente, com o cangaço. A partir de então, assim como Maria Bonita, tornaram-se as “marias” do bando. Desterritorializadas das origens, porém integradas a um novo mundo, onde desfrutavam as delícias de um amor real, também cúmplices de fábulas e de fantasias. Trata-se, pois, de tramas diferentes, já que Maria entregou-se voluntariamente : Para viver um grande amor / Perdi minha mocidade / Eu vivia no sertão / Com a falta de verdade / Não havia violência / Muito menos crueldade. São versos de Susana Morais, um folheto chamado “Sombras do Cangaço”, revisado e reeditado em Recife, em 2010, também com temática que faz apologia à coragem e determinação de Maria Bonita. Também merece uma referência, neste espaço, o casal Zé Sereno e Sila. Ele, que recebeu de Lampião o apelido de “Macaquinho”, em razão do seu biotipo franzino, soube conquistar o respeito de todos pela sua coragem e ousadia. Ela, que sofreu horrores por ter 86 sido roubada ao seio da família, obrigada a entrar no cangaço, amargou a ausência dos irmãos, das brincadeiras e das bonecas. “As suas bonecas, disse-me ela, levara junto com as poucas roupas que conseguira juntar”. (Idem, p.22) Sila viveu dois anos no cangaço, de 1936 a 1938. E foi sempre lembrada por suas habilidades na arte de costurar e bordar, dotes especiais que lhe foram ensinados por Dadá, a mestra na confecção de adereços.Como discípula exemplar, os bornais de Sila eram confeccionados com esmero, por isso foram admirados, inclusive, por Lampião. Após ouvir os elogios, ela presenteou o chefe do bando, e ficou feliz ao vê-lo usar, todos os dias, as peças confeccionadas por suas mãos. As mulheres eram muito vaidosas. Para andar na caatinga, usavam uma roupa especial: um vestido de mescla cinza clara, mangas bem compridas, chegando até os punhos. Estes eram bordados com matizes de várias cores. Como adorno, usavam colares, pulseiras e anéis de puro ouro, enfeitados com pedras preciosas (Ibidem, p.15). Como já anunciado, pretendemos, com este trabalho, revisitar o fenômeno do Cangaço, mais especificamente, as Mulheres do Cangaço, cuja trajetória histórica foi analisada à luz de teorias extraídas da Semiótica da Cultura. A análise, como já sabemos, foi feita em um corpus formado por cordéis – este gênero que recebeu influência da cultura popular, e que tão bem reflete os valores e crenças com os quais foi construída a memória social. Diferente da memória histórica, que privilegia o gênero documental, a memória social se prende ao cotidiano de um povo, com o que há de mais original e humano. Sem precisar do apoio da lógica racional, que dita os critérios de tempo e de espaço, este plano está marcado pela atemporalidade e, quanto à dimensão espacial, remete ao não-lugar, ou ao “lugar-lá” – à utopia. Esse resgate terá como alvo a construção das representações femininas, tangidas para este cenário, cuja caracterização desafia a existência de fronteiras entre a história e a ficção. Interessa-nos investigar os discursos, histórico e culturalmente constituídos, para chegar ao universo ambivalente, porque, como já referido, sitiado pela tensão entre a fantasia e a realidade. Assim pretendemos seguir as pegadas das mulheres do cangaço, cruzando cordéis e memórias, num esforço interdisciplinar que lida, por um lado, com o eixo da representação e, por outro, com o da interpretação. Segundo Vieira (2012, p. 32), “as mulheres entravam para o cangaço atraídas pela mística da riqueza, da aventura, por amor ou rapto. Não era exigida a sua função guerreira”. 87 Essa concepção não pode ser rebatida sem reserva, devemos reconhecer que há pertinência na informação, antes de tudo, pela certeza da eficácia simbólica do cangaço. Nossa literatura está bastante recheada de representações sobre as figuras femininas no Cangaço. Campos (2012), cujo livro já foi citado, traz duas referências interessantes: a primeira provém da imaginação de uma escritora francesa, Élise Grunspan-Jasmin, que estabelece um paralelo entre Maria Bonita e Madame Pompadour, num cotejo em que mostra a deslumbrante beleza de ambas e o fato de terem seduzido homens poderosos. A segunda referência vem de Hobsbawm (Apud CAMPOS, 2012) ao fazer a comparação de Dadá com Lady Macbeth, tomando como parâmetro a coragem e disposição para chefiar um bando. Convém também registrar algumas ilustrações de escritores que colocaram Maria Bonita no panteão de heroínas-guerreiras, ao lado da francesa Joana D‟Arc, das brasileiras Anita Garibaldi, Ana Néri e Maria Quitéria. Mulheres que simbolizam coragem e valentia na luta por seus ideais. A análise da imagética do cangaço nos revelou aspectos estéticos da indumentária feminina evidenciando que foram desenvolvidas e adaptadas para aquele tipo de vida. Todos nós lembramos de Zuzu Angel, estilista famosa, que buscou uma linha alternativa utilizando rendas, chitas, tecidos estampados para exibir em seus desfiles. Essa coleção (1975) ganhou o título de “Mulher Rendeira e Maria Bonita”, com peças e acessórios pinçados da cangaceira, com pedras e renda renascença nos detalhes. Mas esse manequim, segundo Marques (2006), não passava de um padrão peculiar, que deve estar relacionado à imagem que os cangaceiros tinham de si mesmos. Era sobre os homens que as atenções deviam estar preferencialmente fixas, e na estética masculina concentrava-se o apuro. Nesse caso, podemos concluir que o modelo estético feminino encontrava-se fora do cangaço? Mais uma vez convém retomar a tensão dialética entre identidade individual e identidade de grupo. As cangaceiras herdaram daquele contexto a admiração e os desafetos. A vida nômade e cheia de riscos, enfim, todos os símbolos, inclusive a imagem ambígua de herói x bandido. “A positividade da sua valentia parece apoiar e reforçar a virilidade do companheiro. O que terá restado da honra feminina no cangaço?” (MARQUES, 2006, p. 184). Na obra em foco, pudemos observar o mundo figurativizado de Dadá, com todos os componentes de uma realidade cultural complexa: ela procura superar as imposições do meio, entregando-se àquele amor sem limites. Essa mulher, assim como tantas outras do cangaço, tenta criar compensações para aquilo que a realidade não se propunha a dar. 88 Desde a remota antiguidade, a vida guerreira e os guerreiros fascinaram as mulheres. E isso aconteceu em todos os povos e lugares, nas tribos mais primitivas, em monarquias hereditárias e nas sociedades com o mais alto grau de civilização (ARAÚJO, 1985, p.18). Reforçamos a ideia de pesquisa interdisciplinar porque, ao mesmo tempo em que contempla elementos epistemológicos das teorias causais da referência, também recorre aos instrumentos da semiótica cultural, sem falar nos investimentos no campo do discurso, que é o lugar de encontro das subjetividades. Em relação ao primeiro e ao segundo plano, valemo-nos de registros que cercam o imaginário, na tentativa de superar o abismo entre representação simbólica e o objeto da representação. Quanto ao terceiro viés, também no plano da discursividade, busca-se desnudar esse sujeito, descobrir seu papel, seu lugar, sobretudo, busca-se enveredar pelo universo polifônico para, dentre tantas vozes, conhecer o discurso da mulher do cangaço. Na dissertação de Mestrado, defendida em 2005, Ilsa Fernandes Queiroz (UFRN) cria uma tensão dialética entre duas concepções, adotando o título “Mulheres no Cangaço: amantes ou guerreiras?” Segundo a professora, seja qual for o papel, dentre os dois, a figura da mulher ficará sempre na sombra, pois os registros, implícita ou explicitamente, realçam sempre o mito da masculinidade. A pesquisadora acredita que essa lógica oculta um papel mais significativo que as mulheres tiveram no Cangaço e, para não incorrer no mesmo erro da história oficial, contrapõe ao protótipo “amantes” um outro também emblemático – “guerreiras”. E explica com que intenção reconstrói os termos e amplia suas conotações : A “guerreira” a que nos referimos tanto pode ser a que empunhava armas de fogo, como a que se contrapunha à dominação masculina de alguma forma. “Guerreira” passa a ser, então, uma categoria central de análise, entendida como mulheres determinadas, lutadoras, intuitivas e transgressoras (QUEIROZ, 2005, p. 23). Como vimos, será inevitável a problematização instaurada a partir de duas representações sobre essas guerreiras, vítimas não só da rejeição cultural da sociedade, mas também dos próprios cangaceiros, que consideravam as mulheres uma ameaça à ordem social do grupo. Enfrentaram não só a vida nômade, mas também outros desafios próprios de um contexto, onde havia pouca descrição dos hábitos e vidas psicológicas de mulheres talentosas, porém muitas referências a respeito das fraquezas dos seres humanos, em geral, e das 89 mulheres, em particular. Conhecidas apenas como “amantes”, essas mulheres não mereceram, na literatura, o estatuto de “guerreiras”, a não ser quando esse termo fica restrito ao uso de armas de fogo. As cangaceiras foram protagonistas anônimas, sim, mas pudemos coletar muitos registros, na pesquisa bibliográfica, que atestaram as mudanças instauradas nos bandos a partir do ingresso das companheiras. Nos estudos de Araújo (1985), visualizamos um cangaço antes e depois das mulheres. Segundo esse pesquisador, elas tornaram os cangaceiros mais humanizados e sensíveis ao universo tradicionalmente feminino, a ponto de modificarem o comportamento sexual, bem como passaram a participar dos partos, além de se tornarem mais vaidosos em relação à sua vestimenta. Amaury, como referido, um dos poucos pesquisadores que se ocuparam com essa matéria, recorre a figuras marcadas na história, como Helena de Tróia e Cleópatra do Egito, para um cotejo com as heroínas dos movimentos sociais em Canudos, no Contestado, no Pau de Colher, no Reino da Pedra Bonita, no Núcleo do Beato Lourenço, na Serra do Araripe etc. Em todos esses e episódios, a figura da mulher sertaneja se destaca. Tanto lutando como auxiliando os lutadores. Tanto vivendo o drama, a tragédia, como sofrendo suas conseqüências, participando dos mesmos, não se omitindo (ARAÚJO, 1985, p. 18). Continuam a desfilar, nestes depoimentos, as personagens lendárias dos contos de fada, mas os cenários não são os vales floridos e os verdes mares, são os caminhos serpenteados do Raso da Catarina, na vastidão da caatinga. Nesses caminhos da errância humana, as mulheres conheceram dias de glória, mas também enfrentaram as agruras de um Sertão tangido pelas crises sociais:“Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” (GUIMARÃES ROSA apud ZATZ, 2004, p. 56). O Sertão de Guimarães Rosa, de Euclides da Cunha e de Graciliano Ramos é o mesmo Sertão do cangaço, um espaço que se define como unidade semântica, que reagrupa representações sociais, para exibir o mesmo cenário de contradições. Seja metamorfoseado em Baleia, seja transformado em beato louco, ou em monstros, ou em heróis, seja qual for a representação, ali o homem estará sempre em busca de sua identidade sociocultural, em busca de sua função histórica. Tudo isso representa uma ressignificação dos papéis, inclusive uma desconstrução do imaginário cultural associado a práticas de gênero – tanto em relação às mulheres quanto aos homens cangaceiros, ambos reorganizados em outros moldes. Não queremos transformar esse 90 texto num estudo de gênero, antes pretendemos nos apoiar em pesquisas que discutem questões concernentes a linguagem, a identidade e a memória social, para analisar as experiências individuais, vividas e construídas coletivamente. Para chegar ao objeto de estudo, procederei a uma análise mais ampla, ou seja, partir do universo mítico do cangaço, onde se confundiam as fronteiras acima citadas. Em seguida, chegar à questão específica: qual o lugar dessa mulher? Quem são essas mulheres? Um misto de princesa e cigana, valentia e timidez. Assim como bordam seus utensílios, bordam os caminhos da vida, tentando imprimir cor e alegria àquele mundo, sempre ameaçado por inimigos e ciladas. As Marias, Dadás e Silas não poupavam gestos de carinho, não se cansavam de espalhar amor, em forma de sexo, aos companheiros; em forma de amparo, aos colegas do bando. Companheirismo e fidelidade: eis os lemas que norteavam a conduta dessas guerreiras. Entregues a um destino incerto, acreditavam na proteção divina, por isso seguiam firmes, nômades e com a esperança quixotesca da utopia. 4 ANÁLISE SEMIÓTICA DOS FOLHETOS DE CORDEL 4.1 “Lampião: herói de meia-tigela” 4.1.1 Preliminares Para a aplicação das categorias analíticas, nos dois primeiros fragmentos, privilegiamos aspectos da literatura popular, que refletem a influência de fatores sociais, ideológicos e religiosos, na construção do imaginário. São dois enunciadores com pontos de vista contraditórios: de um lado, Manoel Monteiro se vale de um discurso agressivo, para condenar o cangaço; por outro lado, a voz de Varneci Nascimento, que procura isentar o movimento da versão criminosa, atribuída pelo discurso dominante. Uma incursão nesse universo, seguramente, revelará as divergências entre versões divulgadas pelos jornais da época, em relação às narrativas originárias da tradição oral. Segundo Bezerra (2011, p.17), “o fenômeno nordestino, chamado Cangaço, sempre foi retratado pela imprensa com adjetivos pejorativos, ao longo do tempo, o que faz com que o grande público desconheça o viés social desse movimento”. Convém reiterar que começaremos por um cenário mais abrangente, ou seja, o fenômeno como um todo. Esse cotejo entre os dois cordelistas vem mostrar como as escolhas 91 podem promover a manipulação de símbolos para difamar o cangaço. Ao mesmo tempo, como é possível apelar para modelos cognitivos, de forma a permanecer viva na memória social da comunidade sertaneja a figura do guerreiro, do herói, que luta para libertar o povo da opressão e das injustiças. Para abrir esse tópico, escolhemos o cordel “Lampião: herói de meia-tigela”, do cordelista Manoel Monteiro, da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, editado em Campina Grande, 2ª Ed. junho de 2011, com uma produção alinhada a ideias defendidas pelos detentores do poder na região. Bezerra (2009, p.19) se referiu ao discurso desse segmento da seguinte forma: “A leitura que eles fazem sobre o cangaço se detém em duas formas de comunicação: comunicar com estardalhaço, ou silenciar quando convém ao sistema.” Parece-nos que o cordel em questão optou pela primeira forma, e assim ganhou feição caricatural. Aliás, essa é uma característica do gênero, ao se tratar do tema cangaço: por um lado, intimida através de uma leitura discriminatória, como se pode constatar no cordel de autoria de Manoel Monteiro – da Academia Brasileira de Literatura de Cordel – “Lampião: herói de meia tigela [...] Sobre a vida dessa escória [...] do facínora Lampião”. O título “Lampião: herói de meia tigela” já antecipa a posição assumida pelo autor, que faz questão de pintar o cangaceiro como bandido sanguinário, reforçando essa posição em comentário expresso na contracapa do folheto. Com o acervo de imagens figurativizadas, o narrador desenha, de forma caricatural, o arquétipo de um ser da mais fina crueldade, por certo, um projeto de demonização. Vamos conferir as escolhas: beijar os pés da maldade / amar a perversidade / ter a mente enfermiça / figura amaldiçoada [...]. Terminado o cordel, não satisfeito com o desfile de títulos pejorativos, ainda foram registradas algumas notícias de jornais contando um pouco da história de Lampião, é claro, reiterando a mesma opinião, dada a esteira de atributos negativos. Na memória do nordestino, ficaram gravadas imagens aterrorizantes, medonhas, emergentes das fábulas e lendas transmitidas pela oralidade. Então, o nome “cangaço” funcionava como um freme ao qual eram associadas as figuras desse imaginário macabro. Ademais, a imprensa oficial se encarregava de consolidar esse sentimento de repulsa, aliás, dirigido a qualquer movimento de caráter insurgente. De acordo com essa formação discursiva, o cangaço foi passado para muitas gerações como um movimento de feição criminosa, cujas práticas perversas provocavam pavor. Por ser um tema que suscita muitas versões, deve ser reexaminado, com o rigor exigido pela ciência, para que sejam evitadas as distorções e os estereótipos. 92 4.1.2 Percurso da significação Neste primeiro recorte, a sintaxe narrativa aponta para quatro sujeitos semióticos, cujos percursos serão analisados separadamente, com enfoque para as três etapas da análise. Com relação ao S1, figurativizado por Lampião e sua família, podemos identificar a autodestinação, no caso, representada pelo trabalho do cotidiano em busca da subsistência. Assim, perseguiam seu Objeto de Valor, que era administrar o roçado e um pequeno rebanho, ou seja, os bens que lhe garantiam a sobrevivência. Viviam, portanto, em conjunção com seu OV. Mas esse percurso é quebrado quando os filhos se tornam rapazes e, na versão do enunciador, semeadores de discórdia. Eles provocaram um incidente amassando um chocalho de propriedade do vizinho, e daí: Esse pequeno incidente De um chocalho amassado Uma brincadeira insossa E um pai despreparado Acenderam no Sertão O facho de um lampião Até então apagado. A consequência desse fato foi o assassinato do pai, José Ferreira, a mando do fazendeiro, dono da propriedade vizinha aos Ferreiras. Ao tomar conhecimento da morte do esposo, Dona Maria definha e, após curto espaço de tempo, também vem a falecer. O percurso narrativo do Sujeito 2 está, inevitavelmente, determinado por tais acontecimentos. O Sujeito 2 está figurativizado por Lampião, que também se declara autodestinador, vivendo para perseguir a vingança e a destruição – seu OV. Contou com a ajuda do Padre Cícero Romão, de Juazeiro do Norte, não para alimentar tais sentimentos, mas para afastar aquela obsessão. Foi este Adjuvante que conseguiu o posto de Capitão para o cangaceiro. 93 Dário Adjuvante: Padre Cícero Oponente: João Bezerra (vinga nça) Dor (vingança) S2 OV (destruição) Figura 3 – Percurso narrativo do S2 Lampião, entretanto, não desistiu do objetivo traçado, buscando no cangaço uma base para realização de sua meta. A opção lhe valeu a repulsa de um segmento da sociedade, para o qual esse caminho representava o ingresso definitivo na marginalidade. Só entrava no cangaço Quem odiasse a justiça Invejasse os bens alheios Fosse um servo da cobiça Beijasse os pés da maldade Amasse a perversidade [...] Assim seguiu Lampião seu percurso narrativo, aderindo a todos os métodos que a vida nômade e aventureira lhe reservava. Foi tachado de facínora, criminoso, e outros adjetivos do mesmo campo semântico. O foco da narrativa, então, se concentra no título de “bandido”, dirigido a Lampião, em consequência, ao Cangaço, entendido como movimento marginal e de resultados desastrosas. O Sujeito3 é Maria Bonita que, embora pese sobre Lampião a pecha de bandido, ela sonha em viver com ele – seu Objeto de Valor. Nesse contexto, a figura do ex-marido surge como Oponente , espécie de antissujeito do S3, pois vive a ameaçar a mulher, tachandoa de prostituta. Essa voz oponente encontra respaldo nas regras morais da sociedade, um julgamento explícito nos versos do cordel em foco. Para finalizar o elenco de sujeitos semióticos, vem o S4, figurativizado pelo Capitão João Bezerra, cuja destinação era perseguir o cangaço, ou melhor, extirpar aquilo que representava um Mal, a vergonha do Nordeste. O enunciador, em comum acordo com os projetos da Volante, anuncia o S4 com palavras elogiosas: 94 Como “bravo” comandante Que estava dando as ordens Aos meninos da Volante [...] Assim o cordelista se reporta à tragédia final, não poupando o público ouvinte, ao contrário, carrega o discurso de um teor tirânico, ao dizer “Por isso foi bom Angicos / Bom que tivesse João / Foi bom que João tivesse / de um coiteiro indicação”. Enfim, os versos fazem apologia ao massacre de Angico, à grotesca degola de Lampião e sua gente, promovida pelo Capitão João Bezerra o qual, ao pôr fim ao cangaço, entra em conjunção com seu Objeto de Valor. Com base nesse desfecho, podemos dizer que, do ponto de vista da Semântica narrativa, o Sujeito4 transita da competência à ação, promovendo as transformações demandadas pelos coronéis e grandes proprietários de terras. Assim, interrompe o percurso do S2 e do S3 os quais, na fase da sansão, são castigados com a morte. No campo da discursivização, fica evidente a fase de manipulação, em que o Destinador recorre a um discurso de intimidação, manifestado a partir do título “meia tigela”, e acentuado através das escolhas dos lexemas “escória”, “crimes” e “facínora”. As marcas enunciativas delimitam o espaço, a partir da origem – Vila Bela (hoje Serra Talhada) – na voz de um enunciador raivoso: “Por ser uma região / que viu nascer Lampião / figura amaldiçoada.” Com tal elenco de conceitos pejorativos, foi construído um papel temático, figurativizado na categoria de “bandido”. Essa versão provém de um segmento que ainda mantinha o ranço feudal e desdenhava das causas históricas, determinantes do fenômeno do “cangaço”. Os elementos analisados, nessa fase da discursivização, constatam a leitura da realidade cultural, fatalmente amarrada a condicionantes religiosos e político-ideológicos. Tratando-se do campo de Estrutura Fundamental, vamos focalizar oposições que transitam entre o Bem e o Mal. Pertencem ao primeiro plano os sujeitos que se opõem ao Cangaço, enquanto no segundo plano fica a figura de Lampião, o perverso malfeitor. Outra oposição está representada no octógono que segue, mantendo os mesmos conceitos, ou seja, a tensão entre o Bem e o Mal, e mudando apenas as categorias tímicas lexicais para Herói x Bandido. 95 Herói Bandido Cangaceiro Cidadão Não-bandido Ø Não-herói Figura 4 – Tensão dialética entre herói vs bandido Quanto às rupturas categoriais, preconizadas por Rastier, entendemos que, neste contexto, a zona proximal de Lampião, seu mundo óbvio, é o mundo do crime e da destruição. Por outro lado, a zona distal se identifica com as regras da justiça, da retidão e do equilíbrio. Na opinião desse cordelista, os códigos do cangaço estão longe de metaforizar cangaceiros em ídolos, ao contrário, eles são demonizados. 4.2 O Cangaço sustentado pelos coronéis 4.2.1 Preliminares Há, entretanto, os que abraçam uma versão, em cujo teor desfilam lexias elogiosas. É o caso do segundo cordel, escrito por Varneci Nascimento, baiano de Banzaê, católico praticante, autor de mais de 120 folhetos. Escreve cordel desde 1998, mas só começou a publicá-los a partir de 2001, quando foi convidado para fazer palestras na UNISA (Universidade de Santo Amaro), no estado de São Paulo. Nosso poeta foi classificado em 5º lugar num Concurso Nacional de Cordel, promovido pela CPTM, em São Paulo. Em outro Concurso, na Bahia, obteve a 2ª colocação, com o romance “O Amor vence o Racismo”. O cordelista, ao contrário do anterior, analisa os fatos de forma contextualizada, estabelecendo a relação entre causas e consequências. Fomos buscar esse exemplo na obra de Erivam Felix Vieira, “Coronelismo e Cangaço no Imaginário Social” e o cordel vem acompanhado do seguinte comentário: “Desconheciam os seus detratores que os valores de 96 valentia, coragem, fama e prestígio a ele imputados conferiam fundamento de legitimidade social” (VIEIRA, 2012, p. 49). Nesse cordel, o poeta elenca, por um lado, as práticas distorcidas de Lampião, mas, por outro, procura justificá-las sob o argumento de que suas ações representam uma reação diante das injustiças sofridas, como atesta o fragmento “Todo fato tem dois lados / um é bom, outro é ruim”. Esse texto também tem uma intensa força manipuladora, na tentativa de seduzir, colocando o fenômeno num mundo idealizado, lá onde habitam mitos e heróis. Talvez para afastar o medo dos fantasmas, por um desesperado mecanismo de defesa, o nordestino precisa cultivar seus mitos. Assim foi em relação ao Padim Pade Ciço, e assim também permeia no imaginário a figura hobyoodiana de Lampião, protetor dos pobres e desvalidos. Para explicar melhor as categorias tímicas, levantamos três aspectos no cordel: (1) a seleção dos atributos, bem ao gosto do discurso etnoliterário, porque impregnado do sensacionalismo cotidiano: “infiéis, assassinos e cruéis”; (2) o determinismo que transforma opinião em vaticínio “faço e renovo o convite / pra produzir a memória / sem os olhos cegos da elite”; (3) A formação ideológica latente na desesperada defesa dos que são perseguidos, em defesa dos injustiçados: “Criticam os cangaceiros / mas não se diz como foram pisados...”. Enfim, todas essas imagens pesam quando o objetivo é mostrar elementos que dão testemunho de vulnerabilidade, portanto, de não-conformidade com o equilíbrio desejado. 4.2.2 Percurso da significação No percurso narrativo deste cordel, identificamos dois sujeitos semióticos: o S1, figurativizado pelo Cangaço, e o S2 representado pelos Coronéis. Segundo o enunciador, há, entre esses sujeitos, uma relação de contrariedade, à medida que a conjunção do S1 com o seu Objeto de Valor – a justiça, implicaria, necessariamente, a disjunção do S2 com seu OV – a destruição do cangaço. Este folhetim apresenta uma configuração narrativa oposta ao modelo do primeiro, uma vez que o S1, no caso, o cangaceiro, segue em busca não de valores negativos, mas de justiça, que é o seu Objeto de Valor. Enquanto isso, o lugar da justiça, para o S2, o coronel, está na fronteira oposta. O enunciador, em Varneci, ao contrário do anterior, exerce a manipulação através de um discurso sedutor, quando busca, no percurso narrativo, transformar enunciados de estado em enunciados de fazer. Em outras palavras, transformar oprimidos em pessoas livres. 97 Criticam os cangaceiros Chamando-os de infiéis Assassinos e cruéis, Mas não se diz como foram Pisados por coronéis! [...] Varneci Nascimento As escolhas lexicais, no folheto 2, também refletem a orientação político-ideológica explícita no percurso temático figurativo, porém na direção contrária, porque coloca o cangaceiro como vítima de um processo. O primeiro cordel assume uma posição radical, com marcas de um discurso canônico e dominante, próprio dos que odeiam a insurgência. Já o segundo se alinha no horizonte das teorias sociológicas, as quais reconhecem as causas e consequências, vinculadas ao contexto histórico. Se analisarmos os elementos subjacentes às estruturas de superfície, iremos perceber uma carga enunciativa presa a valores humanos, morais e culturais. Nos dois folhetos, o mesmo sentimento disfórico em relação ao transgressor, com a diferença de que, nos octógonos, ocorre a inversão das categorias tímicas. No primeiro, a moral dominante se volta contra um infrator da ordem estabelecida, que é o cangaceiro, pertencente à camada popular (S1); já no segundo, identifica-se a denúncia da violação dos direitos humanos, neste caso, o infrator provém do segmento dominante (S2) – o coronelismo. O octógono referente a este cordel tem configuração diferente, à medida que as categorias tímicas se direcionam para valores positivos sobre o cangaço. A tensão dialética, portanto, toma como base outros elementos referenciais, inspirados na luta pela justiça, não com a ira dos que tentam difamar o cangaço, como se observou no Cordel1. Veremos, então, o resgate de um herói elevado ao estilo hobhoodiano, com versos adaptados ao discurso etnoliterário, como convém ao cancioneiro popular, uma leitura com efeitos catártico, segundo Melo (2009, p. 71), “as pessoas redescobrem o seu mundo ou mundos onde elas gostariam de viver”. 98 Tensão Dialética Opressor Oprimido Cangaceiro ca entre Oprimido e Opressor Coronel Ø Não-opressor Não-oprimido Figura 5 – Tensão dialética entre oprimido vs opressor No nível fundamental, devemos identificar valores que podem ser eufóricos (positivos) ou disfóricos (negativos). Neste caso, por exemplo, “pisados por coronéis” – o enunciador tenta justificar o motivo por que Lampião age daquela forma – valor eufórico. A posição do interpretante se reveste de um viés muito mais emocional do que racional, como convém ao discurso etnoliterário. As escolhas, por exemplo, são orientadas por uma tendência apreciativa, para delimitar propriedades que o produtor tem interesse em ressaltar. A seleção lexical, pois, deve apontar para uma direção argumentativa, consequentemente, para cumprir a função de situar as referências e enquadrá-las numa determinada perspectiva. Foi assim em relação ao fenômeno do Cangaço, quando a imprensa desejava servir a interesses particulares, escolhia um léxico recheado de termos pejorativos, para classificar o movimento: bandidos, vândalos, saqueadores, assassinos etc. Fatores, como a repetição constante e a crença na neutralidade da informação, encarregavam-se de legitimar esse discurso. A partir dessas estratégias de manipulação, foram construídas, no imaginário popular, as representações sociais sobre o movimento. Se analisarmos do ponto de vista das zonas antrópicas de Rastier, também há um deslocamento das categorias, se comparado ao texto 1: as práticas socialmente relevantes, que fazem de Lampião um justiceiro, pertencem à zona proximal, ou seja, os sentimentos nobres se localizam no entorno do S1; já a vingança e a destruição ficam na zona distal em relação a este, e na proximidade do S2. Vejamos o esquema abaixo: Sujeito1 = zonas identitária e proximal = práticas do Bem Sujeito 2 = zonas identitária e proximal = práticas do Mal 99 Após esse cotejo entre pontos de vista contraditórios, seguem dois recortes que versejam em duas direções: um explora o perfil lendário-mitológico do cangaço, com Lampião sendo comparado a grandes heróis da História; já o outro recorre a ingredientes bucólicos, para gerar uma relação simbiótica entre o cangaceiro e a paisagem natural do sertão. Ambos recorrem a uma construção alegórica, típica do imaginário poético, seguindo uma temática que evoca, ao mesmo tempo, o enraizamento e a bravura do homem nordestino. 4.3 Cancioneiro de Lampião 4.3.1 Preliminares Vamos avançar para outro quadro, para entender que, às vezes, é possível desfilarem, no percurso da sintaxe narrativa, vários sujeitos em busca de um mesmo Objeto de valor – quase sempre o sucesso e a glória. Essa competência dos sujeitos para a ação não implica, necessariamente, concorrência entre eles, já que o OV pode estar localizado em modalidades espaciotemporais diferentes, conforme veremos no Cordel 3, em que o autor se vale de uma situação analógica: Cancioneiro de lampião Nos doze pares de França Foi buscar inspiração Seu chapéu era igualzinho Ao do rei Napoleão, Valente como Olivério Brigava como Roldão [...] NertãMacedo O poema “Cancioneiro de Lampião”, de Nertan Macêdo, foi colhido da obra de Carlos Newton Júnior – “O Cangaço na poesia brasileira” – editado pela Escrituras, em 2009. Considerado uma antologia de poemas sobre o Cangaço, o autor esforça-se para mostrar que não é apenas no cancioneiro popular que se encontram as melhores rimas dedicadas a Lampião. Diz Newton Junior (2009, p.13) que “pretende dar uma medida daquilo que os poetas eruditos brasileiros têm produzido a partir do tema”. Nas orelhas do livro, Frederico Pernambucano elogia, sobretudo, a seleção dos poemas, reunidos em torno do mote do “irredentismo”, segundo o analista, uma tradição de insurgência de uma raça castanha que não se rende ao mercantilismo do branco europeu. 100 Segundo o resenhista, a invocação aos mitos cria um cenário utópico, como se para enfrentar as sequelas de vinte anos de império. Ousamos comparar esse tipo de produção a tantos outros que serviram de pão e circo, para mistificar o cenário e seduzir os desavisados. Com traço distintivo do gênero sériocômico, como se fora uma sátira, segundo Bakhtin (1993, p. 8), tais gêneros exerceram uma influência muito grande na literatura cristã e ainda insistem em sobreviver, na memória, na carnavalização, nos ajuntamentos, onde o povo, seguramente, prefere a comunicação com estardalhaço. Essa construção do imaginário apresenta natureza híbrida, já que alia abstrações fabulosas às correntes de natureza filosófica. É como se a racionalidade histórica não desse conta das aspirações do inconsciente, tendo-se que recorrer a um paradigma de herói, fundado num patrimônio comum de tradições orais e feitos históricos. Em que pese a força do discurso etnoliterário, aliado à figurativização, não podemos negligenciar o teor político-ideológico subjacente nos referidos folhetos. Está evidente essa característica político-ideológica, tal que nem mesmo a densa recorrência a um roteiro conceptual de base mitológica consegue neutralizar. A criação de modelos exemplares, que encarnam o Bem e a Justiça, são típicos das fábulas, e subsistem na cultura popular como um desejo de segurança, como garantia de uma proteção imaginária. Os mitos partem sempre de uma crença coletiva e dogmática, por isso não se confundem com a racionalidade científica, ao contrário, habitam um mundo onde predomina a afetividade e a imaginação. Fruto da influência medieval, tais mitos como que provêm de desejos impregnados no inconsciente, desejos de superação, ou ainda, desejo de conquistar uma cultura, ao mesmo tempo antiga e atual. 4.3.2 Percurso da significação O percurso narrativo envolve vários sujeitos semióticos que serão resumidos em dois: de um lado, o S1 a quem chamaremos de Herói Lendário (HL); do outro, o S2, figurativizado nos mitos usados para a analogia, os Heróis Históricos (HH). A característica comum, que serviu de base para a analogia, encarna as virtudes sobrenaturais, típicas das narrativas fabulosas. S1 busca como OV = o desejo de dominação do mundo. S2 persegue o mesmo OV = desejo de dominação do mundo. 101 A diferença é que o S1, enquanto Herói Lendário, ainda não atingiu o estágio do “fazer”, permanecendo no plano do “querer-fazer”, ou seja, das modalidades virtualizantes. A conquista do modo atualizante continua sendo privilégio dos Heróis Históricos. Significa dizer que ser HL é viver numa realidade utópica – vir a ser HH. Queremos repetir, pois, a tese de que, nesse campo da semântica narrativa, em relação às personagens históricas (HH) aí simbolizadas, a organização modal do sujeito atingiu a performance, portanto está no plano das atualizações. Quanto ao sujeito operador Lampião (SL), a transformação de estado permanece no terreno da competência, portanto, no plano das virtualizações, pelo menos se levarmos em conta a dimensão do real. Consideramos válido, também, associar a analogia do cordelista aos postulados de Rastier: só haverá identidade, na ordem do mundo óbvio, com as rupturas do eu/agora/possível, no caso do SH, sujeito projetado nos heróis históricos. Se, porém, focalizarmos o sujeito Lampião = SL, as rupturas pessoal, local, temporal e modal só serão transformadas de potencialidade a ação, no desejo do inconsciente popular, ou seja, no plano ficcional, portanto o poder projetado (do Histórico para o Lendário) continua na zona distal. Ocorre a ruptura entre os dois ícones da comparação – Heróis Históricos e Herói Lendário – pelo fato de se tratar de dois percursos discursivos em situação desigual. Enquanto os primeiros fazem parte da memória oficial, com registros na ordem mais racional, o Herói Lendário habita a memória social, reunindo componentes de caráter afetivo. S1 (Herói Lendário) ∩ OV (Memória Social) S1 (Herói Lendário) U OV (Memória Oficial) S2 (Heróis Históricos) ∩ OV (Memória Social) S2 (Heróis Históricos) ∩ OV (Memória Oficial) Em que pese a reconhecida contrariedade entre as bases acima descritas, havemos de reconhecer uma coincidência nas duas representações: é que ambas recorrem ao estatuto de ídolos, já que estão saturados de simbologia. Podemos afirmar, pois, que tanto na história dos heróis históricos (HH) quanto na dos lendários (HL), as tramas estão expostas à metaforização. Com base nessa opacidade, podemos deduzir que fetiches e símbolos não são privilégio do discurso etnoliterário, de que se reveste a linguagem alegórica dos cordéis; também podem estar legitimados nos registros oficiais da mídia e na historiografia formal, desde que interesse aos papéis temáticos, para fins de manipulação. 102 Na fase da estrutura fundamental, será válido reiterar que a rede de figuras estabelece um paralelo entre heróis históricos e imagens míticas, estas últimas responsáveis pela memória social, portanto pelo imaginário coletivo. Na concepção de Melo (2009, p.72) “é neste espaço que ocorrem celebrações de liberdade, ao mesmo tempo, de uma realidade virtual e uma virtualidade do real”. S1 (H L) modalidades virtualizantes S2 (H H) modalidades atualizantes Realidade virtual X Virtualidade do real Como vimos, o emprego de recursos retóricos não se restringe ao gênero clássicoliterário. Aliás, ao abordar as questões discursivas, avançamos para o terreno da Semiótica, uma ciência que também se ocupa da capacidade humana de comunicação e de construção do saber social. A abrangência de seu objeto de estudo exige o respaldo de outros campos, um diálogo suscetível a uma cadeia de relações significantes, por meio da qual se refletem os valores de uma comunidade. 4.4 Episódio Sertanejo 4.4.1 Preliminares O poeta Paulo Bandeira é pernambucano, de Olinda, publicou, entre outros sonetos, Itinerário do boi além do campo e O Evangelho consoante João. Extraído da obra “Ciranda de sonetos”, o cordel em questão traz uma temática ligada à “terra” como paradigma identitário da cultura. Não é um apelo telúrico impulsionado pelo culto nacionalista, que se desenvolveu durante o Romantismo, até porque o contexto sociocultural não permitia esse retorno ao ufanismo romântico. Mas não se pode deixar de ver a natureza laudatória dos versos de Paulo Bandeira; é evidente que esse canto de louvor à “territorialidade” sugere, acima de tudo, uma força humana prodigiosa que só na união se realiza. O imaginário poético está impregnado da cumplicidade homem-terra, nesse processo de enraizamento que encontra na arte popular terreno propício para adubação e produção. Para ilustrar esse debate, lembramos um poema da jornalista e ensaísta baiana, Myriam Fraga, cujo lirismo dialoga com esse cordel de Bandeira, já que ambos recorrem à 103 imagem simbiótica “São teus olhos carvões que me devoram / São teus beijos fosforescência de mel / Travo forte das frutas [...]”. A diferença é que, no cordel, a transfiguração motiva um viés identitário, da relação homem-terra; no caso do poema de Fraga, o efeito de sentido vai além da dimensão cultural, porque exalta, especificamente, o sentimento que une os extremos, com o conseqüente encontro do lírico com o erótico. Finalmente, trazemos, para fechar esse tópico denominado “Preliminares”, o comentário de um popular, que sempre acompanhou com simpatia os causos sobre o Cangaço. O referido colóquio ocorreu em um café, na cidade de Maceió, e faz parte das memórias da escritora Raquel de Queiroz, registradas em uma obra organizada por Gomes, neta de Lampião, Transcrevemos um fragmento que diz assim: “E Maria Déa, a mulher d o sapateiro, nascera sob o signo da força. Queria vida, liberdade, violência. Um homem” (FERREIRA; ARAÚJO, 2011, p. 223). Esse fato traz um depoimento que, ao lado do cordel de Bandeira e do poema de Fraga, confirma os dotes de Maria Bonita, revelando não só a graça feminina, mas, sobretudo, a determinação para perseguir a felicidade. Era armada de afeição, mas também poderosa, por isso Lampião se entregou e virou outro, conforme informação de Dantas (Ibidem, 2011, p. 233): “Quem me dera um mundo diferente, sem cerca e sem traição, sem cancela e sem persiga [...]” 4.4.2 Percurso da significação A propósito da estrutura narrativa, temos um Sujeito figurativizado em uma fantástica representação de – homem & terra. Dessa vez, não é lenda nem mito, é admiração por essa figura imbricada, um homem que é o que é pelo espaço que ocupa, pelos princípios culturais que defende. Episódio sertanejo Tua gravata de urtiga tua farda de avelós tua alpercata de légua e um boi trançado na voz [...] Paulo Bandeira da Cruz, 1985. Somando aos conceitos semióticos uma base antropológica, podemos dizer que o Sujeito1 é o homem, em busca de seu Objeto de Valor – a terra, enquanto espaço de identidade cultural. 104 O Sujeito2 é a terra, em busca de seu Objeto de Valor – o homem, enquanto resgate da imanência telúrica. SIMBIOSE SUJEITOS SEMIÓTICOS TERRA HOMEM Figura 6 – Simbiose homem - terra Mas, ao lermos os últimos versos do cordel, procedemos a outro percurso narrativo: “Fogofátuo no Angico / (procissão de dor e grito) / e a cabeça do proscrito / Virgulino Lampião / cortada por um milico”. Sob essa perspectiva, a análise seria mais específica, com dois sujeitos semióticos em clima de guerra: Sujeito1 = Lampião, cujo Objeto de Valor é vencer a Volante e escapar da morte; o Sujeito2 é a milícia, destinada a perseguir Lampião até a morte. Do ponto de vista de Semântica Narrativa, os versos acima anunciam a vitória da Volante, que passa do querer-fazer para o poder-fazer. A referência a Angico define a passagem da potencialidade à ação, com a conseqüente “degola” de Lampião e seus companheiros. Em relação ao início do texto, o enunciador recorre a imagens líricas, a metáforas, para homenagear o sujeito de “gravata de urtiga” e “farda de avelós” – urtiga e avelós, liricamente usados, escondem os efeitos agressivos dessas plantas sertanejas, para se transformarem em artefatos constitutivos da indumentária do cangaceiro, para se transformarem em ingredientes cúmplices dessa figurativização de “herói”. É como se o cangaceiro depurasse essa mistura do profano, do lírico e do popular. Nesse contexto, o percurso figurativo se inebria de cheiro e de cor, uma sensação direcionada a conduzir o enunciatário ao seio da terra. Não poderia ser outra a interpretação desse cordel, cujas figuras, sinestesicamente construídas, avançam para uma performance conquistada pelo universo das personagens euclidianas, tal a luta, a garra, a errância: alpercata de légua (como a de “sete léguas”, do conto popular)/ um boi trançado na voz (a voz é um berro) / bornal que 105 a fome mastiga(...) Essa recorrência a símbolos constata a tendência da literatura popular para um universo ambivalente, como referido, porque sitiado entre a fantasia e a realidade. Assim também procede a lírica da poetisa Fraga, que adotamos como texto de apoio, quando promove o belo encontro do lírico com o erótico. Diante do efeito de sentido provocado pelos arranjos, a linguagem se liberta do seu torpor metafórico, para falar, explicitamente, do que interessa, ou seja, das sensações tátil-visuais que ganham força na cena final: Teus beijos como lâminas Como espadas Pasto de aves meu corpo Que trabalhas Como quem corta e lavra [...] Myriam Fraga foge, então, do roteiro convencional, para mostrar uma mulher apaixonada, uma Maria Bonita, sem a aura de rainha, mas assumindo seus desejos femininos; uma Maria distante da ingênua Cinderela, porém materializada em fêmea, sem o pudor do moralismo cultural reinante. S (Maria Bonita) ∩ S (Maria Bonita) U O (moralismo burguês) O (amante Lampião) O tema erótico, figurativizado no emprego metafórico de elementos e ações da natureza, transfere para a condição humana o prazer liberto dos vícios e vulgaridades. Também aqui flagramos o cruzamento de sensações formando a sinestesia, como já referido, recurso que empresta ao texto um sabor doce e agreste: “Vem e apaga / Na pele do meu peito / Esta fome sem data.” Nesta passagem, o cruzamento de sensações reitera a sinestesia e, já que uma das características da linguagem verbal é a sua incompletude, a poetisa busca modelizar o mundo por diferentes apelos. O apelo ao erótico se sobressai, através de conjuntos de signos que, ao interagirem, reforçam o espaço de produção e de interpretação. Os encantos da literatura popular residem, sobretudo, na força dos frames, capazes de acordar os fantasmas do nosso inconsciente, forçados que somos a fazer associações. As analogias nos levam a colher, através de um ato reflexivo, aquilo que estava retido na memória, mas de forma desordenada. As imagens construídas nesse cordel fazem emergir corpos cobertos de folhagens, homem-peixe, mulher com calda de peixe, enfim, homens e 106 troncos de árvores compondo uma unidade – amálgama que vagueia entre a realidade e a ficção. São figuras lendárias que se reconhecem no território das zonas identitária e proximal, em cujo entorno situam-se as demandas culturais, com seus fetiches e ídolos. Na zona distal, localizamos um cangaço desenraizado, sem história, distante da feira, dos cordéis, e dos apelos populares. Com relação de proximidade, apenas, na austeridade racional do discurso, predominante e típico, da memória oficial. 4.5 A mulher e o Cangaço 4.5.1 Preliminares No espaço reservado à presença das mulheres, predominam os cordéis que focalizam a figura de Maria Bonita, presa a diferentes temáticas, em versos que misturam o lírico ao erótico e ao épico. Claro que os ingredientes da semiose, na literatura de cordel, apresentam um colorido mais instigante, na alegoria da linguagem etnoliterária, as ilustrações nos tocam pela força do sentimento. Pode parecer óbvio, mas precisamos insistir no fato de que essa figurativização do mundo é característica dos cordéis, nos quais não se flagra qualquer traço de austeridade racional, daí por que fomos buscar apoio nos efeitos produzidos pelo discurso etnoliterário. Os cordéis desse segundo quadro foram analisados mediante moldura tipológica programada como “Vozes e ecos sobre a saga das mulheres”. Essa estratégia metodológica tenta reforçar a tese inicial de que a microestrutura está condicionada aos valores agregados ao contexto macroestrutural. Dessa forma, o segmento feminino, no interior do cangaço, não consegue mostrar a “cara”, a não ser comparada a mais um adereço de feição estética ou cultural. Debatendo-se entre o complexo de Cinderela e a cumplicidade do Tarzan, elas se rendem a um contexto sociocultural, que parece dirigido, exatamente, para serem carreadas essas representações sociais, como podemos antever na seguinte transcrição (versos de domínio popular, publicados no DP, transcritos por Monteiro (2002, p. 64). As moças de Água Branca não cozinham mais feijão pois só vivem na janela esperando Lampião. Para abrir o cenário dedicado às mulheres, focalizamos um folheto de Fanka, poetisa cearense, que se debruçou sobre as pesquisas no campo da cultura popular, 107 preocupada em focalizar as transformações propostas pelas mulheres, ao ingressarem no mundo nômade do cangaço. É uma posição abalizada por conhecidos teóricos que trataram do mesmo tema, entre eles, Antônio Amaury. Para ilustrar esse viés, que trata do ingresso das mulheres no cangaço, vale lembrar um depoimento de Ângelo Roque, registrado no livro “Nas entrelinhas do Cangaço” 1994, da pesquisadora também cearense Fátima Menezes. A autora se declara apaixonada pelo tema, disposição que é revelada pela seleção das ilustrações e dos depoimentos. Discorre sobre o Cangaço como se tivesse penetrado no Raso da Catarina, tal a cumplicidade que demonstrou ao descrever o grupo em errância pela caatinga. Menezes registra a posição de Ângelo a respeito do comportamento dos homens após a entrada das mulheres no bando, estendendo-se também às condições a que as cangaceiras se submetiam. “Com a participação feminina no bando, os homens não mudaram apenas o seu comportamento em relação aos estupros. As vestimentas dos cangaceiros ganharam um novo colorido e mais enfeites [...]” O texto de Ângelo pode ser dividido em dois núcleos temáticos: o primeiro se prende às qualidades das mulheres, dotadas que eram para trabalhos manuais; quanto ao segundo núcleo, trata-se do receio de alguns cangaceiros, liderados por Balão, a respeito da fidelidade das mulheres dentro do bando. Está explícita, no depoimento, a lei que prevê castigo fatal para o caso da traição feminina: “[...] segundo a lei do cangaço, era morte certa.” É certo que existem semelhanças entre a temática de Fanka e a de Ângelo, porém devemos chamar a atenção para as possíveis diferenças. No cordel, constatam-se traços afetivos, em um discurso, obviamente, permeado por posições eufóricas, em relação às mulheres. Já o depoimento se reveste de um teor mais racional e, se reconhece alguns dotes, por um lado, levanta alguns questionamentos de ordem disfórica, por outro lado “Muitas mulheres passaram pelas hostes do cangaço. Muitas se celebrizaram: pela beleza física, outras pela valentia, e outras ainda pelas traições ao companheiro”. Reunimos, neste espaço, elementos analíticos capazes de configurar um universo de ilustrações, que respondem às perguntas levantadas nesta pesquisa, orientada para uma releitura acerca do cangaço, especificamente, as mulheres do cangaço. Trata-se da reunião de um poema e sete cordéis, nos quais vamos focalizar peculiaridades referentes à saga particular envolvendo aquelas guerreiras que se aventuraram pela vida nômade do cangaço. Já dissemos antes que Maria Bonita foi a primeira mulher a ingressar no grupo, pois agora vamos conhecer um cordel, cuja temática foca o Cangaço antes e após o ingresso das 108 mulheres. A assinatura é de Fanka, uma cearense de Juazeiro do Norte, pesquisadora no campo da literatura popular, tendo concluído seu doutorado nessa área, no PPGL – UFPB. No texto da Dra. Fanka, vislumbramos a intenção de destacar a coragem e determinação das mulheres, na tentativa de aliviar as tensões no mundo do cangaço. Ela acredita que, realmente, houve mudanças a partir da inserção das mulheres; acredita que elas inauguraram um novo jeito de viver, forçando o cangaço a equilibrar-se num jogo dialético, construído a partir da antítese violência vs. afetividade. Em que pese a força dos versos da Doutora, as pretensas mudanças ainda povoam um cenário idealizado pela literatura popular, levando-se em conta a linguagem alegórica dos cordéis, que tanto podem revelar como prestar-se ao simulacro. Quem poderá decifrar o inconsciente simbólico coletivo, com suas configurações míticas, responsáveis pela nossa maneira de pensar, sentir e agir? Enfim, enquanto Fanka acredita, sem nenhuma restrição, que as mulheres humanizaram o cangaço, transformando um ambiente hostil em oásis de afetividade, alguns depoentes, a exemplo do já referido Ângelo Roque, fazem questão de lembrar as convenções, as quais acabam por neutralizar o efeito laudatório do cordel. Vale insistir mais uma vez no aspecto da diferença de gênero, já que o discurso do depoimento tem caráter documental, mas os versos da poetisa se revestem de emoção, como convém ao discurso etnoliterário. Pretendemos focalizar as três fases do Percurso Gerativo do Sentido, atendendo à sequência prevista nos manuais da semiótica francesa: (1) transformação de estados pela ação do sujeito; (2) o sujeito transfere para a narrativa as marcas discursivas; (3) o cenário das oposições, espaço onde se analisa a semântica mínima. Aplicaremos, também, neste bloco, as rupturas categoriais preconizadas por Rastier, com o objetivo de relacionar as fronteiras empíricas, com base nas zonas identitária e proximal, e o mundo transcendente, de responsabilidade da zona distal. À primeira conjuntura, devemos agregar elementos que evidenciam o terreno dos fetiches, enquanto na segunda recorreremos aos ícones, que vão representar os símbolos. 4.5.1 Percurso da significação A mulher e o cangaço Autora: FANKA Da história do cangaço /Muito tem pra se saber: Enfeite e bala de aço / Conhaque para beber. 109 A mulher participando, / Sugerindo nesse bando Outro jeito de viver. Há dois sujeitos semióticos: Sujeito 1 (cangaceiros) e Sujeito 2 (mulheres do cangaço). Sobre o sujeito 1 O S1, destinado pela cobiça, vai em busca de seus Objetos de Valor, a riqueza e a violência. No caso também aparece um antidestinador, que seria o amor que esses cangaceiros sentiam por suas mulheres. Também podemos dizer que, no Programa Narrativo do Sujeito 1, as mulheres aparecem como oponentes e também como antissujeitos, já que se torna possível tais funções serem ocupadas pelo mesmo sujeito. O oponente é quem, de alguma maneira, atrapalha o sujeito, pode ser a chuva, a seca ou outro sujeito, como nesse caso. O antissujeito é aquele que busca um objeto de valor contrário ao S1, porém, às vezes, ele não atrapalha o sujeito. Dário Adjuvante (falta de justiça) S1 Oponente Dor (Amor pelas mulheres) OV1 (riqueza) Figura 7 – Percurso narrativo: Mulheres no cangaço Pode-se dizer que, a partir do momento em que os cangaceiros atenderam aos pedidos de suas mulheres, eles passaram de uma situação de conjunção à disjunção com seu objeto de valor “violência”. PN= F[S1→ (S1∩OV2)→(S1UOV2)] Sobre o sujeito 2 O Sujeito 2, mulheres do cangaço, é autodestinado por sua vontade e vão em busca de seu objeto de valor, a paz. Nesse contexto, elas têm como adjuvante o amor de seus “homens” e como oponentes os próprios cangaceiros, movidos por sua cobiça e ajudados pela falta de 110 justiça. Os cangaceiros também representam, no programa narrativo do S2, o antissujeito, uma vez que seu objeto de valor se opõe diretamente ao que buscam suas mulheres. Pode-se dizer que, a partir do momento em que os cangaceiros atenderam aos pedidos de suas mulheres, o Sujeito 2 (mulheres do cangaço) passou de uma situação de disjunção a conjunção com seu Objeto de Valor “paz”. PN= F[(S2UOV1)→(S2∩OV1)] No patamar das estruturas narrativas, identificamos, pois, um Sujeito tentando mudar o estado de turbulência para estado de tranquilidade, ou seja, “outro jeito de viver”. Com base na seleção lexical do cordel, é válido afirmar que o Sujeito-Mulher cumpriu os papéis do saber e do querer-fazer. O programa narrativo, no cordel de Fanka, cumpre o percurso hierárquico de enunciado do FAZER e do enunciado de ESTADO, pelo menos na imaginação da poetisa, que insiste em mostrar a competência feminina na busca de um estado de conjunção com o seu Objeto de Valor. Nessa sucessão de estados e de transformações, flagramos, na linguagem alegórica do cordel, a imagem romântica de um cenário em que a mulher é capaz de semear afeto e flores, onde antes só havia espinho. Ainda sobre estruturas narrativas, pode-se falar em S1– diz respeito às referências elogiosas, um sujeito que passa por uma transformação, para ceder aos apelos do outro, descobrindo Objeto de Valor e com ele entrar em conjunção, portanto capaz de passar da potencialidade à ação. O S2 – representado pelas mulheres ameaçadas por leis machistas, cujo conteúdo as tornam vulneráveis a uma espécie de pré-julgamento, em virtude da insegurança presente no discurso de alguns homens. Eis o vaticínio de Balão, um cangaceiro que lutou sistematicamente para evitar a inserção de mulheres no bando: “Homem de batalha não pode andar com mulher. Se ele tem uma relação, perde a oração, e seu corpo fica como uma melancia: qualquer bala atravessa” (BALÃO apud PERNAMBUCANO, 2010, p. 52). Cabe aqui fazer uma alusão à semiótica das paixões no sentido de explorar os efeitos de uma configuração de modalidades que se desenvolvem em vários percursos passionais. Observam-se, por um lado, estados da alma fortemente localizados no terreno da “malquerença” – quando o foco são os homens– relações modais de hostilidade e ódio; por 111 outro lado, a satisfação e a confiança femininas conduzem à “benquerença” da afeição, sob a forma da amizade, da estima e da simpatia. Chegamos à etapa em que as estruturas narrativas convertem-se em discursivas, passando para a instância da enunciação, lugar onde se integram os componentes que vão materializar o plano da manifestação. Exatamente nesse território é que se configura um contexto em que o sujeito instaura o discurso e se converte em sujeito histórico, social e ideológico. Nesse plano, podemos flagrar marcas de uma prática discursiva capaz de intervir na realidade “A Maria participa e sugere nesse bando outro jeito de viver”. Em relação à semântica discursiva, podemos observar, na primeira estrofe, escolhas lexicais que imprimem ao texto imagens predominantemente figurativizadas. Na segunda estrofe, porém, o cordel realça a tematização, à medida que invoca as relações de causalidade, no trecho “pela falta de justiça/ e também pela cobiça”. Voltamos aqui às modalizações da Semântica Discursiva, no caso dos depoimentos sobre o Sujeito Dadá. Este reconhece um estado de disjunção – saber e não querer – mas luta para alcançar o estado de – querer-fazer. Dessa forma, reconstrói o percurso e entra em conjunção com o seu Objeto de Valor. Aí estão valores do ser humano, quando consegue vencer a barreira das paixões negativas, ressentimentos e ódio, para aderir a uma dimensão de harmonia e amizade. Os relatos de Zatz (2004) continuam no mesmo patamar de admiração por aquela mulher que soube transformar um estado de ódio em um sentimento contrário, um amor que durou a vida inteira Zatz (2004 p.40) “[...] aí, então, viramos carne e unha, nós dois, eu enfrentava qualquer coisa ao lado dele”. As marcas de pessoa, no depoimento de Dadá, confirmam a instalação no enunciado do eu, que utiliza o tempo da enunciação. Trata-se, nesse caso, de embreagem actancial e temporal enunciativas. As formas verbais “viramos” e “enfrentava” constituem representações evidentes de um tempo não concluído, ou seja, um tempo duradouro. Sejam as leituras temáticas – de “dominação e luta pela justiça” –, sejam os investimentos figurativos materializados nos performativos “pedir, comandar, amenizar, mudar” – são todos caracterizados pela oposição de traços sensoriais, espaciais e temporais que separam, no texto, a vida no Cangaço – antes e depois da mulher. Quanto ao nível das estruturas fundamentais, reconhecemos como oposição semântica mínima o quadro que segue, em que os termos encontram-se em relação de contrariedade, já que expressam, por um lado, a ação redentora do Sujeito-mulher e, por outro lado, a ação 112 vingativa do Sujeito-homem. Longe de representar um trabalho de gênero, o texto de Fanka alimenta os velhos mitos cristãos, pondo a salvação nas mãos da mulher. Cangaço antes X Cangaço após a mulher violência X afetividade Um jeito de viver X Outro jeito de viver No texto, as categorias fundamentais, tachadas como negativas ou disfóricas, são expressas linguisticamente por uma sequência vocabular permeada de substantivos que se associam ao campo semântico da masculinidade: bala de aço, conhaque para beber, bagaceira, violência; por outro lado, as intervenções femininas são interpretadas como positivas ou eufóricas, como se pode atestar nos termos associados à pretensa ação das mulheres: amenização, outro jeito de viver, muita coisa se mudou. Assim, as escolhas feitas pelo Sujeito-enunciador guiam o enunciatário nesta difícil operação interpretante. Cangaço Vingança Redenção Mulher Homem Não-vingativo Não-redimidoNNkkk Não-redimido Ø Figura 8 – Tensão Dialética entre Redenção e Vingança Para aplicar o quadro de categorias analíticas preconizadas por Rastier, temos que nos reportar aos elementos epistemológicos da Antropologia, para estabelecer relações coerentes entre o homem e o seu entorno. Não seria possível explicar, por exemplo, a ruptura de TEMPO, sem associá-la a um enredo em cuja trama vamos perceber um passado (sem as 113 mulheres), construído com ódio, agressões, violência. Em contrapartida, um presente (com as mulheres) em que se antevê a esperança de mudança. Em relação a ESPAÇO, repete-se o quadro, pois constatamos um “aqui”, povoado de fetiches relacionados a guerras; e um “lá”, com os ídolos que se materializam no desejo de paz. Enquanto os primeiros estão nas zonas identitária e proximal dos cangaceiros, os segundos permanecem na zona distal em relação às mulheres. A correspondência proposta no quadro de Rastier também exibe a tensão dialética entre os indicadores de PESSOA – “eu/nós”, por um lado, apontando para o mundo óbvio, e “tu/vós”, por outro, correspondendo a um mundo ausente. Seria o mesmo dizer que, nas categorias “eu, aqui e agora”, atesta-se a representação de um cangaço, onde impera a violência; as contraditórias seriam “tu, ali, em seguida”, configurando a distância entre o real e o idealizado. Com relação à ruptura de MODO, devemos associar o “certo” ao contexto históricosocial de onde brotou e se desenvolveu esse fenômeno nordestino, com suas causas e consequências. A certeza que existe é de que o cangaço foi o resultado das crises de ordem econômica, política, ideológica e de autoridade. Neste cenário, devemos identificar as bandeiras das zonas identitária e proximal, terreno onde habitam as coincidências, e onde se identificam as vozes dos que respondem, com violência, à injustiça institucionalizada. O “provável” vai corresponder à grande metáfora patrocinada pelas personagens quixotescas, todas aquelas que povoaram os romances de Rabelais, e que levaram Bakhtin a formular a sua tese da carnavalização. No entorno deste ser, criado pela antropologia semiótica, encontram-se as imagens e símbolos de uma luta metaforizada nos cordéis e divulgada pela voz da sabedoria popular: a voz dos simples e dos românticos. Esse desejo deve ser localizado na zona distal, lá onde se localizam as rupturas, com seus respectivos componentes: “ele/se/futuro/alhures/irreal” – o mundo transcendente – habitado pelas mulheres que, voluntariamente ou não, abraçaram a vida nômade do cangaço. As mulheres, que lutaram por “outro jeito de viver”, são as mesmas que emergem na linguagem alegórica da literatura popular. 114 4.6 As Mulheres Cangaceiras Humanizaram o Cangaço 4.6.1 Preliminares Para dar sequência à proposta temática, trazemos a seguir um folheto de Kydelmir Dantas, membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, Mossoró – RN. Com o cordel “As Mulheres Cangaceiras Humanizaram o Cangaço”, Kydelmir faz uma exposição, mostrando as duas fases do movimento, sendo a segunda enfeitada pela presença feminina, como ele diz: “Surgiu a Maria Déa / Quebrando toda a rotina”. Desfilam, no cordel, várias mulheres, sempre acompanhadas dos respectivos companheiros. Enfim, é válido dizer que o texto tem um viés otimista e laudatório. Esse texto enriquece a discussão sobre o ingresso das mulheres no movimento do cangaço, já que traz elementos que fortalecem o viés histórico-cultural. O título “As Mulheres Cangaceiras Humanizaram o Cangaço”, já antecipa a posição do autor, Kydelmir Dantas, membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, Mossoró – RN. O folheto traz um elenco significativo tanto da ala masculina como da feminina. Faz questão de situar o movimento a partir da origem: “Foi Cabeleira o primeiro / Com seu bando pequenino / Também o Lucas da feira / Baiano muito ferino / Viriatos, Guabirabas / E o grande Jesuíno”. Acompanha Fanka em relação ao teor laudatório do texto, com escolhas de epítetos– “quase que um cavaleiro andante” – com que constrói uma saga segundo a qual a entrada para o cangaço está amparada em razões históricas e sociais. Preocupa-se, também, com detalhes terminológicos, por exemplo, a explicação do nome: “Em noite de escuridão / Seu rifle brilhava tanto / que „alumiava‟ o sertão/ Daí ficou conhecido / Por alcunha Lampião”. Nos versos de Kidelmir, vamos identificar aspectos característicos da cultura popular, destacando-se a trama conhecida como lavar a honra com a morte da mulher adúltera. Lembramos, também, os títulos de “Rainha” e “Princesa”, valores que mantinham viva a velha aristocracia monárquica, na memória coletiva. Finalmente, um traço da cultura nordestina é que o homem sempre aparece como dono da mulher: Dadá de Corisco, Sila de Zé Sereno, Lídia de Zé Baiano, Nenê de Luiz Pedro, Inacinha de Gato, Lili de Moita Brava, Áurea de Manuel Moreno, Maria de Azulão etc. Todos esses detalhes depõem em favor da problemática da nossa pesquisa, quando realçam os fatores históricos e culturais, que condicionam a trajetória das mulheres ao contexto geral. 115 4.6.2 Percurso da significação No percurso narrativo, existem três sujeitos semióticos, instaurados pela modalidade do dever-fazer as transformações. Importante reiterar que, porque todos estavam condicionados aos mesmos fatores histórico-culturais, apresentam o mesmo Objeto de Valor – vencer os obstáculos que faziam do Nordeste uma região atrasada e violenta. No percurso do Sujeito1, vamos encontrar a figurativização dos primeiros cangaceiros: O Cabeleira, Antônio Silvino e Jesuíno Brilhante. O destinador atribui a eles a “fama de justiceiros”, portanto buscavam valores do Bem, como a justiça e a solidariedade. O Sujeito2 está discursivizado em Lampião, que se destina ao mesmo Objeto de Valor: lutar em defesa da população carente. Os Adjuvantes de Lampião ora são figurativizados por nomes próprios, como Sinhô Pereira e Luiz Padre, ora com papéis temáticos, como primos e amigos. Quanto aos Oponentes, cita o próprio contexto: Foi um tempo atribulado / No Nordeste brasileiro. Relata, também, o sentimento disfórico instalado pela traição do coiteiro em quem Lampião confiava. Essa refrega lhe custou algumas perdas: Colchete morreu na hora / Jararaca foi ferido / mais uns três foram chumbados / Com o bando esmorecido / Fugiu para o Ceará / Com seu orgulho banido. No percurso narrativo, vamos encontrar ainda o Sujeito3, figurativizado pelas mulheres, com especial enfoque para Maria Bonita. Todas elas são destinadas a perseguirem seus Objetos de Valores, representados pelos companheiros. Aliás, o cordelista cita todas as representantes do S1 acompanhadas do correspondente OV. Quanto ao Sujeito3 discursivisado por Maria Bonita, destina-se o papel principal, não só por ter sido a primeira a quebrar a rotina do cangaço, mas também por ser destinada a Lampião. Em face desses adereços, Kidelmir a trata como “Independente e valente / Sedosa igual uma chita / A Rainha do Cangaço / Foi a Maria Bonita”. É importante registrar a preocupação de Kydelmir em delimitar as dimensões espaçotemporais, por exemplo, ao citar, com precisão, “em nove (9) dos oito (8) estados / o cangaço fez roteiro (...) / Pernambuco, Paraíba, E o Rio Grande do Norte / Mas topou em Mossoró / Um povo valente e forte”. As referências a tempo também são recorrentes: “E no ano de dezoito (1918) / Entrou na década de vinte (1920) / A 13 do mês de junho, de vinte e sete (1927) o ano / No ano de vinte e oito (1928)”. Mas logo as paixões negativas foram substituídas por uma luz que lhe invadiu o coração, transformando o estado de tristeza em estado de felicidade. Foi quando lhe apareceu 116 “Uma morena formosa / com os olhos de catita / Independente, valente / Sedosa, igual a uma chita.” Maria Déa deixou sua casa, para abraçar a vida do cangaço, elegendo Lampião como companheiro e amante. Começa, então, uma nova etapa na vida dos cangaceiros. Em que pesem as cismas do desconfiado Balão,“A presença feminina / O cangaço humanizou”. Como podemos ver, há um diálogo de grande cumplicidade entre Kidelmir e Fanka, ambos assumindo papel de Adjuvantes quanto à relação do Sujeito-Mulheres, tendo como Objeto de Valor a “Humanização do Cangaço”. O notável cordelista, para exaltar o papel do segmento feminino, promove um desfile de nomes próprios e papéis temáticos, numa ordem hierárquica, começando com a Rainha do grupo, Maria Bonita. Em seguida “Nas margens do São Francisco / Apareceu a Princesa / de temperamento arisco / Foi Sérgia da Conceição / Companheira de Corisco”. Continua o elenco com Sila de Zé Sereno, Durvinha ou Durvalina, companheira de Moderno, Adília, Cristina, Lili e Enedina. “Inacinha foi de Gato / Um cangaceiro arisco / Maria, de Juriti / E Lídia , de Zé Baiano”. Esta última destacava-se pela formosura, mas teve um fim trágico. Lídia não conseguiu, como Maria Bonita e Dadá, entrar em conjunção com o seu Objeto de Valor (a boa convivência com Zé Baiano). Sabia o que queria, mas não atingiu as modalidades atualizantes, porque o ciúme e a brutalidade de Zé Sereno interromperam seu programa narrativo. “Por ser bonita e fogosa / Traiu, serviu de lição / Pois foi morta a pauladas, pelo monstro, sem ação”. Do ponto de vista de Semântica Discursiva, como referido, pretendemos aplicar a categoria de Pais – o discurso etnoliterário – o qual, conjugado à Figurativização, pode explicar as formas de enunciados que recorrem à ação da linguagem alegórica, típica da tradição oral. Mais uma vez reiteramos a tese de que só esse modelo – do mundo figurativizado na descrição etnoliterária – é capaz de dar conta dessas narrativas fabulosas, em que as personagens se debatem entre a fantasia e a realidade. Como já foi dito sobre as escolhas do poeta, há uma visível preocupação em garantir a ancoragem espaço-temporal, no sentido de convencer o seu enunciatário sobre a veracidade do discurso. Assim também Kidelmir deixa marcas enunciativas que atestam seu interesse em tratar de temas, como preconceitos, valores sociais e culturais. Se é pra falar de cultura popular, não poderíamos omitir desse procedimento analítico o discurso da hegemonia masculina, por exemplo, quando se refere a Sila ”Que viveu com Zé Sereno / Seu marido e capataz. Importante lembrar também o detalhe das mulheres serem dos 117 homens, estes sempre abrindo os caminhos. Outro costume do cotidiano sertanejo é o uso sistemático de apelidos, aspecto bem marcado no texto de Kidelmir. No plano das estruturas fundamentais, este poeta soube traçar um perfil do cangaço, cujas oposições poderiam ser resumidas em “homens valentes e rudes, e suas doces companheiras”. As descrições das cenas envolvendo as mulheres, em que pese o inevitável viés machista, foram sempre carregadas de relações eufóricas. As referências negativas ficaram a critério dos que não acreditam na humanização do cangaço por força do segmento feminino. Quanto às rupturas categoriais, em todo o cordel, foi usada a terceira pessoa. O tempo verbal sempre flexionado no passado: “surgia Sinhô Pereira /Juntou-se com Luiz Padre / Partiu pra fazer justiça (...) Em relação ao modo, Kidelmir contempla no nível do provável as transformações benéficas promovidas pelas mulheres, ou seja, a “humanização do cangaço”. 4.7 A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita 4.7.1 Preliminares Em Manuel Pereira Sobrinho, vamos flagrar essa mesma imagem fantasiada, no cordel de título “A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita”. É importante registrar a cena da capa: um casal em pose de cena holywoodiana. Noventa por cento do conteúdo é sobre as peripécias de Lampião, mas, nos poucos versos que protagoniza com Maria Bonita, predomina o enfoque romântico. Continuemos, pois, a problematizar um pouco mais as próprias interpretações recorrentes sobre as cangaceiras, levando em conta o olhar do homem ao versar sobre a matéria. Veremos, a seguir, o cordel de Manuel Pereira Sobrinho, denominado “A Verdadeira História de Lampião e Maria Bonita”. Como já anunciamos no preâmbulo, o texto tem um teor fortemente romântico: primeiro, coroando Lampião com as qualidades de um cavaleiro andante; depois, emprestando a Maria Bonita os mesmos caracteres, como se fora uma personagem de conto de fadas. Pela extensão, e pela reunião de contendas, até poderia ser chamado de “saga”, pois não fica a dever às grandes narrativas da historiografia universal. O folheto verseja a história de Lampião, desde o seu nascimento, em Vila Bela, passando por todas as refregas entre Saturninos, Nogueiras e Zé Lopes, o pai de Lampião, enfim, por todo o percurso do cangaço, até a degola, em Angicos. 118 Trata-se de uma longa narrativa, misto de simpatia e desafeto, porque exalta tanto os defeitos quanto as qualidades. Há lances em que torce por Lampião, ao descrevê-lo como vítima de injustiça, por exemplo, quando foram à delegacia denunciar o assassinato do pai: “Um tal José Balduíno / era o sub-delegado / não deu atenção a eles / pois estava combinado / apenas disse: os Nogueira / são os grandes do Estado”. Outros trechos são marcados por fortes acusações, com descrição de cenas chocantes, que expõem ao mundo a tirania do cangaceiro. A narrativa alterna, assim, momentos de ternura e de maldade. Tanto faz falar de um Lampião sensível aos sofrimentos dos irmãos nordestinos, como nestes versos: “Na cidade de Capela / deu comida aos famintos / comprou tudo e pagou bem / fez como um homem de bem” [...], como referir-se ao cangaço exaltando o lado mais brutal: “Ele com sua mulher / um menino e uma menina / Lampião sangrou os quatro / com sua fúria assassina [...]”. Assim o cordelista transita entre o teor laudatório e as palavras que soam como sentença, dirigidas a um réu culpado. Aliás, muito já se disse sobre esses depoimentos oscilantes, diante do julgamento de Lampião. Falar acerca dessa dualidade é correr o risco da repetição, mas isso é inevitável, vez que representa o corte escolhido para este trabalho: uma leitura semiótica da trajetória de construção da identidade. Trata-se, pois, de um percurso íngreme, porque mediado por fatores culturais, míticos e religiosos. 4.7.2 Percurso da significação Para proceder à análise das categorias referentes ao patamar das estruturas narrativas, vamos demarcar dois quadros separados, para mostrar a tensão entre os sujeitos semióticos. O primeiro focalizando a referida dualidade, com o S1, figurativizado por Lampião – o justiceiro; por outro lado, o S2, correspondendo também a Lampião – como bandido. O primeiro destinado a proteger os pobres e desamparados, portanto tem como Objeto de Valor a prática do Bem; já o S2 busca um Objeto de Valor contrário, porque centrado em ações criminosas. Os dois Sujeitos, o justiceiro e o bandido, na mesma proporção, passavam das modalidades virtualizantes para as atualizantes, isso porque as formas de manipulação funcionavam, nos dois percursos e, na mesma medida, o destinatário-sujeito acreditava no 119 destinador. Em outras palavras: a competência e a performance do S1 para o bem era proporcional à do S2 para o mal. Essa luta do bem contra o mal está no imaginário popular, figurativizada no discurso do cordel: Matava por brincadeira com pura perversidade dava comida aos famintos com amor e caridade. A aura de generosidade atribuída ao justiceiro (S1) era reforçada pelos papéis temáticos, que não eram poucos: Jogava todos os jogos era fino sapateiro vaqueiro destro e veloz e era ótimo ferreiro [...] Prosseguir nessa alternância entre os dois papéis parecia ser o modelo metodológico escolhido pelo poeta, que persistia na descrição daquele amálgama: Mil e duzentas cidades e vilas bem povoadas por Virgulino Ferreira todas foram saqueadas porém pra tudo há motivos também fez ações honradas. Dessa forma, o cordelista aponta a tensão dialética que acompanha o programa narrativo. É um itinerário cingido em duas direções, determinadas pelas condições tensivas e contraditórias que perfazem o percurso do Sujeito em busca do seu Objeto de Valor. Em que pesem todas as convenções da época e da região, Maria Bonita abandona o marido e os pais, para seguir a vida do cangaço. Sem medir as conseqüências, independente da pecha de justiceiro ou bandido, Maria Déa se entrega a Lampião, como atesta fragmento do cordel: “porque foi o único homem / a quem dei meu coração”. Por tal façanha, cabe-lhe melhor a categoria de Adjuvante dos Sujeitos 1 e 2, pois, como referido, em qualquer versão, ela devotava ao companheiro amor e fidelidade. Em relação ao segundo quadro, vamos encontrar o S3 – protagonizado por Lampião e seus familiares. Eles vivem tempos tranquilos, trabalhando em paz, portanto, em conjunção com o seu OV, que é a luta pela subsistência: “Cruzei na casa paterna / Quis ser um homem de bem / E viver dos meus trabalhos / Sem ser pesado a ninguém [...]” 120 Ainda neste segundo quadro, apontamos o S4, discursivizado pelos Saturninos – Oponentes do S3, responsáveis pelo assassinato do velho José Ferreira. A partir desse fato, ocorrem as seguintes transformações: o S1 passa a S2 – o bandido, o qual tem como destinação a vingança pela morte do pai. O S3 também se transforma, entrando em disjunção com seu OV, porque é obrigado a abandonar a vida tranquila e passa a viver na ilegalidade: “Nunca pensei que na vida / Fosse preciso brigar / Apesar de ter intrigas / Gostava de trabalhar / Mas hoje sou cangaceiro / Enfrentarei o balceiro / Até alguém me matar [...]” S3 (Lampião) ∩ OV (vida em família – antes do assassinato do velho) S3 (Lampião) U OV (ordem social – após o assassinato) E assim Manuel Pereira vai narrando as peripécias de Lampião, num enredo em que não faltam lutas, injustiças, vingança e fugas. Também não faltam referências históricas, a exemplo da Coluna Prestes: “Nessa época Carlos Prestes / Fez uma Revolução / Reuniu um grande grupo / E saiu pelo sertão [...]”. A participação do cangaceiro nesse episódio valeu um prêmio, como veremos a seguir: “O padre, no mesmo dia, / Arranjou uma patente / Promoveu a Capitão / Lampião ligeiramente [...]” LAMPIÃO Em conjunção com a companheira. Em conjunção com o companheiro. Em disjunção com a volante. História de AMOR e de LUTA Em disjunção com os valores convencionais. MARIA BONITA Figura 9 – Estado de conjunção e disjunção do Sujeito com seu OV 121 Afinal, chega o momento em que o poeta se debruça sobre as cenas românticas, nas quais o valentão se rende, sem reservas, aos dotes da beleza feminina: “Morena, cor de canela, / Dessas que o vento palpita / Muito bem feita de corpo / Lábios da cor de uma fita / Disse Lampião: te levo / Minha Maria Bonita”. Aliás, é bom lembrar que a capa do folheto exibe uma cena que não fica a dever a nenhuma campanha cinematográfica. Identificamos aí as marcas de um poema épico, senão vejamos: “Grande Deus, Senhor dos seres / Mandai-me orientação / Ideias, forças e rimas / Para versar a história / Da vida de Lampião [...]”. Após construir a imagem do herói, o poeta alterna com versos que fazem referência à figura feminina, como já referido, perpassados de romantismo: “Tive também meus amores / Cultivei minha paixão / Amei uma flor mimosa / filha lá do meu sertão [...]”. A partir do momento em que encontrou Maria, e permitiu que ela seguisse o bando, os cuidados se multiplicaram, pois tinha que enfrentar os adversários, orientar os párias, e proteger a mulher amada. O cordel conta o detalhe de uma luta em que Maria Bonita foi ferida e Lampião teve que carregá-la nas costas: “Por fim Lampião pegou / a sua mulher sem par / tinha dado um passamento / e não queria tornar / ele amarrou-a nas costas / e foi descendo a vagar.” Pereira não poupa títulos para mostrar a grande paixão que, daquele dia em diante, invadiu o duro coração cangaceiro. Parecia não haver oponente, para perturbar o percurso amoroso, só adjuvantes, num clima de completa euforia, como confirmam os versos laudatórios: “Lampião era de aço / Porém ante a beleza / daquela mulher mimosa / Com um porte de princesa / Cabelos e olhos grandes / Parecendo uma duquesa”. De tudo que foi exposto, chegamos à estrutura discursiva convencidos de que as relações entre enunciador e enunciatário estão amparadas nas mesmas condições de produção, dado o levantamento das marcas de enunciação, com valores eufóricos (S1) e disfóricos (S2) em igual medida. Para obter esse resultado, contou-se com a ajuda dos meios de persuasão, mecanismos tão eficazes à figurativização do bem quanto à figurativização do mal. Com base nas leituras feitas, e mais ainda nas análises dos folhetos, queremos reforçar essa recorrência à temática da dualidade humana. Há cordéis que apontam somente o aspectos negativos; outros reconhecem no cangaço funções e valores positivos. Há, ainda, os que contemplam, na mesma análise, os dois lados, como no cordel do poeta Manuel Pereira, nos quais se alternam as referências a essa natureza dual. Aliás, essa abordagem dialética acerca do cangaço responde coerentemente às perspectivas metodológicas deste trabalho, que se 122 preocupa em definir as tênues fronteiras entre ficção e realidade, ou entre a identidade do indivíduo e a do grupo. 4.8 Sombras do Cangaço 4.8.1 Preliminares Mais um cordel vem ilustrar nosso acervo, apresentando dois títulos: “Sombras do Cangaço” ou “A Versão de Maria Bonita”. Revisado e reeditado em dezembro de 2010, o texto narra, com delicadeza e sensibilidade, a versão da mulher sobre o Cangaço, uma história permeada de paixão e sofrimento, e o mais interessante, com um desfecho recriado. Susana Morais de França Medeiros, recifense, com raízes no Pajeú, foi membro fundador da UNICORDEL. Participa do grupo Vozes Femininas e ocupa o tamborete nº 19 da Galeria dos Mortais, no www.interpoetica.com. Desde 2005 a autora se dedica a escrever cordéis, com mais de vinte títulos individuais publicados. A começar pela capa, com xilogravura figurativizando o garboso cavaleiro com a amante na garupa, o texto vai do tema político-ideológico ao cenário de gloriosa trama romanesca. É preciso reconhecer aí o resgate de aspectos que fazem parte das grandes histórias de amor: o valente e garboso cavaleiro, carregando a bela princesa. Aliás, é interessante registrar que os cordéis, com autoria feminina, inclinam-se para um corte que varia entre o erótico e o romântico. É a Madame Pompadour, por um lado, e a Cinderela, por outro. Essas personagens, que povoam o imaginário coletivo, ainda se debatem em um mundo distante, emergindo nas mãos das cordelistas mulheres, que trazem para a superfície os temas romanceados, que nos fazem lembrar as epopeias. Esse também é o perfil de um dos textos consultados, que não fazem parte do corpus, mas dão apoio ao debate. Trata-se de um poema de Myriam Fraga, sob o título “Maria Bonita”. É um texto que presenteia o leitor com a deliciosa mistura do componente lírico com o erótico. As escolhas lexicais e os movimentos sinestésicos pintam Maria Bonita como uma mulher bela e sensual, que nada fica a dever às grandes damas do cinema mundial. Essa imagem idealizada, típica da estética romântica, se repete em vários folhetos analisados nesta pesquisa, e pode ilustrar, com precisão, as referências destacadas nos parágrafos anteriores. Os versos insinuam que os sujeitos entram numa relação de reciprocidade, ou melhor, que se encontram em conjunção com seu OV. Ele = homem amado / Ela = mulher amada. 123 Esta noite em Angico A brisa calma No silêncio farfalham minhas anáguas. A seleção da forma verbal “farfalham” invoca o som, ao mesmo tempo estridente e harmonioso, como convém ao encontro do lírico com o erótico. Aliás, em todo o cordel há a prevalência de uma figurativização, cuja temática se declina para um erótico, com sabor agreste, como se pode avaliar nesta passagem: E no escuro minha carne cheira a mato. Para fechar este quadro, a invocação da mulher, a delicadeza e a emergência do convite, como se fora uma transfiguração, entre o humano e o vegetal: Vem, meu amor E lavra este roçado [...] Na base da construção desse texto, não circulam categorias em relação de contrariedade, mas sentimentos materializados na impaciente natureza cosmohumana, à espera do companheiro que lhe trará todo o insumo de que precisa para ser feliz. Eis um percurso gerador de harmonia o qual, à luz da Semântica Discursiva, deve identificar a organização de modalidades densamente atualizantes. Por outro lado, tais recorrências vão conferir ao texto aquilo que se conhece por “presentificação do instante”, a partir do que ocorrerá o milagre da transformação de vozes dispersas em papéis sociais. Essa é a explicação que se dá à passagem do sujeito individual a ente coletivo, um processo tantas vezes flagrado na literatura, sobretudo na literatura popular, quando as produções encontram respaldo no imaginário e passam para o domínio popular. Como vimos, a tensão entre fantasia e realidade marca o teor dos versos cordelinos, obrigando-nos a retomar a problematização desta pesquisa, ou seja, levantamos a hipótese da ameaça à identidade dessas mulheres. Duas razões explicam essa opacidade identitária: a primeira se localiza na macroestrutura, e se explica pela tênue fronteira entre a dimensão individual e a de grupo; a segunda está situada no discurso fartamente recheado de apelos simbólicos e míticos. Dado que o real é a interpretação que os homens atribuem, entramos em contato, a partir do corpus deste trabalho,com as imagens que permeiam o imaginário popular, em cujo esteio construíram-se deuses e demônios, heróis e bandidos. Alimentadas por uma tradição 124 messiânica, essas representações vão sendo projetadas em situações concretas, conduzidas pela vontade e pelas intenções dos atuantes. 4.8.2 Percurso da significação No percurso narrativo, vamos encontrar a figurativização de Maria Bonita, cuja trajetória se desdobra em dois sujeitos semióticos. S1 discursivizado por Maria Bonita, que vai em busca de seu OV = Lampião. Neste primeiro momento, o S1 está em conjunção com seu OV, conforme atestam os versos que seguem: É um conto de romance de quimera irreal fantasia, devaneio criação tão desigual [...]. São esses os primeiros versos de Susana, na sua transfiguração, personalizada em Maria Bonita. Todo o texto se reveste de uma ternura assumida, depois transformada em paixão. O Sujeito-enunciador sai do seu estado manso e terno para um Sujeito do fazer, com a firmeza e decisão das grandes amantes: “No meu nome sou Bonita / Sou Maria, sou a Santa / Lampião, meu companheiro / Do meu pranto ele encanta / E se de noite ele chora / Cubro-o com minha manta”. Até aí a narrativa permanece em clima de euforia, com o Sujeito-mulher em conjunção com o seu Objeto de Valor – o Companheiro. É preciso reconhecer aí o resgate de aspectos que fazem parte das grandes histórias de amor: o cavaleiro andante, carregando a princesa. Fala a autora: “É um conto de romance / De quimera irreal [...]”. O S2, também figurativizado por Maria Bonita, enfrenta um novo estado de SER, transformado pela perda do companheiro – processo que a põe em disjunção com o seu OV = o cpmpanheiro. Esse desenlace está descrito no fragmento iniciado com uma palavra que representa, semioticamente, uma adversidade: “Mas a vida é arapuca [...]”. 125 1º Momento 2º Momento MARIA BONITA Conjunção com o OV Disjunção com o OV Figura10 – Maria Bonita: entre conquistas e perdas Com o desdobramento da análise, devemos reiterar a acentuada demarcação entre o momento de conjunção do Sujeito com seu Objeto de Valor, e a ruptura do percurso. Outro aspecto relevante é que a poetisa deixou bem claro para o interpretante a intenção de subverter a história, criando outro desfecho, segundo o qual Maria Bonita sobrevive à tragédia. Daí em diante, Maria se pergunta o que vai fazer da vida sem a presença do seu amor. É uma indagação que faz parte do discurso do senso-comum, mas que ganha charme e força nos textos dramáticos, do tipo Lisbela e o Prisioneiro: “E agora, que faço eu da vida sem você???”. O texto de Susana Morais, como referido, ora faz referências de teor histórico e político, como se pode constatar nestes versos: “E nas terras do Nordeste / Castigado pelo sol / Um Brasil Republicano / Ofuscado pelo rol / De coronéis governantes”; ora faz alusão a demandas sociais: “Contra uma Reforma Agrária / (a medida que não falha) Pra matar a fome alheia”. A esses temas de feição ideológica, somam-se as cenas românticas até atingir o trágico desenlace, com a perda do amante. Conforme anunciado, a autora recria o final, poupando a mulher da morte, mas deixando-lhe o legado da dor e do desamparo. Nesse nível semiótico do entorno humano, o “conto de romance e quimera irreal”, antes localizado nas zonas identitária e proximal, a partir de então, deslocou-se para a zona distal: “Mas a vida é arapuca [...]”. A ruptura da proximidade para o distanciamento dos valores eufóricos está visível, marcada pela adversativa “Mas”. É importante informar que a poetisa faz opção pelo par enunciativo EU/TU, pronomes de primeira e segunda pessoa, tanto antes quanto após a ruptura do percurso narrativo. “Encontrei-me neste bando [...] / Pois te sigo qual cangaço [...]. As categorias de pessoa continuam as mesmas, após a perda: “Ocorreu que Lampião neste mundo me deixou”. Tais escolhas enunciativas caracterizam a situação de embreagem a qual, teoricamente, significa envolvimento do Sujeito com a enunciação. 126 Essa mudança define o quadro de termos em contrariedade: gozo x sofrimento / harmonia x desenlace / encontro x perda, entre outros. Essa tensão dialética, portanto, marca a versão da mulher, neste roteiro de ficção, criado por Susana Morais. Para concluir a análise, voltamos aos postulados de Rastier, para associar a fase do “encontro” às zonas identitátria e proximal, em relação ao discurso do destinador. Este instaura os sujeitos semióticos, ao mesmo tempo, coloca-os em conjunção com o Objeto de Valor. Quando ocorre a morte do S1, o destinador desloca os sentimentos eufóricos para a zona de distanciamento em relação aos sujeitos semióticos, os quais transitam do encontro para o desenlace. A partir de então, o cenário do entorno humano torna-se sombrio, pela grande incidência de elementos disfóricos. A sistemática oscilação entre o Bem e o Mal constitui característica específica não só do corpus da pesquisa, mas também de toda bibliografia consultada. Como já dissemos, a convivência com dois princípios irredutíveis entre si está na natureza metodológica deste texto, já que a problematização se instaura numa opacidade identitária, ou melhor, numa identidade sufocada: por um lado, entre o plano individual e o grupal; por outro, entre a realidade virtual e a virtualização do real. 4.9 Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás 4.9.1 Preliminares O nome do poeta JOTABARROS não poderia estar ausente desse elenco, até porque se destaca entre os que mais se ocuparam com acontecimentos de viés messiânico, localizados no Nordeste. Sob o título “Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás”, os versos encenam o drama vivido por Lampião após a morte, quando nem no inferno encontrou abrigo. Depois de vagar sem destino, implora pela misericórdia divina, até que São Pedro recebe autorização para lhe abrir as portas do céu. Em seguida se vale do poder de Padim Ciço, que intercede junto a Jesus, conseguindo trazer Maria Bonita para viver junto ao amado. São Pedro os conduz ao Paraíso e vai logo explicando: a felicidade dos dois dependerá da obediência às regras. Há um cajueiro do qual eles não devem se aproximar, para que não caiam na tentação de comer o fruto daquela árvore. Afora essa restrição, podiam desfrutar daquele espaço de paz e conforto. 127 Então, veio o demo, figurativizado em uma cobra e, com o desfecho já conhecido: a tentação seguida da desobediência. Este cordel traz a história reeditada do mito de Adão e Eva – “Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás” – mais um atestado do messianismo que permeou essas sagas. E também mais uma voz reforçando o discurso que defende a tese da fragilidade da mulher. Foi escrito por João de Barros (JOTABARROS), cordelista e xilógrafo, natural de Glória do Goitá, um dos maiores expoentes da nossa Literatura de Cordel. O título “Lampião e Maria Bonita no Paraíso, tentados por Satanás” já acena, cataforicamente, para o teor messiânico do texto, como convém à cultura popular e ao discurso etnoliterário, tomado como coadjuvante. A estrutura deste pode ser dividida em quatro momentos: o primeiro se ocupa das razões que motivaram a opção pelo cangaço: “Todos sabem Virgulino / Por obra do malfeitor / Tornou-se um cangaceiro / Para vingar uma dor”. Neste tópico, o poeta faz alusão à tragédia, que desencadeou o ingresso na vida cangaceira, ou seja, a morte dos pais de Lampião. O segundo momento, o mais longo, dedica-se às peripécias de Lampião e seu bando, nas andanças pelos caminhos do sertão nordestino, perseguido pela polícia, segundo JOTABARROS, “Ficou mais endiabrado / junto com seu batalhão”. Para expressar a revolta do cangaceiro, o cordelista recorre a cenas burlescas que lembram personagens de Rabelais, eternizadas pela teoria da carnavalização de Bakhtin, como podemos ver na seguinte passagem: “O Prefeito passeou / em um jumento cansado / com um sujeito puxando / o animal enfadado / nuzinhos como nasceram / Foi um carnaval gozado”. É bom informar que o poeta, ao mesmo tempo em que descreve os desmandos, vai amenizando o efeito com registros que mostram o lado justiceiro. “Muitos diziam que ele / Era péssimo, era mal / Mas não, ele defendia / a um certo pessoal”. A adversativa “Mas” aparece sempre para gerar a tensão dialética entre o bem e o mal. Conforme já foi dito, o acervo consultado, na bibliografia geral ou nos folhetos e depoimentos, apresenta sempre essa característica de teor contraditório. Isso porque, na nossa pesquisa, confrontamos o racional com o afetivo, quando buscamos comparar a memória oficial com a memória social. No terceiro momento, após ser derrotado e morto pelas tropas do poder oficial, Lampião perambula pelo além, à procura de um abrigo. Satanás não o quis no inferno, então ele foi bater às portas do céu: “Falou São Pedro a Jesus / Aí está Lampião / Pedindo para ficar / Nessa Divina Mansão / O que é que digo a ele? / Que pode ficar ou não?”. A curiosidade do 128 leitor logo é satisfeita, pois não dura nada o tempo entre a consulta e a aprovação. Mas ...existe uma condição: ele não pode tocar num certo cajueiro que há no pomar do Paraíso. Reedita-se a velha cena bíblica de Adão e Eva. Aliás, não faltam apelos míticos nos versos de JOTABARROS, sejam no resgate de passagens messiânicas, sejam na recorrência a cenas burlescas que lembram personagens de Rabelais, eternizadas pela teoria da carnavalização de Bakhtin. “O Prefeito passeou / Em um jumento cansado / Com um sujeito puxando / O animal enfadado / Nuzinhos como nasceram / Foi um carnaval gozado”. Finalmente, o último momento da narrativa registra a generosidade de Jesus Cristo, ao concordar com a ida de Maria Bonita ao céu. Mas [...] diante da mesma advertência: “Comerás todos os frutos, mas é isento o caju”. Lampião logo avisou que, da parte dele, garantia a obediência àquela prescrição divina. Já a mulher, tal qual a Eva bíblica, encheu-se de curiosidade para experimentar o fruto proibido. O final da história todos já sabem. A mulher seduzida pela serpente. E o homem seduzido pela mulher. 4.9.2 Percurso da significação No folheto de BARROS, em todos os momentos vamos encontrar uma configuração narrativa semelhante, com o Sujeito figurativizado por Lampião, com variação apenas quanto ao Objeto de Valor. Assim, o Sujeito se instaura na narrativa pela modalidade complexa do querer-ter, indo em busca de seu OV, que é a vingança. No segundo quadro, o S 1 é o mesmo, mas o OV torna mais possessivo o querer-ter, daí uma performance mais agressiva. Quanto ao terceiro momento, o S1, vencido pelo Oponente, vai buscar apoio na figura de Cristo, figurativizado como seu Adjuvante, pois a divindade conhece os bons propósitos do S1. Este, já em harmonia com o Paraíso, debate-se, mais uma vez, com seu Oponente – Satanás, que ameaça a conquista do OV, a busca da paz ao lado da mulher amada. Por outro lado, temos o S2 representado por Maria Bonita, cujo Objeto de Valor é viver em conjunção com o companheiro. Mas esse percurso é quebrado, quando o Oponente arma-se de um discurso manipulador, para investir na tentação. A partir daí, o S2 muda o OV, que passa a ser o desejo de provar do fruto proibido. “Participas desse fruto / Que ganharás a mansão / Irás viver sem trabalho / E não prove sozinha não”. As palavras do inimigo Oponente convencem o S2 para o querer-fazer e o primeiro passo foi persuadir o S1 a mudar de estado e segui-la naquela ação de desobediência, indo os dois na direção do cajueiro. Assim é que o S2 não só cai na cilada, mas também leva o S1 ao 129 pecado. Nesse novo percurso, que representa o quadro final da narrativa, ambos entram em estado de disjunção com a Paz que lhes fora ofertada naquele Paraíso. JOTABARROS, como tantos outros poetas populares, costuma reeditar passagens bíblicas, através das quais vai alimentando crenças e valores, no caso em foco, o respeito a princípios que defendem a obediência e a fidelidade. Em se tratando de valor cultural, nessa releitura, podemos constatar o reforço a um comportamento atribuído à mulher, como sendo um ser frágil, que cede facilmente à tentação. Se nos voltarmos para a análise das estruturas fundamentais, que representa o nível semiótico profundo, vamos constatar uma oposição semântica básica entre FIDELIDADE x TRAIÇÃO, estabelecendo-se, durante a narrativa, um percurso da primeira à segunda e, no clímax da trama, da segunda à primeira. Os semioticistas propuseram a figura do quadrado octógono, para a apreensão mais lógica das situações de conflitos mais gerais, extraídos da narrativa. Este é o modelo do SER e do PARECER, modalidades que vão representar a tensão dialética de um universo semiótico. Vamos observar a imagem representativa a seguir: Cangaço Fidelidade Traição Contexto Social Maria Bonita Não-traição Não-fidelidade Ø Figura 11 – Tensão Dialética entre Fidelidade e Traição Obediência e traição inserem-se no eixo da contrariedade, sendo que a primeira tem valor tímico positivo e a segunda é timicamente negativa, portanto encontram-se em relação de pressuposição recíproca. Se aplicarmos uma operação de negação a cada um dos contrários, obteremos termos contraditórios. Assim não-obediência é o contraditório de obediência, e não-traição é o contraditório de traição. Para finalizar, recorremos às categorias de Rastier, para mostrar que as rupturas oscilam, a depender das mudanças ocorridas no contexto, em que se localizam os sujeitos 130 semióticos. A proximidade ou distanciamento dos valores eufóricos, em relação ao S1 e ao S2, constituem situações definidas a partir do entorno desses atores, figurativizados em Sujeitos. Esses fatores condicionantes entre os Sujeitos e seu entorno parece emergirem dos contos da tradição oral, quando havia sempre uma bruxa, ou madrasta malvada, ou um lobo mau, no caminho das inocentes meninas. As fadas restam como privilégio para os desfechos com final feliz. Mas todas essas figuras buscam soluções no plano da fantasia, um percurso simbólico, ao longo do qual estão projetadas as representações socioculturais responsáveis pelas tendências valorativas. 4.10 Lampião vai ao inferno buscar Maria Bonita 4.10.1 Preliminares O viés mitológico continua recorrente, quando lemos o título “Lampião vai ao inferno buscar Maria Bonita”, de Apolônio Alves dos Santos. Nesse cordel, também podemos constatar a recriação de valores bíblicos, com a recriação das figuras mitológicas de Adão e Eva. Nesta história o foco dramático é a luta de Lampião para tirar Maria das garras de satanás. Aliado ao messianismo reinante, identifica-se também o culto à coragem e à valentia do herói, para salvar a donzela indefesa. Este folheto foi premiado em 2º lugar, no Concurso Nacional de Literatura de Cordel sobre Lampião, patrocinado pela UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana, e publicado pelo Museu Casa do Sertão – UEFS, em 1998. O Concurso procurou atingir dois objetivos: (1) colocar em discussão a memória do Nordeste onde a Universidade está inserida; (2) valorizar a Cultura Popular, notadamente a Literatura de Cordel, também conhecida como “Folhetos de Feira”. Temos, então, mais uma história que reedita o mito de Adão e Eva. Assim como o folheto anterior, “Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás” – este é mais um atestado do messianismo que permeou as sagas que povoam o universo da literatura popular. E também mais uma voz reforçando o discurso que defende a tese da mulher indefesa, salva pelo corajoso varão. O viés mitológico continua recorrente, quando lemos o título “Lampião vai ao inferno buscar Maria Bonita”, como se fora uma característica prevista no corpo de critérios de uma Academia. Nos dois cordéis, podemos constatar a recriação de valores bíblicos, a exemplo da tentação e da consequente desobediência da mulher, ao comer o fruto proibido. Aliado ao 131 messianismo reinante, identifica-se também o culto à coragem e à valentia do herói, para salvar a frágil donzela. Nesse cordel, como em tantos outros, o componente simbólico é a luta entre o Bem e o Mal. A trama é tecida a partir de sentimentos ambivalentes que vão desaguar naquilo que os psicanalistas chamam de existência triádica. Em primeiro lugar, simula-se a figura da filha, vítima do desamparo, após ficar órfã; em segundo plano, a madrasta, figurativizada pelo demônio; finalmente, o caçador, que simboliza proteção, no caso o cangaceiro, confundindose com a figura paterna. Quanto mais tentamos escapar dessa tríade familiar e profética, mais nela nos enraizamos, presos às imagens construídas por verdades e crenças, todas elas aninhadas no imaginário. A narrativa traz mais um enredo dramático, envolvendo a trajetória romanesca de Lampião e Maria Bonita. Se pararmos no título, já podemos inferir que este, assim como os anteriores, persiste na recorrência a elementos simbólicos e messiânicos, como se quisesse provar que o fenômeno em foco não sobrevive fora desse contexto alegórico. Falar da prevalência do discurso etnoliterário torna-se óbvio, já que adiantamos a tendência mitológica do texto, consequentemente, o distanciamento da austeridade racional. A história começa com a morte dos dois amantes e o posterior estágio, conforme vaticínio da tradição cristã: “Diz a lenda que os cristãos / Quando aqui termina a vida / Vão viver em outra esfera / Numa área permitida / Até purgarem os pecados [...]” Após a etapa da purgação, os amantes atingiram um estado espiritual elevado e assim foram desfrutar da felicidade, concebida aos que já passaram pelo Purgatório – que era o lugar da anistia. Viveram felizes, até que surgiu o perverso Oponente, que outro não era senão Satanás. Este se interessou por Maria e decidiu tomá-la de Lampião: “Peguem ali o narcótico / E levem uma porção / Lá chegando narcotizem / A mulher de Lampião / O marido deixem lá / A mulher me tragam cá / Que eu tenho precisão”. Ao acordar e dar pela falta da mulher, Lampião urra feito um bicho bravo. Já adivinhando quem lhe causara tamanha desgraça. Logo acorre ao Inferno e luta ferozmente até adentrar o terreno do inimigo: “Lampião entrou lá dentro / Aberturou Lucifer / Dizendo seu condenado / Não é como você quer / Mato um milhão de capeta / Mas levo minha mulher”. A refrega durou horas, o Inferno foi revirado de cabeça para baixo, era cão morto pra todo lado, e Lampião continuava enfurecido até descobrir o esconderijo onde estava Maria: era um porão velho e sombrio, sem nenhuma ventilação, e pior, infestado de insetos, mosca, 132 pulga e escorpião. “Maria soltou um grito / Oh! Que momento bendito / Que você veio, meu amor / Me libertar desse horror”. Enfim, o herói salva a donzela e prende o maldito raptor naquele lugar macabro e repugnante. Depois, enche sua amada de afagos, e a conduz no colo, como se faz a uma criança indefesa. O desfecho, todos sabemos, tal qual os contos de fada, foram felizes para sempre. 4.10.2 Percurso da significação O campo das informações preliminares foi encerrado no momento em que o valente Lampião salva Maria das garras do inimigo. Dessa forma, o percurso narrativo do querer-ser do Oponente Satanás foi interrompido pela performance do Sujeito1, que lutou com todas as forças até passar da potencialidade à ação, atingindo as modalidades atualizantes, ao salvar sua amada. No percurso do Sujeito2, figurativizado por Maria Bonita, entra em cena o S1, que a salva das garras do maldito. Na fase da sansão, já descrita no tópico anterior, os falsos heróis são desmascarados e os verdadeiros são reconhecidos, conforme prevê Fiorin (2002, p. 24). Passemos, agora, às categorias da Discursivização, que correspondem às estruturas mais específicas, ao mesmo tempo, mais complexas. Nesse estágio, podemos identificar as marcas de delegação de voz e de efeitos de enunciação que participam da constituição do narrador e do observador. O texto começa com embreagens actancial e temporal enunciativas. O autor se vale da primeira pessoa e do tempo presente, para criar efeito de subjetividade, ao mesmo tempo, como recurso de sedução, para imprimir a ilusão de realidade: “Peço a meu bom leitor / Venha ofertar-me um abraço [...]” A partir da segunda estrofe, o poeta opta sempre pela terceira pessoa a qual, embora na maioria dos casos signifique distanciamento do sujeito, no modelo analisado, a história é conduzida por um observador que se identifica com os actantes da narrativa. Quanto à categoria de tempo, privilegia o pretérito perfeito e imperfeito, mesmo assim, não se pode falar em distanciamento, até porque a recorrência ao discurso direto equilibra as relações entre os papéis do discurso e os papéis da narrativa. A categoria espacial vacila entre o aqui / ali, a depender do efeito de realidade que pretende, ao acompanhar a ancoragem actancial e a enunciação pressuposta. A marca “lá” só aparece para figurativizara valentia de Lampião quando tenta desobstruir a passagem e 133 descobrir o esconderijo, onde se encontrava a mulher amada, um porão velho e sombrio: “Lampião entrou lá dentro”. Neste caso, o autor pretende representar muito mais a morbidez do espaço que a distância. Não podemos deixar de registrar a figurativização representando a refrega entre as forças do Bem e as do Mal, numa revelação de agressividade, cujas marcas estão expressas nas escolhas lexicais. É um acervo chocante, para dramaturgia nenhuma botar defeito: sendo aço eu destempero / sendo de bronze eu derreto / seu coisa ruim / seu condenado / mato um milhão de capeta / pode vir com a murrinha / seu mulambudo / você está fedendo etc, etc, etc. O trecho acima transcrito serve de testemunho, no campo da estrutura semântica mínima, para insistir no fato de que, nesse percurso profético, alternam-se, como referido, manifestações situadas entre o Bem e o Mal, esse rótulo referencial originado nos mitos e reforçado pelo modelo burguês. Desdobrando esse núcleo em unidades menores, sugerimos outros pares antonímicos que podem representar o embate de relações eufóricas e disfóricas, por exemplo: covardia x valentia / amor x ódio / dignidade x esperteza etc. Esse quadro de oposições deve corresponder à tensão subjacente, cujas representações sociais e estereótipos são manipulados por anjos e demônios, entre tantos outros fantasmas que povoam o imaginário coletivo. 4.11 LAMPIÃO: sua vida e sua morte – Gilvan Santos 4.11.1 Preliminares Gilvan Santos, natural de Serra Talhada, participa dos movimentos culturais da terra natal, marcando sua atuação no teatro popular, na poesia, e dançando no Grupo de Xaxado Cabras de Lampião. Com tal currículo, presume-se que conhece de perto o cenário cultural de que foi cercado o Cangaço. “LAMPIÃO, SUA VIDA E SUA MORTE” é sua primeira obra publicada, na qual narra, com os mínimos detalhes, a trajetória do cangaceiro, desde o nascimento, numa fazenda rural, em Serra Talhada, até o trágico episódio, ocorrido numa manhã de julho, em Angico, entre Sergipe e Bahia. Muitas passagens, como o assassinato do velho Ferreira, não apresentam novidade, tal a semelhança com os relatos dos cordéis anteriores. Para evitar a repetição, reservamo-nos o direito de falar apenas de alguns fatos curiosos, que Gilvan sabe muito bem figurativizar, a fim de seduzir o leitor. 134 Com seus versos X a X e rimas abertas, Gilvan realça a natureza dicotômica do Cangaço, convencendo o interlocutor pela perfeita descrição, seja quando se trata de herói ou quando se refere ao bandido. As escolhas lexicais dão cores bem contrastantes ao conhecido amálgama, que divide opiniões em relação à figura do Rei do Cangaço. Aliás, é importante reiterar que esta contradição está incorporada à literatura, seja qual for o gênero que se dedique ao tema “Cangaço”. Também são interessantes, no cordel de Gilvan, as referências a aspectos da cultura local, como o menu preferido: bode assado com farinha e rapadura. Também merece alusão as cenas de entretenimento: “E mesmo na caatinga / O bando era animado / Quando o coito era seguro / Que estavam sossegado / Eles faziam forró / Dançando numa perna só / Originando o xaxado.” Um fato curioso foi a morte acidental do irmão de Lampião. Numa brincadeira para disputar uma rede, Luiz Pedro não viu que dentro havia uma espingarda. Ao sentar de vez, a arma disparou e atingiu Antônio Ferreira. Os que assistiram à cena, logo aconselharam o companheiro a fugir antes que Lampião soubesse do sucedido. Mas Luiz Pedro assim reagiu: “Daqui não arredo um passo / Se tiver de morrer, morro / Mas não escondo o que faço”. Foi ao encontro de Lampião e contou o acidente, entregando-se à sorte: “Sei que é um drama ruim / Mas pode fazer de mim / Tudo que você quiser”. Lampião ficou muito abatido, mas confiava naquele companheiro, por isso teve uma reação inesperada. Disse que sofria muito pela perda do ente querido; sabia, entretanto, que o amigo não tivera culpa, então pediu a Luiz Pedro que, daquele dia em diante, substituísse o irmão, acompanhando-o em todos os momentos, como fizera Antônio em toda a vida. Tinha razão Shakespeare, ao profetizar que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que pensa a nossa vã filosofia”. Nessa direção, também podemos afirmar que “há mais tolerância e compreensão na convivência entre os cangaceiros do que preveem os contadores de história”, sobretudo os que não acreditam na boa intenção dos que tiveram que optar por essa vida nômade. Enquanto todos apostavam na fuga de Luiz Pedro, tiveram como resposta uma atitude de firmeza e bom caratismo. Enquanto apostavam na revolta de Lampião, e na consequente vingança, surpreenderam-se com um exemplo de perdão e amizade. Esse elenco de sentimentos nobres, que emergiram dos versos de Gilvan, por um lado, confirma a crença popular no cangaço como um movimento do Bem, abençoado por Padre Cícero Romão. Por outro lado, porém, contraria a voz oficial dos que o perseguiram, como a uma turba de assassinos cruéis e sanguinários. 135 4.11.2 Percurso da significação No percurso geral da narrativa, existem quatro sujeitos semióticos, figurativizados da seguinte forma: S1- representado pelos Ferreiras, que tinham como Objeto de Valor cuidar da pequena propriedade e garantir a sobrevivência, extraída da roça e da pequena criação de bovinos e caprinos. S2- discursivizado por Zé Ferreira, cujo OV era administrar os poucos bens e cuidar da família. O velho Ferrreira, sem qualquer má intenção, protagonizou a história do chocalho amassado, encontrado no meio do mato e por ele utilizado em uma rês de sua propriedade. O chocalho pertencia aos Nogueiras os quais, a partir de então, passaram a difamar os Ferreiras, acusando-os de ladrões. Este foi o pontapé inicial da refrega, que culminou com o assassinato do velho Ferreira. S3 – figurativizado pelos Nogueiras, advervários dos Sujeitos 1 e 2, por isso considerado o antissujeito. Este tem como Objeto de Valor a perseguição e destruição da família Ferreira, tachada por ele de vadia e bandoleira. S4 – protagonizado por Lampião que, após a morte do pai, foi destinado a fazer a vingança - seu Objeto de Valor. Essa foi a razão que o levou à vida nômade do cangaço. Focalizando apenas o episódio do acidente, podemos mostrar uma configuração narrativa com dois sujeitos semióticos: S1 = Lampião e o S2 = Luiz Pedro. O Objeto de Valor do primeiro, ao contrário do que apregoam, é a paz e a boa convivência dentro do bando. Para conquistar seu OV, o S1 passou pela transformação do Ser poderoso e vingativo à modalidade do querer e fazer o Bem, através da compreensão com o que aconteceu ao companheiro. O S2 tinha como Objeto de Valor a fidelidade ao amigo Lampião e, em que pesem os conselhos de alguns actantes, teve a coragem de assumir a verdade dos fatos. Por isso mereceu como sanção a confiança do amigo, consequentemente, uma amizade mais forte, com laços mais estreitos. Ficam registradas, pois, como categorias tímicas positivas a atitude decente de Luiz Pedro, ao enfrentar as consequências de uma fatalidade; e a tolerância de Lampião que, embora sofrendo a perda, soube confiar e perdoar. As categorias negativas estão implícitas, e suas marcas devem aparecer no discurso dos que criticam e se recusam a reconhecer na cultura popular o lugar privilegiado, onde se multiplicam os cadinhos de sonhos e socializações. 136 Enfim, Gilvan não é só quantidade de versos, é qualidade, sobretudo, até porque colabora com a semântica mínima, na esfera fundamental, propondo não apenas um par de oposição, mas uma rica escala antonímica, para mostrar que os Sujeitos se enriquecem nos papéis do Discurso e nos papéis da Narrativa. Sugerimos as oposições, apresentando como categorias tímicas positivas, as atitudes assumidas pelos Atores e legitimadas pelo Destinador. Como categorias negativas, aquelas que eram esperadas pelos Actantes, os que presenciaram a cena: Morte Acidental Perdão Castigo Lampião e Luiz Pedro Outros Cangaceiros Não - castigo Não - perdão Ø Figura 12 – Octógono entre perdão e castigo Importante falar sobre o envolvimento do enunciador ao relatar o encontro de Lampião com Maria Déa. Depois de tantas versões sobre o fato, acreditava-se não haver mais novidade a respeito. Ora, ora, não é que Gilvan nos emociona com uma figurativização picante e colorida, mostrando a incompletude da linguagem verbal para revelar a grandeza daquele sentimento. Segundo o poeta, só mesmo a combinação de vários sistemas modelizantes, em formulações sinestésicas, pode ser capaz de dar conta da paixão que une aqueles dois seres: Mas o homem sem mulher É um sapato sem meia Se dana fazendo calo De mostra é uma coisa feia [...] Mas como diz o poeta Pra ser expresso o amor Não precisa de palavras Gestos ou outro vetor, Se sente no coração [...] 137 Aproveitando esse quadro, para aplicação das rupturas de Rastier, devemos informar que, no entorno dos sujeitos semióticos, no eixo da proximidade, identifica-se um mundo óbvio, transbordante de afeto. Na zona de distanciamento, localizam-se os Oponentes. Entre estes, o coiteiro – delator do local onde os cangaceiros se abrigavam. A partir dessa traição, invertem-se os papéis, deslocando para a zona de distanciamento toda a harmonia que povoava o entorno humano. Naquele alvorecer do dia 28 de julho, em Angico, restava a obviedade da dor, pela chacina, programada e realizada pela Volante. Enfim morreu Lampião Ele e Maria Bonita Mais nove cabras do bando Numa manhã tão aflita [...] A 28 de julho, Essa tragédia se deu Também morria o Cangaço Que Lampião acendeu E hoje a sua memória Está expressa na história Que o próprio povo escreveu. Há pessoas que acreditam que o raiar do dia é uma hora de angústia e de presságios, a hora mais propícia a pesadelos, pois foi com os primeiros raios de sol que os protagonistas desta fantástica saga disseram adeus ao sertão e à caatinga, ao mandacaru, ao juazeiro. Entretanto, continuam vivos na memória de seu povo, envoltos em uma lenda tingida de sobrenatural e de místico. O cangaço continua vivo, porque alguma coisa naquelas pessoas e naquele movimento transcende o nosso mundo. 4.12 VIRGÍNIO: o juiz do grupo de Lampião 4.12.1 Preliminares Finalmente, o último modelo cordelino, folheto com versos de Gonçalo Ferreira da Silva, denominado “Virgínio – o juiz do grupo de Lampião”. Temos dois argumentos que justificam a inserção desse recorte: primeiro, chamou-nos a atenção o papel temático que até 138 então não aparecera no elenco; depois, a cena que narra a traição e sacrifício de Lídia pelo companheiro Zé Baiano. “Lampião: sua vida e sua morte”, de Gilvan Santos, narra a saga completa do Rei do Cangaço a partir da transição entre a vida pacata dos Ferreiras e a briga com os Nogueiras e Saturninos, culminando com a morte do velho, pai de Virgulino. A inclusão desse cordel se justifica pela alusão às mulheres, inclusive pela bela descrição do encontro do cangaceiro com Maria Déa. Gonçalo Ferreira da Silva, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, escreveu e editou este folheto no Rio de Janeiro, em abril de 2008, e traz como título “VIRGÍNIO: o juiz do grupo de Lampião”. O texto foi escolhido pelo realce que foi conferido ao papel temático; também porque rompe com o convencional, trazendo como Ator um cangaceiro na função de Juiz – Dr. Virgínio. Não é só isso: ocorre que esse cidadão, apesar das circunstâncias adversas do contexto, consegue ser respeitado, a ponto de ganhar fama por suas atitudes firmes, na luta pela justiça. Apesar de ser cunhado de Lampião, não hesitava em punir os culpados, independente da tribo a que pertencesse o transgressor. O cordelista começa falando sobre o lugar onde ocorreram os fatos: “Talhada para a política / Extremamente inflamada / Para discursos veementes / Para batalha acirrada / Foi sempre assim Vila Bela / Para proezas talhada”. Depois diz que foi o berço ideal para um juiz “Frio, justo e decisivo”. As qualidades do Meritíssimo foram figurativizadas no epíteto “Paladino da Justiça”. O poeta continua seu relato laudatório, dizendo que Dr. Virgínio, quando queria punir um réu, não se constrangia, fazia-o sem pestanejar, pois era “rigorosamente atento” para exercer a função. Enfim, tratava-se de um homem que pronunciava lentamente as palavras, imparcial nos julgamentos, implacável nas decisões. Foi então que a cidade foi sacudida pelo episódio de Lídia, a cangaceira adúltera, à qual o cordelista se refere como “Saltitante e fogosa / Mulher de José Baiano”. A população em peso se volta contra ela, repetindo-se a cena bíblica de Maria Madalena. Todos queriam apedrejá-la. Lídia traiu o marido com Bentivi, um cangaceiro mais novo, bonito, e com fama de conquistador. Lídia tinha que pagar com a vida. Assim o homem lavava a honra com sangue. As pessoas também não sabiam qual seria o fim de Bentivi. Pelas leis vigentes, todos esperavam que também teria o mesmo destino trágico reservado a Lídia. Mas o juiz chamou Lampião e disse que o tempo da barbárie já passara, fosse qual fosse o crime, o réu tinha direito a um julgamento sob os critérios da legalidade. Preparou os trâmites legais, divulgou a data para toda a cidade. 139 No dia do julgamento, Bentivi se defendeu: “Eu quis Lídia, na verdade, / E ela também me quis [...] / Portanto em nome do amor / Imploro o perdão do juiz”. O resultado do júri foi a absolvição de Bentivi. Mas não houve tempo para Lídia ser julgada nas mesmas condições. Contra ela, pesaram os rigores da cultura medieval, com o sacrifício da adúltera, sendo morta a pauladas, pelo marido traído. 4.12.2 Percurso da significação No percurso narrativo, temos o S1, representado pelo juiz, Dr. Virgínio, cunhado de Lampião. Este aparece, na configuração, como Adjuvante, sempre procurando seguir os conselhos do juiz, a fim de mudar as regras do cangaço e evitar os desmandos. O Oponente ficava a critério da sociedade, com suas regras morais e seus costumes selvagens, a que todos deviam obedecer, e aos quais Zé Baiano sempre fora fiel. No plano do S2, ficam Lídia e Bentivi. O Adjuvante também era Lampião o qual, como referido, após o ingresso do Dr. Virgínio, procurava acompanhar suas prescrições, tentando afastar qualquer prática que ameaçasse a ordem vigente. A temporada de paz, promovida pelo S1 e seu Adjuvante durou enquanto as forças da oposição não avançavam, com suas ferramentas desagregadoras. Temos que lamentar, porém, que o percurso do S1 tenha sido interrompido, pois custou-lhe a vida sua meta em viver em conjunção com o seu Objeto de Valor – a Justiça. Ele devia-ser e queria-ser justo, contou com o apoio de um Adjuvante, ao mesmo tempo, reuniu elementos para passar da competência à ação. Mas a cultura enraizada arrastou as boas intenções do juiz, privando-o das virtudes atualizantes. Assim termina a saga do juiz Virgínio, que lutou contra leis ultrapassadas, mas não conseguiu salvar Lídia nem a si próprio. Ela, por ser mulher e adúltera, não teve direito ao perdão. Até porque não teve a mesma sorte de Maria Madalena, que contou com um Adjuvante poderoso: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra!” Ele, por tentar mudar as regras do jogo, fazendo prevalecer a ordem e a justiça, onde reinava o caos e a barbárie. Se focalizarmos as relações intersubjetivas, podemos constatar que o Locutor, ao criar o papel temático de juiz, trouxe para o percurso narrativo a aura de uma classe prestigiada. Dessa forma, assumia um lugar social, ao mesmo tempo em que materializava, lingüística e enunciativamente, a voz coletiva. Essa é uma característica do discurso etnoliterário, presente no cordel em foco, nas marcas das crenças e valores do imaginário popular. 140 Embora não seja pretensão nossa prender-nos ao discurso hegemônico masculino, não podemos deixar de reconhecer, nesse desfile de mulheres, a figurativização de um mundo onde elas permanecem com papel de coadjuvante. A não ser talhadas na madeira, como expressão pictórica da fantasia nordestina, ou ainda em uma miscelânea de verdades, na literatura de cordel, através da qual os Locutores assumem um lugar social, na tentativa de familiarizar a sociedade com o estilo de vida do cangaço. O octógono que segue representa o embate de forças que atravessaram o caminho do S1, figurativizado por Dr. Virgínio, um homem que contou com o apoio de Lampião, enquanto Adjuvante, nessa luta contra a barbárie, em favor da restauração de princípios alinhados pela proposta de ordem e de justiça. Tensão dialética Justiça Barbárie Virgínio Co Não-barbárie Contexto Social Não-justiça Ø Figura 13 – Tensão Dialética entre Justiça e Barbárie 141 5 RESULTADOS Os resultados dessas leituras foram altamente positivos para os nossos propósitos, nessa perseguição por elementos teóricos, metodológicos e empíricos, que nos levassem ao resgate de verdades plurais, e também conflitantes, nessa tentativa de reconstruir um modelo cultural e histórico. Em primeiro lugar, reunimos elementos, para conhecer as demandas e as veredas do cangaço, enquanto macroestrutura. As análises nos colocaram diante de uma tensão, pois, de um lado, flagra-se a figura de Lampião como um bandido sanguinário, enquanto, por outro lado, desfila um herói justiceiro, vítima de uma estrutura fundiária feudal. A primeira acata a historiografia oficial, cuja versão entende o Cangaço como um movimento marginal; quanto à segunda, o fenômeno é contextualizado, portanto um evento motivado por causas políticas e ideológicas. No processo de aplicação das categorias, empreendemos um esforço triplicado, já que tentamos contemplar o percurso gerativo nas suas três etapas. Analisamos os elementos que se inserem nas estruturas fundamentais, procurando situar as oposições mínimas. No caso das mulheres do cangaço, por exemplo, sentimentos contrários e contraditórios, como amor x ódio / fidelidade x traição / covardia x firmeza / tolerância x agressão etc. desfilaram nas longas narrativas e nos depoimentos, de onde colhemos menos certezas e mais dúvidas. Na análise das estruturas narrativas, identificamos sujeitos semióticos, cujo percurso apresentava características diferenciadas. O Sujeito Maria Bonita, por exemplo, sempre à mercê do entorno e das rupturas, oscilando entre a conjunção e a disjunção com seu Objeto de Valor, a companhia do amante. Contou com o apoio e a simpatia da maioria dos poetas e depoentes. Quase todas as formações discursivas a definiram como valente, formosa e fiel ao companheiro. Quase todos foram seus Adjuvantes, exceto quando enfrentaram forças oponentes que provocaram a ruptura, com a consequente separação dos amantes. Um outro desvio foi flagrado, quando o Locutor era obrigado a cumprir um roteiro mitológico, para servir às fantasias da memória coletiva. Foi o caso de JOTABARROS, quando a comparou à figura mítica de Eva, para lembrar a fragilidade feminina diante das tentações. É importante perceber que nem sempre as vozes das mulheres entoam o “cântico dos cânticos”, como no folheto em que o Sujeito – Maria Bonita – busca seu Objeto de Valor – a companhia de Lampião. De acordo com essa perspectiva, o cangaço foi uma escolha consciente, fruto de um grande amor, em que pesem as dificuldades enfrentadas. Essa é a sua 142 versão dos fatos, o ponto de vista da narrativa, segundo o qual o Sujeito está em conjunção com o seu Objeto de Valor. No depoimento da cangaceira Sila, por exemplo, relatando sua estréia no cangaço, podemos observar que, ao contrário da euforia erotizada de Maria Bonita, para quem a vida nômade foi uma escolha consciente, o relato de Sila está recheado de categorias disfóricas, como constatamos no seguinte fragmento: “Saímos pelas veredas da caatinga, sem destino, todos caminhavam calados. Nenhum comentário [...]”. No percurso do Sujeito – Sila –, havemos de identificar que o seu Objeto de Valor do Dever Fazer está representado no desejo de conviver em paz no cangaço. A ida para o nomadismo não foi uma decisão voluntária, mas forçada por Zé Sereno, o companheiro que a sequestrou. Diante dessas circunstâncias, o Sujeito Sila está em conflito consigo mesmo: deve se adaptar àquele ambiente estranho, mas não esquece o aconchego da família – Objeto Querer Fazer. No trecho “triste, isolada da minha família, desiludida e amedrontada”, a depoente desabafa esse seu estado de SER, ao mesmo tempo, a incerteza quanto à transformação e consequente conquista da liberdade e da paz. Assim também o Sujeito entra em estado de disjunção com o Objeto do Querer Fazer. Enfim, as modalidades virtualizantes não atingem as atualizantes. Seguem os símbolos que explicam o percurso gerador de sentido referente ao nível da estrutura narrativa: S (Maria Bonita) ∩ S (Sila) Dever Fazer U O (convivência no cangaço) O (companhia de Lampião) S (Sila) Querer Fazer U O (voltar para o seio da família) Focalizando a análise do percurso gerativo da significação – estruturas discursivas, este texto apresentou também marcas explícitas da posição do sujeito enquanto agente da enunciação. Os argumentos que sustentam essa tese apoiam-se, em primeiro lugar, no emprego da primeira pessoa “eu e os demais” / “Eu parecia estar em outro mundo”. Em segundo lugar, devemos flagrar o discurso nas escolhas lexicais, especificamente os adjetivos: triste, isolada, desiludida, amedrontada. Se não bastassem esses, lembramos o estado de mudez, ou seja, a negação da fala na seguinte passagem: “Não falava [...] Não conhecia aquela gente [...]” - a mais penosa imagem de solidão. O Sujeito também assume o discurso-enunciado nas escolhas que faz, por exemplo, a primeira pessoa confirmada no verbo “creio” e no possessivo “minha”, sobretudo, no trecho 143 “eu lhe digo”. Além disso, a transformação da narrativa em discurso pode ser constatada nas marcas referentes a tempo e espaço. Em relação a tempo, o Sujeito alterna presente –“E agora eu lhe digo” – com pretérito “Perdi minha mocidade / eu vivia no sertão”, para significar que não cabe no contexto o plano cronológico, mas sim o psicológico. Essas marcas que permeiam os enunciados fornecem elementos discursivos para nos convencer de que houve ativação dos mecanismos de embreagem, ou seja, o narrador assume a posição de sujeito da enunciação. O predomínio da tipologia descritiva empresta ao texto um sabor amargo de desesperança. Esse sentimento de pesar encontra-se não só nas escolhas lexicais, mas também no aspecto da figurativização, ou seja, a descrição espacial dá visibilidade a modelos que podem ser associados a um ambiente hostil: “veredas fechadas da caatinga / caminhavam calados, sem destino”. Diante desses elementos figurativizados, cabe estabelecer a relação de contrariedade entre os termos [ERRÂNCIA vs. DIREÇÃO], uma antítese que tenta explicar a herança medieval, subjacente em todo o texto, do qual se pode inferir um sentimento de culpa. Tais fantasmas emergem de um imaginário construído sob a égide de referências mítico-lendárias, de base religiosa. Com relação às rupturas instituídas por Rastier, convém lembrar que a principal dificuldade de localização da zona identitária, reside no fato de não se ouvir a voz das mulheres. Isso porque o lócus está distante e o sujeito, desterritorializado. Diante desse desamparo, fica fácil localizar as outras duas zonas: flagra-se a proximal exatamente nos elementos que constroem o lugar do Oponente, na adversidade, no mundo estranho com o qual ela não se identifica. Sila foi arrancada do seu verdadeiro habitat, lá onde morava o afeto, e conduzida à força para uma vida nômade e acidentada, mas teimava em manter dentro dela suas raízes, sua identidade. Essa ruptura só lhe traz sofrimento, porque entra em clima de disjunção com todos os valores desse meio. Enquanto isso, o Objeto do desejo fica na zona distal. Qual o maior desejo, o Objeto do Querer? voltar, territorializar-se, recuperar a identidade, reconquistar o poder da fala, enfim, SER ... E ser feliz. A busca da felicidade, todos sabemos, está na essência da condição humana, porém há sempre obstáculos que impedem a conjunção com o nosso Objeto de Valor. Assim ocorreu com as mulheres do cangaço, às vezes, pela cumplicidade com os vexames por que passavam os companheiros, outras vezes, por serem privadas da convivência com os filhos. 144 Finalmente, por se sentirem desterritorializadas, não do ponto de vista toponímico, mas psicologicamente falando. Sua história foi construída à base de estereótipos, por isso gerou-se uma enorme distância entre o querer e o poder-fazer. Como vencer o abismo entre o ser e o não-ser? 145 6 CONCLUSÕES Os resultados desta pesquisa foram tanto mais significativos quanto mais nos aprofundamos em conceitos que estão no entorno da ciência denominada Semiótica. Isso porque se trata de uma análise que busca a construção de um percurso gerativo de sentido, para vencer a distância entre o eixo das representações e o eixo das interpretações. Sendo a semiótica uma ciência que se insere no quadro das teorias que se preocupam com o texto, e não podendo este se reduzir a um campo homogêneo de construção do sentido, abre-se um leque de conceitos relacionais, para um encontro com outras áreas. É nessa perspectiva que se entende o texto, em diálogo permanente com outros textos, confirmando-se a multivocalidade como traço essencial. É a partir dessa concepção que as pesquisas no campo da Semiótica encontram-se com os postulados bakhtinianos, que propõem a polifonia e a alteridade como características constituintes da linguagem. Se toda palavra é uma resposta a outra palavra, nossa investigação está fadada ao “já-dito”. Batalhamos no sentido de uma historicidade atualizada, construindo um percurso de ressignificação, para, finalmente, chegarmos ao lugar social das mulheres do cangaço. Na análise do corpus em questão, recorreremos a essa multiplicidade funcional, para contemplarmos a macroestrutura, unidade subjacente aos quadros emoldurados, estes que se constituem microestruturas e serão responsáveis pela delimitação das fronteiras, seja do ponto de vista da ação modelizante, seja em relação à temática mais geral – texto da cultura. Apelando para as duas formas, tentamos fechar a ação da semiose, uma operação complexa, já que lida com a linguagem verbal e a não-verbal. Os recortes que compuseram o corpus, sejam cordéis ou depoimentos, vieram atestar a natureza antagônica do cangaço, já que as marcas ideológicas apontaram para duas direções: primeiro, a tendência para a idealização das personagens, no caso das mulheres, admiradas como heroínas. A segunda tendência – ou banalizava as personagens, com uma linguagem estereotipada, ou as demonizava, apelando para arquétipos que habitam o imaginário, a saber: vândalos, bandidos, marginais, revoltosos etc. Tomando como base as pesquisas no campo da tradição oral, tentamos inferir o elo que faz a articulação entre a memória individual e a memória coletiva. Os cordéis, embora já tenham atingido a fase da modalidade escrita, atraem temas que apontam para esse potencial 146 representativo da extensão do indivíduo, para construir um universo de histórias, causos, mitos e narrativas do povo – um universo denominado memória social. Os folhetos de feira apresentam características perfeitamente identificadas com a cultura popular, porque traduzem, através de alegorias, as aventuras dos heróis suburbanos; e também dos antiheróis, já que as narrativas às vezes recorrem a imagens que lembram o projeto cultural de Mário de Andrade, em Macunaíma – e todas essas figuras que protagonizaram os dramas humanos, tendo como palco uma terra com palmeiras e com sabiás, contando com a cumplicidade de um sol tropical. Os autores recorreram a fatos bíblicos e a títulos nobiliárquicos, para fazer analogias. Esses apelos servem para reforçar nossa tese de que o tempo do Cangaço foi marcado por fatores históricos, culturais e ideológicos, semeados densamente, e densamente imbricados, de tal forma que é quase impossível extrair do amálgama “hoste” um ser individual. A referida dualidade também atingiu as mulheres, que foram atraídas para esse convívio, voluntariamente ou não. Essa escuta inclui os dois pontos de vista da narrativa: de primeira ou de terceira pessoa. Sem a intenção de nos prender ao tema gênero (masculino ou feminino), procedemos a uma operação comparativa, que contemplou tanto a analogia quanto o confronto, para superar as fronteiras de viés identitário, enfim, para filtrar do sistema geral a essência, a forma de ser e agir desse segmento feminino. Buscamos apoio, também, nas rupturas categoriais previstas por Rastier, até para mostrar o deslocamento das zonas antrópicas quando se faz o cotejo entre registros formais e recortes da literatura popular. A depender dos fatores determinantes, sejam culturais, políticos, ideológicos ou religiosos, essas categorias podem apontar posições diferentes em relação ao objeto da pesquisa. A grande maioria dos relatos jornalísticos pesquisados mostra o predomínio do discurso da racionalidade, trazendo informações descontextualizadas, portanto o chamado “cangaço social” localiza-se na zona distal. Nos cordéis, entretanto, cujo discurso etnoliterário aponta para os elementos afetivos, vislumbramos o percurso entre o identitário e o proximal. Embora a historiografia do cangaço tenha como foco principal a figura do cangaceiro, é possível se flagrar a construção da imagem de Maria Bonita, desenhada com ternura e admiração, tal qual uma rainha. Por outro lado, através dessa rede de discursos que ajudou a inventar e reinventar o sertão, não é raro encontrarmos adjetivos que apontam para um perfil coletivo. “Quem são essas Marias Bonitas? Em que ambiente elas viveram? Como se comportavam as mulheres do seu tempo, no seu Sertão baiano? O que essas mulhereres tinham de especial?” 147 Em relação a outras mulheres, como Sila e Dadá, tiveram que enfrentar Oponentes na sua própria relação, por isso alternavam os programas narrativos, variando entre relações eufóricas e disfóricas, a depender dos companheiros e da situação contextual. As duas tiveram seus momentos de disjunção com o Objeto de Valor enquanto não aderiram aos apelos dos cangaceiros, ou melhor, enquanto não se apaixonaram por seus respectivos sequestradores. Se prevaleciam as circunstâncias adversas, elas queriam, mas não podiam entrar em conjunção com o seu Objeto de Valor. Quando pesava a competência da ordem Adjuvante, elas sabiam, queriam e faziam, entrando em conjunção, ao mesmo tempo, recuperando o estado de harmonia e benquerença. A ousadia dessas mulheres em busca da conjunção com seu OV deve ser celebrada, levando-se em conta o longo período de depuração, até a descoberta do amor. Se observarmos sob o ponto de vista da Discursivização, principalmente nos cordéis, permitiu-se ao sujeito o exercício da figurativização, através do qual construiu-se um mundo idealizado em relação ao cangaço, um simulacro de realidade, ao mesmo tempo, favoreceu a criação de categorias tímicas negativas. Como consequência, perde-se a nitidez com relação à identidade, enfim, tornam-se tênues as fronteiras entre a realidade e a fantasia, bem como entre a identidade de grupo e a individual. A figurativização da linguagem do cordel nos leva a refletir sobre a relação que se instaura entre o que poderíamos chamar de “memória interna” (aquela situada nos membros do grupo) e a “memória externa” (aquela dos objetos culturais). A leitura do corpus, sobretudo os cordéis, nos traz de volta a inquietação acerca do lugar dessas mulheres. Se a proposta desta pesquisa é refletir sobre essa complexa rede de significados, estamos certos de que reunimos algumas diretrizes epistemológicas que pontuaram a interferência dos estereótipos, responsáveis pela nossa percepção cultural. Por outro lado, a leitura semiótica das representações femininas, no cangaço, inquietaram ainda mais, apontando respostas para as quais ficamos devendo algumas perguntas. Continuam as dúvidas em relação aos limites que separam a identidade individual da coletiva, até porque a história é contada sob pontos de vista diferentes. A verdade, pois, vai depender do lugar da enunciação. Sem falar que, se o mundo é construído semioticamente, a verdadeira face dessas mulheres está oculta por trás de uma infinidade de símbolos, fetiches e ídolos. Quem ouve falar nessas mulheres pode julgar que elas viveram sempre andejando com seus eleitos. Mas o clube fechado, no qual se permitia somente a presença masculina só foi 148 rompido na segunda fase da vida cangaceira de Lampião, depois da travessia do Rio São Francisco, em 1928. Qual a função histórica dessas mulheres, que curavam os ferimentos dos homens, deitavam com eles, dançavam o xaxado, e ainda bordavam suas vestimentas e adereços. Viveram entre fetiches e mitos, num universo simbólico, em que se confundiam imagens estigmatizadas, por um lado e, por outro, um mundo figurativizado, cujos habitantes tinham a aparência pomposa de reis e rainhas. A fuga para o plano da fantasia é uma recorrência tão óbvia e legítima que torna ainda mais tênue a linha divisória entre realidade e ficção, assim também mais instável a relação entre a linguagem e os objetos-de-mundo. Essa instabilidade, paradoxalmente, vai gerando resultados sólidos e duradouros, pois, uma vez construído o imaginário coletivo, a ideologia predominante nessas histórias se dissemina através do processo de ativação de modelos cognitivos, ao mesmo tempo em que vai determinando comportamentos. À mercê dessa manipulação, vão-se forjando os valores, em um jogo maniqueísta de onde emergem bruxas e fadas. Enfim, convém insistir no fato de que, não só os cordéis, mas também os depoimentos reforçaram a natureza dual, que marcou a trajetória histórica do cangaço. Isso vem a propósito das contribuições semânticas e discursivas, extraídas do percurso da significação, todas na direção das hipóteses levantadas pela nossa pesquisa. Estamos falando da dificuldade de delimitação de fronteiras entre o bando e o indivíduo, ou entre o perfil-cultural masculino x feminino. Evidentemente, não temos a pretensão de ter contribuído com a palavra final sobre o tema “Mulheres do Cangaço”, mas acreditamos ter problematizado, oferecendo uma interpretação a partir da reorganização de dados, apresentados em material bibliográfico, nos cordéis e em alguns depoimentos. De posse desse acervo, ousamos dizer que, se não protagonizaram a saga, pelo menos um papel foi representado por essas mulheres: elas transformaram as relações nos bandos, tanto nas relações de conjugalidade como nas demais relações. Há um segmento da literatura popular que insiste em reinventar referenciais sobre o cangaço, que foram esquecidos ou silenciados. É um tipo de historicidade atualizada que, a partir de um viés social, compara o movimento às lutas sociais da contemporaneidade. Acredita-se, porém, que a “memória volante” e anti-cangaceira ainda pesa enquanto construção do imaginário. Por isso o cangaço não se tornou história, é ainda memória, campo de luta e ferida aberta nas lutas políticas da região. 149 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Fenelon. JARARACA: o cangaceiro que virou “santo”. Recife: Editora Guararapes. 1981. (Cadernos Guararapes, v.1). ALBUQUERQUE, Maria Elizabeth Baltar. Temas e Figuras: por uma classificação da literatura de cordel. Acta Semiótica et Linguística. João Pessoa v. 16, Ano 35, n. 2, p.149168. 2011. ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura_de_cordel>. Acesso em: 12 dez. 2012. ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular? São Paulo: Brasiliense, 1981. ARAÚJO, Antônio Amaury Correia de. LAMPIÃO: as Mulheres e o Cangaço. 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Que só aplaude bandido Quem admira ladrão. Lembram da COLUNA PRESTES Cruzando o país inteiro Tem centenas de folhetos E pondo sob o chinelo Sobre a vida dessa escória, O Exército Brasileiro? Mas, se uns não dizem nada, Para caçá-la e vencê-la Outros lhes cobre de glória, LAMPIÃO ganhou estrela, Sem pesquisa, se diluem, Arma, munição, dinheiro. E, em nada contribuem Com subsidio pra a história. Deram-lhe de faz de conta, O posto de Capitão, Ainda hoje a imprensa Mas, era pra pegar PRESTES, Toda hora e todo instante Que amedrontava o Sertão, Procura justificar Como o besta fracassou Conduta de meliante Quem "deu o posto" tomou Do tipo de LAMPIÃO Desfazendo a armação... Dizendo que a exclusão É o fator dominante Essa armadilha foi obra Do "padre" do Juazeiro, Justificar os desmandos O que foi excomungado Desse vulto celerado Por amar posto e dinheiro, É uma tarefa inglória, Enganar o povo crente Pois, esse "cabra safado", E reconhecidamente Foi, do meu ponto de vista, Protetor de cangaceiro. Na fuga, um estrategista, No ataque, um desastrado. Roubar porque foi roubado, Assassinar por vingança, A estratégia de "guerra" Tomar dos ricos pra dar Que LAMPIÃO dominava Ao pobre? Pura lambança. 157 Pagar o mal com o mal Figura amaldiçoada. Não é exemplo legal Para deixar como herança. Uns dizem que LAMPIÃO Nasceu em Mil novecentos, Dizer que pobre é forçado Aos 12 do 02, e, outros A roubar, porque precisa, Falam nos Mil oitocentos Não é verdade, pois, tem e noventa e sete, são Ricaço de cara lisa Feitos de contradição Que rouba a torto e a direito, Os seus primeiros momentos. Mal feito é sempre mal feito Com camisa e sem camisa. Contudo – Mil oitocentos e noventa e oito acata Só entrava no cangaço O dia 04 de junho Quem odiasse a justiça, Como ano, mês e data Invejasse os bens alheios, Que esse sujeito simplório Fosse um servo da cobiça, Foi registrado em Cartório, Beijasse os pés da maldade, O resto é lenda barata. Amasse a perversidade, Tivesse a mente enfermiça. Já da morte do bandido Não se questiona o dia, Depois desta introdução Foi 28 de julho Chamo o leitor e combino Numa madrugada fria Ir comigo a "VILA BELA" Do ano de 38 (Cá no Sertão nordestino) Que – ELE – e seu grupo afoito, Aonde um guri chegou Findou como deveria. E no batismo ganhou O nome de Virgulino. Quem planta espinho não pode Colher flor, só colhe espinho, VILA BELA foi crescendo Foi isso que LAMPIÃO Passou a SERRA TALHADA, Fez desde pequenininho, Cidade pernambucana, Tivesse modos corretos Hoje, muito divulgada, Veria filhos e netos Por ser uma região Morreria bem velhinho. Que viu nascer LAMPIÃO, 158 Esse jovem sertanejo Pois o roçado ocupava Morreu cedo, por tentar, Todo filho que nascia. Alimentar o desejo De comer sem trabalhar. Pela ordem, foi nascendo, Virgulino, o LAMPIÃO, Não quis trabalhar a terra Antônio e Ezequiel, Plantar pra depois colher, Livino, depois João, Casar, ter filho, educá-lo Angélica, Amália, Maria Na senda do bom viver; E Venturosa que iria Entre o trabalho e o roubo Encerrar a produção. Escolheu o jeito bobo De ganhar sem merecer. Enquanto estavam pequenos A festa era permanente Hoje a onda de delitos Gastavam as horas do dia Vem sendo justificada Em brincadeira inocente, Pelos milhares sem terra, Mas, ao crescerem, os rapazes Sem emprego e sem morada, Não se mostraram capazes LAMPIÃO não se redime De conviver como gente. Porque se abraçou o crime Foi pura escolha e, mais nada. Brigavam com á vizinhança Por dá cá aquele galho, Seu pai era o que se chama Trocando tapas e murros Pequeno proprietário, Esquecidos do trabalho, Se não tinha grandes posses Somavam desarmonia Como um latifundiário, Até que.chegou o dia Mas, sua propriedade, Da - história do chocalho. Supria a necessidade Do que fosse necessário. Por brincadeira ou maldade Os filhos do seu Ferreira Seu João Ferreira, o pai, Amassaram o chocalho Sua mãe, Dona Maria, De uma vaca parideira Tiveram ELE e; mais oito De Saturnino, um vizinho, Filhos e essa quantia Que morava bem pertinho De filhos não atrasava Quase porteira a porteira. 159 Da "profissão bandoleira" E o pai de Virgulino Com um velho cangaceiro Mesmo tomando ciência Chamado Sinhô Pereira, Do mal feito por seus filhos, E, nesse grupo lhe dão Sem medir a consequência O vulgo de LAMPIÃO Deixou pra lá a questão, Por sua mira certeira... Foi essa ausência de ação Que alimentou a pendência. À noite quando o "garoto" O seu fuzil disparava Esse pequeno incidente Tão certo e veloz no tiro De um chocalhinho amassado, Que o fogão alumiava Uma brincadeira insossa Como um candeeiro aceso, E um pai despreparado Sinhô Pereira surpreso Acenderam no Sertão De LAMPIÃO o chamava. O facho de um lampião Até então apagado. LAMPIÃO viu que roubar Era um "negócio" excelente Toda guerra começou Dava muito mais futuro Porque ninguém se entendeu, Que viver honestamente, Reparem, que nesse caso, Deu tanto crédito a carreira Foi um chocalho que deu Que deixou Sinhô Pereira Afigura do bandido Pra roubar independente. Mais perigoso e temido Que o Sertão já conheceu. Formou o seu próprio grupo Que ele chamava - negócio, Virgulino aproveitou E, nessa empresa do crime A desavença criada Fez de cada irmão um sócio, Entre os seus e os vizinhos Levando irmão por irmão Para ganhar a estrada Ao fundo do alçapão Passando dali pra frente Pra deixar de ser beócio. A viver de roubar gente, Assassinar de emboscada. Há um dizer dos mais velhos Que vale a pena dizer: Fez Curso Preparatório Uma ovelha ruim 160 Põe um rebanho a perder; Do tipo de LAMPIÃO LAMPIÃO, sendo o mais velho, Fosse do time também. Foi Cartilha e Evangelho Para a irmandade ler. E olhem que o Pe. Cícero Ensinou ao desgraçado Por seguirem seu exemplo, Uma oração que deixava De viver na bandalheira O corpo dele fechado, Trocando foice e enxada Só não fechou cem por cento... Por rifle e por cartucheira, Mas, esse procedimento O ganho fácil gorou Deve ser ignorado. E, como esponja, apagou A família dos Ferreira. Acho que foi negativo Ter trocado um sapateiro Mas, todo mundo já sabe Por um ladrão, fugitivo, A - história de LAMPIÃO – Assaltante e cangaceiro. Que foi contada e cantada Do Litoral ao Sertão, Não vou dizer que Maria Até lá no estrangeiro Criou enfeite de boi, Esse machão brasileiro Mas, no Sertão se dizia, Tem merecido atenção. Com segurança, que foi. Só que pra falar de alguém Que ELE era corno sabemos Eu investigo um bocado Porque teve o Cartomante E nessas minhas pesquisas Pra quem MARIA BONITA Li e reli, publicado, Era freguesa importante, Num jornal da região Importante, porque dava, O informe que LAMPIÃO A mão pra ler e deixava Era um pouco afeminado Ele "estudar" o restante. Não que isso seja pecha É certo que ELE mandou Que desmereça ninguém, Sabonete o liquidar, Hoje, ser veado é chique; Mas, não serviu porque chifre (ratem, nem tanto, porém, Quem ganhou tem que levar Nunca esperei que um machão Pela vida eternamente 161 Sendo mais inteligente Pacificamente usar. Essa Fazenda Veneza Era uma propriedade Ele tinha outras facetas Que vou, resumidamente, Trazer à baila, porque, De um sujeito tão "valente" Talvez ninguém esperasse Que o "bichinho" se mostrasse Um costureiro excelente. De Childerico Fernandes Que por infelicidade Tinha alguma relação Com a fuga de LAMPIÃO, Pura casualidade. Childerico era parente De Rodolfo, então Prefeito Da Mossoró atacada Quando não estava ocupado Assassinando ou rugindo, Jogando cartas, bebendo, Sequestrando e perseguindo, - Supliciando pagãos – Limpava o sangue das mãos Ou modelando ou cerzindo. Pra quem tem memória curta E dar valor a bandido Lembrarei ligeiramente Um pormenor ocorrido Quando LAMPIÃO fugia De Mossoró que havia Expulsado o pervertido. E detentora do feito De ter enxotado o bando Que agora estava chegando Na Veneza, desse jeito Lógico que Seu Childerico Por ter esse parentesco Tinha plena consciência Que aquele bando grotesco Não iria deixar barato Tornando seu lar pacato Num mar de sangue dantesco. E, foi isso, exatamente, Que aconteceu nesse dia, Uma centena de "cabras" Raivosos se divertia Na fuga desesperada Os marginais, sem pudor, Sequestravam barganhando Roubando tudo e quebrando, Num baú velho encontrando Uma vultosa quantia. Salvo conduto e valor Quando a horda, de surpresa, Era um dinheiro que estava Chega a Fazenda Veneza Lá num canto separado Para instalar o terror. Para o Sr. Childerico 162 Pagar a compra de um gado, Luto, tristeza, orfandade. Roubaram tudo, queriam O resto, pois, presumiam Haver muito mais guardado. Por isso foi bom Angicos Bom que tivesse João, Foi bom que João tivesse Mais não tinha e, por não ter, De um coiteiro indicação O massacre começou; Para sorrateiramente Degolar, Várias pontas de cigarros covardemente, Um miserável apagou Os onze filhos do Cão. Numa pobre criançinha, Em favor da pobrezinha A mãe debalde implorou. O João de que falamos Era o "bravo" comandante Que estava dando as ordens A mãe pedia clemência Aos "meninos" da Volante O pai, impotente olhava, Naquela manhã de julho, Sofrendo dores terríveis Mas, ninguém teria orgulho O menininho chorava De o ter por representante. De cortar o coração Enquanto isso, LAMPIÃO, Na rede se balançava. CAPITÃO JOÃO BEZERRA Também ficou conhecido Por traficar armamento Faz dó só de imaginar Quanto aquela mãe sofria Vendo o filho padecer Toda aquela covardia. Admira inda ter gente Solidária e complacente Com tanta selvageria. O Rei, como alguns o chamam, Se foi rei foi da maldade Pois viveu de sequestrar, Matar por perversidade; Quando o Diabo o levou Como herança só deixou E munição pra bandido, LAMPIÃO, por várias vezes, Fora um dos seus fregueses Pedindo e, sendo atendido. Um bandido desarmado É fácil de ser vencido, Mas, só que tem o soldado Pra vender arma ao bandido. A arma que foi vendida Ao ladrão, pelo soldado, É a mesma que tira a vida Do policial honrado. 163 Nada é novo sobre a terra Pois isso de marginal Comprar arma e munição Das mãos de policial É tão velho quanto à chuva, Choradeira de viúva, Ou baile de carnaval. Pra limpar esta sujeira O Brasil carece urgente: Um Judiciário honesto, Uma polícia decente, Legisladores direitos Não desses que são eleitos Para saqueara gente. Matar alguém só se for O- jeito, pra não morrer, N-ão vale a pena viver T- endo carência de amor. E- sta vida é passageira I- sto todo mundo sabe R- ia antes que o mundo acabe O- resto? É resto, ou leseira! 0 8.2. O CANGAÇO SUSTENTADO PELOS CORONÉIS Varneci Santos do Nascimento 164 Em sua tenra idade. Criticam os cangaceiros Chamando-os de infiéis, As volantes da policia Facínoras e malfeitores Não agiam com precisão Assassinos e cruéis De “macaco” eram chamados Mas, não diz como foram, Os membros da guarnição Bancados por coronéis! Atacados com freqüência E com bastante agressão. Desse tema recorrente Todo mundo já falou Os coronéis sem volantes, Criticando e execrando Acharam eficiente Todavia, ninguém mostrou, Suprir um grupo e tomá-lo Que quem financia um crime Protetor de sua gente Tem culpa igual quem matou. Assim como dos seus bens Roubados freqüentemente. À nossa historiografia Faço e renovo um convite Dono de terra e político Para alargar a visão Dominava a cidade Sem preconceito ou limite Precisando de jagunços, E fazer história sem, Cruéis sem humanidade Os olhos cegos da elite! Para intimidar o povo, Com sanha e ferocidade. “Tudo falado do todo” Pode não ser bem assim O voto de clavinote Não sou daquele que crê, Fora muito praticado Que o meio legítima o fim Consistindo no votante, Todo fato tem dois lados Ao votar ser ladeado Um é bom, outro é ruim. Por mais de um jagunço quê, Certamente estava armado! Fizeram de Lampião Já corrigir muita gente O rei da perversidade Por causa dessa expressão O injusto, o bandido Chamar Nordeste de Norte O creador da maldade Pra tal não via razão, Sem contar como ele foi Mas, existe, é pelo pouco, 165 Tempo dessa região. Que era um pouco evoluído. Em matéria de poder Contudo, só para os ricos, Formou-se vários cartéis Coronéis e fazendeiro Por isso, analisemos Os quais podiam viver Os seus devidos papéis De modo mais prazenteiro O cangaço sustentado Enquanto, pra maioria, À época por coronéis. Vinha dor o tempo inteiro. Cada cidade existente O povo sofria bastante Era pouco habitada Sem ter a quem recorrer Política repugnante, A não ser chamar por Deus Asquerosa, praticada Nada podiam fazer, Deixando à população Dando uma triste impressão Totalmente abandonada. Que nasceram pra sofrer. Não existia estrada Normalmente poucos tinham Só vereda aqui se via Terra para trabalhar Um hospital era um sonho Quando possuía casa Um médico uma utopia Ruinzinha para o coronel A doença uma certeza Obrigados trabalhar. De que sem cura morria! Às vezes para ganhar Quando alguém adoecia O pão para cada dia O remédio natural Com uma procura enorme Se não fosse feito em casa O coronel escolhia O desespero geral, Quem trabalhasse bem mais Tomava conta porque, E que menos cobraria. Uma gripe era mortal! Daí porque os mais pobres A não ser no grande centro Davam para batizar Pouco mais desenvolvido Um filho ao coronel Como Salvador, Bahia, A fim de se aproximar O Recife, conhecido, Da fazenda e, de quem, Ou no hospital de Campina Poderia lhe ajudar. 166 À sua sobrevivência. À mão-de-obra sobrava Graças à grande procura Porém, quando o coronel Pobre vivia na miséria Na condição de assaltado E o rico na fartura Reagia com seus homens, Desfrutando das benesses Duramente era enfrentado Duma exploração segura. O tiroteio deixava As marcas de cada lado. Enquanto, outras pessoas, Os coronéis começaram Eram deixadas de lado Sentir a grande agressão Do trabalho existente Pela qual vinham passando Pelas fazendas de gado Nas fazendas do Sertão Excluídos vão formar, Resolveram urgentemente Cada bando bem armado. Tomar uma decisão. Se não podiam trabalhar Já diz o velho ditado: Não teriam o quê comer Quem quer enfrentar aquele E muitos se decidiram Rei, primeiro avalia, A de fome não morrer Se tem força igual à dele Criaram então o Cangaço Senão tem, é bem melhor, Pra dele sobreviver. Logo se aliar a ele. O qual surge bem disposto Apesar dos coronéis Ir ás fazendas roubar Terem um monte de gente, Pronto pra qualquer batalha, Agregada, trabalhando, E se preciso, matar: Para si, diariamente “Se ninguém nos dá emprego Percebem tal força como Comemos sem trabalhar.” Não sendo suficiente. Tinha bando que por ética Para poder enfrentar Não usava a violência Numeroso bando armado Na fazenda invadida Necessitava ter homem Era breve a permanência Corajoso, denodado Pegando só o necessário Rapidíssimo no gatilho, 167 E mais em mato fechado! Disposto a ser resguardado. Nem todos seus agregados Ás vezes um bando grande Dispunham-se a brigar Dois coronéis, sustentava Ou tampouco numa arma Suprindo às necessidades Ninguém queria pegar As quais o mesmo passava Pois, não desejavam guerra E o coronel, desse jeito, Ansiavam trabalhar! Por risco nenhum passava. Ao nordestino comum Outrora quem tinha sido Faltava paz, esperança, Uma vítima da agressão Pra o fazendeiro escassa, Dos cangaceiros armados O mínimo de segurança Houve agora uma inversão Só se via tempestade, Com o pacto tinha deles, Sem ares de vir bonança. A mais forte guarnição. Assim cada coronel Em troca a cangaceirada Via-se em um dilema Também era protegida Sendo atrapalhado como, Para quem o coronel Quem contra a maré rema Devia dar-lhe guarida E para não sucumbir E suprir a jagunçada, Só encarando o problema! De água, roupa e comida. Contudo, faltava força, Além disso, armamentos Necessária pra lutar Junto com a munição Enfrentando os cangaceiros Objetivando assim Não podiam declarar, Armá-los com precisão Um combate e, foi o jeito, Preparando-os fortemente, Chamá-los pra conversar. Pra qualquer sublevação. Nessa conversa ficava Dá cavalo, quando um, Totalmente combinado: Em um combate morria O bando cessa os ataques Arreios novos, seguros, Para ser financiado Para a nova montaria Por um coronel ou mais, Robusta e equipada 168 Com potente artilharia. Sente-se injustiçado! Quanto mais aparelhado Morrer de fome enquanto, Ágil pra locomoção Outros gozam mordomia E armado até os dentes Indigna e faz até, Treinados para agressão Partir pra selvageria Mais o coronel teria Onde a certeza era só, Uma eficaz proteção. Que depois pioraria. Quando da fama dum grupo Por outro lado também Muito se ouvia falar Tornara-se complicado Outro, embora equipado, O coronel ter de tudo Não ousava ir ao lugar Todavia, ser roubado Invadir nenhuma fazenda Quase que constantemente Com medo de apanhar. Por qualquer bando armado! Cada grupo de cangaço Por isso, o coronel, Evitava agredir Pensa logo em seu juízo Os rivais que todos tinham "Esse lugar foi outrora, Pra guerra não progredir Para mim, um paraíso, Seu foco eram os "macacos" E tá virando um inferno A quem queriam destruir. Eu só tendo prejuízo”. Assim cada coronel Então se alia mesmo Com seu bando bem munido Por pura necessidade Sentia-se totalmente Afim de nessa aliança Seguro e, bem protegido, Encontrar tranqüilidade Era o lugar da justiça E o amparo acontece Ocupado por bandido! Numa reciprocidade. Bandido, não sei se tanto, As volantes da policia Deve assim ser chamado Não agiam com precisão Com quem rouba porque tem De “macaco” eram chamados O seu direito negado Os membros da guarnição Qualquer um faz isso quando, Atacados com freqüência 169 E bastante agressão. Publicamente escutado. Os coronéis sem volantes, Quem ali dissesse não, Acharam eficiente Ao candidato indicado Suprir um grupo e torná-lo Seria de imediato Protetor de sua gente Brutalmente espancado Assim como dos seus bens Muitos chegaram a morrer Roubados freqüentemente. Isso é fato confirmado. Dono de terra e político Tal aliança ajudou Dominava a cidade A ocorrer fatos críticos Precisando de jagunços, Levando a violência Cruéis sem humanidade A atingir altos picos Para intimidar o povo, Coronéis eliminando Com sanha e ferocidade. Seus inimigos políticos. O voto de Clavinote Cangaço pelo cangaço Fora muito praticado Não se deu, está provado, Consistindo no votante, Mas, á falta de governo, Ao votar ser ladeado Competente e articulado Por mais de um jagunço quê, Fez surgir tal movimento Certamente estava armado ! No Nordeste abandonado. Graças à força brutíssima O cangaço vai além E recíproca proteção Dum bando de agressores Conjuntamente aliados Foi grito de liberdade Expandiam sua ação Dos pobres trabalhadores Pois, queriam conquistar, E um não dos explorados Total consolidação. A todos exploradores. Outra maneira de voto Pesquise mais largamente, Denominava Cantado E pare de silogismo Onde o eleitor dizia Conclusões precipitadas O nome do seu votado Condenam o cangaceirismo Por todos e, por jagunços, Absolve a Policia 170 E salva o Coronelismo. Quando todos três têm culpa Nessa bela discussão A respeito do cangaço E sua manutenção, Apontei outra vertente, Mostre a sua, meu irmão! 171 8.3. Cancioneiro de Lampião – Nertã Macedo Menina vou te contar A história de um cangaceiro, Bicho bom, de pé ligeiro, Lobisomem do sertão. Reparava a injustiça Estrangulava menino Por ato de diversão, Entrava nos povoados E deixava em petição De miséria o prepotente Vergado na punição. Desocupado, erradio Vagueou como um papão, Por muitos anos a fio Não buscou a salvação, Tinha grande protetor O padre Cícero Romão. No lugar onde chegava Era vigário e juiz, Amancebava e casava E livrava o infeliz Que nas grades da cadeia Vivia curtindo peia, Delegado de polícia Escapava por um triz. Nos doze pares de França Foi buscar inspiração, Seu chapéu era igualzinho 172 Ao do rei Napoleão. O imperador Carlos Magno Houvera de ter paixão, Valente como Olivério, Brigava como Roldão, Dos tempos mais recuados Só Osório e Cipião Podiam ser comparados Ao guerreiro Lampião. Nestes autos vou narrar A vida de Lampião, Quem tiver oiças, escute E faça do coração A via do entendimento, Pois nada vale a razão, Sangue e terra se misturam Em perpétua comunhão, Na linguagem do mistério Dou a minha tradução. O demônio sobrevive No descendente de Adão, Quem de si não o afugenta Apodrece na prisão. O homem não nasce bom, Já nasce na expiação Se o Anjo prevalecesse Já teria morto o Cão. Oriundo do Pajeú Foi morar em Nazaré, Quando um chefe de volante Matou o velho José. 173 O nome de sua mãe Era o da Virgem Maria, E foi tanto o seu pesar Que morreu no mesmo dia. O sargento João Maurício Enterrou os dois velhinhos, Lampião pegou o rifle, Armou-se pelos caminhos. No meio daquele mundo, Daquele mato rasteiro, A alma fica liberta E o peito mais ligeiro No seu fundo respirar. Sebastião Pereira É hora de caminhar. Não haja mais um Carvalho, Não haja mais um Nogueira, Sou uma aberta ferida Toda ela consumida Como pasto de bicheira. Ferreira de Vila Bela, Era bom filho e irmão, Teve gado, teve terra, Teve cerca de melão, Burro, garrote, novilho, Sabiá e azulão, Galo de crista vermelha, Arapuá e alçapão, Mestre-escola, oratório E santos da devoção, O menino Virgulino, Pegador de barbatão. 174 Seu cavalo era um fidalgo Com narinas de trovão, Rufava como um tambor Na frente de um batalhão, Cada pancada do casco Fendia a terra do chão, Nas cores do meio-dia Era cinzento e cardão, Era de prata azulada, Era vermelho alazão, Ancas de ouro e negro, Rompe-nuvem de algodão. Cavalgando nas auroras, Em remotos incendidos, No viver dos perseguidos Nos calcanhares do dia, O olho fundo vazado Sem retenção dos outroras Capitão do meio-dia, Governador dos gerais, Foi Virgulino Ferreira De alcunha Lampião, Que nasceu em Vila Bela Pra varar a solidão. Pelos caminhos da noite, Pelos caminhos do dia, As alpercatas de couro Batiam no duro chão, E os rolos de poeira Subiam da imensidão. As redes avermelhadas 175 Entre celas e cangalhas E o cheiro suarento Das alimárias exaustas. E na frente do comboio, Reluzindo entre punhais, O capitão do meio-dia, Governador dos gerais, Óculos, anéis, cinto, lenço, Rutilantes minerais, Nomes de guerra afamados, Inscritos nestes anais. Mas a grota dos Angicos Foi a sua perdição, Maria bem que dizia Aquilo tem maldição. Estava tão reduzido, Em tão ruim situação, Tão deprimido e doente, Era tão grande aflição, Que não mais se separava De um frasco de veneno Do tamanho de um breve Pendurado junto ao peito, Na altura do coração. Alvores da madrugada, Nos ermos da solidão, Estrela bela, cadente, Tombando do céu luzente Na cova escura do chão. Existiu na natureza Como o ar na amplidão, Como o lume e o braseiro, 176 Como a água e o clarão, Do pó da terra oriundo, Ficou sozinho no mundo Perdido na criação. 8.4. EPISÓDIO SERTANEJO Paulo Bandeira da Cruz, 1985. Tua gravata de urtiga tua farda de avelós tua alpercata de légua e um boi trançado na voz. Punhal de prata no cós bala certeira na régua bornal que a fome mastiga e fuga no lombo da égua. Fogo-fátuo no Angico (procissão de dor e grito) E a cabeça do proscrito Virgulino Lampião Cortada por um milico Sem pai-nosso ou extrema-unção. 8.5. A MULHER E O CANGAÇO Autora: FANKA Da história do cangaço As geras diminuíram Muito tem pra se saber: E até vidas poupadas Enfeite e bala de aço Devido ao que pedira, 177 Conhaque para beber. A mulher participando, Sugerindo nesse bando Outro jeito de viver. Alguma foi escutada. Maria Bonita, Dadá, As duas a comandar No sertão essa cruzada. O cangaço começou A mulher só ingressou Com o Mestre Cabeleira A partir de Lampião. Foi dele que iniciou Muita coisa se mudou Toda aquela pasmaceira Com a sua opinião Pela falta de justiça Pois Maria interferia E também pela cobiça Da maneira que podia Começou a bagaceira. Em cada situação. (...) Violência era o lema No resgate da memória Desse bando no sertão, Tudo pode acontecer. Porém, para este tema, Aparece na história Houve uma amenização A mulher para tecer Com força feminina Outro lado da versão, Ingressando, de menina, De Pereira a Lampião Mudando essa visão. Ela procurou vencer. FANKA – Ed. Esp. JDO, 1997, Juazeiro do Norte, CE. 178 8.6. AS MULHERES CANGACEIRAS HUMANIZARAM O CANGAÇO Autor: Kydelmir Dantas 179 O Cangaço é nosso tema, Surgia SINHO PEREIRA, cativante do sertão.Teve nos seus comandantes, Juntou-se com Luiz Padre, Nomes famosos de Seu primo e um grande amigo, ação, Que ganharam Partiu pra fazer justiça, muita forma, Combatendo o inimigo, Bem antes de Lampião. Na luta contra os Carvalhos, Enfrentou grande perigo Foi CABELEIRA, o primeiro, E no ano de dezoito (1918) Com seu bando Juntou-se a seus „menino‟ pequenino, Dois filhos de Zé Ferreira, Também o LUCAS DA Brigados com Saturnino, FEIRA, Valentes e prontos pra luta, Beiano muito ferino, Eram Antônio e Virgolino. Viriatos, Guabirabas, E o grande JESUÍNO. Antônio era o mais quieto, Taciturno e caladão. Teve em ANTÔNIO O segundo, mais arisco, SILVINO, Inteligente e brigão, Que nem o nosso Tanto atirava em pé, BRILHANTE, Como rolando no chão. A faina de justiceiro, Antes que de meliante, Numa brigada que deram, Defensor da honra Em noite de escuridão, alheia, Seu rifle brilhava tanto, Quase um cavaleiro Que „alumiava‟ o sertão, andante. Dai ficou conhecido, Por alcunha: LAMPIÃO. Com pouco tempo, adiante, No fim da grande carreira Entrou na década de vinte (1920) Do velho “Rifle de Ouro” Sem mostrar nenhum cansaço, Na tribuna justiceira, Herdou de Sinhô Pereira, No sertão de Vila Bela Audácia e desembaraço, 180 E por essas qualidades, Ceará e ainda mais, Tornou-se O REI DO CANGAÇO. Traído pelo coiteiro Que confiava demais. Foi u n tempo atribulado No Nordeste brasileiro. Daí, espalhou o bando Em nove (9) dos oito (8) estados, A procura de outro coito. O cangaço fez roteiro, Desaparecendo o grupo Deixando, aonde passava, Composto de cabra afoito, A canga do desespero. Vindo surgir na Bahia No ano de vinte e oito (1920. Pernambuco, Paraíba E o Rio Grande do Norte. Começa a segunda fase Mas topou em Mossoró, De Lampião no Cangaço. Um povo valente e forte, Na Bahia, em Alagoas Se Lampião não recua, Em Sergipe deixou o traço Tinha encontrado a morte. Em todos estes estados A presença do sela braço. A 13 do mês de junho, De vinte e sete (1927) o ano, Diferente de outros chefes, Ao invadir Mossoró,, Daquela gente ferina, Com seu pensamento insano, Que não queriam nos grupos Perdeu dois cabras valentes, A presença feminina, Que o fez mudar de plano. Surgiu a MARIA DÉA Quebrando toda rotina Colchete, morreu na hora, Jararaca foi ferido, Uma morena formosa, Mais uns três (3) foram chumbados, Com os olhos de catita, Com o bando esmorecido, Independente e valente, Fugiu para o Ceará, Sedosa igual uma chita, Com seu orgulho banido. A Rainha do Cangaço Foi a MARIA BONITA. E lá foram combatidos, Por três Forças estaduais: Com sua entrada no grupo, Paraíba, Rio Grande Ficou o espaço aberto, 181 Para os outros cangaceiros Pela caatinga baiana, Que queriam ter, por perto, A costureira do bando, Suas amantes com eles, Que costurava bacana. Pra aquecer seu deserto.. Pela sua valentia De Onça Sussuarana. A presença feminina, O Cangaço humanizou. Só ela pegou em armas, A mulher por ser mais fina, Nunca saiu na carreira, Logo ele transformou, Que enfrentou a Polícia, Ficando menos sangrento Comandando a cabroeira, E muitas vidas poupou. Mais das vezes defendendo Seu marido na trincheira. Portanto, vamos citar, Essas amantes e guerreiras, SILA foi outra guerreira, Que ficaram conhecidas, Daqueles tempos atrás, As mulheres cangaceiras, Que viveu com Zé Sereno, Por todos os pesquisadores Seu marido e capataz, Escritores das fronteiras. Escreveu a sua história: “Memórias de Guerra e Paz”. Das fronteiras do Cangaço, Muitos passaram no teste, DURVINHA ou DURVALINA, Pesquisando, indo a fundo, Companheira de Moderno, Aqueles cabras da peste, Jurava ao companheiro Escrevendo um capítulo Para sempre, amor eterno, Da História do Nordeste. Com a morte de Virginio, Viu as portas do inferno. Logo depois da Rainha, Nas margens do São Francisco, Até que enfim, resolveu, Apareceu a Princesa, Num clima: morno e sereno, De temperamento arisco, Juntar-se ao maior amigo Foi Sérgia da Conceição, Como este mundo é Companheira de Corisco. pequeno, Morreu há pouco casada (28/06/2008) DADÁ ficou conhecida, Com o Antônio Moreno, 182 DULCE, ainda hoje vive, Este lhe foi infiel, Não lhe faltando a Lhe trocando por ROSINHA, lembrança, Fazendo feio papel. No interior de São Paulo, INACINHA foi de Gato, E evangélica, não dança, Um cangaceiro arisco. Teve como companheiro MARIA de Juriti, O cangaceiro Criança. Inda correu muito risco, Vindo morrer este ano (2008) Agora vamos listar, Em Belém do São Francisco. Pra não sair do roteiro, Os nomes das conhecidas, AUREA de Manoel Moreno, Ligadas a um Um cabra paraibano, companheiro. Dizem que era muito frouxo, Que foram mais de sessenta (60) De lutar não tinha plano. Vivendo com cangaceiro. MARIA de Azulão E LÍDIA de Zé Baiano. ADÍLIA, era de Canário, CRISTINA, de Português. LÍDIA foi a mais formosa, LILI, foi de Moita Brava Cangaceira do sertão. E ENEDINA se fez Por ser bonita e fogosa, No bando, com Cajazeira, Traiu, serviu de lição, Morreram os dois d‟uma Pois foi morta a pauladas, vez. Pelo monstro, sem ação. Moita Brava foi traído MOÇA, era de Cirilo, Por Lili, numa semana, Geniosa e eficaz. Com o cabra Pó Corante, Mais JOANA e DELMIRA Ela foi morta com gana. Do cangaceiro Calais. E o Moita se juntou LIGA, ADELAIDE e SABINA, Com uma SEBASTIANA. Ainda teve muito mais. NENÉ foi de Luiz Pedro, Maria! Teve um bocado, O cangaceiro fiel. Mais ou menos afamada. OTÍLIA, de Mariano, Teve Maria dos Santos, 183 Por MARIQUINHA é lembrada. Cristina Mata Machado Também MARIA JOVINA E Aglae de Oliveira. Ou MARIA de Pancada. Do Cangaço se aprecia, Teve MARIA ISIDORO, Entre os pesquisadores MARIA de Gitirana. As histórias e valores, Ângelo Roque teve duas: No tema que se anuncia. A Manquinha e a ANA. Seus nomes são sem Laura Alves ou DONINHA, deslize, Disposta alagoana. Geraldo, Umberto, Élise, Tinha ANTÔNIA de Baliza, Na pesquisa que semeia. A QUITÉRIA e a LOL´P. Alcino como seu libelo, BIDIO de Volta Seca, Pernambucano de Mello Este só tinha gogó. E Antônio Amaury VERÔNICA de Beija-flor Correia. E a cangaceira LIÓ. FIM ARISTÉIA de Catingueira, Apareceu há uns dias. Na cidade Paulo Afonso, Interior da Bahia, Para João de Souza Lima, O biógrafo de Maria. Livros há, com este terna: As Mulheres e o Cangaço. As Amantes e Guerreiras, Todas com nervos de aço. São de bons pesquisadores Grandes historiadores, Daqui e doutra ribeira. Homens e mulheres de brado, 0 8.7. A VERDADEIRA HISTORIA DE LAMPEÃO E MARIA BONITA Autor: Manoel Pereira Sobrinho 185 Grande Deus senhor dos seres mandai-me orientação Jogava todos os jogos idéias, forças e rimas era fino sapateiro de que tenho precisão vaqueiro destro e veloz para, versar, a historia e era ótimo ferreiro da vida de Lampeão lia, escrevia, e contava trocador e estradeiro Existem vários poetas que escreveram alguns fatos E para finalizar porém coai inconsciências e ninhuem se aborrecer devido a muitos boatos Lampeão fazia tudo agora eu escreverei quanto se pode fazer seus golos e seus maltratos e sua vida completa vamos ouvir com prazer De todos os criminosos de que nos fala a historia No ano 1080 não houve outro no mundo em junho a 15 do mez de idéia .mais finória nas tenras de Vila Bela parece que algo estranho extremando a Santa Inez lhe auxiliava a vitória dona Maria Ferreira Tinha todas qualidades deu a luz a ultima vez que pode ter ura um vivente era enfermeiro e parteiro Seu esposo José Lopes falso, covarde e valente não queria mais menino fraco igualmente ao sedeiro esperava uma menina astuto como a serpente que tinha Antonio e Livino porém como foi um homem (2) batizou-o por Virgolino Matava por brincadeira com pura perversidade (3) dava comida aos famintos E por ser ele o Caçula com amor e caridade criou-se muito mimado foi sanfoneiro e poeta aos 9 anos foi de primeira, qualidade em uma escola internado 186 na cidade em Vila Bela e por homem de coragem para ser bem educado nadava mais do que peixe caçava em qualquer paragem Da fazenda São Domingos seu pai era fazendeiro Porém como nossa sorte no lugar Serra Vermelha só quem mostra é o futuro honrem pacato e ordeiro é um globo muito ingrato com sua esposa Maria um lado claro outro escuro vivia ali prazenteiro Lampeão viu-se obrigado a topar um galo duro E Virgolino Ferreira enquanto isso estudava A fazenda São Domingos saiu aos 14 anos de outra era vizinha lia, escrevia e contava João e Raimundo Nogueira era enfermeiro e ferreiro homens sem lei e sem linha cosia, e apalazava eram seus legitimas donos iguais a mãe da murrinha Os seus pais pediram muito para ele ir estudar Ricos e bem conhecidos ser médico ou advogado chefes de bandos armados ele não quiz aceitar homens moços e muito fortes dizendo: dê-me une cavalo criminosos depravados que eu quero é Campear e políticos de renome queridos em 3 Estados o pai deu-lhe um bom cavalo por nome de azulão Entenderam de tomare Virgolino em cima dele de Zé Lopes a fazenda Vaqueijava igual ao cão Matá-lo com os 3 filhos E nuncaencontoru boi bravo e carregarem-lhe a tenda. Prá não botá-lo no chão. Sem pensarem que achavam (4) A desgraça de encomenda. E assim vivia ele no meio da camaradagem (5) conhecido por Sabido Lá em Vila Bela havia 187 três chefes de cangaceiros Virgolino e seus irmãos com muitos homens armados nada mais adiantaram desonestos e desordeiros venderam o que tinham e logo Casimiro do Navio seguras armas compraram Né e Quelé trapaceiros na noite do outro dia em São Domingos chegaram Os Nogueira como ricos os três mandaram chamar Cercaram logo a fazenda. para matarem Zé Lopes do tal Raimundo Nogueira foram a fazenda cercar os 3 grupos estavam dentro mas só encontraram o velho numa grande bebedeira cuidaram logo em sangrar Virgolino abriu o fogo despertou a cabroeira Mataram o velho Zé Lopes como quem mata assassino Era 10 horas da noite porém não estavam em casa quando o fogo começou nem Antonio e nem Livino deu 11, 12, deu uma e a verba, também tinha duas, 3, 4 marcou saído com Virgolino cinco, 6 o sol saiu e o fogo não cessou Estavam em Nazaré quando chegou a notícia Virgolino e os irmãos a velha deu um colapso gritavam nessa contenda, Morreu cheia de malícia - vamos Raimundo Nogueira então os 3 irmãos foram nós viemos de encomenda procurar logo a polícia. vamos matá-lo sangrado Um tal José Balduino e queimar alfa fazenda Era o sub-delegado Não deu atenção a eles Né, Quelé e Casimiro Pois estava combinado Que tinham disposição Apenas disse: os Nogueira Mandaram os cabras pularem São os grandes do Estado. Para pegá-los a mão Ficou de esteira de mortos (6) Então passaram no portão 188 Até o cerco fechar (7) Gritavam mulher e filhos (8) Do tal Raimundo Nogueira Um entrou pela janela Choravam e se maldiziam Outro foi pela cozinha Enquanto Antônio Ferreira Outro avançou pela a frente Com Virgolino e Livino Se juntaram na salinha Mandavam balas de esteira Raimundo com a família Estava na camarinha Assim que findou-se o dia e as trevas se espalharam Como oratório aberto Virgolino e os irmãos Ajoelhado rezando em gritos e tiros avançaram Severino e Antonio pegavam e na calçada da casa E Virgolino sangrando todos 3 se entrincheiraram Entre grandes gargalhadas Gritaram Bago a Raimundo E uma ruma formando - o seu momento é chegado de fumaça e fendentina Reuniram os outros mortos o campo estava empestado Dentro da casa botaram Quelé gritou aos parceiros Cercaram a casa com lenha - o Virgolino é pesado De querosene ensoparam Tocaram fogo e saíram Né gritou: Vamos furar Nas brenhas se internaram o cêrco e vamos embora combinaram todos três João Nogueira o outro irmão e pularam logo fora Que confiava em Quelé quando pisaram no campo Em Né e em Casimiro foi 3 cadáveres na hora De tudo perdeu a fé Deixou a fazenda e foi Virgolino aí gritou Embora prá Nazaré - Raimundo cuide em rezar Deu ordem para os irmãos, Quando Virgolino foi Em cada freate avançar Na fazenda procurá-lo Entraram pelas 3 frentes Não encontrando matou 189 Boi, carneiro, vaca e galo Virgolino aguentou-se E mandou dizer que ia com poucos dias e deixou anoitecer matá-lo. por traz retirou 10 homens sem “Zé” Bonifácio ver botou-lhe dentro do cerco (9) ninguém mais polida correr Pausado 90 dias Virgolino preparou-se Depois de estar apoiado junto com os dois irmãos mandou a tropa avançar da cidade aproximou-se Antonio Livino e o resto com 17 “cabras” trataram de recuar aí o tempo turbou-se uniram-se a Virgolino cercaram todo lugar Do Recife havia ido 48 soldados Dos cabras de Bonifacio prá casa de João Nogueira 19 faleceram todos eles bem armados os 11 se entregaram e por José Balduino João Nogueira balduino eram todos comandados Com o resto se renderam José Bonifácio soube João Nogueira foi sangrado do cerco que Virgolino e Balduino também ía fazer em seu tio incendiaram a cidade disse: eu vou dar-lhe um ensino roubaram o último vintém e partiu com 30homens dos contra naquele dia para cumprir o destino não ficou vivo ninguém. ao chegar em Nazaré Foi dessa luta que veio a rua estava cerceada O nome de Lampeão Virgolino e os irmãos Porque ele onde atirava Gritando: arrocha negrada Via-se de longe o clarão Disse Bonifácio, vamos Parcela 20 homens Botar-lhe uma retaguarda Atirando de canhão (10) (11) 190 Lampeão juntou os homens 22 tinham morrido (12) tinha 9 baleados Mandou fazer uma carta e ele estava ferido explicando a Lampeão porém gritou: os Nogueira que voltar-se a Nazaré agora acharam marido sem fazer qualquer ação e por ordens do governo Sepultou os seus defuntos todos teriam o perdão alguns feridos curou juntou os outros cadáveres Fez uma baixa assinada em uma ruma queimou muita gente se assinou e no mesmo dia com afirmando ser verdade o resto se retirou pelo um portador mandou entregar a Lampeão Lançou-se dentro das serras pela resposta esperou em 16 e 18 e somente em 21 Antonio Ferreira disse como um guerreiro afoito - isto é tapiação voltou a luta, outra vez Livino disse eu também e abandonou o coito não dou crença nisso não disse Lampeão eu vou o polícia dos Estados porém sei que é traição Paraíba, e Pernambuco perseguiram Lampeão Chamou os cabras e contou com jeito, perícia e suco os novos acontecidos e de quando em quando ele todos ficaram tristonhos deixava um chefe maluco porque eram bem unidos - eu vou, disse Lampeão Nessa época um cidadão - mas vocês ficam escondidos delegado em Nazaré disse: eu vou fazer um plano Vai eu, Antonio e Livino e posso jurar até cubar a situação que destruo todos Ferreira os outros ficam pertinho todos em mim tenham fé todos de armas na mão 191 e será logo amanhã e peço aos 3 que dêem não quero ouvir discussão. as armas para guardar vamos farrar e beber. (13) Na noite do outro dia (14) lá em Nazaré chegaram Virgolino deu as armas Lampeão com os dois manos Antonio também entregou na dita cidade entraram Livino não fez questão e os cabras escondidos pegou as dele e guardou todos pertinho ficaram e na velha e santa paz a festa continuou E o Gomes Jurubeba como sub-delegado Gomes Jurubeba logo para o casório de Enock mandou as portas fechar havia sido chamado os Ferreira já queimados sobrinho de Lampeão nada puderam notar, nesse mesmo povoado ele entrou e foi ao quarto com muita urgência se armar Aproveitando esse dia Quando os Ferreira chegaram Lá avisou aos comparsas todo mundo ali presente todos eles se armaram com todos 3 se abraçaram os Ferreira cá dançando e para á trama maldita de nada desconfiaram diversos se prepararam quando cuidaram na vida foi tarde os cabras agarraram Gomes Jurubeba disse perante a reunião Porém Lampeão pulou - hoje aqui será liberto se armou de uma cadeira perante a população cada pancada, que dava Antonio Ferreira e Livino caia gente de esteira juntos com o Lampeão os cabras que estavam perto encostaram na careira Os Ferreira são bons homens nascidos nesse lugar Chegaram e Cercaram a casa 192 a grande luta, travada (16) punham, faca, bala e foice Assim até 26 murro, balão, cacetada Lampeão nesses Estados apagaram o candeeiro prendia e matava gente aumentou a batucada. com muitos hoimens armados a Policia, e o Exército (15) não tiravam resultados Os cabras quebraram as portas todos de armas na mão Atacava os fazendeiros emburacaram na bala as vilas e as cidades na medonha escuridão acabou tropas inteiras Lainpeão ai gritou com grades barbaridades - vamos dar fim questão queimava sitio e fazenda praticando crueldades Com duas horas de luta estava o espatifado Nessa época Carlos Prestes de Lampeão morreu 11 fez uma revolução Livino foi baleado reuniu um grande grupo o Jurubeba foi preso e saiu pelo sertão na mesma hora sangrado com nome de revoltosos foi até ao Maranhão Enock a sua, noiva ainda se evadiram Mas chegando em Piancó pegaram as mulheres todas pegou una padre e matou no mesmo instante despiram a o nosso padre Cícero dançaram o resto da noite dessa vez ele jurou mataram tudo e fugiram Lampeão sabendo disso outra atitude tomou Foram prá Serra do Vale Livino foi se tratar Com 170 homens Aumentou mais o seu grupo todos de armas na mão e se danaram a roubar foi bater aonde estava. carregar mola e mulher. (17) 193 O padre no mesmo dia De lá veio a Cajazeiras arranjou uma patente Sousa, Piancó; Pombal promoveu a capitão Conceição, Misericórdia Lampeão 1igeiramente sem cometer nenhum mal Antonio como Primeiro a sua terra natal Sabino 2 o tenente De lei passou prá Bahia E ficou o Juazeiro em Tucano foi cercado; por Lampeão vigiado levava 200 “cabras” comandando aos paisanos cada qual bem preparado até ao menor soldado por 3 enormes volantes esperando Carlos Prestes foi ele logo apertado com os cabras preparado Tinha forças do Exercito Porém quando os revoltosos da Policia e recrutadas Souberam que Lampeão três oficiais valentes Como comando e chefe com armas bem preparadas Das forças lá do sertão metralhadora e canhão Esperava Carlos Prestes morteiro, bomba e granadas Fugiram pro o Maranhão Na Fazenda Cruz Vermelha Lampeão passou o resto bem pertinho da cidade D ano no Juazeiro Lampeão estava acampado Coma sua turma armada Gozando tranqüilidade Como capitão ordeiro foi atacado das forças. Sem fazer mal a ninguém Ouvindo o seu conselheiro (19) Lampeão de quando em quando Em 27 ele foi Gritava prá os comandantes Ao rio Grande do Norte - vamos macacos dos diabos Andou até Mossoró Com vozes bem arrogantes Quase que acha a má sorte. As balas cruzavam os céus Como as lutas dos gigantes (18) 194 Passaram o resto do dia porque me fiz assassino A grande luta travada Quando anoiteceu de novo - Querendo mesmo brigando Lampeão disse: negrada pode prestar-me atenção Vamos fugir desse fogo vamos negrada pra frente Que a coisa está acochada que estou dando explicação quem foi quem é Virgolino Preparou seu necessário por alcunha Lampeão Falou com a cabroeira No terreiro da fazenda Nasci lá no Pajeú. Caíram numa trincheira de Pernambuco o Estado Lampeão gritou os cabras no Riacho São Domingos Caía gente de esteira o lugar denominado nas perras de Vila Bela As tropas fecharam o cerco por Lampeão apelidado Mas não podiam atirar Porque matavam os amigos Até 17 anos Disseram: vamos pegar vivi calmo e descansado Esse Lampeão a mão e todos me conheciam Para depois se sangrar pelo o almocreve honrado e nessa idade o destino O comandante das tropas fez de mim iam desgraçado Gritava muito animado - Lampeão você se entregue Sei que tenho um triste fim Porque está bem cercado bom é que não pode ser Das duas escolha uma mato João, Pedro e Martins Prisão ou morrer sangrado. faço qualquer um sofrer capitão tenha cuidado. (20) (21) E Lampeão respondia Enquanto isto os punhais -veja que não sou menino empunhados em cada braço hei de morrer como homem cruzavam pelo o escuro o meu nome é Virgolino que retinia o espaço vou brigar dizendo em versos e Virgolino gritando 195 - vamos, vamos mete o aço pediram uma informação saiu de dentro uma dona As 4 da madrugada disse Luiz: ou peixão a trincheira foi rompida e Lampeão, são e salvo disse a dona: aqui se faz entrou na mata querida com a melhor perfeição e o restante da tropa meu marido é sapateiro ficou de cara lambida mas quero uma.a explicação a que grupo estão 1igados Assim que amanheceu o dia Luiz disse: a Lampeão toda a tropa foi vencida de 800 soldados Ela aí mudou de cor, que enfrentaram a partida e tomou suspiração restava apenas 300 depois disse: eu só queria quinhentos perderam a vida ainda ver Lampeão porque foi o único homem Morreram 110 cabras a quem, dei meu coração da tropa de Lampeão ficaram 30 feridos Fizeram 20 encomendas foram pegados a mão e sem demora, voltaram sangrados de um a um e lá no acampamento sem a menor compaixão. tudo a Lampeão contaram em risos e gargalhadas E Lampeão coza o resto a conversa terminaram enfrentando a qualquer risco veio acampar bem pertinho com 15 dias depois do rio de São Francisco Luiz Pedro e Lampeão mandou fazer apercata Foram ver asencomendas por Luiz Pedro e Curisco Para sair do sertão Assim que chegaram ela (22) Disse logo a pretensão. Eles foram a cachoeira com a maior .precaução (23) na casa de um sapateiro - Meu nome próprio é Maria 196 embora você estranhe Na cidade de Capela o que eu vou lhe dizer Entrou não matou ninguém talvez nisso nada ganhe Deu comida aos famintos quer me levar hoje consigo Comprou tudo e pagou bem ou quer que eu lhe acompanhe? Roupa, dinheiro e comida Fez como um homem d bem Lampeão era do aço Porém diante a beleza Prá o raso da Catarina Daquela mulher mimosa Com o seu grupo marchou Com um porte de princesa Lá fez seu acampamento Cabelos e olhos grandes Muito tempo descansou parecendo uma duquesa. Em novecentos e trinta Novamente viajou Morena cor de canela dessas que o vento palpita No lugar Gerinumbó muito bem feita do corpo No Estado da Bahia lábios da cor de uma fita Foi cercado com o grupo disse Lampeão: te levo Pelo um major de valia minha “Maria Bonita” Dessa vez Livino Velho Deu comida a terra fria ela aí entrou ligeira o cobertor amarrou Morreram 10 cangaceros com dois bisacos de mescla Ficaram 2 balcades logo mais se apresentou O major e um sargento despediu-se do marido Todos dois foram sangrados e com Lampeão “pirou” Ficaram 11 feridos Levaram os pares de alpercaia E morreram 15 soldados. Calçaram uma nova equipe (25) Lampeão dizendo que Em 31 ele foi Estava com uma gripe Com seu grupo a Pedra Branca Pegou com a turma toda Atacou a baronesa Viagem para Sergipe. Levou-lhe até alavanca De jóias não deixou nada (24) Nisso sua alma era franca 197 as 2 horas da tarde Porém perto foi cercado em bem verdejantes prados Por uma força valente 210 soldados Aí o fogo travou-se O cercaram novamente morria gente de rurna Dessa vez quase que ele o comandante dizia Perdia o último vivente - Lampeão hoje se apruma e Lampeão respondia Os seus cabras nessa época - Você hoje talvez suma Eram: Curisco e Sabino Dois de Ouro e Cobra Nova As balas faziam enxame Antonio Ferreira e Silvino dos cabras com os soldados Peitica e José Baiano só se ouvia gemidos Bicho péssimo e assassino gritos e espolinhados a força avançando a trote Estrela Dalva e Coruja e os cabras bem cercados Garatujo e Putrião Espinhola e Cobra Cega Antonio Ferreira e Livino Aza Branca e gavião foram ambos baleados Patativa e Nevoeiro lá no beco do Preiá Pancada e Azulão morreram e foram exumados mais de 19 “cabras” Anum Preto e Caracará pegaram foram sangrados Moita Brabaebentivi Pé de Bola eAratanha trinta soldados morreram Cajueiro e Colibri em menos de um instante Engole Cabra e toitiço Lampeão pegou a mão Pássaro Preto e Juriti. O capitão comandante Sangrou ele e dois sargentos (26) Quase que acaba a volante. Ele e Maria Bonita todos 32 armados (27) porem pela a grande tropa E Fugiu como restante foram todos bom cercados da tropa toda cansada 198 levou Maria Bonita Lampeão com muita fome nas costa, já, baleada toda comida comeu e seguiu pra o Araiípe deu a Maria Bonita a grande serra, falada poreé depois conheceu mas o veneno foi fraco Na fazenda de Izaias por isto vinguem morreu na dita serra citada Lampeão pediu abrigo Tiveram dor de barriga sem desconfiar de nada porém foi logo passando ele deu porem mandou nisso viram a grande serra dar comida envenenada de fogo se acabando e a grande labareda Mandou Lampeão pra serra deles se aproximando e a comida mandou mandou buscar grande tropa Lampeão viu que morria dentro de casa, botou pois não podia voltar e tocou fogo na serra Maria estava doente uma só passagem deixou. Nem siquer podia andar Ele jogou-a nas costas Dizia, ele consigo E disse: vamos fugar. - não fica hoje um cangaceiro O fogo assolou a serra Subiram de serra acima até o despenhadeiro Até o despenhadeiro e a comida também tiraram todas as roupas veneno foi seu tempeiro fizeram um cordão grosseiro que ia de cima em baio Aqui prá capanga entrando experimentaram primeiro. Juro que não passa nada E a Maria Bonita Amarraram em pau e pedra Está doente e baleada Depois Curisco desceu Quem escapar do veneno Foi descendo de um a um Fogo ou espingarda. Como quem enlouquecei Disse Lampeão: o último (28) Que tem que descer sou eu. 199 Na fazenda de Izaias (29 E sem compaixão cercaram. Por fim Lampeão pegou a sua mulher sem par (30) tinha dado um “passamento” Ele com sua mulher e não queria tornar Um filho e uma menina ele amarrou-a nas costas Lampeão sangrou os 4 e foi descendo a vagar Com sua fúria assassina E partiu com os seus cabras E quando o fogo chegou Prá o razo da Catarina Lampeão já estava em baixo reuniu os homens e foram Lá existiu um coiteiro para a orla de um riacho Em quem ele confiava porém jurou que voltava Mandava comprar por ele para provar que era macho Tudo quanto precisava Assim até 36 Foi tratar de sua amante Boa vida ali passava pegando caça na mata ela numa barraquinha Até que um certo dia pertinho de uma cascata Surgiu novo comandante os cabras todos ali Comandando novos homens esperando a ordem exata Com uma estranha volante Com um plano diferente Lampeão como um Leão E botou-o logo avante com a cara carrancuda disse: vamos rodeiar E quando surgiu a história a serra, Deus nos ajuda - Virgolino pereceu e vamos dar um ensino Porém tem quem diga alto a Izaias Arruda Que Lampeão não morreu O que eu posso afirmar Maria já estava boa Pé que desapareceu Uma noite eles marcharam Rodeando a grande serra Não sei se foi vivo ou morto De madrugada chegaram Porque há contradição 200 Tem gente que afirma sim meu peito é uma ferida Porém tem quem diga não E que sei é que o mesmo Quando me lembro senhores Nunca veio ao sertão. Do meu tempo de inocente que brincava nos cercados (31) do meu sertão sorridente Mil e oitocentos crimes sinto que meu coração a historia registrou magoado dessa paixão mais de 700 vezes bate e chora amargamente. a policia lhe cercou 400 e tantas moças (32) Virgolino devorou Cruzei na casa paterna quis ser um homem de bem Mil e duzentas cidades e viver dos meus trabalhos e vilas berra povoadas sem ser pesado a ninguém por Virgolino Ferreira fui almocreve na estrada todos foram saqueadas fui até bota camarada porém pra tudo há motivos e tive amigos também também fez ações honradas Tive também meus amores E sua vida em resumo cultivei minha paixão já mostrei em poesia amei uma flor mimosa vou recitar versos dele filha lá do meu sertão de sua própria autoria sonhei de gozar a vida escutem com atenção bem perto a prenda querida porque foi que Lampeão a quem dei meu coração em ruim vida vivia Nunca Pensei que na vida Fosse preciso brigar - Por minha infelicidade Apesar de ter intrigas entrei nessa triste vida Gostava de trabalhar não gosto nem de contar Mas hoje sou cangaceiro a minha história sentida Enfrentarei o bolceiro a desgraça enche o meu rosto Até alguém me matar. em minh‟alma entra o desgosto 201 Provou que quis viver bem Estimando e sendo amado Revoltou-se com razão Também sem resultado Implantou o terrorismo dolou no véu do abismo Até o último intrigado. FIM 202 8.8. SOMBRAS DO CANGAÇO OU A VERSÃO DE MARIA BONITA Susana Morais 203 Sou Maria, sou a Santa É um conto de romance Lampião meu companheiro De quimera, irreal Do meu pranto ele canta Fantasia, devaneio E se de noite ele chora Criação tão desigual Cubro-o eu com minha manta Da história verdadeira Porém creio ser real Mas a vida é arapuca Que o destino complicou Nos livros dessa história E meu peito é só carência O cangaço é conhecido Que ligeiro se fincou Porém a minha versão Ocorreu que Lampião Já dará certo sentido Neste mundo me deixou Que estava encoberto E agora eu lhe digo E agora o que faço? Desatada a sangria Pra viver um grande amor O meu peito se lamenta Perdi minha mocidade De angústia e euforia Eu vivia no sertão Meu amor não se findou Com a falta da verdade Não se findará um dia? Não havia violência Muito menos crueldade E por isso hoje eu sou Sombras de desilusão Minha sina foi traçada Onde passo, deixo rastro Pois te sigo qual cangaço Desamor sem compaixão Que na vida corre o risco Se me volto no passado Da Caatinga, no escasso Logo vem a comoção Invisível caminhando Nas sombras do teu mormaço O que eu tentei dizer-te Lampião meu camafeu No meu nome sou Bonita Por desejo de te ter 204 Para sempre em braço meu Eu pedi para a Volante Com um papo amarelo Impor credo a ti ateu! Tanta vida consumada Lampião e os companheiros Sem bater em retirada Mas ela se misturou Complicou-se no mandado Lutando contra a má sorte Que por mim foi empregada Tua vida se exauriu E meu mundo desolado Hoje anda na penumbra Eu cheguei a conclusão: De quem vive angustiado Minha vida é sem abrigo Me entreguei a tal volante Pra morrer junto contigo Nesta noite de agonia Te dedico este verso E aqui eu te confesso Que não sou feliz comigo E os faço porque que sei Que meu amor submerso Nunca mais virá à tona Pois que hoje está disperso Degolada e descarnada Com o peito a céu aberto Encontrei felicidade E agora desabafo Num poema tortuoso: Nesta vida hoje sou Como um fardo tenebroso Pois que já fui condenada Num caminho nebuloso Que não há felicidade E tampouco há sossego Pois então o que me resta É o chorar o desapego De ter dado ao meu amor Um destino sem apego Pois que tenho aqui bem perto Virgulino Capitão A razão por qual desperto... FIM 205 8.9. LAMPIÃO E MARIA BONITA NO PARAÍSO DO ÉDEM TENTADOS POR SANTANÁS JOTABARROS 206 Caro leitor eu Peço que leia com atenção Nesse ínterim também este livro até o fim fez algumas palhaçadas é grande a satisfação em uma cidadezinha se queres saber um pouco agarrou um camarada da vida de Lampião. e o ilustre Prefeito pra cortirem uma massada. Já ouvi alguém dizer Lampião está vivendo O Prefeito passeou eu assevero que sim Em um jumento cansado o que o povo anda dizendo Com um sujeito puxando se acreditas ou não O animal enfadado continue o livro lendo. Nuzinhos como nasceram Foi um carnaval gozado. Pois eu já ouvi dizer por mais de um companheiro Só porque o tal prefeito que Lampião já foi visto Tinha uma tatuagem lá no Rio de Janeiro Num lado de suas nádegas teve um até que disse O mofino sem coragem que ele é bodegueiro. Do capitão Virgulino Recebeu uma massagem. (4) Assim viveu alguns anos (5) quando a infame notícia Pois uma, pisa cubada chegou as ouças das forças levaram em plena rua que pertencia a poli gritada-lhe: Virgulíno seguiram ao seu encalço não é safadesa sua? com dedicada perícia você carregar na bunda retrato de mulher nua. Ele sabendo a notícia da grande perseguição Quem assistia, o presépio ficou mais endiabrado gritavam horrorisados junto com seu batalhão que vergonha meu senhor matava e dava surras solte estes desgraçados sem ter dó nem compaixão. o prefeito e seu colega 207 iam em prantos banhados. um quilo de Sal continha. O prefeito nunca pensou Pois não, havia um meio sofrer tal decepção daquele se defender rogava por todos os santos porém se viu oprimido meu senhor meu capitão teve mesmo que comer quando surgiu uma tropa duma maneira ou de outra para pegas, Lampião. tinha que obedecer. A polícia lhe cercou Deu-lhe sede bebeu água ouviu-se à bala zuar e o bicho foi crescendo Lampião com sua tropa pois defecar não podia não temia ao azar ficou o pobre sofrendo Venceram a tropa e um cabo com o reto costurado Vivo puderam pegar. e assim terminou morrendo. O pobre pediu por tudo Virgulino viajando que não lhe fizesse nada Com seus capangas de lado és um nobre camarada foi parar em uma festa mas vou obrigá-lo hoje dum povo muito animado comer, só uma buchada. empiquearam a casa e foi triste o resultado. (6) (7) Deu-lhe logo umas pancadas Pararam e samba, com medo que e cabo ficou tonto dia Lampião sem londú tirou-lhe à roupa e no teto botem o frevo pra frente fez um ligeiro pesponto quero todo mundo nú e disse, pode comer quem não despir-se hoje sobe o seu almoço está pronto num pé de mandacaru Coitado do pobre cabo Todos se despindo foi com sua sorte mesquinha o samba recuperado foi obrigado a comer os cabras e Lampião uma buchada todinha com seu instinto malvado além de ser exagero fazia os homens dançarem 208 um com outro agarrado talvez até muito bem Velhos, moças e meninas Depois de sofrer bastante foram todos deparados sem achar uma pousada estes não sofreram nada penou por um agasalho porém os homens coitados qual um pedinte em estrada quando amanheceu o dia ou um jumento cansado estavam todos castrados. com uma carga pesada. Foi triste a situação Dizer que foi ao inferno E ali ninguém reclamava Lá não encontrou lugar Só capitão Virgulino Satanás não aceitando-o Naquela casa mandava Ficou a perambular Se alguém tentava fugir Pediu a Deus que o tirasse Com certeza se acabava. Daquele horrendo penar. Baixou a várias sessões Depois do serviço pronto mas nunca foi apoiado Virgulino despediu-se no lugar em que chegava Quem na sala estava nú sempre era recusado Rapidamente vestiu-se cofreu até que ficou Ninguém soube para onde sem dever nem um pecado. Virgulino dirigiu-se. (8) (9) Quando ninguém esperava Resolveu ir para o céu de repente apareceu ver se achava um lugar aquela infeliz notícia tocou numa campainha que Virgulino morreu São Pedro mandou entrar daí por diante a paz mas disse o Senhor qui pra muitos apareceu. no céu não pede ficar. Não somente pra alguns Disse Lampião: São Pedro como pra ele também Faz um jeito e me conduz ele depois de ser morto Até os pés do Senhor não tentou a mais ninguém O nosso Cristo Jesus reconciliou-se e vive Pra ver se ele me guia 209 Pelo caminho da luz. Tem na vida grande gosto Procuras um meio para Satanás lhe tentará Aliviar meu sofrer Mais do que tentou Adão O inferno não me quis Virado em surucucu O céu não quer me valer Para a condenação Desse jeito meu Senhor Ele se apresentará Como é que posso viver. Ao famoso Lampião. São Pedro lhe disse espere E tem mais, no cajueiro Que nesse momento eu vou Ele não pode tocar Falar com Cristo Jesus E se Satanás puder Ele contente ficou A ele incentivar Sem ter demora São Pedro Para chupar um caju A Cristo se apresentou. Pra terra tem que voltar. Falou São Pedro a Jesus Será este o estatuto Aí está Lampião Que se regerá por ele Pedindo para ficar Diz S. Pedro a Lampião Nessa Divina Mansão Que cuide da vida dele O que é que digo a ele? Recebendo ele a mensagem Que pode ficar ou não!? Entrou vida nova nele. (10) (11) Disse Jesus a S. Pedro Lampião ficou contente De Lampião eu preciso E agradeceu ao Santo Precisamos restaurar Foi para o paraíso O amigo paraíso Ficou só, em um recanto Diga a ele, se pecar Lembrou Maria Bonita Não me responsabilizo. Começou chorar seu pranto. Diga também qu‟ele tenha O! minha linda Maria Cuidado ao lado oposto Vem pra cá minha morena Se der crença a satanás Estás sofrendo na terra Sofrerá grande desgosto Eu daqui choro com pena Se ao negligenciar Não posso ter alegria 210 Longe de minha pequena. Receba sua mulher Um dia ele lembrou-se disse S. Pedro benquisto Do Padre do Juazeiro Lampião a recebeu Exclamou oh1 meu Padrinho E um assumo previsto Vós que sois tão justiceiro S. Pedro lhe fez ciente Mandai Maria Bonita de que lhe dissera Cristo. Unir-se a seu companheiro Comerás todos os frutos Parece que foi ouvida Mas é isento o caju A prece de Lampião cuidado, em tua mulher De nosso Padrinho Cícero porque um surucucu Recebeu a proteção mandado por Satanás De ir ao céu, de Maria enganará ela e tu. Palpitou o coração. Lampião disse S. Pedro Falou para o padre Cícero garanto de minha parte Que desejava um passe Satanás me aparecendo Pretendia ir ao céu farei um grande descarte Custasse o que custasse o capitão Virgulino Já tinha sofrido muito jamais fará uma arte. Queria um novo enlace. (12) (13) O padre o aparecido O Santo despediu deu um passe a Maria E Virgulino ficou e disse o que pretendia contemplando um novo dia S. Pedro a receber que Jesus Cristo mandou com bastante alegria ao lado de Maria tudo se tranqüilizou S. Pedro falou pra Cristo Agora mesmo chegou Junto com sua Maria a mulher de Lampião Entoava essa canção: Cristo então ordenou “é lampe é lampe é lampe que as levasse o marido É lampe é Lampião S. Pedro alegre a levou. O meu nome é Virgulino 211 O apelido é Lampião. Que com ela assim falou. Nas horas de alegria Maria vêdes que és Não paravam de cantar Uma santa está previsto “olê mulher rendeira Digo-te em viva voz olê mulher rendar Podes acreditar nisto me ensina a fazer renda Se provardes deste fruto qu‟eu te ensino a namorar”. Viverás junto ao Cristo Passa do dias depois Participas deste fruto tudo já correndo bem Que ganharás a mansão o jardim bem conservado Irás viver sem trabalho costumados também E não prove sozinha não Lampião e sua esposa Um só fruto dá pra tu Começaram com REM-rem. E teu homem Lampião. Maria dizia, eu quero Maria tirou um fruto ir naquele cajueiro Saiu danada pra traz tirar de lá una caju Foi encontrar Lampião pra ver se é verdadeiro Bem saltitante e sagaz o recado de S. Pedro Sem pensar que aquela cobra eu descobrirei primeiro. Era o puro Satanás. (14) (15) Lampião dizia não Partiu o caju e deu Não tenha tal ousadia Um pedaço a Lampião De ir tocar no caju O qual mordendo lembrou-se Não faças a rebeldia De sua rebelião Ao que nos disse S. Pedro Porém não teve mais jeito Toma juízo Maria. Derramou prantos no chão. Foi assim que a tentação Uma multidão de anjos De repente começou Cada qual com uma espada Maria um dia sozinha Expulsaram Lampião No cajueiro chegou Junto com sua amada Avistou um surucucu Os quais desprezaram o Édem 212 Sem ter direito a mais nada. Mesmo quem é da cangalha Não se acostuma com sela. Tornou voltar para terra Jesus Cristo avisou com atenção Por conselhos de Caim Organize o novo Paraíso Desobedeceram as ordens Tudo faças em seu lugar preciso Que lhe deu o Eloim A ninguém darás este galardão Quem é desobediente Bem te aviso, cuidado Lampião Sempre é mau o seu fim. Adão caiu no pecado és sabedor Regala-te com fé e com pudor Não teve a quem se queixar Recebeste um lugar de inocente Bem que estava avisado O livro arbítrio está em tua mente Errou desobedeceu Se errar não serei teu protetor. Veio ao mundo do pecado Mas, o destino dos dois Ainda é ignorado. Não entrará mais no céu Por ordem do Pai Eterno Jesus Cristo já tirou O seu nome do caderno Talvez agora ele arranje Um lugar lá no inferno. (16) Satanás interessou-se Ajudá-lo a rebeldia Talvez tenha um lugar Para ele e pra Maria É como diz o rifão Para tudo tem um dia. Ninguém sabe o causador Se foi ele ou se foi ela Quem não teve vida boa Se tiver não Cida dela FIM 213 8.10. LAMPEAO VAI AO INFERNO BUSCAR MARIA BONITA* Autor: Apolônio Alves dos Santos 214 Peço a meu bom leitor quando aqui termina a vida venha ofertar-me um abraço vão viver em outra esfera retribuindo meus versos numa área permitida neste poema que faço até purgarem os pecados com toda convicção pra irem purificados falo sobre Lampeão para a mansão concebida. que foi o Rei do Cangaço. Pois assim ficou ali Lampeão quando viveu vivendo aquele casal com seu grupo desordeiro se amando com fervor não foi à tôa que ele na vida espiritual transformou-se em cangaceiro felizes se divertiam com seu gênio vingador igual a quando viviam tornou-se o maior terror na vida material. do Nordeste brasileiro. O diabo interessado No ano de 38 na mulher de Virgulino Lampeão foi emboscado chamou-o logo o “Invisível” no lugar Fazenda Angico e o diabo Quengo-fino foi morto e decapitado disse: vão na moradia por uma força volante de Virgulino e Maria no ataque fulminante fazer o que determino. acabou-se o seu reinado. - Peguem ali o norcótico Morreu Maria Bonita e levem uma porção junta ao Rei do Cangaço lá chegando narcotizem as duas almas subiram a mulher do Lampeão voando para o espaço o marido deixem lá num ciclone inesperado a mulher me tragam cá Lampeão subiu pegado que eu tenho precisão. com Maria pelo braço. Tragam Maria Bonita 2 e Lampeão eu não quero Diz a lenda que os cristãos que ele é muito perverso 215 muito pior do que Nero com a mente indignada já teve aqui uma vez compreendeu a cilada e o que ele me fez saiu igual furacão. Nada bom dele ou espero. Quando chegou nó portão Quando Lampeão dormia do inferno, foi gritando: O sono do meio-dia - seu Lucifer desgraçado os diabos lá chegaram vá logo se preparando narcotizaram Maria com sua fuzilaria e num transporte moderno se não me entregar Maria a levaram pro inferno vou a tudo incendiando. na tarde chuvosa e fria. Lampeão foi agarrando Lampeão não pôde ver com toda disposição quando levaram Maria o diabo "Carrancudo" porque passaram narcótico que estava no portão no nariz quando dormia e disse ou deixa eu entrar não viu nada que passou-se ou hoje aqui vai se dar pois ele só acordou-se a maior revolução. na manhã do outro dia. Disse o cão: só se você Ele gritou por Maria pisar no seu esqueleto correndo até o jardim se quer ver experimente disse: ela me deixou que nada bom lhe prometo vai ser o meu triste fim a você não considero do seu amor sou cativo sendo aço eu destempero qual terá sido o motivo sendo de bronze eu derreto. dela me deixar assim? 5 4 Lampeão foi agarrando Mas Lampeão foi sentido o diabo péla guela naquela ocasião e disse seu coisa ruim um grande cheiro do enxofre abre logo esta cancela com mistura de alcatrão fique fora que eu entro 216 que minha volta é por dentro Lücifer gritou avança igual pavio de vela peguem este valentão Lampeão entrou lá dentro os diabos investiram aberturou Lucifer todos de armas na mão dizendo seu condenado de facão, foice e espada não é como você quer numa luta encarniçada a minha brigada é preta enfrentaram Lampeão. mato um milhão de capeta mas levo a minha mulher. Nisto um diabo velho querendo ali se mostrar Disse o diabo: leva nada partiu para Lampeão pode vir com a morrinha mas foi só pra se acabar. Maria daqui não sai Lampeão lhe disse agüente porque ela j á é minha comigo a brigada é quente vá já embora e me deixe briga quem sabe brigar. que eu vou comer o peixe e você come a espinha. Quando a luta terminou-se Quando ele disse isto ficou tudo esbagaçado Lampeão o agarrou todos móveis do inferno e disse: seu molambudo ficou tudo revirado vou lhe mostrar quem eu sou nessa hora Lampeão você já está fedendo foi encontrar o chefão pode já ficar sabendo tremendo e todo mijado. que sua hora chegou. 7 6 Lampeão pegou o diabo O diabo deu um grito e disse: seu parasita que o inferno estremeceu me diga logo onde está chegaram tanto diabos minha Maria Bonita que o gabinete se encheu se me desobedecer Lampeão estava só terá por certo morrer mas mandou balas sem dó com sua corja maldita. que o inferno escureceu. O diabo implorando disse: 217 não me mate Lampeão de alegria, dizendo que sua mulher está oh! que momento bendito trancada ali no porão que você veio meu amor, você tem todo direito me libertar deste horror ela vai do mesmo jeito das garras deste maldito. você ganhou na questão. Lampeão disse ao diabo: Lampeão lhe disse então: por sua intenção maldita me leve onde ela está você é quem vai ficar se me fizer traição nesta prisão esquisita aqui mesmo morrerá para saber respeitar disse o diabo obediente e não querer conquistar seja mais calmo e prudente minha Maria Bonita que levarei você já. Ali o diabo ficou Lampeão saiu pegado amarrado no porão com diabo na cintura Lampeão disse a Maria até um elevador veja que situação em uma saleta escura esta nossa sem pousada, ele apertou num botão sem moradia, sem nada foram descendo o porão sumiram na amplidão. com mil metros de fundura. 8 Maria Bonita estava trancada lá no porão em um velho quarto imundo quente sem ventilação desde o piso até o teto era infestado de inseto mosca, pulga, escorpião. Quando avistou Lampeão Maria soltou um grito! FIM 218 8.11. LAMPIÃO, SUA VIDA E SUA MORTE Apolônio Alves dos Santos 219 Agora, caros leitores Suas terras eram poucas Me prestem bem atenção E de pouca criação Para entender o relato Nós como eram tropeiros Desta minha narração Ganhavam muito dinheiro Concentrem bem a memória Nas viagens do sertão. Que vou contar a história Do famoso Lampião. Já os outros fazendeiros De gado ninguém contava Nascido em Serra Talhada Suas terras eram muitas Numa fazenda rural Aonde a vista alcançava Aprendeu desde menino Quase tudo possuía O trabalho artesanal Seus bens eram maioria Com a perfeição de ouro Mas dinheiro lhes faltava. Moldando as peças de couro Em arreios de animal. Por serem tão vaidosos Os Ferreira sempre andavam Também foi grande vaqueiro Muito cheirando a perfume Ágil e inteligente Que nas viagens compravam Pegava boi na caatinga E todas festas que iam Bravo sem nunca vê gente As moças lhes perseguiam Logo que o boi se espantava E só a eles paqueravam. Que o tropé começava Ele partia na frente. Além da boa aparência Que despeitava atenção Trabalhou como almocreve Vestiam melhores roupas Viajando noite e dia Das feiras da região Com seu pai e seus irmãos E sempre que viajavam Levando mercadorias Por onde eles passavam Andavam de feira em feira Sobrava admiração. Por isso é que os Ferreira Todo o Sertão conhecia. Com isso os outros rapazes Sentiam-se enciumados Os Ferreira eram pobres Vendo a fama dos Ferreira Para aquela região Crescendo em todos os lados 220 Só pensavam de má fé Assim começou a briga. Procurando qualquer pé Para acusá-los culpados. Depois do caso chocalho Bastava qualquer asneira Um dia andando no mato Para haver desavença Zé Ferreira percebeu Com a família Nogueira Um chocalho amassado Chegando a brigar armado Que algum animal perdeu Quando saiu baleado Ele pra casa levou Um da família Ferreira. Depois que desamassou Boiou num animal seu. Com Antonio baleado Zé Ferreira disse então Não sabia Zé Ferreira Vamos embora daqui Que isso ia dar galho Antes que aumente a questão Quando os Nogueira souberam Isso não saí findar bem Tiveram pouco trabalho Conheço os filhos que tem Encheram na região Aqui não vai prestar não. Que os Ferreira ladrão Nesse tempo Lampião Tinham roubado o chocalho. Começou se interessar Já com alguns cangaceiros Quando os Ferreira souberam Que existia por lá Dessa mentira medonha E o seu pai preocupado Tentaram em todas formas Pôs a família do lado Mostrar que tinham vergonha E partiu pra outro lugar. Com os Nogueira insistindo Terminaram discutindo Foi morar em Alagoas E começou a enronha. Pra se livrar da questão Mas sua mulher doente Começou mode um chocalho Sofrendo perturbação Essa questão tão antiga Sentindo peso da dor Com José de Saturnino A velha não aguentou Iniciou-se a intriga E morreu do coração. Um debochava de cá Outro xingava de lá Não estando satisfeitos 221 Os Nogueira se juntaram Já se notava o darão Com a forçada volante Foi de tanto clarear Pra Alagoas marcharam Que passaram a lhe chamar E com instinto assassino Como grande Lampião. Logo o pá de Virgolino Sem piedade mataram. Tão logo Sinhô Pereira Um pouco cansado estando Zé debulhava um milho Resolveu ir viajar Sentado ao lado de fora Pra voltar num sabe quando Guando os Nogueira chegaram, E ao deixar o sertão Num impulso sem demora De uma vez Lampião Começaram urra tiroteio Tomou de conta do bando. Acertando o velho em cheio Que morreu na mesma hora. Já estando no cangaço O famoso Virgolino A morte de Zé Ferreira Seu mano Antonio Ferreira Foi grande causa que fez Seguiu no mesmo destino Virgolino Cangaceiro Para engrossar a fileira Com toda altivez Seguiu na mesma carreira Juntou-se a Sinhô Pereira Ezequiel e Livino. E foi ser na capoeira Cangaceiro de uma vez. O nome de Lampião Foi crescendo em todo canto Virgolino era valente E a sua cabroeira Tinha boa pontaria Sempre aumentando de tanto Se orientava no tempo Que aonde eles passavam Todo sinal conhecia Todos se admiravam Na luta contra o inimigo E provocava espanto, Na caatinga era uni perigo Pois com ele ninguém ia. Assim seguiu Lampião Por esse sertão treiteiro Todos se admiraram Quando tinha precisão Corri a sua empolgação mandava pedir dinheiro A noite quando atirava Já tinha os que lhe mandavam 222 É o que os macacos chamavam Era muito estrategista Normalmente de costeio. Virgolino Lampião Num tinha medo de nada Mas havia fazendeiros Nas veredas do sertão Ricos que nada faltava Nunca esquentou a moringa Lampião pedia ajuda E no meio da caatinga E este quando negava Rugia feito um leão. Aborrecido ele vinha Queimava tudo que tinha Sempre dividiu seu grupo Outras vezes lhe matava. Pra não ser surpreendido Já chegando em casa pobre Quando a volante o seguia Se muita fome trazia Ele mudava o sentido mandava fazer comida Ali seu bando escapava E depois que ele comia E o inimigo ficava Pra compensar seu empalho Dentro do mato perdido. Pagava todo trabalho Com uma alta quantia. Às vezes ele deixava Um grupo numa trincheira Se alguém lhe entregasse O resto seguia em frente Ao seu perseguidor fazendo muita zueira Este pagava com a vida Quando a volante passava E outras vezes com dor o cerco então se fechava Mas ele sempre matava massacrava a tropa inteira. Toda vez que encontrava O tal do rastejados. Teve início em Pernambuco Essa história que um dia Se um cabra atrevido Migrou para Alagoas, Desrespeitasse um chegado Sergipe e então Bahia Desonrasse sua filha E pra ver como era forte Bastava vir o recado A Rio Grande do Norte Quando Lampião chegava Lampião às vezes ia. De duas uma: ou casava Ou o obra era capado. Os macacos da polícia Diziam que Lampião 223 Matava muitos soldados E na constante rotina Era perverso e ladrão Faziam da carabina Quando enfrentava a volante Sua fiel companheira. Quem vacilasse um instante Morria sem compaixão. E mesmo na caatinga O bando era animado E à Lampião dizia Quando o coito era seguro Que a volante porém Que estavam sossegado Eram macacos nojentos Eles faziam forró Veacos como ninguém Dançando numa perna só “Tenho mesmo é que os matar Originando o xaxado. Pois se eles me pegar Eles me matam também”. Como não tinham mulher Era de arrua na mão De tanto ser perseguido Eles faziam uma roda Não podia trabalhar Arrastando o pé no chão Pedia sempre a quem tinha E o chiado que fazia E quem quisesse lhe dar, Direitinho parecia Esse tinha proteção Com o xaxear do feijão. Na hora duma aflição Lampião vinha ajudar. Assim surgiu o xaxado A dança de Lampião Era uma vida medonha Que não usava uma dama Na caatinga andando a pé Nem se dançava em salão Se tinha poucos amigos E se num dado instante E muito menos mulher Aparecesse a volante Comida só o que tinha: Tavam de arma na mão. Bode assado com farinha Rapadura e outros quaisquer. Mas um homem sem mulher E um sapato serra meia Até então no cangaço Se dana fazendo calo Mulher nem de brincadeira De mostra é uma coisa feia Quando sentiam vontade Por isso é que Lampião Iam buscar pela feira Resolveu lançar a mão 224 Em uma mulher alheia. Junte só o necessário O resto de tudo esqueça Já estando na Bahia Ela disse: Eu já tô pronta O famoso Lampião Vamos antes que anoiteça Soube que uma mulher Ao sair disse: adeus Zé Lhe tinha admiração E o coitado sequer Casada com um sapateiro Quis levantar a cabeça. Mas ao grande cangaceiro Lhe dava seu coração. E partiu com Lampião Para virar cangaceira Lampião sabendo disso Saiu o marido vendo Ficou logo interessado Sentado numa cadeira Para ver Maria Déia Não foi homem pra agir Resolveu ser apressado Deixou a mulher fugir Se ela foi com minha cara Sem dizer eira nem beira. Lá da Malhada Caiçara Volto com ela de lado. Tiraram toda viagem Sem nada nenhum falar Com a ajuda da mãe dela Ela pensava na vida Lampião agiu ligeiro No rumo que ia dar Chegou montado a cavalo E ele pensava nela Com um bando de cangaceiro Por sertão frágil e tão bela Mas deixou-os no caminho Como ia se adaptar. E se apresentou sozinho Na casa do sapateiro. Mas como diz o poeta Pra ser expresso o amor Ao Lampião ver Maria Não precisa de palavras Sentiu logo uma alegria Gestos ou outro vetor Viu que ela era bonita Se sente no coração Gostou da mercadoria Pois Maria e Lampião Disse: Vá se arrumar Nem a morte os separou. Que hoje vou lhe levar Antes de acabar o dia: Maria sendo a primeira Foi como acender um facho 225 Iluminando seu bando Tinha que pensar ligeiro Que antes só tinha macho O entregava a um coiteiro E junta com Lampião Ou alguém que conhecia. Nas caatingas do Sertão Nunca ficava por baixo. Lampião era católico Sempre fazia oração Assim tiveram uma filha Devoto do Padre Cícero Ele e Maria Bonita Lhe tinha muita atenção No meio da caatinga E quem quisesse morrer Naquela vida esquisita Bastava vim desfazer Ele mesmo batizou Do Padre Cícero Romão. E Maria colocou Seu nome de Expedita. Sempre ia ao Juazeiro Pra visitar seu padrinho Lampião sempre dizia E sempre pedia a ele Que no cangaço menino Pra não lhe deixar sozinho Dava motivo a volante E pedia vez em quando Pra saber do seu destino Pra abençoar seu bando Além do grande empalho E bendizer seu caminho. O choro é como chocalho Que soa mais do que sino. Quando a Coluna Prestes Andava o Brasil inteiro Por isso disse a Maria Que passou pelo sertão Nós não podemos criar O Padre ficou cabreiro Procure um homem de posse E mandou logo o recado que possamos confiar Pra Lampião vir vexado Aqui não tem segurança Defender o Juazeiro. O jeito é dar a criança Pra um coiteiro cuidar. Ao receber o recado Lampião não demorou Assim era no cangaço Juntou seus cabras ligeiro Quando um menino nascia Pra Juazeiro rumou A mãe não tinha direito Se o padim mandou chamar De amamentar sua cria Nós não podemos faltar 226 Ao nosso protetor. Um certo dia o bando Descansava na ribeira Chegando no Juazeiro Na disputa de uma rede O bando de Lampião Num clima de brincadeira Tratou logo em procurar Luiz Peão ao se sentar O Padre Cícero Romão Viu sua arma disparar O Padre disse: vem cá Matando Antonio Ferreira. Que eu vou lhe apresentar Ao chefe da nação. Lampião tinha saído Com assuntos pra tratar Contaram que a coluna Avisaram a Luiz Pedro: Tava invadindo o sertão Fuja enquanto ele não tá Uma tropa comunista Se apresse, dê no pé Representante do cão Que depois que ele souber Se você nos defender Por certo vai lhe matar. Nós entregamos a você Patente de Capitão. Luiz Pedro disse a eles Daqui não arredo um passo Já estando com a patente Se tiver de morrer, morro Lampião formou trincheira Mas não escondo o que faço Mas lhe disseram que estava Eu não matei porque quiz fazendo grande besteira Foi o destino infeliz Quando notou que o rival Que lhe prendeu com seu laço. Tinha seu mesmo ideal Voltou para capoeira. Quando Lampião chegou Luiz Pedro tomou pé Dois irmãos de lampião Disse: Eu matei seu irmão Foram mortos por volantes Sem nem ao menos dar fé E outro por insucesso Sei que é um drama ruim Com um disparo inconstante Mas pode fazer de mim E sofrendo a consequência Tudo que você quiser. Teve força e competência Pra levar o grupo adiante. Lampião muito abatido Suspirou e disse a ele: 227 Antonio era um irmão Entre Sergipe e Bahia Que eu confiava nele Lugar onde em poucos dias Só tem uma solução Houve a batalha tirana. Tu se tomar meu irmão E ficar no lugar dele. Nisso Curisco gritou: Eu não gosto desse assunto Luiz Pedro emocionado Quem quiser ir pra lá, vá Disse: Grande Capitão Eu não vou nesse adjunto De hoje em diante somos Não que eu queira ser melhor Duas almas num coração Mas lugar de entrada só Até na hora da morte É uma cova de defendo. Se essa for nossa sorte Ficam os dois corpos no chão. Mas Lampião confiado Num coiteiro que ele tinha Lampião tinha inimigo Chamado Pedro de Cândido Que não largava seu pé Pois toda vez que ele vinha Davam surras em coiteiros Ficava com segurança Homem, menino e mulher Promovia até festança Quem sempre esteve na frente Com vinho, bode e galinha. Foi Zé Refino tenente E as forças de Nazaré. Assim seguiu Lampião, Sem Curisco e sem Dadá Teve todo seu reinado Para a Fazenda Angicos O Capitão Virgolino Querendo enfim descansar Fez tudo que desejava Numa grota de pedreira Neste sertão nordestino Logo depois da fronteira Ele traçou sua sorte Quase ninguém ia lá. Até na hora da morte Como lhe quiz o destino. Alguém mandou um bilhete Para avisara volante Já se sentindo cansado Nele escrito: boi no pasto Da vida cotidiana Venha pra cá nesse instante Avisou que ia acampar E pra poder não falhar Perto das terras baianas Trataram de convocar 228 Um cabra mais atuante. Na noite antecedente Maria foi conversar O tenente Zé Rufino Com Sila de Zé Sereno O maior perseguidor As duas a lamentar Nunca conseguiu ter êxito E no escuro que tinha Lampião nunca deixou Sila viu uma luzinha Por isso foi descartado Acender e apagar. E João Bezerra chamado Pra comandar sem temor. Contou a sua parceira O que havia notado Lampião tinha mandado Ela disse é vagalume Pedro de Cândido comprar Tem muitos pra esse lado Algumas mercadorias E Sila se conformou Que ele ia precisar E lá mais Zé se deitou Porém dois dias passou-se Sem nada ter lhe falado. E nada Pedro lhe trouxe Começou desconfiar. Na verdade eram macacos Que vinham se aproximando Avisou a cabroeira Passaram a noite todinha Aqui não vou ter demora Ao redor se entricheirando Mandei Pedro fazer compra Antes do dia raiar Não voltou até agora Tava tudo em seu lugar Está preso por ai Todos já só esperando. Hoje a gente dorme aqui Amanhã nós vamos embora. Quando o dia amanheceu Lampião já acordado Lampião tinha razão Mandou alguém pegar leite Pedro estava amarrado Numa fazenda do lado Não aguentando o massacre Deu a alguém uma vasilha: de tanto ser torturado Vá pegar água na trilha Disse tudo que sabia Para cuidar do grolado. Mostrou por onde se ia Onde ele estava acoitado. Primeiro foi Amoroso Que acertaram de cheio 229 Depois ninguém viu reais nada Se lembre do trato seu Era grande o tiroteio Pois Lampião já morreu Ali tudo desabava Só quero ver sua ação. Porque a bala cortava O que tivesse no meio. Luiz Pedro ouvindo isso Sentira um fogo nas mãos Sila saiu avechada Voltou pra dentro do cerco Quando acordou meio trôpa Pra juntar-se ao capitão Enedina lhe seguiu Ao lembrar do trato feito Infelizmente deu sopa Levou um tiro no peito Levou um tiro e caiu E morreu com Lampião. Foi quando Sila sentiu Seus miolos em sua roupa. Enfim morreu Lampião Ele e Maria Bonita Mais na frente eia encontrou Mais nove cabras do bando O colega Candieiro Numa manhã tão aflita Que baleado no braço E mesmo os que escaparam Se arrastava o tempo inteiro O cangaço ali deixaram Diante todo perigo De forma muito esquisita. Pegou a arma do amigo Então fugiram ligeiro. Depois que cessou o fogo Estava feita a desgraça O valente Luiz Pedro Pegaram tudo que tinham Que tinha oração forte Sem nem baixar a fumaça Conseguiu furar o cerco, Pra que o povo reconheça Ia escapando da sorte Cortaram as onze cabeças Mas naquela ocasião E expuseram na praça. Lembrou que com Lampião Tinha um acordo de morte. Os soldados da batalha Depois que tudo pegaram Maria Bonita disse: Alguns ficaram foi ricos Tu não disse a Lampião Com o que eles deixaram Que aonde ele morresse E como foram valentes Os dois ficavam no chão Todos ganharam patentes 230 Pela luta que ganharam. A 28 de julho Essa tragédia se deu Também morda o cangaço Que Lampião ascendeu E hoje a sua memória Está expressa na história Que o próprio povo escreveu. Se foi herói ou bandido Respeitamos a memória Ele marcou sua época Escreveu a sua história O que pensou que o venceu Ao lhe matar estendeu Pra sempre a sua vitória. 231 8.12. VIRGÍNIO O JUIZ DO GRUPO DE LAMPIÃO Gonçalo Ferreira da Silva Aglae com raro talento foi feliz nesta abordagem ao referir-se a Virgínio sua fibra, sua coragem e o perfil psicológico da estranha personagem. Ao falar de Vila Bela atual Serra Talhada na terra pernambucana da capital afastada por estranha sensação a nossa alma é tornada. Foi na então Vila Bela por tradição explosiva e de vocação política efervescente e ativa responsável, certamente, por tanta carga emotiva Terra de homens que, às vezes, sem plantios, sem colheitas vencem desafios, passam por situações estreitas no entanto morrem de velhos fazendo as coisas bem feitas. 228 Talhada para a política extremamente inflamada para discursos veementes para batalha acirrada foi sempre assim Vila Bela para proezas talhada. Para defender a honra em batalha suicida a presença da peixeira é normalmente exigida em que os desafiantes não raro acabam sem vida. Portanto berço ideal para Virgínjo, e propício ao juiz do grande grupo da função no exercício frio, justo e decisivo desempenhar seu ofício. Para julgar suas vítimas transformava-se em algoz sem o mais leve resquício de sentimento na voz dando uma vazão selvagem ao seu instinto feroz. Chefe do estado-maior e homem de muita ação era também o juiz cuja elevada função desempenhava por ser 229 cunhado do Lampião. Era casado com Amélia uma irmã de Virgulino assim cunhado e irmão de ideal e destino, credenciais que fizeram de Virgínio um paladino. Ao extremo justiceiro rigorosamente atento era com palavras lentas que fazia o julgamento premiando ou condenando conforme o merecimento. Às vezes surpreendia como por ocasião do episódio em que Lídia pobre de inspiração humilhou José Baiano com torpe e vil traição. A saltitante e fogosa mulher de José Baiano deitada com Bentivi cometeu fatal engano: foi no colóquio amoroso vista por cabra tirano. Este levou a notícia a Zé Baiano que quis fazer justiça ali mesmo na presença de Concriz: matou com furor medonho 230 a traidora infeliz. Bentivi voltou dois dias depois do acontecido cabisbaixo, envergonhado, hesitante, precavido porém foi, sem restrição, ao grupo reconduzido. Zé Baiano agigantou-se numa ameaça feroz mas do capitão, severo, ouviu-se a potente voz: -O grupo tem um juiz não um furibundo algoz. Bentivi no mesmo instante foi conduzido à presença do rigoroso juiz que sem ódio, sem ofensa pacificou os presentes sem a menor desavença. Bentivi serenamente declarou: Senhor juiz eu quis Lídia, na verdade, e ela também me quis, ela fez comigo o mesmo que com ela eu também fiz. - Portanto em nome do amor temos que ser perdoados, se errei não foi sozinho fomos os dois os culpados pecado que só cometem os seres apaixonados. 231 Virgínio achou o discurso de Bentivi conclusivo e disse a José Baiano: Você é intempestivo mas acho que Bentivi deve continuar vivo. Da decisão assumida com habilidade e tino resultou que Zé Baiano sem cometer desatino liderando um novo grupo buscou seu próprio destino. O pacifista Virgínio era muito respeitado, o exibicionismo não era seu aliado, assim teve a confiança da Lampião, seu cunhado. Os cabras de Lampião previamente escolhidos para o primeiro escalão recebiam apelidos e era por tais alcunhas que ficavam conhecidos. Tinha Virgulino os cabras debaixo do seu comando palmatória, ferro e faca só eram usados quando, tinha ordem de Virgínio disciplinador do bando. Vírgínio ensinava ao próprio 232 Lampião: Não desacate por nada seu semelhante se for necessário mate mas não bata em sua cara pois em homem não se bate. O pensamento avançado, o tratamento fraterno, cabelos louros e lisos, na boca um sorriso eterno renderam-lhe certamente o apelido: Moderno Eram os crimes monstruosos pelos cabras praticados, por Lampião aplaudidos, os métodos cruéis usados em ocasiões diversas, por Virgínio condenados. O cangaço no Nordeste não teve um longo reinado mas foi o suficiente para deixar registrado capítulo que certamente nunca será olvidado. No estado da Bahia em batalha suicida o juiz dos cangaceiros sem salvação, sem saída foi fazer seus julgamentos do outro lado da vida. A NEXOS II – FOLHETOS CONSULTADOS 233 MARIA BONITA – MYRIAM FRAGA Esta noite em Angico Não quero teu braseiro, A brisa é calma. Tua intensa No silêncio farfalham Cintilação que queima Minhas anáguas Meus vestidos. Como farfalham asas e no escuro minha carne Só quero a tua volta cheira a mato. Tua presença Iluminando a noite Vem, meu amor, e lavra este roçado como quem quebra Que me cerca Como uma luz acesa No postigo. Um cântaro, Como quem lava a casa; Teus dedos como setas Águas frescas na tarde. Apontam meu destino: Meu caminho Tuas limpas carícias Na planta de teus pés; Teus dedos como pássaros Meu horizonte E teu corpo que arde No risco de tuas mãos Como estrelas no espaço. E meus cabelos esparsos Sobre a relva em que me habitas. Vem, meu dono, meu sócio, Pasto de aves meu corpo Meu comparsa, Que trabalhas Desarma o teu cansaço, Como quem corta e lavra. Desata a cartucheira, A noite é farta, Desata a cartucheira, Como besta no cio. Teu campo de batalha Sou eu. A noite é vasta Por um momento, Vem devagar Esquece o que te mata E habita meu silêncio - Fúria e falta -, 234 Como se habita um claustro. E enquanto a noite é calma, Vem e apaga, Teus beijos como Lâminas. Como espadas. Na pele do meu peito, Esta fome sem data. ANEXOS III - OUTROS OS PRIMEIROS DIAS NO CANGAÇO Saímos, eu e os demais do bando, pelas veredas quase fechadas dacaatinga, sem destino, todos caminhavam calados. Nenhum comentário. Eu parecia estar em outro mundo, triste, isolada da minha família, desiludida e amedrontada. Não falava, apenas prestava atenção a tudo que se passava ao meu redor. Não conhecia aquela gente, todos estranhos, dava vontade de chorar. Era um estado de choque. Andamos o dia todo a pé. Ao meio dia, eles assaram carne e comeram com farinha de mandioca. Eu não me alimentei, não tinha fome, estava desolada. À tardinha, Nenen, mulher de Luiz Pedro, se aproximou de mim para conversar. Tive uma reação diante daquela situação: uma crise choro tomou conta de mim. Então ela disse: – Não chore que é pior. (...) Ilda Ribeiro de Souza (Sila). Memórias de Guerra e Paz, 1995, p.24. AS MULHERES DO CANGAÇO Rosa Bezerra As mulheres no ou do Cangaço servem, do ponto de vista psicossocial, de referência num estudo maior sobre gênero e direitos femininos. Ou seja, numa abordagem psicológica podemos observar que as ditas cangaceiras não participaram de luta armada nem de combates, exceção de Dadá nos oito meses finais de sua convivência no bando de Corisco onde passou atuar com arma longa pela impossibilidade de o companheiro atirar. As mulheres 235 que, na maioria das vezes se incorporaram ao Cangaço, o fizeram por vontade própria e não tiveram aí, atividades domésticas como as mulheres de seu tempo. No cangaço, as tarefas eram dividas pelos combatentes, o que demonstra uma subversão do tradicional da época. Mulheres jovens e bonitas, ousaram diminuir o comprimento das saias, ornamentaram-se com cores e enfeites, saindo do anonimato cinzento à que eram submetidas as mulheres casadas sertanejas, proibidas de mostrarem-se. As diversas atitudes apresentadas pelas cangaceiras nos remetem a um tipo de pré-feminismo gestado na caatinga: sem obrigação de atividades domésticas, sem um lar para cuidar, sem filhos para criar, a mulher no Cangaço ressignifica seu perfil psicológico, até então regido pelo modelo hegemônico de mãe e dona de casa. O gesto de Lampião ao posar para filmes e fotos ao lado da companheira e também permitindo que as outras mulheres se exibissem às lentes do árabe Benjamin, significa o resgate do feminino, trazendo à luz da imprensa da época o papel digno que a mulher detinha no bando, originalmente uma confraria de guerreiros machos. Vale frisar que, na época, apenas mulheres da elite dominante eram chamadas a posar para fotos, com adereços e joias. A presença feminina no Cangaço sem que fosse vítima de agressões físicas pelos companheiros (exceção para a traição marital), revela um tipo de família nômade em que a mulher era colocada em segurança durante as refregas, e demonstrando que as cangaceiras saíram da periferia de suas vidas para tornarem-se “sujeitos” de sua trajetória não permanecendo como coadjuvantes na história de outrem. EU E MARIA BONITA Wanessa Campos “Acorda, Maria Bonita, levanta e vem fazer café ...” Escutava com assiduidade a musiquinha na minha meninice em Triunfo, Sertão de Pernambuco, a minha cidade. E, diante da curiosidade infantil, ficava a perguntar a mim mesma quem era essa Maria dorminhoca, que precisava ser despertada para fazer o café? Mais adiante, ainda menina, ouvindo as histórias do cangaço, fiquei sabendo que a Bonita era a mulher de Lampião [...]. Já adulta, formada em jornalismo e morando no Recife, fui trabalhar exatamente numa editoria regional e, fatalmente, iria me deparar com fatos nordestinos. O cangaço, seguramente, não seria uma notícia fora do contexto. Em 1991, em Serra Talhada, terra de Virgulino Ferreira, houve um plebiscito em torno de uma pergunta: “Lampião era herói ou 236 bandido?” Dependendo do resultado, ele teria uma estátua na sua cidade. A maioria disse sim, mas a estátua ainda não foi erguida. Na verdade, ele não foi herói nem bandido, mas história. Diante de tão importante acontecimento, comecei a ler sobre o cangaço. Fiquei tão deslumbrada que me apaixonei pelo tema. Fiz inúmeras reportagens e Maria Bonita passou a ser uma figura que mereceu minha admiração. Com a proximidade do seu nascimento, decidi escrever sobre essa mulher tão corajosa, tão desafiadora no seu tempo que rompeu paradigmas, virou musa, mito e fonte de inspiração até hoje. Pesquisar sobre a mulher do capitão talvez tenha sido a minha maior dificuldade profissional. As imprecisões, as contradições da sua vida passaram a ser um desafio. Como “seqüenciar” a trajetória dessa Maria de quem pouco se sabe? (...) O resultado está neste livro em formato de reportagem. (A Dona de Lampião, 2012) Depoimento de Dadá, transcrito da obra de Lia Zatz: “DADÁ: bordando o Cangaço”. É, eu pensava que o ódio que eu sentia por Corisco, a mágoa que trazia dentro do coração, eram tão grandes como o sertão, não iam se acabar nunca. Mas quem é que não acaba amando o homem que carrega a gente no colo pra gente dormir? Ele acabou me vencendo, conseguiu me conquistar, pela maneira como me tratava, suportando todas as minhas grosserias sem mexer um dedo, sem me contrariar em nada. Quando eu decidi virar companheira dele pra valer, aí então viramos carne e unha, nós dois. Eu enfrentava qualquer coisa ao lado dele, nunca deixei ele sozinho num tiroteio com os macacos, fosse qual fosse o perigo, eu estava ali, lutando junto (...) 237