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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL
NEUMA MARIA DA COSTA XAVIER
MULHERES DO CANGAÇO:
UMA LEITURA SEMIÓTICA DO PERCURSO DE CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE
JOÃO PESSOA
2013
NEUMA MARIA DA COSTA XAVIER
MULHERES DO CANGAÇO:
UMA LEITURA SEMIÓTICA DO PERCURSO DE CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras, da Universidade Federal
da Paraíba, na área de concentração Linguagens
e Cultura, linha de pesquisa Semiótica das
Culturas, como requisito para obtenção do título
de Doutor em Letras.
Orientadora: Profª. Dra. Maria de Fátima
Barbosa de Mesquita Batista.
JOÃO PESSOA
2013
23
Xavier, Neuma Maria da Costa.
Mulheres do cangaço: uma leitura semiótica do percurso de
construção da identidade / Xavier, Neuma Maria da Costa Xavier. - João Pessoa: [s.n.], 2013. 234f.
Orientadora: Maria de Fátima Barbosa de M. Batista (UFPB).
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA.
1. Semiótica. 2. Cangaço. 3.Semiologia. I. Título
UFPB/BC
CDU: 81‟22(043)
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TERMO DE APROVAÇÃO
Tese intitulada MULHERES DO CANGAÇO: UMA LEITURA SEMIÓTICA DO
PERCURSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE, defendida pela alunaNeuma Maria
da Costa Xavier, para obtenção do Título de Doutor em Letras, na Universidade Federal da
Paraíba, linha de pesquisa Estudos Semióticosda área de concentração Linguagem e Cultura
e _________________________ no dia __________________, pela
seguinte banca examinadora:
___________________________________________________________
Prof.ª Dra. Maria de Fátima Barbosa de M. Batista (UFPB)
(Presidente – Orientadora)
____________________________________________________________
Prof. Dr. Expedito Ferraz Junior (UFPB)
(Examinador)
____________________________________________________________
Profa. Dra. Marluce Pereira da Silva
(Examinadora)
____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Eugênia Malheiros Poulet
(Examinadora)
____________________________________________________________
Profa. Dra. Marisa Nóbrega Rodrigues
(Examinador)
____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Nazareth de Lima Arrais
(Suplente)
____________________________________________________________
Profa. Dra. Lúcia Maria Firmo
(Suplente)
25
DEDICATÓRIA
Às minhas filhas, Clarice e Beatriz
que me ensinaram a ser feliz.
A todos os meus alunos
Com quem partilhei a teoria
E com os quais aprendi
Os segredos da Pedagogia.
26
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida, e pelo discernimento para descobrir o tempo das perguntas;
A Clarice e Marlos, Beatriz e Thiago, responsáveis pelo combustível infalível: o “afeto”;
A Marina, Luca e os bebês em gestação, pela alegria e inocência – energia renovadora;
A Fátima Batista, paciência e sabedoria, no desdobramento, releitura e ajustes, nesta busca
pelo fio condutor.
Ao meu irmão Jalmeno: solidariedade no percurso operacional;
Aos irmãos e sobrinhos, por perdoarem minhas ausências;
A Adriano Moura e Márcia Carvalho: disponibilidade e atenção para as demandas;
Aos irmãos e sobrinhos, por perdoarem minhas ausências;
Aos amigos, porque acreditaram em mim.
Ao IFPE, compreensão e apoio – ingredientes definitivos para a realização desta meta.
27
Tudo no mundo está dando respostas,
o que demora é o Tempo das perguntas.
José Saramago
28
RESUMO
Propõe a fazer uma releitura do fenômeno do Cangaço, tomando como foco as mulheres do
cangaço, cuja trajetória sociocultural pretendemos investigar, na tentativa de reconstruir o
percurso das representações, entre o simbólico e o real, em busca de uma identidade. Com
relação à base teórica, valemo-nos, em primeiro lugar, da análise semiótica de origem
greimasiana, para focalizar as três etapas do percurso gerativo de significação: nível
semântico profundo, estruturas narrativas e discursivização. Também buscamos apoio nas
rupturas categoriais, preconizadas por Rastier. Finalmente, completamos nosso acervo
teórico-metodológico com as diretrizes de Cidmar Pais, aplicando uma categoria analítica,
denominada discurso etnoliterário. É deste discurso que se alimenta a literatura popular,
transformando o sujeito-enunciador em um ser coletivo, no processo histórico da cultura.
Quanto ao corpus, compõe-se de cordéis, em razão da prevalência de apelos míticos, que
refletem aspectos cruciais da natureza humana. Amparados nessa linguagem alegórica,
pretendemos reunir elementos que apontem o discurso como lugar, ao mesmo tempo, do
social e do individual.
Palavras-chave: Semiótica. Mulheres do Cangaço. Identidade. Cultura popular.
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ABSTRACT
Conduct a re-reading of the Cangaço (an erstwhile type of armed militia/ band of outlaws of the
Northeast in Brazil), focusing on the women of the Cangaço, whose sociocultural pathway it is
sought to investigate in an attempt to reconstruct the route by which they became represented,
between the symbolic and the real, in search of an identity. Regarding the theoretical basis, first, use
was made of the semiotic analysis of a Greimasian origin, in order to focus on the three stages of
the route that generates meaning: the deep semantic level, narrative structures and constructing
discourse. Support is also sought in the ruptures of categories, advocated by Rastier. Finally, the
gathering together of theoretical and methodological issues is completed with Cidmar Pais‟s
guidelines, by applying an analytical category, called ethnoliterary discourse. It is from this
discourse that popular literature is fed, thus transforming the subject-enunciator into a collective
being, in the historical process of a culture being formed. As for the corpus, this consists of cordeis
(a Brazilian form of chap-book), because of the prevalence of mythical appeals, which reflect
crucial aspects of human nature. By being grounded on this allegorical language, we intend to
gather evidence which indicate discourse as a coterminous place of the social and the individual.
Keywords: Semiotic. Women of the Cangaço. Popular culture. Identity.
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LISTA DE ABREVIATURAS
Dor = Destinador
___
Dor = Anti-destinador
S = Sujeito
__
S = Anti-sujeito
Adj. = Adjuvante
Op. = Oponete
Ov. = Objeto de valor
Ø = Inexistência semiótica
PN = Programa narrativo
Sg = Segmento
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Tensão Dialética entre Ser e Parecer ...........................................................
36
FIGURA 2 – Zonas Antrópicas..........................................................................................
53
FIGURA 3 – Percurso narrativo dos sujeitos semióticos...................................................
92
FIGURA 4 – Tensão dialética entre herói vs bandido........................................................
94
FIGURA 5 – Tensão dialética entre oprimido vs opressor................................................
97
FIGURA 6 – Simbiose homem – terra ..............................................................................
103
FIGURA 7 – Percurso narrativo: mulheres do cangaço....................................................
109
FIGURA 8 – Tensão dialética entre Redenção vs Vingança.............................................
112
FIGURA 9 – Estado de conjunção e disjunção do sujeito com o OV...............................
119
FIGURA 10 – Maria Bonita: entre conquistas e perdas....................................................
123
FIGURA 11 – Tensão dialética entre Fidelidade vs Traição ............................................
128
FIGURA 12 – Octógono dos termos Perdão e Castigo......................................................
135
FIGURA 13 - Tensão Dialética entre Justiça e Barbárie........................................................
139
32
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO............................................................................................................
1.1 Apresentação .............................................................................................................
1.2 Itinerário metodológico ............................................................................................
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13
16
2 BASE TEÓRICA: Semiótica e Cultura .....................................................................
2.1 Semiótica: Percurso Histórico...................................................................................
2.2 Discutindo o Conceito .......................................... ....................................................
2.3 Níveis de estudo..........................................................................................................
2.3.1 Nível Semiótico Profundo........................................................................................
2.3.2 Estruturas Narrativas ...............................................................................................
2.3.3 Estruturas Discursivas .............................................................................................
2.4 Percurso da Construção da Cultura ........................................................................
2.5 Semiótica das culturas ..............................................................................................
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35
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39
42
49
3 SITUANDO O CORPUS .............................................................................................
3.1 Cultura Popular: conceito, características, formas de expressão..........................
3.2 Transmissão da Cultura Popular.............................................................................
3.3 O discurso etnoliterário.............................................................................................
3.4 Imaginário coletivo: um saber compartilhado........................................................
3.5 O Cordel ....................................................................................................................
3.6 O Cangaço no Cordel ...............................................................................................
3.7 A mulher no Cangaço ...............................................................................................
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65
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72
74
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4 ANÁLISE SEMIÓTICA DOS FOLHETOS DE CORDEL.....................................
4.1 LAMPIÃO: herói de meia-tigela – Manoel Monteiro............................................
4.1.1 Preliminares ............................................................................................................
4.1.2 Percurso da significação..........................................................................................
4.2 O cangaço sustentado por coronéis - Varneci Santos do Nascimento...................
4.2.1 Preliminares ............................................................................................................
4.2.2 Percurso da significação..........................................................................................
4.3 Cancioneiro de Lampião – Nertã Macedo ..............................................................
4.3.1 Preliminares ............................................................................................................
4.3.2 Percurso da significação..........................................................................................
4.4 Episódio Sertanejo – Paulo Bandeira ......................................................................
4.4.1 Preliminares ............................................................................................................
4.4.2 Percurso da significação..........................................................................................
4.5 A mulher e o Cangaço – Fanka ................................................................................
4.5.1 Preliminares ............................................................................................................
4.5.2 Percurso da significação..........................................................................................
4.6 As Mulheres Cangaceiras Humanizaram o Cangaço – Kydelmir Dantas ...........
4.6.1 Preliminares .............................................................................................................
90
90
90
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95
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105
105
108
113
113
33
4.6.2 Percurso da significação...........................................................................................
4.7 A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita – Manuel Pereira..................
4.7.1 Preliminares .............................................................................................................
4.7.2 Percurso da significação..........................................................................................
4.8 Sombras do Cangaço – Susana Morais ...................................................................
4.8.1 Preliminares .............................................................................................................
4.8.2 Percurso da significação...........................................................................................
4.9 Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás – JBARROS...........
4.9.1 Preliminares .............................................................................................................
4.9.2 Percurso da significação...........................................................................................
4.10 Lampião vai ao inferno buscar Maria Bonita – Apolônio Alves........................
4.10.1 Preliminares ...........................................................................................................
4.10.2 Percurso da significação..........................................................................................
4.11 Lampião: sua vida e sua morte – Gilvan Santos ...................................................
4.11.1 Preliminares ...........................................................................................................
4.11.2 Percurso da significação..........................................................................................
4.12 Virgínio: o juiz do grupo de Lampião – Gonçalo Ferreira da Silva..............
4.12.1 Preliminares ...........................................................................................................
4.12.2 Percurso da significação..........................................................................................
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116
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125
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132
132
133
136
136
137
5 RESULTADOS ...........................................................................................................
140
6 CONCLUSÕES ...........................................................................................................
7 REFERÊNCIAS .........................................................................................................
7.1 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................
7.3 DOCUMENTÁRIOS..................................................................................................
8 ANEXOS ......................................................................................................................
144
148
148
155
156
13
1 INTRODUÇÃO
1.1 Apresentação
O momento histórico-cultural do Brasil, em meados do século XIX, expõe um quadro
de representações sociais que insiste em povoar o imaginário coletivo, gerando, em
consequência, um universo referencial vulnerável à ativação de modelos estereotipados. São
imagens e símbolos decorrentes muito mais das construções narrativas fabulosas do que de
relatos históricos de teor racional. Essas simulações vão-se transformando em rótulos
avaliativos, reforçados pela linguagem e alimentados por uma tradição messiânica.
Eis um conjunto de fatores, por si só, responsáveis pela fabricação da realidade, e
sempre mais influentes quando se trata de rupturas locais e temporais, que permitem
construções reflexivas e éticas. Estas duas fronteiras (espacial e temporal) já são marcadas
pelas tensões sociais: de um lado, o tradicionalismo agrário, representado pela oligarquia
rural; do outro, as emergentes ocupações urbanas, com anúncio de novos estratos
socioeconômicos. Assim, a sociedade nordestina tomou forma, preocupada muito mais com o
poder do que com o desenvolvimento social e econômico.
Esses fortes contrastes da realidade brasileira servem de ancoragem contextual,
quando se buscam as causas da opacidade identitária, teoricamente, uma das contradições
culturais, no período situado entre 1872 e 1930. Falamos em contradição pelo fato de se tratar
de uma época, cuja proposta se baseava na busca da identidade nacional, sob a égide do mito
fundador. As condições que mapeavam a formação daquele povo, porém, não favoreciam sua
emancipação, em nenhum dos campos, seja político, econômico ou cultural.
Para ilustrar tais referências, não podemos subestimar os movimentos sociais do
campo, durante a Primeira República (1889-1930), um longo percurso através do qual se
desenham movimentos caracterizados pela combinação de conteúdos religiosos com carência
social. Ao lado do episódio de Canudos, desconstrução do discurso oficial, na voz plangente
de Euclides da Cunha, também lembramos os causos centrados na figura do Padre Cícero
Romão Batista, mais um meteoro histórico, de natureza messiânica. Finalmente, é a vez de
lembrar a questão que servirá de pano de fundo para a nossa pesquisa – o fenômeno do
CANGAÇO.
Ainda hoje tatuado liricamente em objetos de barro ou em folhetos de cordel, o
cangaço representou para Os Sertões nordestinos um evento de natureza dicotômica:
enquanto para uns a figura de Lampião está associada ao paradigma de herói, como parte da
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tradição do universo lendário-regional, para outros, constitui a lembrança de um tempo de
banditismo sanguinário e cruel. Essa imagem ambígua de herói-bandido ficou conhecida por
várias gerações, transposta para narrativas, em cuja trama foram construídas diferentes
categorias alegóricas.
A pesquisa a que nos propomos também pretende resgatar o fenômeno do cangaço,
localizado em um Nordeste marginalizado, no momento em que a ordem pública começa a
deitar seu longo braço para coagir o pari passu, que corresponde à prática de viver pelas
armas. Data daí o emprego solto das expressões cangaço e cangaceiro, para malsinar um
modo de vida incompatível com uma República que se pretendia “renovadora” (em que
pesem as alianças entre coronéis e cangaceiros).
Um retorno à longa transição das estruturas socioculturais nos proporcionará um
reencontro com as vozes que protagonizaram a “invenção do Nordeste”. Esse evento, como
tantas outras memórias históricas, atravessa a temporalidade da consciência, para se situar no
tempo do discurso, por isso os causos nordestinos são tantas vezes romanceados e, em
algumas reflexões, considerados “simulacro de verdade”.
Como herança dessa vulnerabilidade contextual, a saga do cangaço passou por
diferentes versões, conforme ratifica Vieira (2012, p.21), na sua obra “Coronelismo e
Cangaço no Imaginário Social”.
Essa presença marcante, no nosso imaginário social, não impede que seu
ponto de vista histórico seja conhecido de forma distorcida, indefinida.
Excessiva é a complexidade do fenômeno, que a historiografia do cangaço
tem-se mostrado insuficiente para refleti-la.
Não pretendemos, porém, tomar como foco o estudo do fenômeno, em si, na verdade,
a delimitação do objeto da pesquisa recai sobre a inserção das mulheres, neste turbulento
contexto. Algumas, certamente, atraídas pela aura de heroísmo e da aventura a que aludiam as
narrativas orais. Muitas outras forçadas por circunstâncias adversas, roubadas ao convívio
familiar, como foi o caso de Sila, cujo depoimento melancólico, no livro Memórias de Guerra
e Paz , revela a penosa trajetória dessas mulheres: “Nunca imaginei, algum dia, sair daquele
aconchego tão seguro e afetuoso da minha família [...]” (SOUZA, 1995, p.18).
Seja por vontade própria ou por imposições eventuais, a história das mulheres no
cangaço é marcada por turbulências, tangidas para as caatingas, condenadas à condição de
nômades, pelejando por caminhos íngremes, menos pelo aspecto geográfico e mais pela
dimensão psicológica. Como se já não bastasse a marginalização do bando, o vexame por que
passavam os cangaceiros, elas sofreram duplamente, uma vez que herdaram, por um lado, a
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rejeição da sociedade em relação ao cangaço e, por outro, as aflições agregadas pela condição
feminina, a exemplo da privação da maternidade.
Assim, as mulheres do cangaço foram duplamente amordaçadas: primeiro, em relação
à macroestrutura (tensão entre a identidade individual e a de grupo); segundo, no campo da
micro (identidade ameaçada por um discurso masculino hegemônico). Não resta dúvida de
que são duas tensões dialéticas, com carga suficiente de condicionantes repressivos, para
impedir a emergência de um memorial independente. Em face desse quadro de adversidades,
como ter voz e autonomia para construir sua própria identidade?
Os variados e expressivos adereços, que delimitaram a estética do cangaço, constituem
representações personificadas pela cultura popular, ao mesmo tempo, reveladoras da
resistente identidade coletiva. Essas imagens habitam o inconsciente e estão presentes nas
relações intersubjetivas de enunciação e de enunciado que se manifestam, simbolicamente,
através de mitos e magias. Dessa forma, no imaginário coletivo, as mulheres do cangaço se
escondem sob uma cortina de fantasias, e essas representações comprometem sua
individualidade, ou melhor, seu lugar social. Confirma-se tanto mais essa opacidade se
levarmos em conta a influência do componente religioso, entranhado na alma, tal qual
tatuagem na pele.
Neste cenário messiânico, perpassado por valores e crenças medievais, os cangaceiros
tentavam defender-se com orações que fechavam o corpo “Com as armas de São Jorge/ serei
armado./ Com a espada de Abraão/ serei coberto./ Com o leite da Virgem Maria/ serei
borrifado.” Por certo, podiam até livrar-se dos perigos de consequências físicas, mas não
podiam fugir aos riscos das chagas de ordem social, histórica e existencial. As circunstâncias
contextuais imbricavam de tal forma as fronteiras entre grupo e indivíduo, que era quase
impossível situar desejos e valores singularizados.
Reside aí a problematização: elas viviam entre a cruz e a espada. Carregavam o fardo
decorrente da condição socialmente transgressora, e também estavam sujeitas àquela
opacidade, determinada por ingredientes residuais, culturalmente impostos. Até mesmo o
título de “rainha”, atribuído a Maria Bonita, é mais uma consequência da aura de herói, que
acompanhava Lampião. Ele, condecorado tantas vezes, por medo ou respeito ou admiração.
Ela, a Maria de Déa, já esquecida, um passado apagado e, tal qual o palimpsesto, reescrito
tantas vezes, para servir às fantasias da oralidade.
Partimos, pois, da hipótese de que, desde o momento em que as mulheres deixaram de
ser referências exteriores ao bando e passaram a participar da saga do cangaço, herdaram a
ambiguidade relativa à imagem do cangaceiro, uma dualidade já expressa neste texto: herói
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vs. bandido. O preço também recai sobre a perda da “virtude feminina”, uma mistura de
feição cultural com função histórica.
A pesquisa foi direcionada a partir desse objetivo geral, que focaliza, em primeiro
lugar, as condições contextuais do fenômeno, como macroestrutural, para depois situar as
representações femininas. Nessa direção, propõe investigar a trajetória sociopolítica e cultural
da mulher do cangaço, atuando nas dimensões históricas e, culturalmente construídas, entre o
simbólico e o real, em busca de uma identidade.
1.2 Itinerário Metodológico
O primeiro passo, seguramente, foi o levantamento bibliográfico que contemple a área
de Linguagens e Cultura, especialmente os trabalhos de Rastier (2010), Batista (2004), Pais
(2009), Barros (2010), Bakhtin (1993), Fiorin (2002), Machado (2007), entre outros.
Entendemos que tal aporte teórico orientou minha descrição acerca do percurso dos sujeitos
semióticos, assim também as trocas e conflitos de que é composta a natureza dessas
representações e subjetividades. A abrangência do tema, com foco na ambigüidade identitária,
implica uma simbiose de representações, em que estão imbricadas as noções de pessoa e de
grupo.
Essa multiplicidade de concepções exigiu uma análise em interface entre a
Semiótica e a Cultura Popular. Procuramos, nesta última, uma sustentação para a base teórica,
ao mesmo tempo, um apoio para a análise de símbolos e mitos. E por falar em cultura,
permitam-nos um movimento retroativo para lembrar a ruptura entre o instinto natural e o
fazer-humano, que vai redundar no universo cultural. Daí para as atividades semióticas é um
salto lógico e continuum, já que se trata de atividades que manipulam linguagens, portanto
produtoras de discursos sociais.
Entendemos que a íntima ligação entre linguagem e cultura coloca-se como esteio
deste trabalho, por isso, inevitavelmente, apresenta natureza interdisciplinar. Ora, se
linguagem e cultura implicam-se mutuamente, não se pode questionar aí o diálogo entre a
antropologia, a sociologia e a lingüística.
Em relação à Semiótica, privilegiamos a vertente greimasiana, voltada para a
função semiótica, a partir de um percurso gerativo que vai do nível mais simples ao mais
complexo, passando por um nível intermediário, a saber: (1º) semântica profunda; (2º)
narrativização; (3º) discursivização.
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Na análise da estrutura narrativa, foram identificados os Sujeitos semióticos,
realizando um percurso, em busca do seu Objeto de Valor, ora ajudado por um Adjuvante, ora
prejudicado por um Oponente. Nesse patamar, são registradas as transformações por que
passam os sujeitos quando transpõem a fronteira entre a potencialidade e a ação, ou seja,
quando os valores modais passam de virtualizantes a atualizantes.
Na estrutura discursiva, iniciamos pela análise das relações intersubjetivas de pessoa,
espaço e tempo, de enunciação e de enunciado. Buscamos, na riqueza simbólica dos cordéis, a
revelação dos principais arquétipos do inconsciente coletivo, a saber: o mito do herói em
contraste com símbolos representativos do vilão. O cangaço e as mulheres que nele
ingressaram escondem-se por trás dessa fumaça, provocada pela tensão dialética entre o
paradigma do bem e o paradigma do mal.
Em face da recorrência a elementos teóricos da literatura popular, prolongamos nossa
análise num componente da Discursivização, que é a terceira fase do percurso gerativo de
sentido. Trata-se da figurativização, uma instância do discurso que assume função
representativa e pode ser entendida como ancoragem histórica (conjunto de índices espaçotemporais) responsável pela produção de efeito de sentido da realidade. Esses elementos
concretos são necessários à unidade textual, à medida que materializam e trazem à superfície
o universo das abstrações, localizadas na dimensão mais profunda do texto.
Antes, porém, de explorar esse acervo teórico, tentamos criar um cenário para a
discussão, espaço em que nos ocupamos com conceitos mais gerais, relativos à trajetória dos
estudos acerca da linguagem. Assim procedemos a uma síntese conceitual que transita do
paradigma clássico para as diretrizes referenciais dos tempos modernos. Esse percurso
retomou concepções e eventos, numa sequência que parte da Antiguidade e se aproxima do
moderno, para configurar uma trajetória histórica.
A linguagem, enquanto propriedade constitutiva do ser humano, deve encaminhar
outras discussões, entre as quais, as que se situam no campo da Semiótica. Confiamos nesse
roteiro como esteira de natureza epistemológica mais abrangente, para depois introduzir temas
de teor mais específico. Não ganhariam substância as investigações sobre o percurso da
significação, sem se pontuar, na véspera, algumas questões em torno do funcionamento da
linguagem, até porque seria um apoio para se chegar ao discurso.
Após discorrer sobre a trajetória histórica, continuamos a abordagem teórica,
procurando afunilar a discussão com tópicos situados em limites teoricamente mais estreitos,
uma vez que agregam conceitos imbricados entre o campo do signo e o da significação.
Entendemos que as descobertas, no campo da Semiótica, constituem consequência natural das
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pesquisas iniciadas na Grécia antiga. Em face dessa constatação, conservamos, no mesmo
espaço, as questões de base epistemológica, dedicadas ao exame dos modos de constituição e
de produção do sentido, ao lado daquelas noções das quais se constitui o percurso
greimasiano.
Daí é que partimos para o item 3 do Sumário , ao qual atribuímos a função de “base de
sustentação do corpus”. Nesta etapa, também escolhemos uma abordagem que parte de
concepções mais gerais, por exemplo, Cultura Popular: conceito, características e formas de
expressão, para depois delimitar as discussões, passando pelo Cordel, pelo Discurso
Etnoliterário, até atingir o foco central, que é o Cangaço no Cordel, finalmente, as Mulheres
no Cangaço. Como vimos, é neste espaço que vamos semear o adubo necessário à colheita de
resultados, já que se trata de conceitos relevantes, portanto básicos, para a análise aplicada ao
corpus.
Como convém à estrutura convencional, reservamos para o último tópico os
procedimentos analíticos. Nessa operação, debruçamo-nos sobre um conjunto de textos – um
universo que contempla não só a problemática definida para o trabalho, mas, sobretudo, a
base teórica escolhida para legitimar a tese. O primeiro viés se situa na crise da identidade,
apoiado por conceitos que tentam explicar o universo simbólico da memória social. O
segundo orienta a escolha das categorias que irão fornecer os elementos necessários à
elucidação do problema.
Nesta última parte da Tese – o lugar do encontro da teoria com a prática – procedemos
à avaliação referente à pertinência dos objetivos e das hipóteses. Representa o espaço em que
conferimos os objetivos à luz de uma amostragem, para apontar os resultados, com base nos
recortes escolhidos para análise.
O corpus do trabalho reúne doze cordéis, sujeitos a uma análise semiótica, com
aplicação de categorias extraídas da base teórica. Independente desses recortes escolhidos
para análise, comentamos outros folhetos e também depoimentos, e em todos devemos
antever as marcas das representações do imaginário popular.
Os cordéis analisados, e também os que serviram de reforço para a discussão da tese
foram transcritos de diversas fontes, entre as quais, citamos: 1) O Cangaço na poesia
brasileira, de Carlos Newton Júnior, Iluminuras: 2009; 2) Coronelismo e cangaço no
imaginário social, Erivam Felix Vieira, Sirinhaém-PE, Ed. do Autor: 2012; 3) A mulher e o
Cangaço, Fanka, Governo do Estado do Ceará: 1997; 4) Cordel Herói de meia tigela, Manoel
Monteiro, 2ª Ed. Campina Grande – PB: 2011;5) Sombras do Cangaço, Susana Morais,
Recife: 2006; Lampião e Maria Bonita no Paraíso, tentados por Satanás, folheto de
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JOTABARROS; Lampião vai ao inferno buscar Maria Bonita, de Apolônio Alves dos
Santos, folheto editado pela Universidade Estadual de Feira de Santana.
Os depoimentos, também usados como textos de apoio, foram transcritos de Wanessa
Campos, A Dona de Lampião, Prefeitura da cidade do Recife, 2012; de Ilda Ribeiro de Souza
(Sila), Memórias de Guerra e Paz, Recife: UFRPE, 1995; de um documentário da Rede
Globo: “A Mulher no Cangaço”; de um livro de Lia Zatz “DADÁ: bordando o cangaço”,
Editora Callis, 2004; finalmente, enviado por e-mail, da coordenadora do Núcleo de Estudos
sobre o Cangaço (NEC), Rosa Bezerra.
Continuando a exposição, queremos reiterar que o corpus foi estruturado mediante
dupla direção: em parte, por pesquisa bibliográfica das quais
extraímos as categorias
analíticas; de outro lado, também por pesquisa bibliográfica, fomos colher as amostras,
privilegiando-se as narrativas em cordéis, mas também com consultas a outros gêneros, como
depoimentos e registros na mídia. A pesquisa de campo reuniu o material simbólico além de
elementos messiânicos, através dos quais pretendemos chegar ao percurso gerador de sentido.
Para a construção de um cenário familiar ao corpus, vamos buscar, em Bakhtin (1999),
os elementos contextualizadores da Cultura Popular, por meio da qual se aprende que as
imagens estão, fatalmente, presas ao sentimento da história e da alternância histórica. Para
Bakhtin a palavra está revestida de uma natureza interdiscursiva, social e interativa, por isso o
conceito de linguagem não está comprometido com uma tendência linguística ou uma teoria
literária, mas com uma visão de mundo que, justamente na busca de construção do sentido,
resvala pela abordagem discursiva.
Os estudos sobre a linguagem, por representarem temas transversais, são
absolutamente cúmplices quando se trata de relações socioculturais, mais precisamente,
quando o tema se aproxima do campo da subjetividade. As paixões escondidas nas palavras,
as noções de autoria, a alteridade, enfim, todos os traços discursivos serviram de pistas para
chegarmos à legitimação da hipótese levantada: a crise da identidade feminina,
especificamente, a ameaça à identidade das mulheres do cangaço.
Essa aventura deve ir além do componente lingüístico, além do acaso biográfico,
porque perpassada por valores culturais e existenciais. Ao ultrapassar esses limites
sistemáticos, a compreensão abre-se para dimensões subjacentes, onde se opera com
diferentes saberes. Sob diversos olhares, perseguimos essas respostas das quais dependerá a
conquista de um certo objeto de estudo, que desejamos recriado e livre - a busca do sujeito e
do seu lugar social.
20
Os textos selecionados, sejam depoimentos orais, memória da cultura popular,
registros acadêmicos ou documentários, foram investigados exaustivamente, sempre à luz das
rupturas categoriais previstas nas orientações teóricas em questão. Assim, a análise vincula-se
à noção de cultura à medida que sujeita às zonas antrópicas de identidade, proximidade e
distanciamento culturais. Por outro lado, também está presa a conceitos afins, transitando
entre a Semiótica e a Cultura Popular – um abrangente acervo teórico capaz de dar conta não
só de conhecimentos lingüísticos, mas, sobretudo, de ocorrências das interlocuções vivas da
comunidade de falantes.
A leitura e releitura, bem como o diálogo entre o teórico e o empírico, todo esse
processo amparou as bases da intersubjetividade e do multiculturalismo. O acervo
bibliográfico forneceu os subsídios necessários à problematização e respectivas causalidades e
conseqüências, universo sistematicamente revisitado, de cujo recurso nos valemos, para
agregar também leituras de assuntos correlatos. Esse conjunto de informações foi selecionado
mediante o critério de um núcleo comum, uma espécie de mapa, que nos orientou rumo à
descoberta do lugar social e da voz das mulheres do cangaço. Mais que isso: acreditamos que
esse aparato nos permitiu a difícil tarefa de “juntar os cacos”, em busca de elementos
elucidativos, capazes de nos conduzir à construção da identidade.
Na tentativa de antever respostas às indagações, elegemos algumas categorias
analíticas extraídas de todo o construto teórico discutido. Recorremos aos postulados da
cultura popular, para identificar, através das escolhas, os sinais de pertencimento, os modelos
do cotidiano cultural, enfim, as marcas de subjetividade. Assim, através das imagens e
símbolos, típicos dos cordéis, tentamos reconstruir um perfil, senão com a limpidez desejada,
mas que nos permitisse reunir uma seleção de indícios, que venham atestar essa propalada
opacidade identitária.
Não devemos abstrair desse elenco os traços messiânicos, até porque estão carregados
de valores, que vão representar o conteúdo de que se compõe o imaginário coletivo. Trata-se
de características típicas do gênero cordel, o qual dá visibilidade aos ídolos e fetiches,
flagrados através do discurso etnoliterário, preconizado por Pais (2004).
Aplicando o modelo da tipologia de Pais, confirma-se a prevalência da figurativização
em todos os recortes analisados, significa dizer que o discurso etnoliterário não pode
prescindir dessa linguagem alegórica para fins de ancoragem histórica, até porque esses
apelos míticos refletem a necessidade do povo por imagens idealizadas, enfim, alimentam a
fome popular por fantasia.
21
O universo da pesquisa consta de doze folhetos, iniciando-se o procedimento analítico
por quatro recortes que discorrem sobre o fenômeno em si, o cenário geral, em torno de
Lampião. Os demais cordéis tomam como foco a saga das mulheres, um acervo que nos
fornece elementos específicos, para a elucidação da proposta.
No primeiro quadro, entendido como cenário geral, privilegiamos dois vieses:
partimos do contraponto entre discursos opostos, protagonizando a natureza dicotômica que
marcou a literatura acerca do cangaço; o segundo viés se deteve no aspecto mitológico e no
lirismo que figurativiza o enraizamento, ou seja, a simbiose entre o homem e a terra.
Quanto ao acervo que canta a saga das mulheres, tentamos valorizar os traços que
evidenciam os apelos míticos e simbólicos, para reforçar a hipótese da construção das
representações femininas, sitiadas pela tensão entre a fantasia e a realidade.
Assim, nessa segunda parte do procedimento analítico, selecionamos cordéis em cuja
análise insistimos na investigação acerca da verdadeira identidade das rendeiras que tanto
“ensinaram a fazer renda” e não conseguiram assumir a função histórica de protagonistas da
saga das mulheres no cangaço.
Amparados nesse acervo de concepções, imbricadas segundo um núcleo comum,
reunimos elementos, para vencer a distância entre as hipóteses e a legitimação da tese. Tudo
isso representou um grande desafio, até porque, em alguns momentos, o debate parecia
esgueirar-se pelas trilhas da decifração, uma vez que se trata de uma pesquisa,
inevitavelmente, inclinada para a análise e interpretação das formas simbólicas.
A propalada linguagem alegórica, típica dos cordéis, a que tantas vezes
recorremos neste texto, apresenta uma natureza polifônica, constitutiva do diálogo,
independente da relação de acordo ou da situação conflitante, em que as várias vozes se
encontram. A professora Osakabe (1991, p.7) refere-se a essa polifonia, não esquecendo de
enfatizar a função principal dessa linguagem:
Mas, ressalte-se, não se trata da linguagem vista como simples repertório,
muito menos como conjunto de figuras de enfeite retórico; muito menos
ainda como uma imaterialidade ideológica. Ao contrário, trata-se de uma
linguagem entendida como interlocução e, como tal, de um lado, como
processo, e de outro, como constitutiva (de) e constituída (por) sujeitos.
Se a expressão significativa está contextualizada, o diálogo promovido pelo acervo de
imagens e símbolos não vai comprometer a interpretação. O mais provável é que esse apelo a
formas simbólicas venha a isentar o texto de um caráter racional, predominante nos discursos
22
não-literários, estes marcados pela austeridade racional, para dar vez e voz às referências
sinestésicas, próprias do discurso etnoliterário.
Por razões teóricas e metodológicas, acercamo-nos de temas que envolvem a
complexa construção da memória social, daí a seleção do corpus com a predominância de
cordéis. Sabemos que aí se encontra um suporte de apropriação simbólica de ações históricas,
que buscam, como reflete a pesquisadora Melo(2009, p.71), “os efeitos da emoção no
coletivo, totalmente diferente da fruição de textos dos romances burgueses em que a leitura é
solitária e isolada”.
Caracterizado por essa alegoria, tornou-se o cordel o mais fiel publicitário de
Lampião, e assim procuramos a mesma cumplicidade em relação às mulheres. Fizemos do
cordel um espelho através do qual captamos imagens, na busca de estratégias que nos ajudem
a decifrar o enigma que está por trás da memória, do messianismo e dos elementos da cultura
popular. Dessa forma, toda a atenção se fixa no contexto social e antropológico, de onde
emergem as formas artísticas, um espetáculo semiótico, em cuja perspectiva sempre se
destacará um cenário idealizado.
A fim de dar conta dessas representações, imbricadas entre a macro e a microestrutura,
tivemos que recorrer a uma base comparativa, em cuja construção opera-se um diálogo entre
as partes e o todo. Trata-se de uma dialética segundo a qual só se pode pensar a unidade na
diversidade, daí não ser possível isolar a saga das mulheres de um fenômeno mais amplo, com
a mesma incidência de condicionantes históricos e culturais.
Sobre essa historicidade atualizada e, na busca de uma releitura que privilegiasse
os símbolos e mitos, valemo-nos do apoio de alguns estudiosos do cangaço, entre os quais SÁ
(2011, p. 24), com sua reflexão sobre as narrativas orais:
Criou-se, nesta direção, uma onda global de estudos críticos da memória
histórica, versando sobre a construção da identidade individual e coletiva,
por meio dos usos da memória nas suas múltiplas funções culturais, políticas
e sociais, na narração do passado.
Não há dúvida de que as tramas envoltas nessa figurativização abrigam a
singularidade do momento, à medida que aninham todos os ingredientes religiosos e políticoideológicos, responsáveis pela construção da memória social. Nesse lugar, onde ocorre o
encontro do individual com o coletivo, abrigam-se imagens que refletem as possíveis
dispersões do “eu” e da alma, em direção ao mundo do desejo e da utopia.
De posse dessas diretrizes teórico-metodológicas, bem como dos demais elementos
significativos, explícitos ou subjacentes, tentamos reunir as ferramentas possibilitadoras de
23
aproximação e descoberta do amálgama que ameaça a identidade das mulheres do cangaço.
Como referido, temos clareza do grande desafio, considerando estar o núcleo feminino
imbricado num cenário maior, onde é tênue a fronteira entre o indivíduo e o grupo.
2 BASE TEÓRICA: SEMIÓTICA E CULTURA
2.1 Semiótica: Percurso Histórico
Devemos partir da pressuposição geral de que a linguagem foi a inscrição humana no
mundo, e nenhuma característica é tão inerente à espécie quanto essa que nos faculta a
interação, que nos aprisiona ao outro naquilo que há de mais caracteristicamente humano.
Essa relação do homem com a linguagem sempre foi alvo privilegiado de reflexão, de ciência
e de filosofia. Enquanto chave do homem e da história social, constitui objeto de
conhecimento particular, “suscetível de nos dar acesso não apenas às leis do seu próprio
funcionamento, mas também a tudo o que releva da ordem do social.” (KRISTEVA, 1969,
p.168).
Os filósofos gregos foram pioneiros nas especulações e teoremas referentes à
linguagem. A princípio, com estudos que subsidiavam as aulas de Filosofia, na verdade, a
disciplina foi institucionalizada como “Filosofia da Linguagem”. Depois, vieram os
compêndios, cujos objetivos estavam centrados na Retórica e na Argumentação. Se ali
nasceram as primeiras preocupações com a linguagem, também desse berço vieram as
vanguardistas peças com as quais manejavam com habilidade as formas de argumentação. E
não poderia ser diferente, já que, em praça pública, os cidadãos gregos se aventuravam no
exercício de defesa dos seus direitos democráticos.
Ao mesmo tempo em que se ocupavam em preservar os monumentos literários, as
pesquisas avançaram até as proposições sobre a relação da linguagem com a realidade, um
desdobramento que, segundo Kristeva, atingiu, na Grécia, a sua forma mais perfeita. O
célebre diálogo de Platão, Crátilo (apud KRISTEVA, p.155), dá testemunho dessas discussões
filosóficas, inclusive, retomando certas concepções pré-socráticas acerca da propalada
instabilidade para exprimir o real. Não há dúvida, pois, de que a “Grécia lógica” forneceu os
princípios fundamentais segundo os quais a linguagem foi pensada até os nossos dias.
Os latinos seguiram de perto a tradição dos povos helênicos e contribuíram,
significativamente, para a expansão das pesquisas tanto de ordem filosófica quanto no campo
da gramática. Os eruditos romanos se prenderam à universalidade das categorias lógicas,
24
preestabelecidas segundo a língua grega, e assim não mediram esforços para a transposição
dessas teorias e classificações. Daí surgiram obras clássicas, entre elas, a de Varrão, que
elaborou uma teoria exemplar sobre a linguagem, na sua obra De lingua latina, dedicada a
Cícero (apud KRISTEVA, p.168).
A preocupação com as questões linguísticas irrompeu, nos tempos modernos, porém
com nuances mais direcionadas, contemplando funções, por exemplo, de demarcar e
significar. Dessa forma, coube às teorias modernas agregar aos postulados clássicos valores
específicos, migrando do campo filosófico para outras diretrizes epistemológicas, com a
finalidade de ordenar e definir certos conceitos em torno do signo e da significação. São
ambas noções orientadas segundo estruturas sociais, não atribuindo função às unidades da
língua, quando fora de uma situação concreta de comunicação discursiva.
Ao ultrapassar os limites do puramente lingüístico, esses dois níveis foram ampliados
e passaram a ser entendidos como dimensões relacionais, atualizadas dentro do interdiscurso
social. A preocupação com o plano histórico-ideológico perpassa os estudos sobre
significação, inclusive por enfatizar a natureza interdiscursiva e interativa da palavra.
Tomando como base esses pressupostos, passaremos a revisitar o panorama da semiótica no
século XX, na tentativa de discutir aspectos da enunciação, da história, do discurso, enfim,
dos sentidos na linguagem.
As investigações, no campo da linguagem, como em qualquer outra área da ciência,
passam por retomadas históricas por meio das quais se tenta a utilização de novas
metodologias, para atender aos novos questionamentos. Assim, foram delineados os estudos
da lingüística geral, no sentido em que a entendemos hoje, uma ciência relativamente recente:
seu impulso e desenvolvimento datam apenas da primeira metade do século XX.
Sua origem, entretanto, encontra-se na renovação dos estudos acerca da linguagem,
com a apropriação de novos questionamentos os quais resultaram, no decurso do século XIX,
na constituição da Gramática Comparada. Nascida no momento em que, em todos os
domínios, desenvolvia-se um novo método científico, atingiu resultados notavelmente
seguros, até porque forneceu fundamentos técnicos indispensáveis à estruturação de
disciplinas afins.
A Linguística Moderna, cuja paternidade se atribui a Ferdinand Saussure, fiel a seus
princípios básicos (a língua é uma estrutura, uma rede de relações), apresentou-se
inicialmente como uma lingüística do sistema, lingüística da “langue”, em termos
saussureanos. Utilizando-se da célebre metáfora do jogo de xadrez, caberia ao estudioso
descrever o tabuleiro, as peças de diversos tipos e as regras do jogo. Em termos lingüísticos,
25
isso significa descrever, num determinado estádio da língua, ou seja, sincronicamente, as
unidades pertencentes aos diversos níveis. Foi assim que, durante o estruturalismo, a
fonologia e a morfologia alcançaram avanços significativos.
Com o advento da teoria gerativa (fundada na obra de Chomsky), a sintaxe veio a
tornar-se o centro dos estudos lingüísticos. A semântica, timidamente a princípio, apenas
como componente interpretativo, depois com maior vigor, foi acompanhando essa evolução.
Por volta dos anos 60, com os postulados da Semântica Estrutural bem definidos,
compreendeu-se o paralelismo entre o plano de expressão e o plano de conteúdo.
O projeto de Saussure – uma teoria geral de sistemas de signos – denominado por ele
de semiologia, representou o ponto de partida para que fossem fincados os princípios básicos
da semiótica. Esses argumentos nos convenceram, afinal, de que as contribuições
saussureanas não se limitaram a uma única área, foram além, porque favoreceram a
convivência entre ciências do mesmo campo de conhecimento.
A elaboração da nova ciência da semiologia geral deveria aproveitar o progresso dos
conhecimentos na área de um dos seus ramos, a linguística. A relação entre a semiologia e a
linguística seria, portanto, dupla: primeiro, as leis da semiologia geral são aplicáveis à ciência
dos signos linguísticos; segundo, as leis da linguística são um guia heurístico na elaboração da
ciência dos signos em geral (NÖTH, 1996 p.19). A validade desse caráter interdisciplinar
pode ser justificada pelo fato do objeto de estudo não se desintegrar do tecido da totalidade de
que é parte indissociável.
São prerrogativas que apontam para um novo olhar, através do qual se leva em conta a
relação entre a língua e seus usuários. Vai ganhando terreno, aos poucos, a lingüística
pragmática, cujas diretrizes consolidam não só o sujeito-enunciador, mas também as
condições que estão presentes no modo e lugar da enunciação. Os falantes deixam marcas de
subjetividade, que são interpretadas pelos leitores, atentos ao fato de que as margens do dizer
também dele fazem parte.
Seguindo a linha desse raciocínio, o texto não pode se reduzir a um campo
homogêneo. Considerando-se o diálogo permanente com outros textos, confirma-se a
heterogeneidade constitutiva da linguagem, portanto a multivocalidade como traço essencial.
Para Bakhtin (1999), a palavra está revestida de uma natureza interdiscursiva, social e
interativa, por isso o conceito de linguagem não está comprometido com uma tendência
lingüística ou uma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justamente na busca de
construção do sentido, resvala pela abordagem discursiva.
26
Se analisarmos o texto sob a perspectiva de produção cultural, seguramente,
esbarraremos em um campo de pluralidade, porque encontro de diferentes tipos de linguagens
os quais se harmonizam de forma a construir fronteiras esponjosas. Aliás, a máxima da
abordagem semiótica se assenta sobre essa visão combinatória de sistemas que se impregnam
mutuamente (alguns falam em tradução da tradição), ou seja, compreensão do encontro entre
culturas como uma experiência dialógica.
Quando a linguagem verbal não for capaz de reproduzir o verdadeiro sentido do dito,
quando não for capaz de manifestar com precisão o conteúdo, o poeta deverá recorrer aos
sistemas secundários, com suas ferramentas atualizantes, as quais, aliadas à força da palavra
verbal, vão proporcionar os aspectos necessários à troca. Acerca da incompletude da
linguagem verbal, pronunciou-se Machado (2008, p.27) “[...] afinal, como explicar a
codificação da literatura, da mitologia, do folclore, da religião, das artes em geral à luz de um
único e mesmo processo ou conjunto de signos?”
Porque podemos contar com outros sistemas modelizantes, além do sistema primário –
linguagem verbal – tornou-se possível superar a incompletude do dizer, ao mesmo tempo,
acercar-nos do significado de “Cultura”. Para dar conta dessa problemática, são necessárias
ferramentas que contemplem as funções mais gerais, ligadas à ideia de formação ou
transformação, até aquelas entendidas como artesanais, porque atreladas ao tecnicismo do
“fazer”.
O desdobramento coerente desse embasamento teórico levará ao conceito de “texto
da cultura”, uma nova concepção de texto no campo científico. Além da “unidade de linguagem
em uso”, defendido pela Lingüística Textual, o “texto da cultura” passa pelas ideias semióticas
segundo as quais se constitui espaço de relações onde a codificação da esfera cultura modeliza
o sistema como um texto.
Para as investigações lingüísticas (até a década de 60), o conceito de texto está vinculado
apenas à função comunicativa, porém, para a Semiótica das Culturas, mais do que codificação,
pressupõe-se diálogo e interação, acrescentando-se, portanto, outras duas funções, a saber:
geradora de sentido e mnemônica Lótman (apud MACHADO, 2008, p.31). Esse
desdobramento dialoga com o princípio bakhtiniano de linguagem numa dimensão
sociohistórica: além de produzir sentido, leva-nos à reflexão, à medida que contextualiza os
dados ali retratados, trazendo ideias, anseios, temores, e expectativas de um grupo social.
As ideias aqui reunidas devem tomar como base a noção de língua como forma de
produzir atividades sociais e não como instrumento para produzir informações. Nessa linha de
pensamento, a concepção de linguagem aqui trabalhada não poderá ser outra senão a
27
interacionista, portanto uma atividade construída sociologicamente. Reiterando, então, a força
dessa faculdade que só ao homem compete, lembramos um axioma, sabiamente invocado pela
voz do povo: “Quem tem boca vai a Roma” – daí podemos inferir, analogicamente, que, através
da linguagem, o sujeito poderá alcançar metas inimagináveis, transpondo fronteiras não só
físicas, mas também existenciais.
[...] os outros se definem por palavras; elas estabelecem todas as nossas
relações e nossos limites [...] Nossos sonhos são povoados de palavras; todas
as nossas emoções e sentimentos se revestem de palavras. O mundo inteiro é
um gigantesco bate-papo, dos chefes de Estado negociando a paz e a guerra
às primeiras sílabas de uma criança [...] É pela linguagem, afinal, que somos
indivíduos únicos: somos o que somos depois de um processo de conquista
da nossa palavra, afirmada no meio de milhares de outras palavras e com
elas compostas (FARACO; TEZZA, 1992, p.9).
Mas esse encontro do individual com o coletivo, só ocorrerá mediante um arranjo
sujeito à sobreposição de dois planos: o verbal e o não-verbal. Não fora essa estratégia
metodológica de operar com a dupla funcionalidade, as imagens no cordel, por exemplo,
soariam como um recorte que deu certo em função do contexto regional, jamais como o
encontro de vozes ciosas por autonomia. Para reforçar, lembramos a alteração da natureza
semiótica do signo, caso seja isolado da sua situação social. Essa é, portanto, uma
característica sem a qual não será possível conferir significação ao texto.
E é no limite do discurso que o homem se valoriza como sujeito que interage com
outros sujeitos, em várias situações, definidas social e culturalmente. É nessa dimensão
discursiva que se constrói a concepção de mundo dos seres humanos, no exercício da
apropriação social da linguagem. Através dessas experiências culturais, os sujeitos se fazem a
si mesmos e à história humana. Esse princípio pode servir como ponto de partida, para se
compreender o percurso da construção da identidade.
2.2 Discutindo o conceito
Ao se debruçarem sobre concepções desenvolvidas na Antiguidade, os teóricos
modernos enfrentaram problemas em relação à natureza dos signos, da significação e da
comunicação, na história das ciências. Os primeiros obstáculos tiveram origem nas noções
confusas, entre as quais, destaca-se a diversidade de abordagem acerca do “sentido”. A
primeira indagação seria definir os limites entre sentido e significação.
28
Sobre essa demarcação, Fontanille aposta em soluções baseadas no cotejo entre macro
e microestrutura, ou seja, as relações entre o “local” e o “global”, os dois métodos de
abordagem da linguagem, manifestados na forma de organização do sentido no texto. Assim
entende que o sentido sugere, em primeiro lugar, uma direção. Essa é a condição mínima para
que o interpretante possa caminhar – apoiar-se no que o teórico chama de morfologia
intencional.
Essa “tendência” e essa “direção” muitas vezes foram interpretadas, erroneamente,
como pertencentes à referência. Na verdade, a referência é apenas uma das direções do
sentido. Outras direções são possíveis. Por exemplo, um texto pode tender a sua própria
coerência e é isso que nos faz compreender o seu sentido [...] (FONTANILLI, 2008, p. 31). A
incompletude, como característica constitutiva da linguagem verbal, leva-nos ao risco de
desvios que podem ser superados se levarmos em conta os sujeitos e a situação.
Enquanto para o sentido o teórico designa o termo “direção”, para o segundo conceito
– significação, ele propõe o termo “articulação”, para representar um processo de relação com
o todo. São duas denominações coerentes, até porque pontuais, no que tange à compreensão
daquilo que apresenta natureza mais ou menos abrangente. Podemos falar em mais geral, no
caso da “direção”, e mais específico, se a função é “articular”.
Entendemos, pois, que articular constitui oposição a sentido, já que implica a relação
que uma significação mantém com outras, possibilitando a transposição de um nível de
linguagem para níveis variáveis. É certo que o sentido também não pode fugir desse
parâmetro relacional, porém “O sentido é, afinal, a matéria amorfa da qual se ocupa a
semiótica, no esforço de organizá-la e torná-la inteligível” (FONTANILLI, 2008, p.31).
Graças a essa circularidade, tornou-se possível aplicar ao texto a ideia de sentido como
transcodificação, graças à ação da pragmática, o que significa falar em processo socialmente
organizado. Arrais (2011, p. 29) acrescenta elementos importantes a essa discussão:
Na busca pelo sentido, sem restringir seu universo a uma linguagem
ou código específicos, a semiótica parte da observação dos signos e
dos emaranhados de relações dos quais esses signos participam. Assim
é que objetiva visualizar, flagrar algo, encontrar um vestígio de
paradigma, de permanência [...], onde se imagina ver uma ordem, uma
lógica.
As recorrentes discussões sobre essas categorias, longe de parecerem perda de tempo,
representam, na verdade, avaliação criteriosa, voltada para bases teóricas que irão sustentar
não apenas os conceitos pertinentes ao entorno do signo linguístico, mas, sobretudo, o elenco
29
de teorias acerca da semiótica como estudo dos processos significantes em geral. Entre tantos
estudiosos preocupados em delimitar tais espaços, devemos citar Nöth (1996). Nesta obra, o
autor é enfático quando declara que pretende complementar seu trabalho anterior – Panorama
da Semiótica de Platão a Peirce, publicado em 1995. Pelas considerações mais recentes,
pode-se antever a dependência entre os postulados dos dois momentos dessa longa trajetória.
A incompletude prevista por Nöth encontra respaldo nas valiosas contribuições de
Peirce, que também se valeu da lógica grega para definir as categorias de que se compõe o
signo. Em Platão, esse semioticista foi buscar a estrutura triádica– ónoma (nome), eîdos
(noção/ideia) e pragma (coisa referente) – para discutir, inclusive, a questão da instabilidade
decorrente da relação convencional entre palavras e coisas.
Enquanto leitor assíduo dos semioticistas escolásticos, Charles Sanders Peirce
idealizou o seu signo eminentemente triádico, com a seguinte composição: um objeto, a coisa
referida, entendida como modelo mental; um representâmen, elemento que consiste em
representar o objeto (um desenho, um retrato etc.); e um interpretante, tudo que é assimilado
pela mente e decodificado, através de uma reação. No signo peirciano, vamos identificar,
portanto, a representação de um objeto, ao mesmo tempo em que se cria um signo
equivalente, na mente de alguém, que é o seu interpretante.
Para tentar responder às indagações acerca do conceito de Cultura, teremos que
recorrer, mais uma vez, a um método interdisciplinar perpassando o terreno da Antropologia
Social, em interface com a Sociologia, um diálogo sem conflitos. E como há um consenso em
torno da relação entre Cultura e Significado, juntem-se a esses campos as contribuições da
Semiótica, cujo objeto se declina, por um lado, para o resultado de uma interpretação e, por
outro, para signos não isolados, em direção a formações completas. A definição da semiótica
é universalista e se apoia sobre uma ontologia das substâncias, subordinando o signo ao
conceito.
Nessa perspectiva dialógica, procuramos entender a Cultura como sistemas de
símbolos que articulam significados, por isso não devem ser analisados em abstrato, ao
contrário, convém interpretá-los como produtos de homens reais, com referência ao universo
de significados próprio de cada grupo social. Cada realidade cultural tem sua lógica interna a
qual devemos conhecer para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as
transformações por que passaram, até porque
[...] a possibilidade de reconstruir e interpretar os processos sociais e os itens
culturais não deve partir de critérios abstratos e gerais, produzidos pela visão
30
de mundo do observador, mas com critérios inferidos com base na realidade
estudada (ARANTES, 1981, p. 37).
Partimos do princípio de que Cultura não é ciência experimental à procura de leis, mas
sim ciência interpretativa à procura de significado. E é, exatamente, essa busca de explicação,
com um propósito avesso ao operacionalismo como dogma metodológico, que torna mais
complexa sua teoria interpretativa. Tudo isso leva o pesquisador a recorrer a uma pluralidade
de métodos para dar conta do conjunto de costumes coerentes, necessariamente integrados, os
quais precisam ser vistos sempre em seu contexto e como partes inter-relacionadas. É uma
troca à qual Rastier (2010, p.15) se refere da seguinte forma:
Uma cultura não pode ser compreendida apenas do ponto de vista
cosmopolita ou intercultural. Para cada uma, é o conjunto das outras culturas
contemporâneas e passadas que desempenha o papel do corpus. Com efeito,
uma cultura não é uma totalidade, porque se forma e desaparece nas trocas e
nos conflitos com os outros.
Essa abrangente exposição conceitual pode ser confirmada não só nos dicionários, mas
também nos compêndios que discorrem, especificamente, sobre o tema. Esse acervo de
informações conduz a um exercício teórico-dialético, por meio do qual são formuladas várias
hipóteses, na tentativa de aproximação de uma peça conceitual coesa e coerente.
Tomemos, por exemplo, a reflexão generalizante de Santos (2006, p.7), em O que é
Cultura, coleção Primeiros Passos: “É uma preocupação em entender os muitos caminhos que
conduziram os grupos humanos às suas relações presentes e suas perspectivas de futuro”.
Dessa forma o autor nos coloca diante de um tratado antropológico-social, com vistas a uma
projeção histórica, portanto diante de um tecido para o qual convergiram diferentes fios, em
diferentes momentos.
Em um ensaio, sob o título “Uma descrição densa”, Geertz (1989, p. 13-41) alerta para
a dificuldade de se chegar a um conceito definitivo de Cultura e fala em “pantanal
conceptual” ao aludir aos teóricos que se aventuram em criar amplos teoremas citando, como
exemplo, “o todo mais complexo”, de E. B. Tylor. (GEERTZ, 1989). Sem subestimar sua
força criativa, afirma que a proposta de Tylor confunde mais do que esclarece, porque falta à
tese um teor mais especializado e, teoricamente, mais poderoso. Outros teóricos, situados no
mesmo campo científico, reforçam a inquietação de Geertz, entre eles, Rastier (2010, p.12):
“Com efeito, ao invés da generalização, a caracterização supõe uma ciência chegada à fase
individualizante e que, por conseguinte, possa exceder a fase normativa.”
31
Ainda em Geertz (1989) vamos descobrir a confiança na orientação epistemológica de
Kluckahohn, teórico que escreveu um capítulo, com cerca de vinte e sete páginas, para tentar
definir o “Conceito”. Entre as onze referências elencadas, achamos importante destacar cinco,
segundo o critério das que mais se identificaram com o princípio cliffordiano de “descrição
densa”: (1) “o modo de vida global de um povo” / (2) “o legado social que o indivíduo
adquire do seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir e acreditar”; (4) “um celeiro de
aprendizagem em comum”; (5) “um precipitado da história”.
Visualizamos, nos dois primeiros conceitos acima elencados, a tendência
universalizante da cultura; o terceiro se atém aos valores e crenças de que se nutre a memória
coletiva; o quarto vem responder às demandas do saber sistêmico e compartilhado; por fim, o
quinto dogma se reporta à trajetória histórica de comum vivência. Embora cada um apresente
sua singularidade, há um traço recorrente em todos os postulados: trata-se, exatamente, do
sentimento de partilha, resultante do enraizamento sem o que não seria possível a construção
histórica da cultura.
A complexidade da construção desse percurso pode ser explicada à medida que se
toma a análise antropológica como forma de conhecimento, diz-se de um olhar cingido pela
pluralidade. Como já referido, o núcleo interior do sujeito não é autônomo e autosuficiente,
mas é formado na relação com outras pessoas, responsáveis por mediar os valores, sentidos e
símbolos – a cultura – dos mundos que habitavam. Convocamos Sangos (2006, p.8) para
reforçar essa proposta:
Cada realidade cultural tem sua lógica interna a qual devemos procurar
conhecer, para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as
transformações por que estas passam. É preciso relacionar a variedade de
procedimentos culturais com os contextos em que são produzidos.
Essa discussão em torno do conceito de cultura deve, pois, imprimir um ordenamento
das referências, no entender de Santos, elas devem ser explicadas a partir de duas concepções
básicas. A primeira, mais genérica, diz respeito a tudo que caracteriza a existência social de
um povo ou nação, ou então de grupos, no interior de uma sociedade.
Quanto à segunda concepção, referimo-nos mais especificamente ao conhecimento, às
ideias e crenças, assim como às maneiras como existem na vida social. É uma concepção
segundo a qual a natureza e a realização individual são enfatizadas, a exemplo da cultura
alternativa, na qual podem ser incluídas as instituições associadas, como lojas de produtos
naturais e clínica de medicina alternativa.
32
Para se dizer, cientificamente, algo sobre o mundo, é necessário prescrever, com
clareza, o campo conceitual que orienta a investigação. Assim, para se falar sobre o domínio e
objeto da Semiótica, urge propor generalizações as quais, uma vez conceptualizadas,
funcionam como princípios, para se chegar ao lugar das hipóteses.
Assim, a pesquisa científica, à luz da Semiótica, deverá agregar uma cadeia de
componentes conceituais que vai da referência mais básica, como o conceito de texto,
passando por relações específicas, por exemplo, fronteiras e sistemas modelizantes, até a
compreensão da semiose enquanto ação da linguagem em funcionamento discursivo.
A complexidade do ato semiótico pode ser justificada pelas contradições próprias do
estudo da língua, segundo o qual estão imbricadas, por um lado, as invariantes do sistema e,
por outro, as enunciações discursivas e os contextos culturais. As primeiras, corporificadas
nas dicotomias saussureanas, pautam-se pela centralidade do signo; as segundas, renovadas
pelos estudos de Jakobson (2008), transformam-se em processo gerador da relação dinâmica
da semiose.
Como vimos, para a delimitação do objeto de estudo da semiótica, convergiram
pesquisas de diferentes fontes teóricas, um coro de vozes em torno do qual se construiu um
consenso: a semiótica recebe, enfim, o estatuto de ciência dos signos. Essa definição se
inscreve em diversas correntes epistemológicas – da tradição lógica e gramatical, de origem
aristotélica, passando pelas vertentes europeias, que provêm da linguística, até os seguidores
da escola de Tartu. Um leque tão abrangente de teorias só pode desaguar numa ciência de
natureza universal, apoiada sobre uma ontologia das substâncias, subordinando o signo ao
conceito.
Leve-se em conta, ainda, o fato de que as práticas semióticas não atuam com signos
isolados, mas com formações completas, em operações relacionais, cujo resultado não poderia
ser outro senão a soma de unidades significativas. Na opinião de Greimas (1975, p. 49), “o
mundo visível, em vez de se projetar diante de nós como uma tela homogênea de formas,
aparece como se fosse constituído de várias camadas justapostas ou mesmo superpostas”.
Reside aí a tendência da escola francesa, a partir de Greimas, que vem agregar à
doutrina de signos mais um componente, passando a ser entendida também como ciência da
significação. E enquanto percurso, a significação vem gerar o universo de estruturas
semionarrativas e discursivas, preconizado pelo teórico francês como percurso gerador da
significação.
A rede de correlações que liga a semiótica ao mundo natural não está sujeita
à natureza dos objetos de investigação, mas ao método de abordagem que
33
transforma os objetos em referências significantes para o homem. Basta
lembrar que o mundo extralingüístico não representa matriz absoluta, ao
contrário, trata-se de lugar da manifestação do sensível, onde as ciências do
homem afirmam a sua autonomia. Vejamos o que diz Rastier (2009, p.109)
sobre o assunto:
A linguagem é um meio e não uma simples faculdade: é por isso que, na
filogênese, por mais longe que possamos ir, ela não aparece após o homem
[...] Nem interna nem externa, a língua é o lugar do acoplamento entre o
indivíduo e seu meio ambiente, porque os significantes são externos (ainda
que reconstruídos na percepção) e os significados internos (ainda que
construídos a partir de uma doxa externa). Como a linguagem faz parte do
meio em que agimos, é em práticas diversificadas, das quais os discursos e
os gêneros são testemunhos, que nos ligamos ao nosso meio ambiente.
O reconhecimento de que o sujeito se constrói dentro dos sistemas de significado e de
representações culturais os quais, por sua vez, estão marcados por relação de poder, nos
permitiu desconstruir as categorias tradicionais do indivíduo, no caso em foco, a identidade
feminina no Cangaço. Isso porque nos amparamos nos mecanismos constitutivos dos
diferentes sujeitos, no campo social.
Em face desses condicionantes, torna-se evidente que a episteme da significação passa
a parâmetro especial, para se definir o objeto de estudo. Tratando-se do foco dessa pesquisa –
Mulheres do Cangaço – a direção metodológica que queremos imprimir serve de ilustração
para as ideias de “formações completas”, e “operações relacionais”, discutidas no parágrafo
anterior. Não só porque, numa visão geral, constituem sujeitos semióticos em busca de uma
função histórica, mas também porque, especificamente, sofrem os efeitos de uma dualidade: a
tênue fronteira que separa o indivíduo do grupo.
2.3 Níveis de Estudo
No momento em que falamos em percurso gerativo, significa dizer que alçamos ao
nível da manifestação, esse patamar onde estão reunidos os dois planos: o conteúdo
linguístico e o plano da expressão. É certo que essa separação constitui um simulacro
metodológico, já que não existe conteúdo sem expressão e vice-versa. Ainda que se corra o
risco da redundância, convém lembrar que o mesmo conteúdo pode se manifestar através de
planos de expressão que apresentam diferentes naturezas: verbal, gestual, pictórica etc. As
alterações ficarão a cargo dos efeitos estilísticos da expressão e das coerções do material.
Na medida em que o plano de expressão não apenas veicula um conteúdo, mas recriao, novos sentidos são agregados pela expressão ao conteúdo. Fala-se em instabilidade de
34
correspondência entre os dois códigos porque o sentido é definido na relação. Tudo depende
da intenção, relação estabelecida entre o trajeto a ser percorrido e seu ponto de chegada.
São os efeitos estilísticos da expressão que dão ao texto sua beleza.
Sobretudo quando se trata do texto poético, não pode o analista cingir-se ao
plano do conteúdo, caso contrário, deixará de perceber a especificidade
dessa tipologia e não apreenderá a “totalidade” do sentido nele inscrito
(FIORIN, 2002, p. 35).
A propósito dessa versatilidade nos planos de expressão, aproveitamos para inserir
uma ilustração acerca do Cangaço. Para legislar sobre essa temática, constata-se que, quando
o conteúdo é materializado em forma de historiografia, privilegia-se uma expressão mais
formal, perpassada pela racionalidade própria do gênero. Se, entretanto, recorre-se à literatura
popular, identifica-se um elenco de expressões marcado por traços messiânicos e mitológicos,
bem ao gosto do discurso etnoliterário, com prevalência da figurativização. Trata-se de um
perfil cultural em que as produções estão condicionadas àquele contexto histórico consagrado
pela memória social, lá onde os fantasmas do medievo teimam em se perpetuar.
O modelo semiótico não pode vacilar diante das potencialidades, emergentes nas
reflexões acerca da construção do sentido. As balizas conceituais, prescritas nos princípios do
percurso gerativo da significação, mostram ainda insuficiência descritiva diante das demandas
provenientes da dinamização do modelo.
As contribuições da sintaxe modal e narrativa esbarraram na incompletude da
organização atuacional das personagens da narrativa. Não foi possível demarcar, com
precisão, as fronteiras que separam os territórios dos atuantes e dos atores. Os primeiros
decorrem de uma sintaxe narrativa, enquanto os segundos são identificados nos discursos
particulares em que se encontram manifestados.
O próprio Greimas (1977, p.179) reconhece essa instabilidade, quando afirma:
“Percebeu-se, por exemplo, que a relação entre ator e atuante, longe de ser uma simples
relação de inclusão de uma ocorrência numa classe, era dupla”. Com isso, o teórico quis
mostrar que um atuante pode ser manifestado no discurso por vários atores, assim também o
inverso é igualmente possível.
Certamente, iremos constatar essas oscilações na aplicação das categorias analíticas,
de origem greimasiana, uma análise semiótica, que pressupõe três níveis de especulação, a
saber: estrutura fundamental (nível profundo) – é neste que surge a significação como uma
oposição semântica mínima; estrutura narrativa (nível intermediário) – organiza-se a
narrativa do ponto de vista de um sujeito; e estrutura discursiva (nível superficial) – a
35
narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação.“Explica-se cada uma por uma gramática
autônoma, que apresenta seus participantes e as regras e leis que os regem” (BATISTA,
2009).
A primeira é o ponto de partida do percurso gerador de sentido e diz respeito ao
conteúdo semântico mínimo para se chegar à formação do discurso; no segundo patamar,
entram em circulação as ações dos sujeitos em busca dos valores – um sujeito que realiza um
percurso em busca de seu Objeto de Valor; a última é a fase que mais se aproxima da
manifestação textual e corresponde às estruturas mais específicas, ao mesmo tempo, mais
complexas e enriquecidas semanticamente.
São três etapas que vão contemplar o caminho que a significação percorre do conteúdo
até chegar à expressão – percurso entendido como produção de informação, ao mesmo tempo,
recortes culturais de produção, transformação e reiteração de ideologia, pois só a totalidade do
discurso (texto) pode dar conta da função semiótica. Lembramos aqui a referência a texto
concebido na dualidade que o define, ou seja, objeto de significação e objeto de comunicação.
Só dessa forma podemos analisar a totalidade, na qual estão imbricadas as condições
referentes à sua estruturação interna, e também às relações entre essa estrutura e seu entorno.
Se o texto é historicamente construído, sua análise não pode prescindir das determinações
contextuais, ou seja, dos mecanismos enunciativos de produção e de recepção.
2.3.1 Nível Semiótico Profundo
No nível das estruturas fundamentais, é preciso determinar a oposição ou as oposições
semânticas com base nas quais se constrói o sentido e diz respeito ao conteúdo semântico
mínimo, para se chegar à formação do discurso. Quando se diz que um texto fala de amor, de
morte ou de liberdade, está-se examinando a sua organização fundamental.
A partir dessa lógica centrada nos conflitos, é possível elaborar o octógono semiótico
que representa a tensão dialética entre o ser e o parecer. A esse quadro de relações devemos
mencionar a dêixis positiva (superior) e a dêixis negativa (inferior).
Trata-se de um jogo axiológico que põe em evidência as condições positivas
(eufóricas) e as negativas (disfóricas). Se aplicadas ao cangaço, as primeiras representariam as
narrativas orais que permeiam o imaginário popular; as segundas se conformariam com os
registros da memória oficial. É arriscado, entretanto, qualquer valoração caso o texto não se
encontre dentro do seu contexto de situação. O octógono, embora padronizado, só pode ter
indicadores de condição eufórica ou disfórica, quando representativo de situação concreta.
36
Figura 1 –Tensão Dialética entre ser e parecer1
As categorias semânticas, que estão na base da construção de um texto, mantêm entre
si uma relação de contrariedade. São contrários os termos que estão em relação de
pressuposição recíproca. O termo “cangaceiro”, por exemplo, a depender do contexto, pode
suscitar o conflito – oprimido vs. opressor. Por outro lado, pode significar herói versus
bandido. Os valores eufóricos ou disfóricos, no caso, estão inscritos no texto, mas podem
variar de uma enunciação para outra, conforme seja a formação ideológica do enunciador.
Sobre a matéria, Bezerra (2011, p. 26) discorre muito bem: Categorizar significa estabelecer
valores positivos ou negativos, podendo definir algo ou alguém como “normal” ou
“desviante”.
Assim, o discurso de certos fundamentalistas, que pregam a excelência do martírio,
valorizará positivamente a morte e negativamente a vida, ao passo que o discurso sobre a
felicidade, como algo do aqui e do agora, possivelmente elegerá a vida como valor positivo e
a morte, como negativo (FIORIN, 2002, p. 20).
Convém distinguir a diferença entre a relação de contrariedade e de contraditoriedade.
Sobre a primeira, já demos exemplos em parágrafo anterior, quando mostramos um par de
palavras de marcas semânticas diferentes.
Quanto a termos contraditórios, identifica-se
presença ou ausência de um determinado traço: ao termo “bandido”, aplicando-se a ideia de
negação, teremos o contraditório “não-bandido”.
Por se tratar da etapa mais abstrata do funcionamento e da interpretação do discurso,
cabe ao observador, no nível fundamental, chegar a determinadas conclusões, a partir do
processo de inferenciação. Se nos reportamos aos cordéis sobre o Cangaço, é nessa etapa que
1
Octógono Semiótico presente no trabalho de Batista (2009, p. 2).
37
definimos as oposições de valores positivos ou negativos, dicotomia condicionada pelos
valores ideológicos.
2.3.2 Estruturas Narrativas
A segunda etapa do percurso, denominada estruturas narrativas, abriga em seu
processo as ações e os actantes: são os sujeitos do fazer em busca de seu objeto de valor. Os
elementos das oposições semânticas fundamentais transformam-se em valores e assim as
narrativas simulam a história dos contratos e conflitos que marcam os relacionamentos
humanos. Para mostrar a verossimilhança, existem dois elementos que atuam no percurso: o
primeiro em favor da obtenção do objeto – o coadjuvante; o segundo é aquele que dificulta o
desempenho do sujeito – o oponente. “Esse nível intenta reconstituir o fazer do homem que,
ao buscar os valores para a sua existência sociocultural, transforma a história e o mundo”.
(ARRAIS, 2011, f. 32).
As estruturas narrativas contemplam duas dimensões, sendo a primeira denominada
SINTAXE NARRATIVA – a relação do sujeito com o seu objeto é feita através do chamado
predicado. Este transita entre duas categorias: a do SER (onde o sujeito apresenta a
competência necessária para obtenção do seu objeto de valor); a do FAZER (onde o sujeito
atua em busca do seu valor).
Essa estrutura dual explica, por um lado, a concepçãode narrativa como mudança de estados,
operada pelo fazer transformador do sujeito. Por outro lado, trata-se de narrativa como
sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário
de que decorrem a comunicação e os conflitos entre os sujeitos.
Fiorin (2002, p. 23) discorre sobre a sintaxe narrativa, para mostrar que, na realização
desse percurso, há enunciados organizados hierarquicamente, formando uma sequência
canônica estruturada em quatro fases, a saber: 1) a manipulação, em que o sujeito se vale de
mecanismos para pressionar o outro a querer e/ou dever fazer alguma coisa; 2) a competência
diz respeito ao potencial de que dispõe o sujeito – dotado de um saber ou poder fazer – para
realizar as transformações; 3) a performance é a fase em que se dá a mudança de um estado a
outro, quase sempre um estado de disjunção para um estado de conjunção; 4) finalmente, a
sanção – o momento em que se pode constatar que a performance se realizou, ou seja, o
reconhecimento do sujeito que operou a transformação: “é nesse ponto da narrativa, por
exemplo, que os falsos heróis são desmascarados e os verdadeiros são reconhecidos”
(FIORIN, 2002, p. 24).
38
Essa sequência canônica, em que os fatos se organizam hierarquicamente, não
corresponde a uma sucessão temporal, mas a pressuposições lógicas. Por exemplo: nas
narrativas dos cordéis, a manipulação se manifesta através da ativação de modelos que estão
no imaginário. Pressupõe-se, então, que o resultado dessa provocação só pode ser a
competência do sujeito para transformar um estado em outro. Após essa mudança,
logicamente, vem a sanção, que é a fase em que se distribuem prêmios e castigos. No caso do
cangaço, esses rótulos valorativos vão depender do ponto de vista ideológico da narrativa.
Passemos agora para a outra dimensão das estruturas narrativas, tão importante quanto
a anterior – a SEMÂNTICA NARRATIVA. É neste terreno que os valores são atualizados à
medida que a relação entre o sujeito e seu objeto de valor sofre qualificação modal. Significa
dizer que os elementos semânticos são selecionados e relacionados com os sujeitos, com a
condição de estarem inscritos, enquanto valores, no interior dos enunciados de estado.
Ao analisar esse nível da narrativa, torna-se importante lembrar que há objetos, cuja
aquisição é necessária para a realização da performance – são os modais, aqueles cuja
aquisição é necessária para a conquista da performance. Também há os objetos de valor com
os quais se entra em conjunção ou disjunção, no processo de busca da performance principal.
A definição desses valores só pode ser avaliada dentro de situações concretas, de acordo com
a relação conjuntiva ou disjuntiva do sujeito com o seu objeto.
Em relação aos determinantes do SER e do FAZER, alinham-se quatro modalidades
previstas pela Semiótica: o querer, o dever, o poder e o saber. Quando esses componentes
modais encontram-se no plano da competência, ou seja, quando instauram o sujeito, diz-se
que são virtualizantes = dever-fazer e querer-fazer; no momento em que qualificam o sujeito
para a ação, passam a atualizantes = saber-fazer e poder-fazer.
A não ser na memória social, onde o povo se reconcilia com os seus fantasmas,
arriscamos dizer que, nas narrativas orais sobre as mulheres do cangaço, a sanção vai estar
sempre na ordem dos virtualizantes, sendo pouco provável a conquista dos atualizantes.
Significa dizer que as mulheres do cangaço vão estar sempre em disjunção com o seu objeto
de valor, se este for a independência, a liberdade para agir e escolher seus próprios caminhos.
Essa diferença no modo de julgar as mulheres pode ser explicada pelas mesmas razões
que determinam a avaliação do segmento masculino. Por um lado, as qualificações modais
sustentam as denominações de paixões, como a hostilidade, o repúdio, a ofensa; no sentido
inverso, os arranjos modais saltam para um estado de compreensão e solidariedade. O sujeito
interpretante assume uma dessas posições de acordo com o lugar que ocupa e a formação
ideológica.
39
Nessa perspectiva, os percursos das paixões complexas, no caso dessas mulheres, são
definidos com base em qualificações modais dos sujeitos interpretantes. Daí a possibilidade
do sujeito ocupar diferentes posições passionais, conforme o lugar da enunciação, podendo
saltar de estado de tensão e de disforia para estado de relaxamento e de euforia e vice-versa.
2.3.3 Estruturas Discursivas
Finalmente, vamos abordar o terceiro nível do percurso – DISCURSIVIZAÇÃO – este
último é a fase que mais se aproxima da manifestação textual e corresponde às estruturas mais
específicas, ao mesmo tempo, mais complexas, e enriquecidas semanticamente. Nesse
patamar, as estruturas narrativas convertem-se em discursivas, passando para a instância da
enunciação, lugar onde se integram os componentes que vão materializar o plano da
manifestação.
Exatamente nesse território é que se configura um contexto em que o sujeito instaura o
discurso e se converte em sujeito histórico, social e ideológico. É aí que a enunciação mais se
revela e pode ser reconstruída a partir das marcas que espalha pelo discurso.
Para Diana Barros, “o sujeito da enunciação faz uma série de escolhas, de pessoa, de
tempo, de espaço e de figuras, dessa forma, transfere para a narrativa as marcas discursivas”
(BARROS, 2010, p. 53). Nesse patamar, devemos rever os postulados da teoria da
Enunciação, segundo os quais a intersubjetividade é condição sinequa non da subjetividade.
Isso quer dizer que o fundamento linguístico da subjetividade reside na atualização da
linguagem, pois é nessa emergência que se determina o estatuto linguístico da pessoa.
Na sua obra “Astúcias da Enunciação”, Fiorin (2010, p.41) fala com lucidez sobre essa
interação: O eu existe por oposição ao tu e é a condição do diálogo que é constitutiva da
pessoa, porque ela se constrói na reversibilidade dos papéis EU/TU.
Para pontuar as relações intersubjetivas, devemos começar por esse estágio em que o
locutor se coloca como sujeito,ao mesmo tempo em que estabelece uma outra pessoa. Esse é o
momento essencial para que a linguagem se torne discurso e este, por sua vez, constitua-se
lugar de instauração das relações de espaço, de tempo e de pessoa.
No momento em que o eu se enuncia, assumindo o papel actancial, dá-se a
transformação da linguagem em discurso. À categoria de pessoa atribui-se a denominação de
actante da enunciação, enquanto a categoria de não-pessoa é denominada de actante do
enunciado.
40
Ao se remeter como eu, em seu discurso, o actante da enunciação estabelece, ao
mesmo tempo, uma outra pessoa, aquela que me diz tu. Eis os fundamentos da subjetividade,
reunidos em torno do sujeito, reforçados por um discurso que determina ainda as instâncias do
“onde” e do “quando”.
Os mecanismos de instauração de espaço, tempo e pessoa são dois: debreagem e
embreagem. Cabe ao primeiro incorporar o discurso da enunciação, ao liberar as marcas de
subjetividade, através de elementos ligados à sua estrutura de base. Quanto à embreagem,
fala-se em suspensão das oposições de pessoa, tempo e espaço, obtendo-se assim um efeito de
identificação entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação.
Seria válido falar em debreagem ao se tratar do gênero cordel, dado o predomínio da
instância da figurativização, com o apelo ao discurso etnoliterário. Ao projetar, no momento
da discursivização, elementos desprendidos da enunciação, o cordelista assume o papel
actancial de pessoa, ao mesmo tempo em que cria um efeito de sentido de subjetividade.
A função do interpretante exige uma posição de distanciamento das categorias de
pessoa, tempo e espaço, sendo essa uma competência discursiva em sentido restrito. Ao
mesmo tempo, possibilita ao sujeito da enunciação o exercício da figurativização, através do
qual ele constrói o mundo e a si próprio, configurando-se aí uma competência discursiva em
sentido lato.
Focalizando, especificamente, o tópico “Semântica discursiva”, devemos reiterar a
função que descreve e explica a conversão dos percursos narrativos em percursos temáticos e
seu posterior revestimento figurativo. São duas categorias que contemplam, ao mesmo tempo,
a necessidade de unir o plano do conteúdo ao da expressão, bem como a de produzir
mecanismos capazes de transformar vozes dispersas em papéis sociais.
O percurso gerativo do sentido, ao realizar os diferentes programas, atinge o patamar
da discursivização, instância em que os actantes recebem um investimento semântico, para se
tornarem atores. Essa busca de concretização do sentido vai agregando novos conceitos os
quais vão classificar as manifestações, desdobrando-as em duas formas básicas de discurso:
figurativização (remete a elementos concretos, existentes no mundo natural); tematização
(remete a elementos abstratos, que explicam aspectos da condição humana).
Conforme vaticínio da epígrafe desta tese, curiosamente, as respostas antecedem o
tempo das perguntas. Entendemos ser uma relação semelhante à que separa os dois polos da
Semântica Discursiva: Figurativização & Tematização. A primeira está no mundo da
concretude, diante dos nossos olhos; a segunda, na dimensão conceitual, no espaço das
abstrações, por isso sujeita ao processo da inferenciação.
41
É preciso tempo para que surjam as dúvidas. Estas só aparecem quando começamos a
aprender; e este tempo assume sua função, quando o “ver” da operação perceptiva desperta o
“olhar” da errância humana. Eis que chega o tempo das perguntas – o tempo em que o VER
fisiológico é substituído pelo OLHAR investigativo, que supera a austeridade racional, para
assumir a ordem da afetividade, na incompletude da condição humana.
A instância de figurativização do discurso assume função representativa e pode ser
entendida como ancoragem histórica (conjunto de índices espaço-temporais) responsável pela
produção de efeito de sentido da realidade. Quanto ao percurso temático, de natureza
puramente conceitual, reveste-se de função interpretativa, à medida que organiza, categoriza
e ordena o mundo. São duas categorias distintas, porém não excludentes, não constituem uma
dicotomia, antes se configuram como um continuum. A classificação decorre da dominância
de elementos abstratos ou concretos e não de sua exclusividade.
Os textos figurativos produzem um efeito de realidade e, por isso, representam o
mundo, criam uma imagem do mundo, com seus seres, seus acontecimentos etc. Por outro
lado, os textos temáticos explicam as coisas do mundo, ordenam-nas, classificam-nas,
interpretam-nas, estabelecem relações e dependências entre elas, fazem comentário sobre suas
propriedades (PLATÃO ; FIORIN, 1996, p.89).
Enfim, nesse patamar da Semântica Discursiva, atravessamos funções e interpretações
que vagueiam entre a natureza conceptual, no caso das qualidades e defeitos, e as figuras de
superfície, que correspondem ao mundo natural construído. Do jogo entre figura/tema resulta
a possibilidade de construção de um simulacro de realidade, como ocorre com alguns
discursos, a exemplo do publicitário e do político, em que se recorre a estratégias figurativas
de tal poder persuasivo, que são capazes de transformar “povo” em mero “espectador”.
Por serem categorias com relação tão imbricada, não podem prescindir de análise mais
cuidadosa quando da delimitação do percurso temático figurativo. Se um leitor não consegue
ir além do nível figurativo, significa que não é capaz de ler com profundidade, ou não tem
conhecimentos prévios para proceder a inferências, a fim de recuperar significados abstratos,
subjacentes aos termos concretos. Mas, para se descobrir os temas, as figuras têm que estar
organizadas num percurso figurativo, pois uma figura isolada não tem significado em si
mesma. Como no texto tudo é relação, as figuras se organizam em rede.
O discurso desenvolve-se num contexto sociocultural definido (relação espacial),
desloca-se no eixo do tempo (relação temporal) e apresenta seus atores, que são
representantes discursivos dos actantes concretizando-se na narrativa, através dos nomes
próprios e papéis temáticos (BATISTA, 2009). Todos esses componentes representam uma
42
espécie de bússola, para orientar a operação interpretativa, sabendo-se que, a partir dessas
marcas, não só o centro, mas também as margens do texto se revelam.
Ao atingir essa etapa do percurso, o sujeito destinador vai ao encontro do destinatário,
e este assume o papel de interpretante recuperando, através das escolhas do Dor, as idéias que
estão subjacentes. Sem essa habilidade para fazer inferências, o leitor deixará de lado muitos
aspectos da significação do discurso ou estará até mesmo impossibilitado de construí-la. A
completa interpretação exige, portanto, que se relacione o texto com as condições sóciohistóricas de sua produção e de sua recepção.
Figuras e temas são, portanto, dois termos categóricos que se completam na
construção de programas narrativos e se confundem no processo da enunciação – seja
revestindo esquemas narrativos abstratos com temas, seja valendo-se de elementos concretos
para dar forma a enunciados ideológicos. Atuando dentro dos limites discursivos, esses dois
procedimentos lingüístico-metodológicos acumulam valores imprescindíveis à construção do
sentido, consequentemente, à construção do mundo pela linguagem.
2.4 Percurso da construção da cultura
A trajetória da humanidade, sob a égide das condições espaciotemporais, foi escrita e
reescrita durante séculos, por dezenas de gerações, todas ciosas por reter na memória os
elementos mais típicos e marcantes dos acontecimentos que viriam a se tornar as raízes desse
construto de pulverização do saber coletivo. A tradição oral foi delineando os diferentes ciclos
da cultura, em movimentos espirais, porque sujeitos a um processo dinâmico de paralelismo
ou convergência, de acordo com os dois fatores determinantes do discurso social, nas suas
duas formas significantes: criado ou recebido. São dois modelos suficientemente aptos para
explicar as transformações por que passa o corpo doutrinário enquanto herança dos
antepassados.
Esse primitivismo cultural, divulgado pela sabedoria sagrada, contempla os relatos
sobre as origens, as histórias de deuses, segredos de caça e pesca, ritual das festas, enfim, tudo
que supõe a segurança da perenidade histórica de uma coletividade. Dentro dos limites do
criado, os fenômenos culturais se mantêm legitimados, enriquecidos que são pelos portadores
e lugares privilegiados. Isso não garante à palavra fundadora o privilégio da estabilidade
permanente, uma vez que a criação estará sempre sujeita ao eterno retorno.
Quando falamos em movimentos espirais, referimo-nos à mobilidade como
característica constitutiva do estatuto cultural, por si só, dotado de uma força renovadora que
43
o impele para trás e para a frente, numa busca constante de reatualização. Os teóricos se
referem a esse movimento usando o título “historicidade atualizada”, para lembrar que, nesse
processo de releitura, há uma essência que permanece, mas há aspectos que conferem à voz
do poeta tonalidades adequadas a cada situação contextual. São essas adaptações que
impedem a indiferença do contato, aguçando a sensibilidade sempre que tenta aproximar a
poesia do seu interpretante.
Por outro lado, sabemos que não existe Civilização original e isenta de
interdependência, por isso esse universo estará sujeito às mudanças impostas pelos que
recebem modelos e imagens de terra e gente alheias, em cujo celeiro farão surgir outras
provas materiais, em áreas insuspeitadas e geograficamente separadas. Esses insumos, porém,
antes de significar invasões, devem ser tomados como estímulos. Ora, tratando-se de cultura,
não se pode pensar em sementes unitárias, mas em replantio de galhos, entendendo-se a
imaginação humana e a prestigiosa ascendência da Imitação como processo inevitável e
normal.
É importante insistir na tese de que as categorias acima explicitadas, o “criado” e o
“recebido”, não devem ser entendidas como uma tensão dicotômica, ao contrário, constituem
uma dualidade em relação de continuum, já que representam um movimento salutar segundo o
qual toma-se o passado para equacioná-lo em ressignificações, não para mumificá-lo em
contextos excludentes. A Razão, de acordo com os princípios do Iluminismo, foi proclamada
como “Razão pura” o que não deve ser transportado para o campo da Cultura, pois esta não é
uma totalidade, como pretende o conservadorismo grupal. Sendo produto da sua história, está
a Cultura, definitivamente, condenada ao pluralismo, afastando-se a idéia de que a aquisição
mutila a unidade.
Podemos ilustrar essa concepção insistindo na tese de que os aspectos culturais só
podem ser avaliados, com legitimidade, quando trazemos para a discussão os fatos históricos
contemporâneos ao contexto, caso contrário, as narrativas correrão o risco de intervenções e
montagens que podem transformar a trama em simulacro da realidade. O Cangaço pode servir
de referência emblemática dessa manipulação, como podemos constatar nas escolhas feitas
pela mídia, quando se punha a serviço de determinados interesses. Os adjetivos mais
recorrentes eram “estúpidos”, “brutais”, “feras”, “facínoras”, entre outros, todos carregados de
forte tendência apreciativa, para que fossem associados a um modelo de organização
absolutamente abominável.
Existem, por outro lado, inúmeros trabalhos de releitura do Cangaço que primam pela
contextualização, enfatizando claramente os fatores histórico-políticos, determinantes da
44
explosão desse movimento social nordestino. Nessas pesquisas prevalece um discurso que se
contrapõe ao ideário oficial de “insulto à República”, título pejorativo, porém recorrente nas
manchetes de jornais da época. Constatamos, nessas revisitas, a tendência para o diálogo com
textos de épocas diferentes, um cotejo saudável e capaz de provocar olhares positivos sobre os
fatos, trazendo novos elementos, para tornar consistentes os argumentos e mais legítimas as
teses em questão.
Muitos desses trabalhos resgatam, ainda que de forma mítica, a aura do heroísmo,
criada no imaginário: “aquele que, por suas qualidades, ultrapassa os limites do sertanejo
comum” (VIEIRA, 2012, p. 56). Essa dimensão mítica, tantas vezes agregada aos fatos
históricos, é inevitável, já que o imaginário poético não aplica a lógica convencional e sim
uma outra que situa os opostos no mesmo plano: Lampião, o Aquiles sertanejo, enfrenta, do
outro lado, os deuses do Olimpo – simbolizados pelos coronéis. Em virtude da tensão gerada
pelo confronto de forças, pudemos entender os labirintos dessa epopéia, sobretudo porque o
tema em questão permeia os limites entre cultura e história.
Essa multiplicidade de perspectivas e visões conflitantes, em vez de comprometer a
natureza do fenômeno, antes, lhe confere mais consistência, por considerar as relações de
causalidade. Eis, pois, um procedimento metodológico construtivo, já que a aprendizagem,
enquanto resultado de uma orientação unilateral, acaba por introjetar uma visão distorcida da
história. Assim como a “verdade”, em todo o percurso da saga humana, quando avaliada por
um único ângulo, resulta sempre em concepções reducionistas, contemplando apenas uma
evidência enunciativa.
Para evitar esse maniqueísmo, a construção da cultura, como já dito, deverá atender a
uma diversidade de pontos de vista, por uma questão de coerência, tentando conciliar a
historiografia com o material retido na memória popular. O contraponto entre experiências
conflitantes reduz, portanto, o risco de análises preconceituosas, que separam em
departamentos estanques tendências culturais diferentes, ou seja, levantando muros, para que
não seja possível a convivência do novo com o velho, do popular com o erudito, enfim, do
criado com o recebido.
A prevalência da palavra dogmática priva-nos de experiências pluriculturais: quanto
mais recorremos ao esforço intersubjetivo, mais nos aproximamos de um universo dialético,
onde as representações sociais conduzam à ressignificação dos fatos, consequentemente, à
reconstrução e realinhamento dos saberes culturais. Isso quer dizer que, assim como o rio
ganha força na queda, a discussão se aprofunda e agrega novos valores a partir das rupturas.
45
Só um coro de vozes dissonantes é capaz de criar novos modelos, deslocando a temática do
lugar comum, para atingir uma dimensão mais expressiva.
Nos itens anteriores, já exploramos conceitos os quais, direta ou indiretamente,
apontam para a questão da identidade, sobretudo no tópico que se referiu às manifestações
populares, com seus indicadores culturais responsáveis pelo processo de afirmação identitária.
Impossível falar em cultura sem invocar ícones típicos da construção de significantes
históricos, que vão compor a memória coletiva. Assim como falar em percurso da cultura é
reconstruir narrativas com personagens territorializadas, ou seja, é recorrer ao topos onde
reencontramos a função simbólica da terra enquanto elemento de identificação, cujos valores
preservados na memória impedem a dissolução do indivíduo.
É falar sobre o sujeito, em torno do qual circundam elementos enunciativos que só
existem em situação relacional, no convívio com o Outro. Ao mesmo tempo, é falar da
linguagem que, segundo Fiorin (2010, p. 11) representa “a passagem do caos à ordem”. Há
quem diga que a linguagem é o lugar da instabilidade. Seja no encontro ou no desencontro,
esse sujeito só sobrevive na relação social.
Sabemos que a construção da identidade não é um processo autônomo, ao contrário,
interage com as estruturas sociais, históricas e culturais que delineiam a identidade coletiva.
Não se pode, por exemplo, discorrer sobre o fenômeno do Cangaço sem situá-lo em um
momento histórico-cultural do Brasil, em meados do século XIX, para expor um quadro de
representações sociais de que se alimenta a memória coletiva. São imagens e símbolos
decorrentes muito mais das construções narrativas fabulosas do que de relatos históricos
episódicos, portanto, com maior dependência da memória social do que da memória oficial.
O desdobramento desse processo, como se sabe, resultou nas referidas simulações
transformadas em rótulos avaliativos, reforçados pela linguagem e alimentados por uma
tradição messiânica. Roberto Pedrosa escreve um capítulo sobre o fanatismo religioso no
sertão – “O homem que reza” – inclusive, apontando no cancioneiro popular a recorrência ao
tema.
A religião, dogmática ou não, servia de forte suporte social e moral, mas, por
vezes, era praticada com tamanho conteúdo de fanatismo e magia, que
chegava a provocar enormes desequilíbrios naquela sociedade
permanentemente fragilizada pelo poder dos coronéis e pelas longas
estiagens (MONTEIRO, 2002, p. 44).
Uma incursão nesse universo do imaginário social nos possibilitará uma
reinterpretação e um confronto entre o discurso oficial e a memória popular, e nessa relação
46
do passado com o presente será possível descobrir as veredas que conduzem à formação da
identidade de um sujeito ou de um grupo social.
Nesse percurso de reconstrução do real, sobretudo, devem ser levadas em conta as
demandas sociais e históricas, as quais constituem fatores determinantes nesse processo de
delimitação de fronteiras e definição de subjetividades. Na sociedade moderna, sofremos o
risco da alienação, quando se tenta substituir o particular pelo padrão. Esse mecanismo da
globalização constitui ameaça constante, ainda mais quando se sabe que a memória social se
inscreve em práticas concretas e intersubjetivas, fatalmente sujeitas à intencionalidade dos
atores sociais.
Essas reflexões nos convencem, portanto, de que não há nada mais coletivo do que a
identidade pessoal, pois o sentimento de “pertença” em relação a uma comunidade está
ligado, inevitavelmente, ao processo de personalização dos valores que a regem. Ao interagir
com esse locus, caminha-se para a realização de um real cruzamento cultural, muitas vezes,
sem o risco de reduzir o outro ao mesmo. Mas, lamentavelmente, pode ocorrer o contrário,
com a estigmatização do “nativo”, o qual pode ser condenado ao isolamento ou à
folclorização.
Se é verdade que a cultura se ocupa da sujeição subjetiva, acentua-se a vulnerabilidade
do homem na luta para manter a autonomia de esferas, como a da música, da literatura, das
artes plásticas etc. Diante de um cenário de atividades isoladas, padronizadas, o que se espera
é o modo de semiotização dominante, com indivíduos normalizados, sujeitos a sistemas de
submissão dissimulados. Mas ainda há quem aposte na singularização existencial, que
coincida com um desejo, com a instauração de dispositivos capazes de mudar os tipos de
sociedade.
Acreditamos ser possível desenvolver modos de subjetivação singulares, até porque
vem crescendo o debate social em torno da construção da identidade. Alguns autores apontam
caminhos para que este desafio seja vencido, entre os quais, citamos duas experiências já
discutidas anteriormente: (1) a tensão dialética entre o popular e o erudito – segundo Burke, a
descoberta do “povo” representa a própria territorialização, assim como a direção contrária
representaria o isolamento do extrato popular, resultando na alienação e consequente
desfiguração; (2) o jogo entre o pessoal e o coletivo significa a inserção do componente
particular em um contexto mais geral – uma relação bastante complexa porque vai mexer,
entre outras referências, com os segredos do inconsciente, que estão atrelados à construção do
imaginário.
47
Daí não se pensar em identidade apenas no sentido de pessoa, unidade, mas com a
conotação de função histórica. Nessa perspectiva, volta-se à temática da constituição de uma
memória geradora de identidades, que permite a emergência de paradigmas teóricos e
criativos. Entre tantos, devemos lembrar a força do título “terra”, unidade semântica que
suscita debates acerca de nossa formação cultural. Assim não se pode analisar a saga das
mulheres no cangaço fora dos contextos e injunções da cultura regional.
Tomando-se Cultura como construção histórica, só mesmo uma operação
interdisciplinar para dar conta de todos os conteúdos que estão no entorno da concepção de
Identidade. Vamos buscar nas lições de sociologia e filosofia de Stuart Hall três definições
importantes para um estudo mais aprofundado. A primeira diz respeito ao Sujeito do
Iluminismo, teorema que se apóia nas bases da racionalidade, portanto em defesa de um
indivíduo totalmente centrado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação.
Trata-se de uma concepção individualista, cujo núcleo interior constitui-se em matéria
contínua, idêntica a ele, ao longo da existência, como se divinamente estabelecidas, portanto
não vulnerável a mudanças fundamentais.
Muitos movimentos importantes no pensamento e na cultura ocidentais contribuíram
para a emergência dessa concepção de entidade singular, distintiva e única, porém o peso
maior recai sobre as revoluções científicas que “conferiram ao Homem a faculdade e as
capacidades para inquirir, investigar e decifrar os mistérios da Natureza” (HALL, 2003, p.
26). O ideário iluminista, centrado na imagem do homem científico, libertou-o dos dogmas,
ao mesmo tempo, pôs diante dele a totalidade da história humana, para ser compreendida e
dominada.
Vamos focar agora a segunda categoria da classificação de Hall – Sujeito Sociológico
– um título diretamente associado à concepção “interativa”, segundo a qual a interação é
formada num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que
esses mundos oferecem. A propalada relação que transita do mundo pessoal para o mundo
coletivo reflete a crescente complexidade do mundo moderno, mostrando que esse “núcleo
interior” não é autossuficiente e precisa mediar com os outros sujeitos crenças, sentidos e
símbolos que constituem o universo cultural.
Esse tal Sujeito Sociológico já nasce inscrito na lógica discursiva dos que o
antecedem, portando já nasce contaminado, pior, condenado a sair de si mesmo para se
projetar em identidades culturais, das quais deve internalizar significados e valores, tornandoos parte do ser-individual, como se a identidade costurasse o sujeito à estrutura exterior. Essa
simbiose entre o “eu” e a sociedade pode ser explicada reconhecendo-se, por um lado, a
48
legitimidade de um “eu real” e, por outro, a vulnerabilidade desse sujeito ao ser modificado e
transformado, para servir a novas práticas, nessa partilha contínua com outras identidades.
Ante o quadro de condicionantes a que se submete o Sujeito Sociológico, já não se
fala mais em pessoas de qualidade: o que se considera é a qualidade da cultura. Assim o
sujeito é definido no interior dessas grandes estruturas e formações da sociedade.
Pretendemos realçar aqui o papel da memória no estabelecimento de consensos e conflitos, no
âmbito do imaginário social, e como a produção da memória intervém na construção da
identidade social.
A personagem Macabea, de Lispector (1997), pode bem ilustrar essa situação: o
“interior”, construído de fora para dentro, mediante uma luta entre o mundo “pessoal” e o
“público”. A dor fininha que perseguia aquela moça do interior simbolizava o conflito
cultural, num ambiente de valores tão adversos, se comparados a sua timidez afásica.
Macabea representa o protótipo da desterritorialização, um paradigma que supõe a perda de si
mesmo, quando o indivíduo é posto fora do seu verdadeiro habitat.
Finalmente, vamos conhecer a Identidade do Sujeito Pós-moderno, um novo
paradigma que vai mostrar um sujeito fracionado, imerso num processo provisório e
problemático. Na incompletude desse ser, vamos flagrar identidades às vezes contraditórias
ou não-resolvidas, empurrando em diferentes direções de tal forma que nossas identificações
estão sendo continuamente deslocadas. Nesse contexto, a identidade torna-se, segundo Hall
(2003, p.13), uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam.
Esse processo sem-fim de rupturas e fragmentações, para o qual muitos teóricos
formularam o conceito de “deslocamento”, gerou uma realidade que exibe, no plano de
extensão, formas de interconexão social que cobrem o globo e, no plano de intensidade, as
constantes descentralizações, provocadas por forças fora de si mesma. Esses deslocamentos,
segundo Hall (2003), não devem nos desencorajar, pois, ao mesmo tempo em que
desarticulam as identidades estáveis do passado, podem abrir possibilidade de novas
articulações, por exemplo, a produção de novos sujeitos capazes de recompor estruturas a
partir da reedição e ressignificação de velhos teoremas.
Dessa forma, as três categorias acima descritas vão mobilizar um acervo teórico que
servirá de base e explicação para as transformações por que passam as sociedades, cujas
práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas. Seja diante da ilusão de
identidade estável e unitária, segundo o construto do pensamento iluminista, seja pelo
49
percurso ideológico da interação, ou ainda pelas mãos do sujeito fragmentado da pósmodernidade, em qualquer direção identitária, vamos, fatalmente, esbarrar no fantasma da
incompletude porque, conforme Hall (2003, p. 38):
A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado
sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em
processo”, sempre sendo formada.
Na hipótese de associar o corte epistemológico desta pesquisa à teoria de Hall,
poderíamos trazer para a história das mulheres do cangaço as duas últimas categorias: sujeito
sociológico e sujeito pós-moderno. Em relação ao sociológico, a identificação localiza-se no
fato de estarem “condenadas a sair de si mesmas, para se projetarem em identidades
culturais”; quanto ao segundo, o pós-moderno, o aspecto comum redunda no mesmo
deslocamento, em que a identidade é “transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados, nos sistemas culturais que nos rodeiam”.
Como já referido, devemos entender que uma investigação acadêmica, com
inserções no campo da construção de subjetividades, exige um olhar plural, que só a pesquisa
interdisciplinar pode oferecer.
Será, sem dúvida, um trabalho complexo à medida que
recorrerá a um universo de conteúdos histórico-culturais significativos, com um teor
existencial – um acervo de traços decorrentes de tensões sócio-estruturais, em determinada
conjuntura.
Se pretendemos revisitar o fenômeno do Cangaço, em busca da identidade das
“mulheres” que ali se aventuraram, teremos que proceder a um retorno à longa transição das
estruturas socioculturais, para um reencontro com as vozes que protagonizaram a “invenção
do Nordeste”. Esse evento, como tantas outras memórias históricas, atravessa a temporalidade
da consciência, para se situar no tempo do discurso, por isso romanceado tantas vezes e, em
algumas reflexões, considerado “simulacro de verdade”.
2.5 Semiótica das culturas
Há um consenso acerca da natureza epistemológica dos conteúdos ligados à Semiótica,
em virtude das teses da maioria dos teóricos colocarem em destaque a tendência para a
antropologia semiótica. As considerações em torno do objeto dessa ciência são fruto de uma
50
longa trajetória de reflexão, que passou pela tradição filosófica, com base nos postulados da
Razão, até as modificações provocadas pela teologia cristã, privilegiando no homem aquilo
que o punha em contato com o Ser, ou seja, a alma.
Essas correntes, porém, se analisadas enquanto concepções isoladas, não responderão
aos princípios intuídos em direção ao núcleo semiótico. Daí a escolha de referências de cada
um desses fundamentos científicos, para não se fixar apenas no postulado teológico,
tampouco na faculdade universal da Razão. Ao se deter no primeiro campo, corre-se o risco
de omitir conteúdos da significação cultural das ciências sociais; na hipótese de privilegiar o
segundo, estaria negando o caráter crítico da ciência, negando o fundamento da cultura
enquanto produto da história.
Embrenhada pelo caminho da significação cultural, a Semiótica alia elementos do
positivismo lógico a um acervo que contempla a diversidade das línguas e a multiplicidade
dos sistemas de sinais. Sem dúvida, aproxima-se das ciências sociais, ao mesmo tempo em
que se inclina para uma antropologia histórica e comparada. Mas a natureza ainda não está tão
definida, segundo Rastier (2010, p. 17), que faz a seguinte advertência: “a reflexão
epistemológica sobre o tipo de verdade que produzem não foi conduzida a termo”.
O autor, coloca com toda clareza, a dificuldade de se discutir a unidade das ciências da
cultura e argumenta que, em relação à semiótica, não cabe, a exemplo do sociologismo
durkheiminiano, atribuir um ponto de vista comum a todas as ciências sociais. Embora
localizada neste campo, reconhece um próprio estatuto epistemológico, com outras formas de
legitimação.
Sua riqueza reside em duas diversidades: a das culturas, que as faz mover-se
em tempos e espaços diferenciados e, para cada objeto cultural, a
multiplicidade dos parâmetros não reprodutíveis que impedem qualquer
experimentação no sentido estrito e afastam, ao mesmo tempo, o modelo das
ciências físicas. Promovido à categoria dos observáveis, os fatos humanos e
sociais permanecem como produto de construções interpretativas.
(RASTIER, 2010, p.10).
Toma como âncora o velho questionamento sobre o princípio ontológico que anula a
autonomia da linguagem, entendendo-a como vertente da filosofia; por outro lado, propõe a
redefinição do estatuto das ciências humanas e sociais, reconhecendo a especificidade e a
autonomia relativa do mundo semiótico.
A Semiótica, enquanto estudo da significação, que pretende dar conta do eixo das
representações e do eixo das interpretações, pode afastar-se da filosofia transcendental,
substituindo a Razão pelas culturas. Fadada a assumir função diferencial e comparativa, a
51
Semiótica das culturas teve que reconstruir conceitos, sobretudo o conceito de humanidade,
até atingir um estatuto próprio, dentro da esfera das ciências sociais.“Com efeito, ela guarda
uma vocação epistemológica: unir-se às ciências da cultura em torno dos conceitos de
linguagem e de interpretação”( RASTIER, 2010, 2010, p. 64).
A grande questão reside no fato de que a semiótica, na sua constituição, não pode
conter-se dentro de um projeto totalizante, dadas as variedades de significação nos percursos
interpretativos. Daí a necessidade de romper com as propriedades ontológicas da unidade,
abrindo-se, como diz Rastier, para a “etiologia das sociedades humanas” (RASTIER, 2010,
64). Trata-se, pois, de superar o reducionismo do olhar sobre o objeto, contemplando, não
diversos saberes, mas apenas um saber conceitual sistemático, de teor generalizante.
Reforçamos aqui a tese do afastamento dos modelos das ciências físicas,
considerando-se que as ciências da cultura são as únicas que podem dar conta do caráter
semiótico do universo humano. A multiplicidade dos parâmetros não reprodutíveis impede
qualquer experiência reducionista, no campo da cultura, até porque os fatos humanos e sociais
permanecem como produto de construções interpretativas. Inclusive não se pode legitimar a
tentativa de desconexão das bases que sustentam as “ciências humanas” e as “ciências
sociais”, entendidas como um único campo de caracterização progressiva da humanidade.
Esboça-se, então, uma antropologia da diversidade e não só a lingüística, mas também
as demais ciências do entorno servirão como parâmetro para esse novo cenário científico.
Voltados para a significação cultural das ciências sociais, todos esses saberes vão ultrapassar
o estado normativo, gerando princípios que constituem uma referenciação de fenômenos
singulares e irrepetíveis.
Aliado a um programa de comparação, esse ponto de vista da diversidade resultou em
problema científico, e sua contingência tornou-se significativa. A conseqüência desse
direcionamento interdisciplinar foi a reconstrução do conceito de humanidade, fora da
teologia dogmática e da biologia determinista. Aliás, um construto teórico que possa
contemplar, ao mesmo tempo, o ponto de vista da dimensão individual da identidade e o
ponto de vista da dimensão coletiva.
No terreno da Semiótica, como já referido, estão agregados vários conceitos com
denominações específicas. Entre estes, Machado (2007, p. 16) se detém no campo da
Semiosfera, que designa o espaço cultural habitado pelos signos. “Nesse sentido, Semiosfera é
o conceito que se constituiu, para definir a dinâmica dos encontros entre diferentes culturas”.
A preocupação com essa particularidade teórica levou a descobertas importantes, no
seio da Semiótica das Culturas. Com base nessa ideia de interdiscurso entre diferentes esferas,
52
merece destaque especial o diálogo entre Bakhtin e os seguidores da Escola de Tártu-Moscou,
cujo núcleo comum reside no conceito de dialogismo.
Nessa perspectiva, a linguagem, no seu funcionamento, não deve ser compreendida
apenas como sistema de comunicação, porém, agregada a este, vislumbra-se outra atividade,
qual seja, sua função como sistema modelizante. Essas duas tendências correspondem a
funções que se implicam mutuamente, aliás, nas análises de natureza semiótica, os complexos
conceptuais desempenham papel extremamente importante nos processos de produção da
significação.
Se assim não o fora, perderíamos de vista os critérios que Schnaiderman (1979, p.165)
considera cruciais para os semioticistas em ação: (1) plano da avaliação – segundo o qual o
mundo é apresentado de dentro para fora e não de fora para dentro; (2) plano espaço-temporal
– da sintonia entre esses aspectos resulta a metalinguagem responsável pela cumplicidade
entre o ponto de vista de quem descreve e a posição do observador.
Esses dois pontos de vista serão contemplados sempre que se usam mecanismos
capazes de superar a incompletude da linguagem verbal. Daí a necessidade de se investir na
delimitação dos “sistemas modelizantes”, desdobrados em dois tipos: o primário e o
secundário. O primeiro responde pela linguagem verbal, por ser dotada de estrutura; quanto
ao segundo, explica-se através de outros sistemas de signos que estão em relação, como é o
caso da literatura, do mito, da religião e da arte, segundo Machado (2007, p.29), “estes
mantêm correlação com a língua, constituem linguagem, mas não são dotados de propriedades
lingüísticas do sistema verbal”.
Não se deve ter receio, entretanto, de falar em antropologia semiótica, já que não
paira nenhuma dúvida quanto ao fato de que esse campo de conhecimento está incluído no
universo das ciências humanas, através das quais se estudam as relações entre o homem e a
sociedade. Para explicar essa ligação do global com o local, Rastier preconiza quatro rupturas
categoriais, a saber: a ruptura pessoal (par interlocutivo EU/TU); a local (opõe o par
AQUI/LÁ); a temporal (o AGORA, o RECENTE e o FUTURO PRÓXIMO ao PASSADO e
ao FUTURO); e a modal (opõe o CERTO e o PROVÁVEL ao POSSÍVEL e ao IRREAL).
Como desdobramento desses estudos, o referido teórico amarra outros conceitos e
posições tão homólogas quanto refratárias, já que associa as rupturas aos deslocamentos
sugeridos pelas zonas antrópicas: identitária, proximal e distal. As relações entre os dois
quadros categoriais correspondem, exatamente, aos critérios de tempo, espaço e pessoa que se
situam no entorno das práticas humanas e sociais. É uma associação que se impõe, já que as
categorias se completam e se identificam para efeito de análise.Veja a tabela a seguir:
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Z. Identitária
Z. Proximal
Z. Distal
Pessoa
EU, NÓS
TU, VÓS
ELE, SE, ISTO
Tempo
AGORA
Espaço
AQUI
ALI
LÁ, ACOLÁ,ALHURES
CERTO
PROVÁVEL
POSSÍVEL, IRREAL
Modo
RECENTE, EM SEGUIDA
Fronteira Empírica
PASSADO, FUTURO
Fronteira Transcedente
Figura 2- Zonas Antrópicas (RASTIER, 2010, p. 23)
Voltando à instância da Enunciação, seria legítimo associar o quadro das rupturas com
as categorias de pessoa, tempo e espaço, preconizadas por Benveniste, retomadas por Greimas
e Courtès, com a diferença de que estes teóricos centralizaram suas análises privilegiando a
oposição conceitual entre subjetividade/objetividade.
Na concepção rastieriana, as categorias são aplicadas com a finalidade de contemplar
as rupturas referentes à oposição entre o global e o local, situando o indivíduo na relação com
a sociedade, o que vale dizer: o homem e seu entorno. As representações produzidas pelos
sujeitos semióticos são situadas em fronteiras e rupturas, uma tensão dialética da qual
poderemos invocar o discurso como lugar, ao mesmo tempo do social e do individual.
Os esforços empreendidos para o resgate desses componentes discursivos contaram
com o apoio das pesquisas no campo da Semiótica das Culturas, particularmente, os
conhecimentos agregados a partir da sistematização das zonas antrópicas. Para se ter mais
clareza sobre essas conclusões, adiantamos que a retomada dos eixos de pessoa, tempo e
espaço resultou, sem dúvida, no aprofundamento das discussões, sobretudo, nos campos
cultural e antropológico.
A análise das fronteiras situadas entre a zona identitária, a proximal e a distal trouxe
de volta antigas preocupações acerca da tensão gerada pelo cotejo entre o comportamento
empírico e as atribuições formais. Isso porque delimitou os espaços referentes às atividades
espontâneas, às ações técnicas e aos atos socialmente organizados.
Essa alternância de papéis obriga o sujeito a abandonar regras e modelos, para efetuar
seu recorte crítico, nessa tensão situada entre a ordem do individual e do coletivo. Só assim a
linguagem retoma sua função simbólica, à medida que promove a experiência da alteridade,
legitimando-se como cultura interpretativa à procura de significado.
A primeira categoria estende-se na zona identitária, e não entra na ordem do fazer; a
segunda situa-se na fronteira entre a identitária e a proximal, e diz respeito aos relatos sociais
explícitos; finalmente, a terceira estabelece um elo entre as duas primeiras zonas e a última –
54
a distal. Pela complexidade do intervalo, esses atos apelam para uma sanção positiva ou
negativa, daí serem regulados por leis religiosas, jurídicas, científicas e artísticas.
Acreditamos ter ficado bem clara a exposição em defesa da importância dos estudos
acerca das zonas antrópicas, um investimento que contempla, ao mesmo tempo, os embates
sobre empirismo, intuição e razão, além das conquistas nos campos cognitivo e filosófico.
Todos esses elementos vêm convencer-nos da tendência interdisciplinar dos estudos
semióticos que vão além do puramente lingüístico, na verdade, estendem seus tentáculos para
a episteme antropológica, para a área cultural, enfim, contemplam os atos humanos e sociais.
A exigência desse leque de investigações pode ser justificada, em primeiro lugar, pelo
espaço proeminente que a linguagem ocupa, funcionando como centro de equilíbrio para
todas as áreas de conhecimento. Em segundo lugar, lembramos as condições de emergência
do semiótico, cujos referenciais se detêm na constituição própria do entorno humano, e para
esse núcleo se inclinam sempre que estejam em jogo os condicionantes da construção do
sentido.
A ligação entre o local e o global constitui parâmetro para definir a relação entre o
indivíduo e a sociedade, como já referido, entre o homem e seu entorno. Os sinais de
pertencimento se inscrevem na correspondência entre as instâncias sociais e as instâncias
lingüísticas, na evidente direção que liga a prática ao discurso. É bom lembrar que, embora
tênues os limites entre essas dimensões, não há dúvida de que são dotadas de peculiaridades,
dada a circularidade de versões, para a adaptação do sujeito enunciador ao lugar da
enunciação.
Nesse trajeto, em que se contemplam as condições de uso, surgem questões que só
podem ser analisadas dentro de uma determinada competência. Por exemplo: só o homem é
capaz de avaliar e refazer seus atos mediante um contexto pragmático. Se a praxeologia é a
ciência da ação humana, Rastier tinha razão ao tentar interpretar a proeminência da linguagem
através das rupturas, como se pode inferir do seguinte trecho:
Em relação às linguagens dos animais, a particularidade das línguas reside,
sem dúvida, na possibilidade de falar do que não está ali: a zona distal. No
eixo da pessoa, isso permite falar dos ausentes. A homologação do
distanciamento situa-os de preferência num outro tempo (ancestrais,
posteridade, enviados por vir), em outros lugares e em outros mundos
(heróis, deuses, espíritos). N o eixo do tempo, isso abre as áreas da tradição e
do futuro; nos eixos do espaço e do modo, a da utopia (RASTIER, 2010,
p.110).
55
O diálogo a que aludimos, no item anterior, vai encontrar respaldo e lucidez nas
instâncias sociais e lingüísticas sobre as quais estabeleceremos as relações entre discurso
(voz), gênero (prática) e texto (percurso de ação), a fim de explicar a natureza dos símbolos
localizados na fronteira empírica, denominados fetiches, bem como aqueles situados na
fronteira transcendente, os ídolos. Entre uns e outros, cremos poder investigar o percurso
gerador de sentido que protagonizou as histórias das mulheres do cangaço.
A cultura popular medeia a linha fronteiriça entre a zona identitária e a proximal, já
que lida com elementos da ordem do fetiche (metonímia) e do ídolo (metáfora) os quais,
associados, figurativizam ora o estrato metonímico da inteligibilidade, ora o estrato
metafórico da transfiguração. Nessa espécie de “mosaico sígnico” é que o quadro de
representações irá “territorializar e/ou desterritorializar” o locus no qual a crise da identidade
feminina é problematizada.
Se o nosso texto se propõe a fazer uma releitura do Cangaço, focalizando as figuras
femininas, simbolicamente representadas, inevitável será discorrer sobre os fatores culturais,
históricos e religiosos, responsáveis pela construção dessas imagens na memória social. Todo
esse universo deve ser associado à dupla função: de estatuto de fetiche e de estatuto de ídolo.
No terreno da metonímia, vamos encontrar os fetiches, figurativizados nos mais
diversos adereços artesanais, de que se compõe a estética do Cangaço. Eles também estão
presentes no signo-de-salomão, na estrela-de-oito-pontas, na cruz-de-malta, todos
condicionados ao misticismo do mundo rural a que pertencia o cangaceiro. Muitas vezes
estremecia à mercê de presságios, a serem interpretados adequadamente, a exemplo do
mugido insistente do boi, uivo de raposa em noite sem lua, mergulho bisonho de gavião sobre
o pasto, soluços de acauã etc.
Lampião levava consigo, em saquinhos encardidos atados ao pescoço,
inseparáveis, salvo nos momentos de amor, ao menos oito orações protetoras
diferentes, impressas ou manuscritas: a de Nosso Senhor Jesus Cristo, a da
Virgem das Virgens, a da Beata Catarina [...] (PERNAMBUCANO, 2010, p.
52).
Da mesma forma, flagramos na música, na poesia, na dança, nas refregas, os atos de
heroísmo, além dos títulos, todos esses símbolos metaforizados na ordem dos ídolos. Ao
manipular os elementos simbólicos, Lampião criou seu próprio estilo, que lhe conferia uma
aparência expressiva, mais revelação que ocultamento. Assim, reproduzia determinados
valores do contexto sertanejo, destacando-se o desejo de fantasia, daí a recorrência a todos os
56
mitos que os fenícios tinham soprado para o Mediterrâneo, e os gregos difundiriam,
poeticamente, pelo mundo.
Acrescentamos, ainda, a propósito do ponto de vista do observador, que os fetiches e
ídolos diferem quanto ao seu valor eufórico ou disfórico. A depender do contexto histórico e
político-ideológico, tais rótulos de avaliação negativa ou positiva tornam-se reversíveis e
contraditórios. Basta rever as oposições referenciais entre os que atribuem ao fenômeno a
denominação de “banditismo sanguinário e cruel”, por um lado e, por outro, os que o
associam ao contexto,
como consequência de crise do Nordeste, naquele processo de
centralização político-administrativa.
Aos críticos implacáveis, que assumem o ponto de vista da memória oficial, os
fetiches são interpretados com representações estigmatizadas; os ídolos são transformados em
vilões, ou deslocados para a fronteira oposta, já que fazem uma leitura do cangaço como um
movimento marginal. Resta aos historiadores, de olhar humanizado, analisar os fetiches e os
ídolos como resultado de fatores e condicionantes de um cangaço que tem, nas formas
simbólicas, um coadjuvante nas relações de dominação e poder.
3 SITUANDO O CORPUS
Reiteramos aqui nosso propósito de contextualização dos recortes que compõem o
corpus, inserindo-os em espaços socioculturais, até porque, sem essa ancoragem, haveria o
risco de isolamento das categorias analíticas, as quais reclamam diretrizes teóricas, capazes de
erguer pontes entre os cenários gerais e os quadros de representações específicas. Sendo
assim, esses canais de ligação servem para legitimar a escolha das categorias, ao mesmo
tempo, aprofundar a discussão, ao aliar as diretrizes semióticas ao panorama da cultura
popular, de onde fomos colher as representações mítico-lendárias.
Na esteira da tradição oral, vamos operar com as fantasias que, metonímica e
metaforicamente, habitam as fronteiras não só do mundo óbvio, mas também do mundo
transcendente. Os propalados fetiches e ídolos se manifestam através da voz dos poetas, para
lhes conferir a autoridade necessária, ao mesmo tempo para garantir a coerência deste texto,
onde o diálogo entre as ciências pode possibilitar a direção teórico-metodológica, com a
consequente clareza das hipóteses.
Ainda mais quando a temática se volta para a tensão entre o homem e seu entorno,
convém discorrer sobre esse elenco de informações, que devem contemplar as condições de
tempo, espaço e modo, condicionantes que aprisionam o ser humano a um universo de fatores
57
contextuais. As categorias acima referidas vão-se constituir aspectos determinantes, para o
enfrentamento dos desafios: tempo hábil, espaço adequado e modo inteligente. Esses
elementos estão imbricados, no processo de construção histórica, de tal forma que carecemos
de uma análise combinatória, com diferentes linhas conceptuais, para dar conta dos
resultados.
Se não fornecermos as referências do percurso de construção da cultura, o percurso
gerador da significação não poderá dispor dos componentes que se encontram
comprometidos, na própria formação da trajetória histórica, possibilitando as rupturas entre o
locus e o global. Não será possível, pois, dissertar sobre o cangaço sem recorrer aos
fenômenos religiosos e culturais, sem falar dos mitos, por meio dos quais se construiu um
saber compartilhado sobre o mundo.
Pela boca, pela garganta de todos esses homens, pronunciava-se uma palavra
necessária à manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginário,
divulgando e confirmando os mitos, revestida nisso de uma autoridade
particular, embora não claramente distinta daquela que assume o discurso do
juiz, do pregador, do sábio (ZUMTHOR, 1993, p.67).
Dessa forma, expressou-se o gênio criador de tantas obras, focadas nos labirintos da
tradição oral, entre elas, “A Letra e a Voz”, de onde nos valemos para um diálogo possível,
em torno de princípios que tentam delimitar o campo específico da pesquisa, dentro de um
contexto mais abrangente. Nesse palco maior, armado por Zumthor, fomos buscar o prazer da
poesia que, segundo ele, traz o saber. O teórico fala da poesia que emana da voz poética –
“uma força estabilizante que garante a sobrevivência do grupo social” (ZUMTHOR, 1993,
p.139).
Este macrocenário, com seus diferentes saberes, ornamenta-se com galhos da
Antropologia, da Semiótica e, principalmente, da Cultura Popular. Neste último campo,
fomos abastecer as categorias analíticas, à procura daquela “palavra”, que representa o elo
entre o saber individual e o coletivo. Sem o domínio desses componentes, que podem explicar
esse “laço social”, não conseguiríamos ultrapassar os limites das hipóteses, para a construção
da tese.
Todo o esforço, no sentido da construção dessa base, ampara-se no argumento de que
não podemos perder de vista as diretrizes epistemológicas, cujos alicerces foram fincados na
esteira de alguns tópicos importantes para esta pesquisa, a exemplo de memória social,
imaginário coletivo, identidade etc. Esse universo conceitual, seguramente, nos amparou
nessa retomada de valores, que perfazem um longo caminho, que parte do medievo e adentra
58
os becos e ruas da contemporaneidade. Isso se considerarmos a característica atemporal da
ciência, ainda mais complexa torna-se a discussão, quando se trata do percurso da Arte.
Poetas deslumbrados vêm declamando versos, para narrar os acontecimentos mais
fantásticos, ou mesmo os causos mais corriqueiros, porque de fantasmas e caminhantes viveu
o cangaço. Às vezes, narrando essa saga de forma descontextualizada, comparando-o a “um
ninho de bandidos”; outras tantas contextualizando-o, como um movimento caracterizado pela
combinação de conteúdos religiosos com carência social.
Sejam quais forem os modelos estereotipados, as vozes individuais devem estar
amparadas por um projeto de ordem universal, cujos fios são tecidos com a mais criteriosa
coerência, a fim de que o coro, em harmonia, aponte o caminho, identifique o discurso.
3.1 Cultura popular Conceito, Características, Formas de Expressão
A maioria dos autores consultados discutem o conceito de Cultura Popular com base
numa perspectiva heterogênea, admitindo todos, por antecipação, a complexidade da matéria.
É recorrente a ideia de que existem muitos significados e variados eventos que a expressão
recobre. Alguns se prendem à tese de sentimento nativista, a exemplo de Burke (2010, p. 37)
quando afirmava que “em 1800, os artesãos e camponeses tinham uma consciência mais
regional do que nacional”.
Outros recorrem à falsa dissociação entre o “fazer” e o “saber”, até para justificar que
uns têm o poder sobre o labor de outros. Segundo Santos (2006, p. 15), “a maior parte do
muito que já se escreveu sobre o tema, sobretudo no Brasil, pode ser entendido como tentativa
de resolver esse paradoxo”.
Há ainda os que se referem a “cultura popular” como “folclore”, alimentando nessa tese
a idéia de “tradição”. Esse ponto de vista é veementemente rechaçado por muitos teóricos que
não admitem que a Idade de Ouro da “cultura popular” pertença ao passado. Ao contrário,
defendem o dinamismo de suas práticas, ao mesmo tempo, atribuem a razões políticas essa e
outras definições preconceituosas.
Vale incluir nesse elenco o conceito de “povo” enquanto segmento social dinâmico e
conflitivo, atrelado a práticas direcionadas para o exercício da cidadania, no sentido de
politização das massas. Segundo Brandão (1980, p. 129) o popular vincula-se à classe e à
liberdade, ao mostrar que “o horizonte da educação popular não é o homem educado, é o
homem convertido em classe. É o homem libertado.”
59
Essa acepção do termo “popular”, priorizando o aspecto sociopolítico, aproxima-se da
teoria da Carnavalização, em que Bakhtin (1999, p.3) extrai a categoria “povo” dos romances
de Rabelais, em cujas tramas pode-se atestar uma reformulação radical de todas as
concepções artísticas e ideológicas, para se chegar à cultura popular. “Rabelais recolheu
sabedoria nos provérbios, nas farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos” –
assim ressoava a tese bakhtiniana acerca da literatura de Rabelais, cujo modelo fugia da
estética burguesa, já que se prendia aos ritos e cultos cômicos enquanto literatura paródica,
jamais comparada ao tom sério e feudal da época.
Bakhtin (1999) soube como ninguém explicar a tensão dialética entre as categorias da
cultura: “paralelamente às festas oficiais – carnavais, procissões religiosas etc – celebravamse as festas populares, os ritos cômicos”. Aquelas sempre ostentavam um rico cortejo, com
referências cerimoniosas à Igreja ou ao Estado feudal. As festas populares, ao contrário,
apontavam para outra visão de mundo – eram cultos cômicos que convertiam as divindades
em objetos de burla e de blasfêmia. A teoria da carnavalização bakhtiniana acentuou as
diferenças entre o caráter-oficial dos festejos públicos institucionais, de um lado, e, do outro,
o riso do povo, baseado no princípio da vida festiva, no mundo dos ideais, experiência que
permitia aos indivíduos estabelecer relações verdadeiramente humanas.
O clima de festa emanava dos fins superiores da existência humana, fazendo
desaparecer as relações hierárquicas, enquanto a praça pública se
transformava em palco de um tipo particular de comunicação, inconcebível
em situações normais ( BAKHTIN, 1999 p. 6).
Paralelamente a essa discussão e, em consequência disso, devemos atestar a
unanimidade dos estudiosos ao propalarem a natureza dinâmica dos fenômenos culturais,
sobretudo, as tensões geradas por diferentes pontos de vista sobre Cultura. As primeiras
divergências provêm da pretensa divisão entre o modelo “erudito” e o “popular”, uma
discussão que se arrasta a partir da formação humana grega, inalada na poesia rural gnômica,
que foi conduzida ao pé da letra pela tradição oral.
Pouco depois, ouviam-se as vozes clássicas debatendo, em posições contrárias, sobre a
tese de que a sabedoria popular antecede o saber científico. Aristóteles exortava a teoria em
função de uma prática, ao contrário de Platão, que pregava a teoria da “ciência pura”.
(CHAUÍ, 1994). De um lado, a racionalidade escolástica, revelada pelo encadeamento
silogístico; do outro, o espírito contemplativo, amparado na defesa da justiça como
fundamento básico.
60
Os tempos modernos assistiram de perto a espetáculos mambembes, oriundos dos
grotões, ao lado de refinados concertos, aplaudidos por descendentes das mais altas cortes.
Pelas mãos dos colonizadores, chegaram até nós as mais variadas manifestações artísticas,
que suscitaram o sincretismo: convivem no mesmo espaço o samba, o maxixe, o maracatu, a
ciranda etc. Daí falar-se tanto em multiculturalismo, uma proposta que se define na direção de
uma democracia cultural, pondo por terra qualquer tentativa de hierarquização.
Por ser o lugar privilegiado da cultura, essa diversidade se revela através da recriação
de modelos, para impedir que sejam congelados os elementos de perfil tradicional.
Desenvolvendo-se em processos históricos múltiplos, os significados culturais são
compreendidos tomando-se como base referências do universo próprio de cada grupo social.
Para reforçar a tese da dinâmica cultural, voltemos aqui à teoria bakhtiniana, em
defesa do dialogismo, tendência segundo a qual a palavra, prenhe de respostas, já traz,
constitutivamente, referências a outras palavras, nesse jogo do “já-dito”, em que a réplica será
sempre solicitada e já prevista. Sant‟Anna (2003, p. 29) fala com segurança acerca dessa
deliberada recorrência ao discurso do outro: “[...] quando digo outro, uso a acepção moderna:
aquela voz social ou individual recalcada e que é preciso desentranhar, para que se conheça o
outro lado da verdade.”
A feliz possibilidade de releitura – paródia, estilização, pastiche – seja qual for a
modalidade, promove a circulação de temas e tipos, como ocorre com as diferentes versões
daquele matuto dotado de inteligência e astúcia capazes de torná-lo vencedor. Trata-se de
Pedro Malasarte, com seus trejeitos picarescos, passando da literatura popular à erudita.
Peloso (1996, 148) reconhece essa personagem na Espanha, nas obras de Quevedo e
Calderón; em Portugal, com Leite de Vasconcelos, aparece também na narrativa popular, com
o nome de Pedro das Malas-artes; no Nordeste brasileiro, circula na boca de vários estudiosos,
como Sílvio Romero, Lindolfo Gomes, Câmara Cascudo etc.
Na obra de Ariano Suassuna, “O Auto da Compadecida”, podemos atestar esse resgate
de personagens excêntricas, bem ao gosto das figuras de Rabelais, segundo Bakhtin. Basta
lembrar João Grilo, um tipo popular bem conhecido, famoso pelas mentiras que a ninguém
faziam mal, conforme julgamento de Nossa Senhora. A cena do enterro do cachorro, com toda
aquela trama envolvendo a ambição do padre e do bispo, é uma alegoria do domínio popular,
circulando, de forma recorrente, na tradição oral (SUASSUNA, 1957).
Da mesma forma, podemos reconhecer o cangaceiro ou a cangaceira, na literatura
nacional ou nos cordéis, às vezes, com ares de fidalgo, refletido nas lentes de Benjamin
Abrahão, mas também com feição truculenta, como convém aos registros guiados pela rédea
61
do discurso conservador. Não faltam versões de um Lampião bandido, malfeitor, capaz das
piores atrocidades, do outro lado da linha, tantos outros devotam a essa personagem da
história nordestina o mesmo respeito que se deve a um herói.
A recuperação das formas da cultura oficial, no âmbito popular, não
comporta sempre e necessariamente a aceitação dos significados e dos
valores geralmente associados àquela cultura. Heróis, vilões e bufões, que
emergem em uma determinada estrutura tradicional, constituem um sistema
e iluminam os próprios modelos e normas, mesmo quando os inverterem,
graças às potencialidades subversivas da imitação (PELOSO, 1996, p.147).
Vale lembrar aqui a história de Jararaca, um cangaceiro que virou santo, versão
assumida por Almeida (1981). A narrativa se reporta a uma luta armada entre o grupo de
Lampião e defensores da cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, resultando na tortura e
morte do cangaceiro de nome Jararaca. Seu túmulo virou local de peregrinação, onde as
pessoas acorriam para pagar ou fazer promessa, ajoelhadas, com a mesma devoção com que
se expressam diante de um santuário.
Alguns pesquisadores mais sofisticados concebem essas manifestações
culturais “tradicionais” como resíduo da cultura “culta” de outras épocas (às
vezes, de outros lugares), filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas
camadas da estratificação social. Nesse sentido, diz-se “O povo é um
clássico que sobrevive” (CASCUDO, 1983, p. 16).
Essa circularidade cultural vem atestar a vocação humana para as rupturas, sendo
acompanhada, nos seus movimentos, pelas mudanças culturais, que podem apresentar vértice
transcendente ou decadente, a depender dos hábitos e efeitos produzidos. Vejam-se os
exemplos dos grandes pacifistas e suas estratégias, na tentativa de promoverem a cultura da
Paz; levantem-se os dados estatísticos que atestam a redução dos preconceitos, diante da
cultura da diversidade; finalmente, observem-se os movimentos sociais, organizados para
combater a tirania dos líderes, como assistimos há pouco numa cruzada, chamada Primavera
Árabe.
Alguns pesquisadores mais sofisticados concebem essas manifestações
culturais “tradicionais” como resíduo da cultura “culta” de outras épocas (às
vezes, de outros lugares), filtrada ao longo do tempo pelas sucessivas
camadas da estratificação social. Nesse sentido, diz-se “O povo é um
clássico que sobrevive” (CASCUDO, 1983, p. 16).
A certeza dessa dinâmica cultural nos liberta do congelamento de modelos, do
conservadorismo grupal, que tem como conseqüência a segregação de movimentos sociais
que muito têm para ensinar, porque agregam valores, promovendo a atualização dos
62
arquétipos. Foi a tendência para a democracia cultural que nos premiou com espetáculos que
aliam o erudito ao popular, cujos resultados se traduzem em novos conceitos, e novas
propostas artísticas, que só enriquecem a dimensão social.
Mais uma vez, fomos levados a tocar na pretensa dicotomia entre cultura popular e
cultura erudita, para lembrar que constitui um problema já esclarecido, segundo alguns
teóricos. Zumthor (1993, 118) fala dessa matéria com a segurança didática dos mestres,
entendendo não mais se tratar de uma dicotomia, porém de um continuum: “a oposição do
popular ao erudito remete, quando muito, aos costumes predominantes neste ou naquele
momento e meio”.
Esta separação não se sustenta se trouxermos exemplos que comprovam o método de
natureza palimpsesta, por meio do qual se desenhou o roteiro cultural. Ariano Suassuna
destaca-se com uma obra que vai dos cânones mais soberbos às manifestações populares mais
autênticas. Essa mistura encantadora também temperou a poética de Fernando Pessoa,
comentário de Almeida Garret e transcrito para Estudos em Literatura Popular II, em artigo
do professor Saraiva (2010, p. 44) :“quero dizer e provar, no presente trabalho, que ao pé
dessa aristocracia de poetas, andava, cantava, e nem com o desprezo morria, outra literatura,
que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por esses invasores”.
A referida dualidade entre as formas de cultura transpôs fronteiras e serviu de
substância para muitos estudiosos da área, a exemplo de Câmara Cascudo. Em sua obra
“Civilização e Cultura” este teórico enfatiza os limites entre o saldo da sabedoria oral na
memória coletiva e o saber transmitido pela voz do ensino magistral, entendido como ciência
indispensável e geral. Os dois extratos acompanham a vida normal do homem, não em
posições contraditórias, mas com feições diferentes. As duas formas mantêm entre si uma
intercomunicação viva, e podem ser identificadas a partir do exame de valores ocasionais.
(CASCUDO, 1983).
Na base dessa pretensa dicotomia, vamos encontrar, por um lado, um suporte de uma
idealização romântica da tradição que é uma perspectiva frequentemente encontrada nas
teorias de muitos folcloristas. Por outro lado, temos a concepção cujo foco recai sobre o que
as culturas efetivamente são, ou melhor, sobre os processos através dos quais elas se
constituem e o que elas expressam, e não o que elas foram, seriam ou deveriam ser.
Para enfrentar essa dualidade entre “cultura popular” e “cultura letrada”, Câmara
Cascudo vai buscar na mitologia grega duas referências para categorizar os dois polos: Castor
humano e Pólux imortal. O primeiro é mais antigo e reina sobre o habitual, o comum; o
63
segundo mantém a soberania dos congressos, sob a égide das universidades, dos laboratórios e
das bibliotecas.
Enquanto um se prende à memória de caçadores e guerreiros, o outro destaca-se na
voz dos magistrados, sob os auspícios das normas oficiais. Apesar dessa relação dialética,
segundo o estudioso, são Diáscuros que se confundem numa profunda interdependência, uma
vez que ambos têm bases universais e exigem, na mesma medida, a retenção memorial e a
experiência adquirida a partir da sensibilidade e da percepção.
A Cultura Popular é ancila, humilde sob o manto protetor da Etnografia,
Antropologia Cultural e, ultimamente, da Sociologia e da Psicologia Social,
e mesmo constitui o pedestre e democrático Folclore. Não compreende
Pólux que o mesmo sangue de Castor lhe corre sob a borla e capelo
doutorais (CASCUDO, 1983, p.679).
Há uma concepção generalizada de que o trabalho intelectual é superior ao manual, e
esse postulado tem carreado desequilíbrios sociais, como se pode observar na grande
discrepância entre os salários de segmentos associados ao “saber” em relação aos que se
ligam ao “fazer”. Aliás, o discurso oficial vem legitimando essa concepção, prova disso são os
parcos investimentos nas escolas públicas e nos movimentos de cultura popular.
Por isso a escolha dos teóricos dedicados ao estudo da cultura popular e, por extensão,
curiosos em desvendar segredos em torno da memória e do imaginário coletivo. Buscamos a
concepção de cultura popular como movimento de conscientização política e autoafirmação,
em Burke; em Zumthor, a direção teórico-metodológica necessária ao processo de
ressignificação; perseguimos em Bakhtin a teoria da carnavalização, para lembrar o riso
ousado da dessacralização, a segunda vida do povo; finalmente, em Câmara Cascudo,
tomamos conhecimento de um estatuto de conduta social e religiosa, não só criado, mas
também transmitido através de séculos.
O diálogo entre os quatro autores vem representar uma reunião de elementos que se
completam numa polifonia com recepção ativa, em que o discurso se desloca da ordem do
individual para o espaço coletivo, vale repetir, onde não há lugar para a interdição da fala. O
resultado dessas leituras e da paráfrase realizada para este texto representa não só uma leitura
mais aprofundada do tema, mas, sobretudo, o envolvimento afetivo por estarmos mais uma
vez diante de uma realidade tão óbvia: o fato de que a cultura popular desempenha funções
práticas no sentido de estreitar as relações entre a terra e o povo – entre o homem e suas
raízes.
64
3.2 Transmissão da cultura popular
No final do século XVIII e início do século XIX, o “povo” passou a ser um tema de
interesse dos intelectuais europeus. À medida que surgiam termos novos para designar as
“canções populares”, também proliferavam idéias novas, principalmente na Alemanha, onde
as teses iluministas já não provocavam ecos, porque abafadas por um movimento em favor da
reedição da antiga poesia. Por circular oralmente, acompanhado de música, o cancioneiro
popular, segundo os artistas, conserva a eficácia moral não encontrada na poesia das pessoas
cultas, uma herança mais frívola do que funcional.
Muitos se debruçaram sobre esse gênero, comparado analogicamente às árvores,
diziam que a poesia não era feita, mas crescia naturalmente, daí ser entendida como “a fonte
que traz à superfície o que há de verdadeiramente original na alma do povo” (BURKE, 2010,
p.36).
O poeta Herder compilou um conjunto de canções entre 1774 e 1778, ao qual deu o
nome de Volkslieder (canção popular), uma iniciativa que teve grande repercussão ajudando a
divulgar a tradição oral, um universo que mereceu dos artistas o título de “tesouro da vida”.
Eles defendiam que a poesia tivera essa força entre os hebreus e os gregos, em um passado
remoto, portanto deveriam revolver as cinzas desse passado para extrair o sentimento nativista
sem o qual nenhuma pátria poderia sobreviver.
As idéias de Herder serviram de ânimo para muitos artistas e ecoaram de forma tão
significativa que mereceram de Goethe o seguinte elogio: “Herder nos ensinou a pensar na
poesia como o patrimônio comum de toda a humanidade, não como propriedade particular de
alguns indivíduos refinados e cultos”(BURKE, 2010, p. 27).
A obra dos irmãos Grimm também serve de exemplo dessa revolução silenciosa que
impulsionou os poetas a resgatarem todo um acervo tradicional a que Burke se refere com o
tópico “descoberta do povo”, porque emana desse berço natural e a ele retorna, para
realimentar o seio da terra, como se fora matéria orgânica. Antes considerados “povos
bárbaros”, cuja poesia era tachada de vulgar e grosseira, o segmento popular alçou ao poder,
no período pós-renascentista, em forma de autoria coletiva, como “poesia da natureza”,
porque expressava o que havia de mais singelo e natural.
Todos esses autores se debruçaram sobre matérias no campo da cultura popular, ciosos
por entender esse jogo entre o pessoal e o coletivo tanto que, nas suas reflexões, não pensaram
em identidade apenas no sentido de pessoa, unidade, mas com a conotação de função
65
histórica. Até porque a aprendizagem decorrente dessas discussões não se detém no sucesso
individual, porém no enriquecimento das experiências coletivas.
Dessa forma, a releitura do patrimônio poético tradicional acaba por assumir
significado político, passando a representar “movimento de autodefinição e libertação
nacional”, como aconteceu na Alemanha, invadida por Napoleão, em que dois editores
publicaram um livro de canções para o povo, com a finalidade de despertar a consciência
nacional. Após serem lidos e declamados em teatros e praças públicas, os versos fizeram eco,
nos mais diferentes espaços, com direito a diálogos com novas canções. Os efeitos logo foram
notados: um crescente sentimento de união, em defesa dos direitos e da cidadania.
Na Suécia, a coletânea publicada em 1811 adotava nomes “góticos” e trabalhava para
o renascimento das antigas virtudes suecas. Burke lembra ainda as canções gregas de Fauriel,
inspiradas pela revolta grega de 1821 contra os turcos; lembra também um programa de
pesquisa sobre cultura popular, de um polonês, preso político por participar do levante de
Kósciuszko, contra a ocupação russa. A releitura desses trabalhos instigou os estudiosos a
buscarem a tradição, por isso a memória ocupa, desde o século passado, espaço privilegiado.
A memória tem atravessado os discursos públicos sobre o passado, tornando-se um
instigante campo de pesquisa interdisciplinar, por isso a ele recorremos, com o objetivo não
só de resgatar informações, mas, sobretudo, estabelecer parâmetros comparativos. Nesta
pesquisa, nossas reflexões partem desse resgate, focadas na presença viva da memória, para
construir e reconstruir histórias plurais acerca do fenômeno social do cangaço.
3.3 O discurso etnoliterário
A partir de 1978, as pesquisas científicas, no campo das ciências sociais,
concentravam-se em temas que consolidavam concepções em torno das relações de
enunciação e enunciado. Como desdobramento desse núcleo conceitual, outros componentes
foram sendo agregados, entre os quais, o modo de existência e produção, além das estruturas
de poder. Todo esse investimento teve como resultado a ampliação dos estudos discursivos,
assim como a demanda de novos programas os quais se voltaram para a área da Semiótica,
surgindo daí uma nova disciplina: a Sociossemiótica.
Segundo Batista (2004), a Sociossemiótica está voltada para o estudo do processo de
formação, transformação e acumulação da função semiótica, nos discursos sociais nãoliterários e nos literários produzidos socialmente. No diálogo com Pais (2004, p.175),
buscamos elementos esclarecedores dos postulados em questão:
66
Esses universos de discursos são ditos sociais, porque, embora tenham,
como é evidente, emissor e receptor individuais, caracterizam-se por
enunciador e enunciatário coletivos, ou seja, um grupo ou segmento social,
como um partido político, os legisladores, a comunidade científica, um
grupo profissional etc. (PAIS, 2004, p.175).
As referências às mulheres, na literatura de cordel, correspondem, exatamente, ao
espetáculo semiótico que serve como ancoragem, na tentativa de se construir uma identidade
cultural. Aliado a essa função representativa, recorre-se a um modelo semiótico que permita
situar o discurso etnoliterário como coadjuvante, nessa colagem de elementos concretos, com
o propósito de inferir um conteúdo subjacente, por si só, revelador de um lugar social.
Fala-se, então, de um tipo de estrutura em que se evidencia o movimento de contínua
aproximação ou distanciamento do Locutor, em relação ao nível de responsabilidade pelo
dizer, o que caracteriza uma dualidade entre os enunciadores individual e coletivo. Esse
movimento de determinação e indeterminação subjetiva explica por que o Locutor, para se
representar como origem do que enuncia, é preciso que não seja ele próprio, mas um lugar
social de locutor.
O discurso etnoliterário caracteriza-se por constantes deslocamentos e rupturas
actanciais, temporais e modais, com emergências que transitam do local ao universal. Esse
jogo enunciativo mereceu a atenção de alguns pesquisadores, entre eles, Santos (2007), em
um texto que discute “os sujeitos e os sentidos no espaço da enunciação proverbial”. Segundo
Mônica, essa dualidade pode ser explicada da seguinte forma: “A voz coletiva está apoiada na
ideologia, no “já-dito” e, através dessa formulação textual, ela se materializa linguística e
enunciativamente, sendo representada/assumida pelo Locutor”.
Tomando como base essa linha conceitual, vamos flagrar nesse componente tipológico
preconizado por Cidmar Pais, um discurso que se afasta do documental à medida que não
recorre a fatos históricos comprovados, mas recria outro tipo de memória povoada por
imagens idealizadas. Enquanto os discursos documentais se apoiam na racionalidade, os
etnoliterários se sustentam na historicidade, no caso, entendida como caráter duradouro da
condição humana. É desse discurso que se alimenta a literatura popular, para dar conta desse
fervilhar memorialístico, que tem como resultado o processo de busca e apropriação do
imaginário. O diálogo com Pais (2004, p. 180) agrega elementos esclarecedores:
Contribuem, assim, para o sentimento de sua permanência no eixo da
História e para a configuração de uma identidade cultural, intuitivamente, ao
menos, reconhecida pelos membros da comunidade em causa. Nesse sentido,
levando-se em conta a sua continuidade no tempo, a sua presença nos dias
67
que correm, parece legítimo vê-los como documentos do pensamento e dos
valores coletivos, imprescindíveis, portanto, para a compreensão do processo
histórico da cultura.
Ao institucionalizar essa tipologia, Pais dispensa atenção especial a uma categoria de
discurso, em que o sujeito-enunciador é um ente coletivo. Em relação a tempo e espaço,
apresenta características da ordem da atemporalidade e do não-lugar. Esse discurso, que
predomina nos contos populares regionais, recebe do referido teórico a denominação de
etnoliterário. Diferente dos literários, este dispensa a austeridade racional, para se situar na
ordem da afetividade e da enunciação coletiva, daí a ideia de permanência como característica
constitutiva.
É deste discurso que se alimenta a literatura popular, para mostrar as marcas da
oralidade, bem como as imagens e símbolos típicos dos cordéis, esse gênero que transcende o
puramente dizível, e em que a imagem se torna um ser novo na linguagem. Assim, o discurso
etnoliterário, preconizado por Cidmar Pais, afasta-se do documental à medida que não recorre
a fatos históricos comprovados, mas recria outro tipo de memória povoada por imagens
idealizadas.
Esse componente tipológico foi sistematizado a partir de um estudo que divide os
universos do discurso em literários e não-literários. Os primeiros são vistos como os mais
antigos, pois sua característica principal é a verossimilhança, retomada da Antiguidade grecolatina, segundo a qual “a Arte imita a vida”. Os discursos desse plano seduzem o
leitor/ouvinte e têm na função estética o elemento determinante de sua eficácia.
Por outro lado, os discursos não-literários situam-se em pesquisas mais recentes, com
base em uma vertente da Semiótica, como referido, uma nova disciplina denominada
Sociossemiótica. Os discursos sociais, como são chamados, caracterizam-se por apresentarem
enunciador e enunciatário coletivos, ou seja,
Contrapõem-se à memória oficial, construída pelos historiadores, e recriam
outro tipo de memória social. [...] repetidos, durante séculos, por pessoas
muito especiais, os contadores, como os equivalentes a trovadores
medievais, e as contadoras, como mulheres do Nordeste brasileiro,
dedicadas a essa prática, tais textos são percebidos pelos sujeitosenunciatários-ouvintes como portadores de verdades gerais e universais
(PAIS, 1994, p.178).
O universo de discursos não-literários sociais, sustentado por segmentos sociais,
caracterizam-se por estruturas de poder próprias, consequentemente, dominam seus
68
mecanismos específicos de argumentação/veridicção. Em face desse estatuto etnossemiótico,
é válido defender que o critério de valoração desses discursos é a eficácia, diferente dos
literários, que se sustentam na função estética.
Embora tenha atendido a muitos aspectos de uma tipologia discursiva, a teorização
prevista por Pais precisou ser ampliada para contemplar a literatura oral, assim chamada de
literatura popular. Foi então que, no elenco tipológico, foi incluído o discurso etnoliterário, o
qual se afasta do documental à medida que não recorre a fatos históricos comprovados, mas
recria outro tipo de memória, como referido, povoada por imagens idealizadas.
Enquanto os discursos documentais se apóiam na racionalidade, os etnoliterários se
sustentam na historicidade, entendida como caráter duradouro da condição humana. O efeito
de permanência, como característica constitutiva, confere a eles o estatuto de representantes
de formas de humanismo.
A base da eficácia desse discurso é exatamente sua função mítica, que lhe garante a
compreensão do processo histórico, já que revela e sustenta um sistema de valores e crenças
que integram o imaginário coletivo de uma cultura. Responsável por esse saber
compartilhado, o discurso etnoliterário recorre a elementos cruciais da natureza humana, da
alma, dos impulsos, da afetividade.
3.4 Imaginário coletivo: um saber compartilhado sobre o mundo
A tradição cultural do Ocidente foi tecida, sobretudo, nos enredos das narrativas
passadas de geração a geração, através da oralidade. Os protagonistas dessas sagas
representavam as figuras mais influentes e emblemáticas das lições moralizantes e aí se
projetavam os conflitos provocados pela experiência com demônios, por um lado, e, por
outro, a felicidade proveniente da convivência com os anjos. Uns e outros se alternando e
alimentando uma cadeia de estereótipos que têm origem na família e se prolongam nos grupos
sociais, contando com a cumplicidade da linguagem, que se encarrega de disseminar.
Essa recorrência imagética tem endereço certo: o imaginário coletivo, receptário de
carimbos, como são entendidas as famosas tendências apreciativas, as quais, uma vez
tatuadas, promovem a formação de condutas potencialmente capazes de promoverem
intervenções na realidade. Forma-se, então, uma esteira de arquétipos, fortalecidos
culturalmente, para promover a legitimidade, garantindo, ao mesmo tempo,a eficácia dos
modelos previamente inscritos na memória social.
69
Dessa forma, o imaginário contém a memória resultante das interações entre
os atores sociais, processos que se repetem “ad infinitum”. As suas
referências simbólicas (mitos, ritos, símbolos, imagens etc.) possibilitam às
comunidades a descoberta de respostas às suas necessidades (VIEIRA, 2012,
p. 107).
Considerando essa vulnerabilidade do ser humano, e a conseqüente influência da
estratégica ordem de armazenamento das imagens no espaço da memória, poderemos
compreender como se consolidam os valores que vão determinar o processo de construção e
reconstrução do real. Assim é vista a realidade, através de “óculos sociais” que nada mais são
que a forma singular de leitura e releitura de mundo, como resultado da interação por meio de
um jogo de representações e imagens recíprocas.
Muitos teóricos se apoiam na teoria da discursivização do mundo por meio da
linguagem, para mostrar que não é um simples processo de elaboração de informações, mas
um processo de reconstrução do próprio real. Nós descrevemos o mundo de acordo com os
nossos olhos, por isso entende-se que, quando um sujeito interage verbalmente com outro, o
discurso se organiza a partir das finalidades e intenções dos interlocutores.
Ao produzir significados, a comunicação pode fragmentar a realidade, ao
classificar pessoas e coisas, tornando-as visíveis ou invisíveis, atribuindolhes valores. O classificar, categorizar, rotular, pode levar à estigmatização
de indivíduos ou grupos, seja política, seja socialmente (BEZERRA, 2011, p.
26).
Dessa forma foi construída toda uma simbologia, armazenada na memória discursiva,
e transferida daí para situações concretas. E quando essas representações se materializam,
projetam uma carga ideológica capaz de perverter o real, o que significa dizer que as versões
do mundo estão a depender das finalidades práticas dos enunciadores. Assim, o que julgamos
ser realidade não passa de um produto de nossa percepção cultural. Como consequência de
toda essa complexa cadeia valorativa, acabamos por nos convencer de que o saber sobre o
mundo pode ser manipulado, porque conduzido pela vontade e pelas intenções dos atuantes.
Todos esses acenos ganham destaque nas vozes sociais, ancoradas, entre outros
mecanismos, nos recursos metalinguísticos, para conquistarem suas metas: a mudança de
hábitos culturais. É certo que somente aquilo que representa um valor socialmente adquirido
pode ser capaz de sobreviver, tomar forma e deitar raízes. Acreditamos, pois, nesses
movimentos como o caminho para um mundo mais justo, consequentemente, um mundo onde
os homens possam conviver em paz.
70
A propósito, o velho axioma “A voz do povo é a voz de Deus” vem confirmar essa
crença na força popular, cuja propriedade de permanência se encarrega da construção
histórica da cultura. É assim que a voz do povo escreve os causos do cotidiano, os quais vão
tecendo as grandes sagas, registradas nos folhetos de feira e passadas de geração a geração.
Os condicionantes desse labirinto da imaginação e da inventibilidade da cultura
popular instigaram alguns estudiosos a revisitarem a história do Cangaço, sempre descobrindo
novas substâncias para alimentar o texto, e este, em diálogo com outros, recria a velha saga
com matizes diferentes. Lembro, como exemplo, o historiador Sá (2011, p. 15), o qual criou
para o fenômeno o rótulo de “palimpsesto da cultura brasileira”, no sentido de que “é reescrito
indefinidamente utilizando-se o mesmo material, mediante correções, acréscimos, revisões,
deslizamentos.”
Ao tentarmos acessar o real, mediante processos de pensamento, vamos descobrir que
o mundo nada mais é senão resultado de percepções que envolvem a razão, a arte, a religião e
os sentimentos. Todas essas dimensões são afetadas pelas constantes trocas, ocorridas durante
o processo de interação social, por isso fazem parte do universo de representações do
imaginário.
Assim, não devemos conceber as imagens como passivas, ao contrário, no universo
mental onde habitam, superpõem-se, alteram-se, transformam-se, à mercê de sentimentos e
experiências. Por outro lado, também devemos estar atentos ao fato de que não lidamos
diretamente com as coisas, e sim com os significados que lhes são atribuídos pela cultura, por
isso convém levar em conta o potencial do imaginário, capaz de determinar as atitudes e
preferências dos grupos.
Vasconcelos (1999, p. 20) dá conta desse cadinho da imaginação, onde presságios e
fantasmas se aninham. Trata-se de uma resposta de Lampião a Maria Déa: [...] não, moça,o
meu nome faz medo a quem já vive com medo de alguma coisa, num é ele não, e nem sou eu
que faço medo, é a própria vida das pessoas que faz com que elas tenham medo de alguma
coisa.
Da mesma forma que computamos o discurso adversário, no processo de demonização
do cangaço, também devemos reconhecer os investimentos em favor de representações que
agregavam valores positivos. Essa humanização do cangaceiro não se origina apenas nas
crendices comuns ao catolicismo, provém, com mais firmeza, na demanda por justiça, um
sentimento que nasce na penúria do povo. Daí a espera por um herói, aquele justiceiro que lhe
devolva a esperança, uma espécie de compensação psicológica aos oprimidos, diante das
camadas superiores opressoras.
71
Como podemos ver, entre tantas representações associadas ao cangaço, figuram,
principalmente, aquelas motivadas por razões políticas e religiosas, amálgama de onde
emergem os beatos, os santos, os bandidos e os heróis. Como conseqüência desses
condicionantes contextuais, reforça-se ainda mais essa aura simbólica que transita entre a
bravura e a maldade.
O medo, então, rondava o homem do sertão. Mas não era medo dos vivos, seres de
carne e osso, era medo dos mitos. Medo maior ainda da seca, como se ela fizesse parte do
mito fundador do sertão nordestino. Os relatos da seca são deprimentes, que o digam os
leitores de João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos e José Américo. O sofrimento
secular, que a falta de chuvas tem causado ao sertão e aos sertanejos faz parte do imaginário
nordestino: ele teme a seca, ele a “espera”, com medo da fome (BEZERRA, 2011, p. 56).
Com o progresso da técnica, do final do século XIX ao século XX, deu-se a
incorporação de múltiplas expressões sensoriais, que se intercambiam, proporcionando novas
capacidades de percepção, classificação, interpretação e transmissão do conhecimento. Essas
conquistas aprofundaram os estudos sobre a memória social, ao mesmo tempo, focalizaram
imagens que a literatura de cordel se encarrega de imortalizar, no imaginário do nosso povo,
imagens que compõem o cenário de um sertão carente, um espaço feito de espinho e pedra.
Naquele mundão, onde a lama virou pedra e o mandacaru secou, rebentaram muitos
movimentos de dimensão social, seguramente, desencadeados em conseqüência do desamparo
de uma população, que tinha fome de pão e de justiça, portanto cidadão marginalizado dos
bens de cidadania. As tramas tornaram-se mais complexas, quando se somaram aos
componentes sociais os ingredientes religiosos. Quando o povo clama por um Messias, mais
vulneráveis se tornam as estruturas sociais.
Este é o quadro. A origem é a terra. O palco, também as terras. As terras escaldantes
do sertão serviram de palco ao drama vivido pelo Nordeste, na segunda metade do século
XIX, na longa fase cinzenta de transição entre a organização tribal ou de clã e a moderna
sociedade capitalista, em fase de industrialização. E esta é a versão que deveria ser adotada
por todos os que assumirem a função de divulgar tais movimentos, para que a recepção dos
textos se projete em mundos imaginários, determinantes de um novo devir.
72
3.5 O cordel
Sabemos que a origem do termo “cordel” provém da tradição oral, e foi conduzido até o
Brasil pelas mãos dos colonizadores portugueses, segundo constata a Academia Brasileira de
Literatura de Cordel. Os folhetos logo caíram na preferência do público popular, até porque
descobriu, naquela literatura, um universo imagético com o qual se identificava. Isso pode ser
interpretado como a busca dos efeitos da emoção no coletivo, à medida que as narrativas
focalizavam temas que já habitavam o imaginário coletivo, ou seja, tratava-se de histórias que
alimentavam referências culturais e religiosas enraizadas.
Não podemos esquecer que a literatura de cordel colaborou, decisivamente,
na construção de mitos, seja produzindo uma “apologia ao cangaço”, seja
efetuando uma “diabolização” do cangaceiro, ao esconder os motivos sociais
do cangaço (BEZERRA, 2011, p. 75).
Como correia transmissora de alguns valores culturais nordestinos, os cordéis trazem
sagas reelaboradas e ressignificadas a partir da visão de mundo dos cordelistas. Dessa forma,
“tornam-se suportes de uma apropriação simbólica de ações históricas de inclusão social,
instituindo-se como força alternativa de uma ação pedagógica”(MELO, 2009, p. 71).
Oriundos de Portugal, Espanha e França, os cordéis foram popularizados a partir do
Renascimento, com o investimento em projetos que incentivaram os relatos orais.
No
Nordeste do Brasil, o nome foi herdado, mas a tradição do barbante não se perpetuou: o
folheto brasileiro pode ou não estar exposto em barbantes, mas, certamente, estará sendo
declamado nas feiras, onde o povo aplaude e participa desse tipo de festa literária.
Os primeiros folhetos de trovador, no Brasil, foram impressos no final do século XIX.
Leandro Gomes de Barros e João Martins de Atahyde são dois dentre os primeiros poetas;
livrinhos de sua autoria continuam sendo reeditados, com direitos vendidos e revendidos. As
tiragens totais acabam sendo difíceis de serem contabilizadas, calculando-se em milhares e
milhares de exemplares.
Um dos nossos patronos é o paraibano de Pombal, Leandro Gomes de
Matos (1865-1918) que, mesmo chegando a ser preso e marginalizado
pela prática que abraçara, escrevia de maneira crítica sobre política e
sociedade e, sempre que tinha oportunidade, aproximava-se de um
aglomerado de pessoas, para vender seus versos, deitados em livretos.
(ARAÚJO, 2011, p. 199).
73
As narrativas adotam temáticas da ordem do cotidiano popular: o herói popular
nordestino, os ritos religiosos, folhetos sobre acontecimentos, tragédias amorosas, enfim,
todas as tramas que recorrem aos valores e crenças de que foi construído o imaginário. São
famosos títulos como O cachorro dos mortos, Juvenal e o dragão, História da donzela
Teodora, e outros de Leandro Gomes de Barros (Pombal-PB, 1865; Recife-PE, 1918);
também Casamento e mortalha no céu se talha, História da princesa da Pedra Fina, Batalha de
Oliveiros com Ferrabraz, Como se amança uma sogra, Rolando no Leão de Ouro, Os
sofrimentos de Alzira, estes de João Martins de Atahyde (Ingá-PB, 1880; Recife-PE, 1959),
entre outros.
Além desses temas, devemos lembrar os protagonistas, os quais se assemelham às
figuras colhidas por Bakhtin (1999, p. 3) , a propósito do contexto de Rabelais “na boca dos
simples e dos loucos”. São recorrentes, nas narrativas orais, a linguagem dos cegos, dos
bobos, dos anões e dos palhaços, um desfile de imagens tipicamente nordestinas, neste grande
picadeiro, de celebração popular. E, se a ordem é culto ao povo, não poderiam faltar os
folhetos sobre o cangaço, temática que serviu de inspiração a famosos cordelistas, inclusive
ao grande mestre de Pombal, Leandro Gomes de Barros.
Enquanto suportes de uma apropriação simbólica de vozes sociais, os cordéis não se
limitam a entretenimento, mas vão além, porque agregam funções alternativas de ação
pedagógica. Vejamos o que diz Drummond sobre essa matéria:
A poesia de cordel é uma das manifestações mais puras do espírito
inventivo, do senso de humor e da capacidade crítica do povo
brasileiro, em suas camadas modestas do interior. O poeta cordelista
exprime com felicidade aquilo que seus companheiros de vida e de
classe econômica sentem realmente. A espontaneidade e graça
dessas criações fazem com que o leitor urbano, mais sofisticado, lhes
dedique interesse, despertando ainda a pesquisa e análise de eruditos
universitários. É esta, pois, uma poesia de confraternização social
que alcança uma grande área de sensibilidade (ANDRADE, 2012).
E era nas feiras públicas, segundo Melo (2009, p.69), “uma espécie de esquina do
mundo”, que as vozes respondiam ao desejo coletivo de grandes celebrações. Na “língua do
povo”, os cordéis anunciavam as histórias de reis e princesas, sapos e bruxas, narrativas
reveladoras de tensões e representações que atravessam diversas culturas. “Na feira, a poesia é
anunciada como um pregão, que faz do cordelista um mercador de sonhos coletivos [...]”
(MELO, 2009, p. 72)
74
Nessa exposição sobre o gênero “cordel”, merece especial reflexão o papel da
xilogravura que ilustra a capa ou outros espaços. A conjunção do texto com essa ilustração
resulta na dupla dimensão semântica, pois agrega à matéria-prima de natureza lingüística um
vocabulário especial, criado pela mão do artista. Escolher riscos e traços, com a adequada
profundidade e direção, equivale à escolha das palavras pelo poeta.
Justifica-se a opção pelo cordel, sobretudo, em virtude do interesse e consumo desse
tipo de literatura pelos segmentos populares iletrados os quais, através desses folhetos, têm
acesso às informações mais importantes do país. A linguagem simples, versada e mítica
facilita a memorização e a divulgação, nas feiras nordestinas, através da oralidade ou da
música (repentista).
O cordel, em função de seu caráter genuinamente popular, revelou-nos a visão que os
segmentos letrados do povo tinham do cangaço, de Lampião e, sobretudo, das mulheres.
Apesar de termos poucos cordéis que se referem especificamente à mulher, isto não nos
impediu de tentar compreender qual foi a opinião popular, disseminada nestes folhetos sob a
forma de poesia, em relação a essa mulher.
É interessante notar como Lampião é tratado nestes folhetos, numa mistura de bandido
e herói, criminoso comum e justiceiro, mortal e imortal. Enfim, esses são elementos
necessários à mitificação do próprio personagem, considerando-se que o cordelista apreende
um acontecimento e, numa linguagem popular, o transmite aos seus leitores. Não importa quão verdadeiros sejam
os acontecimentos da História contados no cordel, interessa que é uma prática discursiva, nascida da reatualização
da memória popular.
3.6 O cangaço no cordel
Na introdução dessa segunda parte teórica, discutimos a tese segundo a qual a
realidade é fabricada, e pretendemos aplicar essa concepção à problemática que envolve o
fenômeno chamado “Cangaço” – um fato histórico em cujo contorno se debatem imagens e
símbolos, construídos no universo mental. É uma trajetória permeada por tramas que
envolvem, ao mesmo tempo, o senso-comum e o enredo historiográfico, nascendo daí a
tensão de que resultam, como já referido, os saberes elaborados e partilhados coletivamente,
com a finalidade de construir, reformular e interpretar o real.
A historiografia registra o movimento no século XIX, mas a pena de Franklin Távora
traz, de forma romanceada, a figura do bandoleiro pernambucano José Gomes, o célebre
Cabeleira, vivendo em meados do século XVIII. Considerado o pioneiro desses campeadores,
75
sua presença legendária vem atravessando séculos, cantado e encantado nos versos dos poetas
populares. Esse protagonista desenvolveu sua atividade, rica em peripécias, a ponto de criar
uma subcultura, dentro da cultura sertaneja.
Do ponto de vista sociológico, a história do Cangaço pode ser demarcada pela crise da
sociedade patriarcal nordestina, com a dinâmica política da sociedade sertaneja, baseada nas
contendas entre coronéis. Há, porém, uma sobrevivência de resíduos aconchegados no
imaginário social, um caldo que se processou através da simbologia heroica, nas diversas
formas de representação artística, predominantemente na literatura popular.
Trata-se de um movimento caracterizado pela combinação de conteúdos religiosos
com carência social, por isso cercado de estereótipos os quais definem sua natureza
dicotômica: enquanto para uns a figura de Lampião está associada ao paradigma de herói,
como parte da tradição do universo lendário-regional, para outros, constitui a lembrança de
um tempo de banditismo sanguinário e cruel.
A questão é que a imagem pública de Lampião foi criada com base mais no
que foi escrito do que nos feitos reais. A transformação de criminosos em
heróis, portanto, pode não ser carregada de sentido como talvez
acreditássemos. Muito dela reflete a necessidade dos contadores de histórias
de alimentar a fome popular por fantasia (NARBER, 2003, p. 169).
Os dados fornecidos pelos folhetos de cordéis nos permitem essa interpretação, vez
que, imbuídos de tal diversidade de elementos, devem esbarrar numa estética e numa
construção social transfigurada, porque contraditória. Nas “Memórias de Guerra e Paz” de
Souza (1995, p. 13), faz referência a essa contradição com o seguinte depoimento:
Apesar do medo, as mocinhas da época tinham um desejo curioso de
conhecer aqueles homens valentes, cuja história se espalhava em todo
território brasileiro. Na verdade, era uma ousadia a ação daqueles
desbravadores das caatingas, ao mesmo tempo, desafiadores das
autoridades constituídas.
O chapéu de couro de veado, varqueta, verniz e ouro, a cartucheira de ombro, o cantil
com capa bordada são adereços que, mesmo fora do uso pelo cangaceiro, promovem a
presentificação, porque simbolizam o cangaço. Segundo Pernambucano (2010), “o símbolo
transita entre o mistério concebido para decifração e o mistério natural. Assim, o signo-desalomão” representa, por um lado, poder e proteção e, por outro, devolução das ofensas ao
76
pretenso ofensor. A cruz-de-malta mira os quatro pontos cardeais, na forma de orientação
espiritual e geográfica, pela força que assume na representação de “terra”.
São imagens que podem ser associadas, ao mesmo tempo, ao inconsciente imaginário,
e também à dimensão real, no caso dos que conviveram com o bando. “Verdade seja dita, que
muitas vezes encontramos obstáculos quase intransponíveis, para separar o real da fantasia e
da lenda” (ARAÚJO, 1985, p. 376).
Os diversos papéis atribuídos aos cangaceiros (justiceiro, guerreiro, jagunço, herói ou
bandido) estão inscritos no imaginário popular, mais do que isso, estão tatuados, formando
uma esteira de estereótipos, em cuja fonte se contamina a produção simbólica individual e é
contaminada pelo ambiente social, numa intensa troca cotidiana. Não queremos afirmar aqui
que esse círculo vicioso tenha provocado um divórcio total com a realidade objetiva, na
verdade, defendemos a tese de que alguns fatores, a exemplo da religião, serviram de suporte
social e moral para promover desequilíbrios, num terreno já tão fragilizado pelas relações de
poder e pela adversidade da natureza.
O cangaço revisitado se revela de suma importância para demonstrar não
apenas os fatos e eventos históricos em si, mas uma percepção do passado,
que certamente evidenciará os interesses, os anseios e as necessidades que
estão presentes nas suas representações sociais (VIEIRA, 2012, p. 57).
Vários historiadores, a exemplo de Hobsbawm (2010), elencaram algumas
características que correspondem à concepção de bandido social, destacando desde o cenário
histórico, com motivos suficientes para levá-lo a este tipo de vida, passando pela original
vocação para ser justiceiro, até o estágio da folclorização.
De acordo com esta interpretação, havia condições específicas para a aceitação do
bandido social, ou seja, não podia ser simplesmente um criminoso comum, tinha que possuir
motivos convincentes - como vingar uma ação sofrida - para justificar sua inserção no
banditismo. Enfim, O banditismo social em sua concepção se reveste de “liberdade, heroísmo
e o sonho de justiça”.
Sabe-se que é um processo em curso avançado, esse da robhoodização do nosso
cangaceiro, representação que se perpetua, porque faz parte de uma construção da memória
social. Essa dimensão imagética conta com a cumplicidade da literatura popular, em face do
reconhecimento sensato do que possa ter havido de pungência cultural sob a exterioridade de
banditismo. “A cultura sertaneja abonava o cangaço, malgrado o caráter criminal declarado
77
pelo oficialismo – voz litorânea tomada como intrusa naquele meio” (PERNAMBUCANO,
2010, p. 46).
O cangaço rompe as fronteiras de sua limitação, para abrigar-se num espaço nãoconvencional, bem como ao situar-se num tempo mítico. Já foi lembrado aqui o risco que
correm os historiadores de se distanciarem do real, para atender a sede popular por fantasia.
Assim, ao utilizarem fontes orais na composição de livros, acabam elaborando uma escrita
épica, próxima da literatura de cordel.
Nesse cenário, delineado nas complexas relações entre história, literatura e memória,
as marcas do Cangaço podem aparecer, nas performances midiáticas ora com rótulos
pejorativos, como “facínoras”, “monstros”, “feras”, ora em direção ideologicamente contrária,
recebendo o título de “Rei do Cangaço” ou “Governador do Sertão”. Vimos, em várias
matérias veiculadas pela grande imprensa, a dimensão ocupada pelo cordel na disseminação
desse mito. Os vários articulistas destacaram o poder que os folhetos exercem sobre o
imaginário popular, seja descrevendo Lampião como um bandido, seja descrevendo-o como
herói.
Essa dualidade ainda sobrevive e, como um estigma, acompanha os contadores de
história e os analistas sociais: uns constroem suas narrativas a partir da utilização de símbolos
da cultura, de casos de campo; os segundos se reportam ao passado, amparados em
instrumentos pretensamente racionais, para reconstruírem os fatos históricos. Seja qual for a
modalidade, os resultados vão sempre redundar em desfechos marcados por apelos
simbólicos. Nos cordéis, por exemplo, podemos constatar a figurativização do mundo, onde
se destacam figuras bíblicas e mitológicas.
Seguindo as pegadas impostas pelas marcas de valores e crenças, vamos aos poucos
separando a memória social da memória histórica: enquanto esta privilegia o gênero
documental, aquela se prende ao cotidiano de um povo, com o que há de mais original e
humano. E esta memória sobrevive, ainda que não possa ancorar-se na realidade política do
momento, sobrevive alimentando-se de referências culturais, literárias ou religiosas.
Sobrevive nos versos dos cordelistas, nas novas versões das antigas narrativas, que
passam por um processo de ressignificação, porém mantendo um cadinho da história original.
A paixão de que se reveste a palavra, nos prolegômenos dedicados à cultura popular, reanimanos a proceder a esta busca de referências sobre as mulheres do cangaço. Porque a vida dessas
guerreiras está figurativizada nos folhetos, revisitada à luz do discurso etnoliterário, por isso
valorizando a tradição acima da razão.
78
São causos que falam do cotidiano do cangaço como se fora de grandes sagas, em
cenários nababescos. Os recorrentes apelos míticos emprestam a esses versos a necessária
afetividade para alcançar o milagre da metamorfose: o sujeito-enunciador transformado em
ente coletivo, no processo histórico da cultura.
Em função do apelo ao sincretismo, na literatura de cordel, as referências às mulheres
podem ser comparadas a um espetáculo semiótico, que serve como ancoragem, na tentativa de
se construir uma identidade cultural. Aliado a essa função representativa, recorre-se a um
modelo semiótico que permita situar o discurso etnoliterário como coadjuvante, nessa
colagem de elementos concretos, com o propósito de inferir um conteúdo subjacente, por si
só, revelador de um lugar social.
Voltemos ao resgate da tradição poética, para lembrar o esforço do Ocidente na
tentativa de traçar seu perfil macroestrutural, em busca de sua afirmação política, uma
conquista que passa, necessariamente, pelo movimento de libertação nacional. A realidade é
assim construída, tomando-se como base imagens que se localizam nas camadas mais
profundas do inconsciente e daí emergem em projeções gradativamente personificadas, à
medida que fortalecidas pelos fatores culturais.
Nesse espaço discursivo, se instaura uma tensão entre transparência
referencial e função poética, desvendando a atividade do autor-narrador, com
efeitos metatextuais explícitos ou não. A realidade nordestina se transforma,
desse modo, num espaço literário onde dizer a verdade sobre si equivale a
uma ficção, uma autoficção (RIBEIRO apud GODET, 2001. p. 132).
Todos esses textos põem em foco o aspecto simbólico do cangaço, movimento que
parece ter sido criado para caber numa fotografia, tamanho o cuidado do cangaceiro com a
estética e com o fascínio do traje guerreiro de que se servia. Todos esses símbolos, se
expostos a uma interpretação humanizada, devem ser entendidos como fruto da constituição
de lugares da memória, de onde se extrai uma rede de afetos, de reflexão e de esperança.
3.7 A mulher no cangaço
Pretendemos registrar, neste espaço, algumas referências não apenas genéricas, mas
também específicas sobre as Mulheres do Cangaço, informações das quais nos apropriamos,
entre outras leituras, a partir da obra de Antônio Amaury “Lampião: as mulheres e o cangaço”
(1984). Este autor foi um dos poucos que se animou a conhecer a atuação, o sofrimento, o
79
pensar e o viver das mulheres que foram envolvidas na voragem do drama, desenvolvido no
sertão nordestino, nas décadas, entre 20 e 40, do século XX.
Nesta obra, ele estabelece um diálogo com Dadá e se mostra impressionado diante da
memória prodigiosa de que é dotada essa cangaceira. Dadá conta detalhes do cangaço, após a
entrada das mulheres. Depois do ingresso de Maria Bonita, muitas caboclas aproveitaram e
foram viver em coitos sabidamente seguros, amaziadas com cangaceiros. A depoente relata,
inclusive, um entrevero entre Lampião e Maria pelo fato desta ter cortado os cabelos, “Foram
dormir com a boca amarga do gosto da discussão azeda que mantiveram, ainda queimandolhe os lábios” (ARAÚJO, 1984, p. 218).
Como já sabemos, a primeira mulher a ser admitida no bando de Lampião foi Maria,
isso no princípio da década de 30. Fora rompido, então, o círculo no qual só era permitida a
presença masculina. Após essa primeira aventura, novas sertanejas foram convocadas para as
fileiras do “exército lampiônico”. Essa inserção só ocorreu, entretanto, na segunda fase da
vida cangaceira de Lampião, depois da travessia pelo Rio São Francisco, em agosto de 1928.
Dentre todas as cangaceiras, foi Maria Bonita a única a merecer dos vates
caboclos a honra de ter sua vida descrita em versos, em um cordel feito
especificamente com essa finalidade. Escrito por Antônio Teodoro dos
Santos, o folheto de título “Maria Bonita, a mulher cangaço” foi impresso
em 1963 pela Editora Prelúdio Ltda., sendo o primeiro e único a falar só
dessa cangaceira (AMAURY, 1985, p. 194).
Recentemente, fomos assistir ao lançamento do livro da jornalista Wanessa Campos –
A Dona de Lampião (2012) – em cuja epígrafe descobrimos uma semelhança com o nosso
trabalho: “Quem é essa mulher que surge no deserto, apoiada no seu amado?” (Salomão:
Cântico dos Cânticos). Há dois traços aí que podemos nomear como representativos do nosso
percurso investigativo: primeiro, a indagação “Quem é essa mulher?”– tantas vezes nos
flagramos fazendo essa pergunta; depois, o fato de apoiar-se no companheiro.
Campos reúne nessa apaixonada reportagem alguns fatos, em que se misturam
diferentes sensações tátil-visuais. Essa composição sinestésica é usada como recurso para a
apologia ao universo cultural, construído a partir do ingresso de Maria Bonita no cangaço.
Os dois componentes da epígrafe nos lembram a grande incógnita que tentamos
decifrar, tal qual a Esfinge do mito egípcio, que propunha enigmas aos viajantes. No caso
dessas mulheres, a hipótese levantada é a de que elas se escondem sob o nevoeiro das
narrativas orais, envoltas nos mesmos elementos míticolendários que fizeram do fenômeno do
cangaço o palimpsesto da cultura nordestina.
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A temática da obra de Campos está focada na figura de Maria Bonita, tantas vezes
descrita de forma idealizada, por exemplo, quando lhe atribuem dois predicados
determinantes, como a beleza e a inteligência. Essas e outras qualidades, segundo muitos
escritores, enfeitiçaram Lampião, tanto que o valente cangaceiro cedia quase sempre aos
pedidos da amada. Mulher tão forte e poderosa só poderia ser conhecida como a “Pompadour
do Sertão”.
Pompadour viveu no século 18, na França. Foi amante declarada do rei Luís XV e
exerceu com plenitude sua influência na corte. E amava o rei tal qual a Maria cabocla do
sertão baiano, que reinou absoluta nas caatingas sertanejas durante oito anos, introduzindo no
cangaço o período mariadeano (CAMPOS, 2012, p. 48).
Para reforçar a biografia dessa mulher, a autora recorre a trechos de jornais que se
referem a Maria Déa como “cabocla de grande beleza, de lindo perfil, de curvas perfeitas
[...]”. Por essas e outras, foi imortalizada como Maria Bonita. Campos (2012, p. 49) mostra,
também, que alguns poetas, inspirados por tais dotes, deixaram seus registros na literatura de
cordel, entre eles, o famoso Zabelê, mestre da poesia popular:
Se não fosse (sic) essas caboclas
Não tinha graça o Sertão
Não brincava (sic) os cangaceiros
Não havia Lampião.
Com a obra “A Dona de Lampião” (Prefeitura do Recife, 2012), Campos faz
uma apologia a Maria Gomes de Oliveira, ou Maria Déa, ou à Rainha do Cangaço, ou a
Santinha, ou a Maria Bonita. Sim, porque há um elenco de nomes próprios e papéis temáticos
dirigidos a essa mulher: “A mulata da terra do condor / Dominava uma fera perigosa ...”, nos
versos de Otacílio Batista, citados no Prefácio de Marcus Accioly.
Chamam a atenção os títulos dos capítulos, todos marcados por um teor míticolendário. O primeiro “Era uma Vez ...” já acena para a abertura de um conto de fadas.
Distancia-se, porém, do plano idealizado destas narrativas, quando figurativiza o cenário do
cangaço: “A estrada tem solo seco, estreita e parece não ter fim. Alguns trechos são de
pedregulhos, e a vegetação de algarobas, macambiras, mandacarus esparsos, facheiros, típica
sertaneja, lembrando os Sertões, de Euclides da Cunha [...]”.
A descrição ganha um efeito de sentido capaz de convencer o destinatário. E essa
manipulação está potencializada nas escolhas lexicais, um elenco de nomes que garantem, por
si só, a inquestionável passagem do plano da palavra ao plano do mundo referencial. É essa
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precisão lexical que imprime ao texto da jornalista ancoragem veridiccional, que força o leitor
a uma viagem pelas veredas sertanejas.
“A Sedução das Sedas”, “Maria Ousada e Requintada”, “A Pompadour do Sertão”, são
outros títulos de caráter laudatório, que vêm, entre outras inferências, atestar a paixão da
autora pela matéria em questão. Wanessa capricha nos epítetos, para dar ilusão de realidade,
de forma a construir um lugar de plena realeza para a “DONA” de Lampião.
Não são apenas os títulos, mas as fotografias, as referências bibliográficas, o diálogo
com outros discursos, tudo isso para atestar o saber compartilhado e a construção da memória
social. O universo figurativizado que Wanessa expõe aos olhos dos leitores também se
encontra nos depoimentos colhidos, como o de Alceu Valença: “Maria Bonita é, sem dúvidas,
um dos maiores mitos femininos que habitam o imaginário coletivo brasileiro”.
Não faltou, à obra paginas 98 e 99, uma lista de mulheres que fizeram a história, às
quais a autora atribui qualidades do tipo “mulheres fortes, decididas, mesmo numa sociedade
machista, e com um detalhe marcante: nunca recuaram”. Em seguida faz um elenco de
personalidades: Golda Meir, Indira Gandhi, Isabelita Perón, Violeta Chamorro etc. O último
nome da lista é Maria Gomes de Oliveira – Maria Bonita, a primeira mulher cangaceira
(Brasil, 1930). Esse cotejo coroa, decididamente, a homenagem feita no livro.
O entusiasmo de Wanessa não para por aí. Espalha-se pelas referências acerca dos
adereços dos candangos. Na grife criada por Zuzu Angel, uma produção exótica, que fugia da
moda importada, para apresentar uma linha alternativa, utilizando rendas, chitas, tecidos
estampados, pedrarias e renascença.
Todos esses recursos, de que a jornalista fez uso, sejam os aspectos culturais,
as analogias, os versos, os títulos, foram colhidos durante dois anos de pesquisa. E servem
para convencer os leitores de que essa mulher está imortalizada na literatura, na música, na
moda, no cinema, enfim, nas artes. “Maria Bonita rompeu paradigmas, virou musa, mito, e
fonte de inspiração até hoje.” – continua Campos, a autora.
A paixão escondida nesse depoimento nos faz lembrar o dialogismo bakhtiniano: “Não
são palavras o que pronunciamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, agradáveis
ou desagradáveis[...]” (CAMPOS, 1999, p. 95). Ouvindo a voz da jornalista, ancoramos na
atmosfera do não-dito, lá onde são construídas as imagens, materializadas depois em
experiências coletivas.
O texto que acabamos de analisar não foi escrito em versos cordelinos, mas tem as
mesmas características do discurso etnoliterário, situando-se na ordem da afetividade e da
enunciação coletiva. A literatura popular se alimenta dessa linguagem alegórica, com forte
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recorrência à figurativização, o que propicia a associação do mundo natural construído aos
aspectos culturais subjacentes.
Quantos anos nos separam da saga das mulheres no cangaço? Esse mundo
figurativizado já povoa a memória, flutua nos depoimentos, nos folhetos de feira etc. Mas a
inquietação das indagações só emergiu tempos depois, neste e em muitos outros textos que
investigam a trajetória sociopolítica das mulheres do cangaço. A operação a que procedemos
tenta casar as tramas, que nos apresentam aos olhos, disseminadas pelos cordéis, com as
nossas inquietações. Esse e outros depoimentos nos trouxeram, finalmente, o tempo das
perguntas.
Algumas dessas perguntas foram suscitadas pelo depoimento da valente DADÁ,
mulher de Corisco. Colhemos essas informações em um livro da filósofa e professora Lia
Zatz, de título “DADÁ – Bordando o Cangaço” 2004. Com a permissão da autora e dos
leitores, transcrevemos um trecho da última página (sem número):
Seu nome verdadeiro era Sérgia. Seu apelido era Suçuarana, dado por
um primo. Ela era a filha mais velha e cuidava da casa e dos irmãos,
enquanto os pais cuidavam da roça e dos animais. Não foi à escola e
queria muito aprender a ler e a escrever. Com doze anos, conheceu
Cristino Gomes da Silva, cujo apelido no cangaço era Corisco, braço
direito de Lampião. Corisco se encantou com a menina,pedindo logo
ao pai dela que a guardasse, para que se casassem quando ela estivesse
mais velha (ZATZ, 2004).
Assim começa a saga de Sérgia Ribeiro, a Dadá de Corisco. Dos sete filhos nascidos
no cangaço, apenas três vingaram: Maria do Carmo, Maria Celeste e Sílvio. Mesmo perdendo
uma perna na trágica batalha que culminou com a morte de Corisco, Dadá continuou sua luta,
bordando embornais e bordando sua vida. Trouxe as duas filhas para o seu convívio, mas o
menino só veio a conhecer a mãe quando já se tornara rapaz.
Trabalhava como costureira e continuou fazendo vestimentas paramentadas, como as
que inventava no tempo do cangaço, e com isso conseguiu criar as duas filhas e ajudar a criar
os muitos netos que teve. Dadá morreu em 1994, com quase oitenta anos.
Lia Zatz coloca como epígrafe do seu livro um episódio, ocorrido na Bahia,
envolvendo Dadá e o sociólogo Carlos Alberto Dória o qual, ao tentar uma entrevista com a
ex-cangaceira, ouviu o seguinte desabafo: “Todo mundo para quem eu dou entrevista fica
famoso: Jorge Amado, Glauber Rocha, Cacá Diegues. E a Dadá aqui, no sufoco. Costurando.
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De hoje em diante, vai ser diferente. Só dou entrevista se pagarem. A paga é comprar uma
bolsa do cangaço”.
Segundo o sociólogo, o preço era alto, pelo menos para ele que, na época, era ainda
estudante de ensino médio. Mas confessa que se virou e conseguiu a entrevista pelo valor
estipulado por ela. Saiu dali vitorioso: com as informações desejadas e bem guardadas numa
bela bolsa, bordada com capricho. Diz, ainda, que valeu a pena, sobretudo quando lê, com
grande emoção, o livro de Zatz, escrito trinta anos depois do fato acima relatado.
Na obra em foco, pudemos observar o mundo figurativizado de Dadá, com todos
os componentes de uma realidade cultural complexa: ela procura superar as imposições do
meio, entregando-se àquele amor sem limites. Essa mulher, assim como tantas outras do
cangaço, tenta criar compensações para aquilo que a realidade não se propunha a dar.
Foi Sérgia Ribeiro, enquanto conviveu com os pais; Suçuarana, no meio das
brincadeiras inocentes, com os primos; depois, recebeu o apelido carinhoso de Dadá. Assim a
chamava Corisco a quem, confessa, ter odiado muito, porém, após alguns anos de convívio,
este estado de disjunção foi transformado em conjunção, conforme revelações à professora
Zatz (2004, p. 39):
É, eu pensava que o ódio que eu sentia por Corisco, a mágoa que trazia
dentro do coração, eram tão grandes como o sertão, não iam se acabar nunca.
Mas quem é que não acaba amando o homem que carrega a gente no colo
pra gente dormir?
Sérgia Ribeiro merece, pois, ser lembrada, nesta historiografia, sob pena de
incorrermos na injustiça de omitir um quadro importante da hoste. Foi raptada pelo
cangaceiro quando não tinha ainda treze anos completos. Viveu muito tempo torturando-se
pela mágoa de ter sido violentada, mas Corisco soube conquistá-la, e os dois conheceram a
felicidade só alcançada pelos que se entregam por amor.
Os cangaceiros são unânimes em louvar a coragem desta sertaneja que viveu junto ao
povo de Lampião e foi respeitada e amada pela cumplicidade em relação ao companheiro e ao
bando. Assim atestam as palavras da escritora Fátima Menezes:
Existiu, além de muito amor, cumplicidade, companheirismo entre estes
dois. Foi Corisco quem ensinou Dadá a ler e foi no tiroteio comandado pelo
tenete Zé Rufino que Dadá perdeu uma das pernas e perdeu também seu
grande amor (MENEZES, 1994, p. 22).
Colocamos nos Anexos dois registros, de onde colhemos os depoimentos de Sila e de
Dadá. O primeiro foi transcrito da obra “Memórias de Guerra e Paz”,1995, cuja edição contou
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com o apoio da UFRPE. O livro reúne depoimentos de teor tão elogioso, que chegam a
significar uma apologia à mulher-Sila, como se pode conferir no prefácio de Sônia Lucena
Marinho: “Ela é símbolo da verdade, do amor e da dedicação”.
O segundo depoimento, colhido de duas fontes: um comovente Documentário,
realizado pela Rede Globo – “A Mulher no Cangaço”, 1976 e, como já informado, do livro de
Lia Zatz, sob o título de “Dadá: bordando o Cangaço”. Ambos apresentam, como enfoque
principal, a situação feminina no movimento, mas a exposição de Zatz tem um recorte mais
direcionado, enquanto aprofunda a vida e a atuação de Dadá.
O documentário contempla a história de vida de várias cangaceiras, descrevendo as
agruras enfrentadas no Raso da Catarina, a vida errante, enfim, todos os desafios que o
Cangaço tem para oferecer. O cenário também prestigia a figura de Sérgia Ribeiro, a Dadá de
Corisco, do ponto de vista da narrativa, uma mulher que superou situações-limite, ao lado do
querido companheiro.
Essas famosas cangaceiras, companheiras de Zé Sereno e Corisco, respectivamente,
têm algo em comum, a saber: o ingresso involuntário no cangaço. Foram sequestradas e, só
após um certo tempo de convívio, conseguiram sobreviver ao drama, no momento em que
reencontraram a paz, ao se apaixonarem pelos cangaceiros seqüestradores. Essa linha
divisória contorna, por um lado, o alívio da adesão, dessa vez, voluntária, porém, por outro
lado, atrai o legado do sofrimento e do anonimato.
Nestes textos, vamos verificar estratégias de argumentação/veridicção, com atenuantes
mais racionais, já que não lidam, diretamente, com os elementos do inconsciente simbólico,
como os folhetos. Mesmo assim, não deixam de invocar imagens reveladoras de rótulos
valorativos, em relação ao papel social feminino. Impossível libertar-se dos preconceitos e
estereótipos, quando se analisa o contexto geral, apontando-se para uma direção ideológica,
no caso de se analisar o movimento como consequência de uma crise histórica e política.
Reforça essa visão o depoimento da socióloga Rosa Bezerra, uma descendente de
cangaceiro, de cujo livro “A Representação Social do Cangaço” o professor Erivam fala com
respeito e admiração: “Rosa Bezerra consegue universalizar o tema, construindo sua narrativa
a partir da utilização de símbolos da cultura, de casos de campo e de relatos de personagens
remanescentes, entre eles, Generino Bezerra da Silva, seu pai, um dos protagonistas da saga
do Cangaço”.
Rosa coordena, na UBE, o NEC (Núcleo de Estudos sobre o Cangaço) um espaço para
lançamento de livros, palestras e discussões. Participamos algumas vezes desses encontros,
sobretudo quando os títulos eram provocativos, como a palestra do professor Erivam Felix
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Vieira, que discorreu sobre a simbologia do Cangaço, um viés que dialoga com o corte da
nossa pesquisa.
O interesse pela temática nos animou a solicitar à escritora um depoimento sobre as
mulheres do cangaço ao que ela, prontamente, atendeu, mandando por e-mail um belo texto
no qual expõe sua posição sobre a matéria. Sua argumentação provoca nossa hipótese acerca
da opacidade identitária, à medida que assume a posição de que as mulheres do cangaço são
protagonistas, conforme podemos comprovar lendo o seguinte trecho do depoimento:
“As diversas atitudes apresentadas pelas cangaceiras nos remetem a um tipo de préfeminismo, gestado na caatinga: sem obrigação de atividades domésticas, sem um lar para
cuidar, sem filhos para criar. Dessa forma, a mulher no Cangaço ressignifica seu perfil
psicológico, até então regido pelo modelo hegemônico de mãe e dona de casa [...].
A presença feminina no Cangaço, sem que fosse vítima de agressões físicas (exceção
para o adultério), revela um tipo de família nômade em que a mulher era colocada em
segurança durante as refregas, e demonstrando que as cangaceiras saíram da periferia de suas
vidas, para se tornarem “sujeitos” de sua trajetória, não permanecendo como coadjuvante na
história de outrem.”
Esses depoimentos foram escolhidos com a finalidade de se fazer um cotejo com os
cordéis que revelam a versão de Maria Bonita. O diálogo entre os dois gêneros gera uma
tensão dialética, não pelo ponto de vista em relação ao cangaço, mas pelo deslocamento das
rupturas de tempo, espaço e modo. Sila e Dadá amargaram, primeiro, a dor da
desterritorialização, e o que representava o mundo óbvio para Maria, soava para as duas como
desejo distante de se realizar. Como utopia.
Após esse doloroso período de adaptação, reconciliaram-se com os amantes,
consequentemente, com o cangaço. A partir de então, assim como Maria Bonita, tornaram-se
as “marias” do bando. Desterritorializadas das origens, porém integradas a um novo mundo,
onde desfrutavam as delícias de um amor real, também cúmplices de fábulas e de fantasias.
Trata-se, pois, de tramas diferentes, já que Maria entregou-se voluntariamente : Para
viver um grande amor / Perdi minha mocidade / Eu vivia no sertão / Com a falta de verdade /
Não havia violência / Muito menos crueldade. São versos de Susana Morais, um folheto
chamado “Sombras do Cangaço”, revisado e reeditado em Recife, em 2010, também com
temática que faz apologia à coragem e determinação de Maria Bonita.
Também merece uma referência, neste espaço, o casal Zé Sereno e Sila. Ele, que
recebeu de Lampião o apelido de “Macaquinho”, em razão do seu biotipo franzino, soube
conquistar o respeito de todos pela sua coragem e ousadia. Ela, que sofreu horrores por ter
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sido roubada ao seio da família, obrigada a entrar no cangaço, amargou a ausência dos irmãos,
das brincadeiras e das bonecas. “As suas bonecas, disse-me ela, levara junto com as poucas
roupas que conseguira juntar”. (Idem, p.22)
Sila viveu dois anos no cangaço, de 1936 a 1938. E foi sempre lembrada por suas
habilidades na arte de costurar e bordar, dotes especiais que lhe foram ensinados por Dadá, a
mestra na confecção de adereços.Como discípula exemplar, os bornais de Sila eram
confeccionados com esmero, por isso foram admirados, inclusive, por Lampião. Após ouvir
os elogios, ela presenteou o chefe do bando, e ficou feliz ao vê-lo usar, todos os dias, as peças
confeccionadas por suas mãos.
As mulheres eram muito vaidosas. Para andar na caatinga, usavam uma
roupa especial: um vestido de mescla cinza clara, mangas bem compridas,
chegando até os punhos. Estes eram bordados com matizes de várias cores.
Como adorno, usavam colares, pulseiras e anéis de puro ouro, enfeitados
com pedras preciosas (Ibidem, p.15).
Como já anunciado, pretendemos, com este trabalho, revisitar o fenômeno do
Cangaço, mais especificamente, as Mulheres do Cangaço, cuja trajetória histórica foi
analisada à luz de teorias extraídas da Semiótica da Cultura. A análise, como já sabemos, foi
feita em um corpus formado por cordéis – este gênero que recebeu influência da cultura
popular, e que tão bem reflete os valores e crenças com os quais foi construída a memória
social.
Diferente da memória histórica, que privilegia o gênero documental, a memória social
se prende ao cotidiano de um povo, com o que há de mais original e humano. Sem precisar do
apoio da lógica racional, que dita os critérios de tempo e de espaço, este plano está marcado
pela atemporalidade e, quanto à dimensão espacial, remete ao não-lugar, ou ao “lugar-lá” – à
utopia.
Esse resgate terá como alvo a construção das representações femininas, tangidas para
este cenário, cuja caracterização desafia a existência de fronteiras entre a história e a ficção.
Interessa-nos investigar os discursos, histórico e culturalmente constituídos, para chegar ao
universo ambivalente, porque, como já referido, sitiado pela tensão entre a fantasia e a
realidade. Assim pretendemos seguir as pegadas das mulheres do cangaço, cruzando cordéis e
memórias, num esforço interdisciplinar que lida, por um lado, com o eixo da representação e,
por outro, com o da interpretação.
Segundo Vieira (2012, p. 32), “as mulheres entravam para o cangaço atraídas pela
mística da riqueza, da aventura, por amor ou rapto. Não era exigida a sua função guerreira”.
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Essa concepção não pode ser rebatida sem reserva, devemos reconhecer que há pertinência na
informação, antes de tudo, pela certeza da eficácia simbólica do cangaço.
Nossa literatura está bastante recheada de representações sobre as figuras femininas no
Cangaço. Campos (2012), cujo livro já foi citado, traz duas referências interessantes: a
primeira provém da imaginação de uma escritora francesa, Élise Grunspan-Jasmin, que
estabelece um paralelo entre Maria Bonita e Madame Pompadour, num cotejo em que mostra
a deslumbrante beleza de ambas e o fato de terem seduzido homens poderosos.
A segunda referência vem de Hobsbawm (Apud CAMPOS, 2012) ao fazer a
comparação de Dadá com Lady Macbeth, tomando como parâmetro a coragem e disposição
para chefiar um bando. Convém também registrar algumas ilustrações de escritores que
colocaram Maria Bonita no panteão de heroínas-guerreiras, ao lado da francesa Joana D‟Arc,
das brasileiras Anita Garibaldi, Ana Néri e Maria Quitéria. Mulheres que simbolizam
coragem e valentia na luta por seus ideais.
A análise da imagética do cangaço nos revelou aspectos estéticos da indumentária
feminina evidenciando que foram desenvolvidas e adaptadas para aquele tipo de vida. Todos
nós lembramos de Zuzu Angel, estilista famosa, que buscou uma linha alternativa utilizando
rendas, chitas, tecidos estampados para exibir em seus desfiles. Essa coleção (1975) ganhou o
título de “Mulher Rendeira e Maria Bonita”, com peças e acessórios pinçados da cangaceira,
com pedras e renda renascença nos detalhes.
Mas esse manequim, segundo Marques (2006), não passava de um padrão peculiar,
que deve estar relacionado à imagem que os cangaceiros tinham de si mesmos. Era sobre os
homens que as atenções deviam estar preferencialmente fixas, e na estética masculina
concentrava-se o apuro. Nesse caso, podemos concluir que o modelo estético feminino
encontrava-se fora do cangaço?
Mais uma vez convém retomar a tensão dialética entre identidade individual e
identidade de grupo. As cangaceiras herdaram daquele contexto a admiração e os desafetos. A
vida nômade e cheia de riscos, enfim, todos os símbolos, inclusive a imagem ambígua de
herói x bandido. “A positividade da sua valentia parece apoiar e reforçar a virilidade do
companheiro. O que terá restado da honra feminina no cangaço?” (MARQUES, 2006, p. 184).
Na obra em foco, pudemos observar o mundo figurativizado de Dadá, com todos os
componentes de uma realidade cultural complexa: ela procura superar as imposições do meio,
entregando-se àquele amor sem limites. Essa mulher, assim como tantas outras do cangaço,
tenta criar compensações para aquilo que a realidade não se propunha a dar.
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Desde a remota antiguidade, a vida guerreira e os guerreiros fascinaram as
mulheres. E isso aconteceu em todos os povos e lugares, nas tribos mais
primitivas, em monarquias hereditárias e nas sociedades com o mais alto
grau de civilização (ARAÚJO, 1985, p.18).
Reforçamos a ideia de pesquisa interdisciplinar porque, ao mesmo tempo em que
contempla elementos epistemológicos das teorias causais da referência, também recorre aos
instrumentos da semiótica cultural, sem falar nos investimentos no campo do discurso, que é o
lugar de encontro das subjetividades. Em relação ao primeiro e ao segundo plano, valemo-nos
de registros que cercam o imaginário, na tentativa de superar o abismo entre representação
simbólica e o objeto da representação.
Quanto ao terceiro viés, também no plano da discursividade, busca-se desnudar esse
sujeito, descobrir seu papel, seu lugar, sobretudo, busca-se enveredar pelo universo polifônico
para, dentre tantas vozes, conhecer o discurso da mulher do cangaço.
Na dissertação de Mestrado, defendida em 2005, Ilsa Fernandes Queiroz (UFRN) cria
uma tensão dialética entre duas concepções, adotando o título “Mulheres no Cangaço:
amantes ou guerreiras?” Segundo a professora, seja qual for o papel, dentre os dois, a figura
da mulher ficará sempre na sombra, pois os registros, implícita ou explicitamente, realçam
sempre o mito da masculinidade.
A pesquisadora acredita que essa lógica oculta um papel mais significativo que as
mulheres tiveram no Cangaço e, para não incorrer no mesmo erro da história oficial,
contrapõe ao protótipo “amantes” um outro também emblemático – “guerreiras”. E explica
com que intenção reconstrói os termos e amplia suas conotações :
A “guerreira” a que nos referimos tanto pode ser a que empunhava armas de
fogo, como a que se contrapunha à dominação masculina de alguma forma.
“Guerreira” passa a ser, então, uma categoria central de análise, entendida
como mulheres determinadas, lutadoras, intuitivas e transgressoras
(QUEIROZ, 2005, p. 23).
Como vimos, será inevitável a problematização instaurada a partir de duas
representações sobre essas guerreiras, vítimas não só da rejeição cultural da sociedade, mas
também dos próprios cangaceiros, que consideravam as mulheres uma ameaça à ordem social
do grupo.
Enfrentaram não só a vida nômade, mas também outros desafios próprios de um
contexto, onde havia pouca descrição dos hábitos e vidas psicológicas de mulheres talentosas,
porém muitas referências a respeito das fraquezas dos seres humanos, em geral, e das
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mulheres, em particular. Conhecidas apenas como “amantes”, essas mulheres não mereceram,
na literatura, o estatuto de “guerreiras”, a não ser quando esse termo fica restrito ao uso de
armas de fogo.
As cangaceiras foram protagonistas anônimas, sim, mas pudemos coletar muitos
registros, na pesquisa bibliográfica, que atestaram as mudanças instauradas nos bandos a
partir do ingresso das companheiras. Nos estudos de Araújo (1985), visualizamos um cangaço
antes e depois das mulheres. Segundo esse pesquisador, elas tornaram os cangaceiros mais
humanizados e sensíveis ao universo tradicionalmente feminino, a ponto de modificarem o
comportamento sexual, bem como passaram a participar dos partos, além de se tornarem mais
vaidosos em relação à sua vestimenta.
Amaury, como referido, um dos poucos pesquisadores que se ocuparam com essa
matéria, recorre a figuras marcadas na história, como Helena de Tróia e Cleópatra do Egito,
para um cotejo com as heroínas dos movimentos sociais em Canudos, no Contestado, no Pau
de Colher, no Reino da Pedra Bonita, no Núcleo do Beato Lourenço, na Serra do Araripe etc.
Em todos esses e episódios, a figura da mulher sertaneja se destaca. Tanto
lutando como auxiliando os lutadores. Tanto vivendo o drama, a tragédia,
como sofrendo suas conseqüências, participando dos mesmos, não se
omitindo (ARAÚJO, 1985, p. 18).
Continuam a desfilar, nestes depoimentos, as personagens lendárias dos contos de
fada, mas os cenários não são os vales floridos e os verdes mares, são os caminhos
serpenteados do Raso da Catarina, na vastidão da caatinga. Nesses caminhos da errância
humana, as mulheres conheceram dias de glória, mas também enfrentaram as agruras de um
Sertão tangido pelas crises sociais:“Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte,
com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” (GUIMARÃES ROSA apud
ZATZ, 2004, p. 56).
O Sertão de Guimarães Rosa, de Euclides da Cunha e de Graciliano Ramos é o
mesmo Sertão do cangaço, um espaço que se define como unidade semântica, que reagrupa
representações sociais, para exibir o mesmo cenário de contradições. Seja metamorfoseado
em Baleia, seja transformado em beato louco, ou em monstros, ou em heróis, seja qual for a
representação, ali o homem estará sempre em busca de sua identidade sociocultural, em busca
de sua função histórica.
Tudo isso representa uma ressignificação dos papéis, inclusive uma desconstrução do
imaginário cultural associado a práticas de gênero – tanto em relação às mulheres quanto aos
homens cangaceiros, ambos reorganizados em outros moldes. Não queremos transformar esse
90
texto num estudo de gênero, antes pretendemos nos apoiar em pesquisas que discutem
questões concernentes a linguagem, a identidade e a memória social, para analisar as
experiências individuais, vividas e construídas coletivamente. Para chegar ao objeto de
estudo, procederei a uma análise mais ampla, ou seja, partir do universo mítico do cangaço,
onde se confundiam as fronteiras acima citadas. Em seguida, chegar à questão específica: qual
o lugar dessa mulher?
Quem são essas mulheres? Um misto de princesa e cigana, valentia e timidez. Assim
como bordam seus utensílios, bordam os caminhos da vida, tentando imprimir cor e alegria
àquele mundo, sempre ameaçado por inimigos e ciladas. As Marias, Dadás e Silas não
poupavam gestos de carinho, não se cansavam de espalhar amor, em forma de sexo, aos
companheiros; em forma de amparo, aos colegas do bando. Companheirismo e fidelidade: eis
os lemas que norteavam a conduta dessas guerreiras. Entregues a um destino incerto,
acreditavam na proteção divina, por isso seguiam firmes, nômades e com a esperança
quixotesca da utopia.
4 ANÁLISE SEMIÓTICA DOS FOLHETOS DE CORDEL
4.1 “Lampião: herói de meia-tigela”
4.1.1 Preliminares
Para a aplicação das categorias analíticas, nos dois primeiros fragmentos,
privilegiamos aspectos da literatura popular, que refletem a influência de fatores sociais,
ideológicos e religiosos, na construção do imaginário. São dois enunciadores com pontos de
vista contraditórios: de um lado, Manoel Monteiro se vale de um discurso agressivo, para
condenar o cangaço; por outro lado, a voz de Varneci Nascimento, que procura isentar o
movimento da versão criminosa, atribuída pelo discurso dominante.
Uma incursão nesse universo, seguramente, revelará as divergências entre versões
divulgadas pelos jornais da época, em relação às narrativas originárias da tradição oral.
Segundo Bezerra (2011, p.17), “o fenômeno nordestino, chamado Cangaço, sempre foi
retratado pela imprensa com adjetivos pejorativos, ao longo do tempo, o que faz com que o
grande público desconheça o viés social desse movimento”.
Convém reiterar que começaremos por um cenário mais abrangente, ou seja, o
fenômeno como um todo. Esse cotejo entre os dois cordelistas vem mostrar como as escolhas
91
podem promover a manipulação de símbolos para difamar o cangaço. Ao mesmo tempo,
como é possível apelar para modelos cognitivos, de forma a permanecer viva na memória
social da comunidade sertaneja a figura do guerreiro, do herói, que luta para libertar o povo da
opressão e das injustiças.
Para abrir esse tópico, escolhemos o cordel “Lampião: herói de meia-tigela”, do
cordelista Manoel Monteiro, da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, editado em
Campina Grande, 2ª Ed. junho de 2011, com uma produção alinhada a ideias defendidas pelos
detentores do poder na região. Bezerra (2009, p.19) se referiu ao discurso desse segmento da
seguinte forma: “A leitura que eles fazem sobre o cangaço se detém em duas formas de
comunicação: comunicar com estardalhaço, ou silenciar quando convém ao sistema.”
Parece-nos que o cordel em questão optou pela primeira forma, e assim ganhou feição
caricatural. Aliás, essa é uma característica do gênero, ao se tratar do tema cangaço: por um
lado, intimida através de uma leitura discriminatória, como se pode constatar no cordel de
autoria de Manoel Monteiro – da Academia Brasileira de Literatura de Cordel – “Lampião:
herói de meia tigela [...] Sobre a vida dessa escória [...] do facínora Lampião”.
O título “Lampião: herói de meia tigela” já antecipa a posição assumida pelo autor,
que faz questão de pintar o cangaceiro como bandido sanguinário, reforçando essa posição em
comentário expresso na contracapa do folheto.
Com o acervo de imagens figurativizadas, o narrador desenha, de forma caricatural, o
arquétipo de um ser da mais fina crueldade, por certo, um projeto de demonização. Vamos
conferir as escolhas: beijar os pés da maldade / amar a perversidade / ter a mente enfermiça /
figura amaldiçoada [...]. Terminado o cordel, não satisfeito com o desfile de títulos
pejorativos, ainda foram registradas algumas notícias de jornais contando um pouco da
história de Lampião, é claro, reiterando a mesma opinião, dada a esteira de atributos
negativos.
Na memória do nordestino, ficaram gravadas imagens aterrorizantes, medonhas,
emergentes das fábulas e lendas transmitidas pela oralidade. Então, o nome “cangaço”
funcionava como um freme ao qual eram associadas as figuras desse imaginário macabro.
Ademais, a imprensa oficial se encarregava de consolidar esse sentimento de repulsa, aliás,
dirigido a qualquer movimento de caráter insurgente.
De acordo com essa formação discursiva, o cangaço foi passado para muitas gerações
como um movimento de feição criminosa, cujas práticas perversas provocavam pavor. Por ser
um tema que suscita muitas versões, deve ser reexaminado, com o rigor exigido pela ciência,
para que sejam evitadas as distorções e os estereótipos.
92
4.1.2 Percurso da significação
Neste primeiro recorte, a sintaxe narrativa aponta para quatro sujeitos semióticos,
cujos percursos serão analisados separadamente, com enfoque para as três etapas da análise.
Com relação ao S1, figurativizado por Lampião e sua família, podemos identificar a
autodestinação, no caso, representada pelo trabalho do cotidiano em busca da subsistência.
Assim, perseguiam seu Objeto de Valor, que era administrar o roçado e um pequeno rebanho,
ou seja, os bens que lhe garantiam a sobrevivência. Viviam, portanto, em conjunção com seu
OV.
Mas esse percurso é quebrado quando os filhos se tornam rapazes e, na versão do
enunciador, semeadores de discórdia. Eles provocaram um incidente amassando um chocalho
de propriedade do vizinho, e daí:
Esse pequeno incidente
De um chocalho amassado
Uma brincadeira insossa
E um pai despreparado
Acenderam no Sertão
O facho de um lampião
Até então apagado.
A consequência desse fato foi o assassinato do pai, José Ferreira, a mando do
fazendeiro, dono da propriedade vizinha aos Ferreiras. Ao tomar conhecimento da morte do
esposo, Dona Maria definha e, após curto espaço de tempo, também vem a falecer.
O percurso narrativo do Sujeito 2 está, inevitavelmente, determinado por tais
acontecimentos. O Sujeito 2 está figurativizado por Lampião, que também se declara
autodestinador, vivendo para perseguir a vingança e a destruição – seu OV. Contou com a
ajuda do Padre Cícero Romão, de Juazeiro do Norte, não para alimentar tais sentimentos, mas
para afastar aquela obsessão. Foi este Adjuvante que conseguiu o posto de Capitão para o
cangaceiro.
93
Dário
Adjuvante: Padre Cícero
Oponente: João Bezerra
(vinga
nça)
Dor
(vingança)
S2
OV (destruição)
Figura 3 – Percurso narrativo do S2
Lampião, entretanto, não desistiu do objetivo traçado, buscando no cangaço uma
base para realização de sua meta. A opção lhe valeu a repulsa de um segmento da sociedade,
para o qual esse caminho representava o ingresso definitivo na marginalidade.
Só entrava no cangaço
Quem odiasse a justiça
Invejasse os bens alheios
Fosse um servo da cobiça
Beijasse os pés da maldade
Amasse a perversidade [...]
Assim seguiu Lampião seu percurso narrativo, aderindo a todos os métodos que
a vida nômade e aventureira lhe reservava. Foi tachado de facínora, criminoso, e outros
adjetivos do mesmo campo semântico. O foco da narrativa, então, se concentra no título de
“bandido”, dirigido a Lampião, em consequência, ao Cangaço, entendido como movimento
marginal e de resultados desastrosas.
O Sujeito3 é Maria Bonita que, embora pese sobre Lampião a pecha de bandido,
ela sonha em viver com ele – seu Objeto de Valor. Nesse contexto, a figura do ex-marido
surge como Oponente , espécie de antissujeito do S3, pois vive a ameaçar a mulher, tachandoa de prostituta. Essa voz oponente encontra respaldo nas regras morais da sociedade, um
julgamento explícito nos versos do cordel em foco.
Para finalizar o elenco de sujeitos semióticos, vem o S4, figurativizado pelo
Capitão João Bezerra, cuja destinação era perseguir o cangaço, ou melhor, extirpar aquilo que
representava um Mal, a vergonha do Nordeste. O enunciador, em comum acordo com os
projetos da Volante, anuncia o S4 com palavras elogiosas:
94
Como “bravo” comandante
Que estava dando as ordens
Aos meninos da Volante [...]
Assim o cordelista se reporta à tragédia final, não poupando o público ouvinte, ao
contrário, carrega o discurso de um teor tirânico, ao dizer “Por isso foi bom Angicos / Bom
que tivesse João / Foi bom que João tivesse / de um coiteiro indicação”.
Enfim, os versos fazem apologia ao massacre de Angico, à grotesca degola de
Lampião e sua gente, promovida pelo Capitão João Bezerra o qual, ao pôr fim ao cangaço,
entra em conjunção com seu Objeto de Valor.
Com base nesse desfecho, podemos dizer que, do ponto de vista da Semântica narrativa,
o Sujeito4 transita da competência à ação, promovendo as transformações demandadas pelos
coronéis e grandes proprietários de terras. Assim, interrompe o percurso do S2 e do S3 os
quais, na fase da sansão, são castigados com a morte. No campo da discursivização, fica
evidente a fase de manipulação, em que o Destinador recorre a um discurso de intimidação,
manifestado a partir do título “meia tigela”, e acentuado através das escolhas dos lexemas
“escória”, “crimes” e “facínora”. As marcas enunciativas delimitam o espaço, a partir da
origem – Vila Bela (hoje Serra Talhada) – na voz de um enunciador raivoso: “Por ser uma
região / que viu nascer Lampião / figura amaldiçoada.”
Com tal elenco de conceitos pejorativos, foi construído um papel temático,
figurativizado na categoria de “bandido”. Essa versão provém de um segmento que ainda
mantinha o ranço feudal e desdenhava das causas históricas, determinantes do fenômeno do
“cangaço”. Os elementos analisados, nessa fase da discursivização, constatam a leitura da
realidade cultural, fatalmente amarrada a condicionantes religiosos e político-ideológicos.
Tratando-se do campo de Estrutura Fundamental, vamos focalizar oposições que
transitam entre o Bem e o Mal. Pertencem ao primeiro plano os sujeitos que se opõem ao
Cangaço, enquanto no segundo plano fica a figura de Lampião, o perverso malfeitor.
Outra oposição está representada no octógono que segue, mantendo os mesmos
conceitos, ou seja, a tensão entre o Bem e o Mal, e mudando apenas as categorias tímicas
lexicais para Herói x Bandido.
95
Herói
Bandido
Cangaceiro
Cidadão
Não-bandido
Ø
Não-herói
Figura 4 – Tensão dialética entre herói vs bandido
Quanto às rupturas categoriais, preconizadas por Rastier, entendemos que, neste
contexto, a zona proximal de Lampião, seu mundo óbvio, é o mundo do crime e da destruição.
Por outro lado, a zona distal se identifica com as regras da justiça, da retidão e do equilíbrio.
Na opinião desse cordelista, os códigos do cangaço estão longe de metaforizar cangaceiros em
ídolos, ao contrário, eles são demonizados.
4.2 O Cangaço sustentado pelos coronéis
4.2.1 Preliminares
Há, entretanto, os que abraçam uma versão, em cujo teor desfilam lexias elogiosas. É o
caso do segundo cordel, escrito por Varneci Nascimento, baiano de Banzaê, católico
praticante, autor de mais de 120 folhetos. Escreve cordel desde 1998, mas só começou a
publicá-los a partir de 2001, quando foi convidado para fazer palestras na UNISA
(Universidade de Santo Amaro), no estado de São Paulo.
Nosso poeta foi classificado em 5º lugar num Concurso Nacional de Cordel,
promovido pela CPTM, em São Paulo. Em outro Concurso, na Bahia, obteve a 2ª colocação,
com o romance “O Amor vence o Racismo”.
O cordelista, ao contrário do anterior, analisa os fatos de forma contextualizada,
estabelecendo a relação entre causas e consequências. Fomos buscar esse exemplo na obra de
Erivam Felix Vieira, “Coronelismo e Cangaço no Imaginário Social” e o cordel vem
acompanhado do seguinte comentário: “Desconheciam os seus detratores que os valores de
96
valentia, coragem, fama e prestígio a ele imputados conferiam fundamento de legitimidade
social” (VIEIRA, 2012, p. 49).
Nesse cordel, o poeta elenca, por um lado, as práticas distorcidas de Lampião, mas, por
outro, procura justificá-las sob o argumento de que suas ações representam uma reação diante
das injustiças sofridas, como atesta o fragmento “Todo fato tem dois lados / um é bom, outro
é ruim”.
Esse texto também tem uma intensa força manipuladora, na tentativa de seduzir,
colocando o fenômeno num mundo idealizado, lá onde habitam mitos e heróis. Talvez para
afastar o medo dos fantasmas, por um desesperado mecanismo de defesa, o nordestino precisa
cultivar seus mitos. Assim foi em relação ao Padim Pade Ciço, e assim também permeia no
imaginário a figura hobyoodiana de Lampião, protetor dos pobres e desvalidos.
Para explicar melhor as categorias tímicas, levantamos três aspectos no cordel: (1) a
seleção dos atributos, bem ao gosto do discurso etnoliterário, porque impregnado do
sensacionalismo cotidiano: “infiéis, assassinos e cruéis”; (2) o determinismo que transforma
opinião em vaticínio “faço e renovo o convite / pra produzir a memória / sem os olhos cegos
da elite”; (3) A formação ideológica latente na desesperada defesa dos que são perseguidos,
em defesa dos injustiçados: “Criticam os cangaceiros / mas não se diz como foram
pisados...”. Enfim, todas essas imagens pesam quando o objetivo é mostrar elementos que dão
testemunho de vulnerabilidade, portanto, de não-conformidade com o equilíbrio desejado.
4.2.2 Percurso da significação
No percurso narrativo deste cordel, identificamos dois sujeitos semióticos: o S1,
figurativizado pelo Cangaço, e o S2 representado pelos Coronéis. Segundo o enunciador, há,
entre esses sujeitos, uma relação de contrariedade, à medida que a conjunção do S1 com o seu
Objeto de Valor – a justiça, implicaria, necessariamente, a disjunção do S2 com seu OV – a
destruição do cangaço.
Este folhetim apresenta uma configuração narrativa oposta ao modelo do primeiro,
uma vez que o S1, no caso, o cangaceiro, segue em busca não de valores negativos, mas de
justiça, que é o seu Objeto de Valor. Enquanto isso, o lugar da justiça, para o S2, o coronel,
está na fronteira oposta.
O enunciador, em Varneci, ao contrário do anterior, exerce a manipulação através de
um discurso sedutor, quando busca, no percurso narrativo, transformar enunciados de estado
em enunciados de fazer. Em outras palavras, transformar oprimidos em pessoas livres.
97
Criticam os cangaceiros
Chamando-os de infiéis
Assassinos e cruéis,
Mas não se diz como foram
Pisados por coronéis! [...]
Varneci Nascimento
As escolhas lexicais, no folheto 2, também refletem a orientação político-ideológica
explícita no percurso temático figurativo, porém na direção contrária, porque coloca o
cangaceiro como vítima de um processo. O primeiro cordel assume uma posição radical, com
marcas de um discurso canônico e dominante, próprio dos que odeiam a insurgência. Já o
segundo se alinha no horizonte das teorias sociológicas, as quais reconhecem as causas e
consequências, vinculadas ao contexto histórico.
Se analisarmos os elementos subjacentes às estruturas de superfície, iremos perceber
uma carga enunciativa presa a valores humanos, morais e culturais. Nos dois folhetos, o
mesmo sentimento disfórico em relação ao transgressor, com a diferença de que, nos
octógonos, ocorre a inversão das categorias tímicas. No primeiro, a moral dominante se volta
contra um infrator da ordem estabelecida, que é o cangaceiro, pertencente à camada popular
(S1); já no segundo, identifica-se a denúncia da violação dos direitos humanos, neste caso, o
infrator provém do segmento dominante (S2) – o coronelismo.
O octógono referente a este cordel tem configuração diferente, à medida que as
categorias tímicas se direcionam para valores positivos sobre o cangaço. A tensão dialética,
portanto, toma como base outros elementos referenciais, inspirados na luta pela justiça, não
com a ira dos que tentam difamar o cangaço, como se observou no Cordel1. Veremos, então,
o resgate de um herói elevado ao estilo hobhoodiano, com versos adaptados ao discurso
etnoliterário, como convém ao cancioneiro popular, uma leitura com efeitos catártico,
segundo Melo (2009, p. 71), “as pessoas redescobrem o seu mundo ou mundos onde elas
gostariam de viver”.
98
Tensão Dialética
Opressor
Oprimido
Cangaceiro
ca entre Oprimido e Opressor
Coronel
Ø
Não-opressor
Não-oprimido
Figura 5 – Tensão dialética entre oprimido vs opressor
No nível fundamental, devemos identificar valores que podem ser eufóricos
(positivos) ou disfóricos (negativos). Neste caso, por exemplo, “pisados por coronéis” – o
enunciador tenta justificar o motivo por que Lampião age daquela forma – valor eufórico. A
posição do interpretante se reveste de um viés muito mais emocional do que racional, como
convém ao discurso etnoliterário.
As escolhas, por exemplo, são orientadas por uma tendência apreciativa, para delimitar
propriedades que o produtor tem interesse em ressaltar. A seleção lexical, pois, deve apontar
para uma direção argumentativa, consequentemente, para cumprir a função de situar as
referências e enquadrá-las numa determinada perspectiva.
Foi assim em relação ao fenômeno do Cangaço, quando a imprensa desejava servir a
interesses particulares, escolhia um léxico recheado de termos pejorativos, para classificar o
movimento: bandidos, vândalos, saqueadores, assassinos etc. Fatores, como a repetição
constante e a crença na neutralidade da informação, encarregavam-se de legitimar esse
discurso. A partir dessas estratégias de manipulação, foram construídas, no imaginário
popular, as representações sociais sobre o movimento.
Se analisarmos do ponto de vista das zonas antrópicas de Rastier, também há um
deslocamento das categorias, se comparado ao texto 1: as práticas socialmente relevantes, que
fazem de Lampião um justiceiro, pertencem à zona proximal, ou seja, os sentimentos nobres
se localizam no entorno do S1; já a vingança e a destruição ficam na zona distal em relação a
este, e na proximidade do S2. Vejamos o esquema abaixo:
 Sujeito1 = zonas identitária e proximal = práticas do Bem
 Sujeito 2 = zonas identitária e proximal = práticas do Mal
99
Após esse cotejo entre pontos de vista contraditórios, seguem dois recortes que
versejam em duas direções: um explora o perfil lendário-mitológico do cangaço, com
Lampião sendo comparado a grandes heróis da História; já o outro recorre a ingredientes
bucólicos, para gerar uma relação simbiótica entre o cangaceiro e a paisagem natural do
sertão. Ambos recorrem a uma construção alegórica, típica do imaginário poético, seguindo
uma temática que evoca, ao mesmo tempo, o enraizamento e a bravura do homem nordestino.
4.3 Cancioneiro de Lampião
4.3.1 Preliminares
Vamos avançar para outro quadro, para entender que, às vezes, é possível desfilarem,
no percurso da sintaxe narrativa, vários sujeitos em busca de um mesmo Objeto de valor –
quase sempre o sucesso e a glória. Essa competência dos sujeitos para a ação não implica,
necessariamente, concorrência entre eles, já que o OV pode estar localizado em modalidades
espaciotemporais diferentes, conforme veremos no Cordel 3, em que o autor se vale de uma
situação analógica:
Cancioneiro de lampião
Nos doze pares de França
Foi buscar inspiração
Seu chapéu era igualzinho
Ao do rei Napoleão,
Valente como Olivério
Brigava como Roldão [...]
NertãMacedo
O poema “Cancioneiro de Lampião”, de Nertan Macêdo, foi colhido da obra de Carlos
Newton Júnior – “O Cangaço na poesia brasileira” – editado pela Escrituras, em 2009.
Considerado uma antologia de poemas sobre o Cangaço, o autor esforça-se para mostrar que
não é apenas no cancioneiro popular que se encontram as melhores rimas dedicadas a
Lampião. Diz Newton Junior (2009, p.13) que “pretende dar uma medida daquilo que os
poetas eruditos brasileiros têm produzido a partir do tema”.
Nas orelhas do livro, Frederico Pernambucano elogia, sobretudo, a seleção dos
poemas, reunidos em torno do mote do “irredentismo”, segundo o analista, uma tradição de
insurgência de uma raça castanha que não se rende ao mercantilismo do branco europeu.
100
Segundo o resenhista, a invocação aos mitos cria um cenário utópico, como se para enfrentar
as sequelas de vinte anos de império.
Ousamos comparar esse tipo de produção a tantos outros que serviram de pão e circo,
para mistificar o cenário e seduzir os desavisados. Com traço distintivo do gênero sériocômico, como se fora uma sátira, segundo Bakhtin (1993, p. 8), tais gêneros exerceram uma
influência muito grande na literatura cristã e ainda insistem em sobreviver, na memória, na
carnavalização, nos ajuntamentos, onde o povo, seguramente, prefere a comunicação com
estardalhaço.
Essa construção do imaginário apresenta natureza híbrida, já que alia abstrações
fabulosas às correntes de natureza filosófica. É como se a racionalidade histórica não desse
conta das aspirações do inconsciente, tendo-se que recorrer a um paradigma de herói, fundado
num patrimônio comum de tradições orais e feitos históricos.
Em que pese a força do discurso etnoliterário, aliado à figurativização, não podemos
negligenciar o teor político-ideológico subjacente nos referidos folhetos. Está evidente essa
característica político-ideológica, tal que nem mesmo a densa recorrência a um roteiro
conceptual de base mitológica consegue neutralizar.
A criação de modelos exemplares, que encarnam o Bem e a Justiça, são típicos das
fábulas, e subsistem na cultura popular como um desejo de segurança, como garantia de uma
proteção imaginária. Os mitos partem sempre de uma crença coletiva e dogmática, por isso
não se confundem com a racionalidade científica, ao contrário, habitam um mundo onde
predomina a afetividade e a imaginação. Fruto da influência medieval, tais mitos como que
provêm de desejos impregnados no inconsciente, desejos de superação, ou ainda, desejo de
conquistar uma cultura, ao mesmo tempo antiga e atual.
4.3.2 Percurso da significação
O percurso narrativo envolve vários sujeitos semióticos que serão resumidos em dois:
de um lado, o S1 a quem chamaremos de Herói Lendário (HL); do outro, o S2, figurativizado
nos mitos usados para a analogia, os Heróis Históricos (HH). A característica comum, que
serviu de base para a analogia, encarna as virtudes sobrenaturais, típicas das narrativas
fabulosas.
 S1 busca como OV = o desejo de dominação do mundo.
 S2 persegue o mesmo OV = desejo de dominação do mundo.
101
A diferença é que o S1, enquanto Herói Lendário, ainda não atingiu o estágio do “fazer”,
permanecendo no plano do “querer-fazer”, ou seja, das modalidades virtualizantes. A
conquista do modo atualizante continua sendo privilégio dos Heróis Históricos. Significa
dizer que ser HL é viver numa realidade utópica – vir a ser HH.
Queremos repetir, pois, a tese de que, nesse campo da semântica narrativa, em relação às
personagens históricas (HH) aí simbolizadas, a organização modal do sujeito atingiu a
performance, portanto está no plano das atualizações. Quanto ao sujeito operador Lampião
(SL), a transformação de estado permanece no terreno da competência, portanto, no plano das
virtualizações, pelo menos se levarmos em conta a dimensão do real.
Consideramos válido, também, associar a analogia do cordelista aos postulados de
Rastier: só haverá identidade, na ordem do mundo óbvio, com as rupturas do
eu/agora/possível, no caso do SH, sujeito projetado nos heróis históricos. Se, porém,
focalizarmos o sujeito Lampião = SL, as rupturas pessoal, local, temporal e modal só serão
transformadas de potencialidade a ação, no desejo do inconsciente popular, ou seja, no plano
ficcional, portanto o poder projetado (do Histórico para o Lendário) continua na zona distal.
Ocorre a ruptura entre os dois ícones da comparação – Heróis Históricos e Herói
Lendário – pelo fato de se tratar de dois percursos discursivos em situação desigual. Enquanto
os primeiros fazem parte da memória oficial, com registros na ordem mais racional, o Herói
Lendário habita a memória social, reunindo componentes de caráter afetivo.
S1 (Herói Lendário)
∩ OV (Memória Social)
S1 (Herói Lendário)
U OV (Memória Oficial)
S2 (Heróis Históricos) ∩ OV (Memória Social)
S2 (Heróis Históricos) ∩ OV (Memória Oficial)
Em que pese a reconhecida contrariedade entre as bases acima descritas, havemos de
reconhecer uma coincidência nas duas representações: é que ambas recorrem ao estatuto de
ídolos, já que estão saturados de simbologia. Podemos afirmar, pois, que tanto na história dos
heróis históricos (HH) quanto na dos lendários (HL), as tramas estão expostas à
metaforização. Com base nessa opacidade, podemos deduzir que fetiches e símbolos não são
privilégio do discurso etnoliterário, de que se reveste a linguagem alegórica dos cordéis;
também podem estar legitimados nos registros oficiais da mídia e na historiografia formal,
desde que interesse aos papéis temáticos, para fins de manipulação.
102
Na fase da estrutura fundamental, será válido reiterar que a rede de figuras estabelece
um paralelo entre heróis históricos e imagens míticas, estas últimas responsáveis pela
memória social, portanto pelo imaginário coletivo. Na concepção de Melo (2009, p.72) “é
neste espaço que ocorrem celebrações de liberdade, ao mesmo tempo, de uma realidade
virtual e uma virtualidade do real”.
S1 (H L) modalidades virtualizantes
S2 (H H) modalidades atualizantes
Realidade virtual
X
Virtualidade do real
Como vimos, o emprego de recursos retóricos não se restringe ao gênero clássicoliterário. Aliás, ao abordar as questões discursivas, avançamos para o terreno da Semiótica,
uma ciência que também se ocupa da capacidade humana de comunicação e de construção do
saber social. A abrangência de seu objeto de estudo exige o respaldo de outros campos, um
diálogo suscetível a uma cadeia de relações significantes, por meio da qual se refletem os
valores de uma comunidade.
4.4 Episódio Sertanejo
4.4.1 Preliminares
O poeta Paulo Bandeira é pernambucano, de Olinda, publicou, entre outros sonetos,
Itinerário do boi além do campo e O Evangelho consoante João. Extraído da obra “Ciranda
de sonetos”, o cordel em questão traz uma temática ligada à “terra” como paradigma
identitário da cultura. Não é um apelo telúrico impulsionado pelo culto nacionalista, que se
desenvolveu durante o Romantismo, até porque o contexto sociocultural não permitia esse
retorno ao ufanismo romântico.
Mas não se pode deixar de ver a natureza laudatória dos versos de Paulo Bandeira; é
evidente que esse canto de louvor à “territorialidade” sugere, acima de tudo, uma força
humana prodigiosa que só na união se realiza. O imaginário poético está impregnado da
cumplicidade homem-terra, nesse processo de enraizamento que encontra na arte popular
terreno propício para adubação e produção.
Para ilustrar esse debate, lembramos um poema da jornalista e ensaísta baiana,
Myriam Fraga, cujo lirismo dialoga com esse cordel de Bandeira, já que ambos recorrem à
103
imagem simbiótica “São teus olhos carvões que me devoram / São teus beijos fosforescência
de mel / Travo forte das frutas [...]”.
A diferença é que, no cordel, a transfiguração motiva um viés identitário, da relação
homem-terra; no caso do poema de Fraga, o efeito de sentido vai além da dimensão cultural,
porque exalta, especificamente, o sentimento que une os extremos, com o conseqüente
encontro do lírico com o erótico.
Finalmente, trazemos, para fechar esse tópico denominado “Preliminares”, o comentário
de um popular, que sempre acompanhou com simpatia os causos sobre o Cangaço. O referido
colóquio ocorreu em um café, na cidade de Maceió, e faz parte das memórias da escritora
Raquel de Queiroz, registradas em uma obra organizada por Gomes, neta de Lampião,
Transcrevemos um fragmento que diz assim: “E Maria Déa, a mulher d o sapateiro, nascera
sob o signo da força. Queria vida, liberdade, violência. Um homem” (FERREIRA; ARAÚJO,
2011, p. 223).
Esse fato traz um depoimento que, ao lado do cordel de Bandeira e do poema de Fraga,
confirma os dotes de Maria Bonita, revelando não só a graça feminina, mas, sobretudo, a
determinação para perseguir a felicidade. Era armada de afeição, mas também poderosa, por
isso Lampião se entregou e virou outro, conforme informação de Dantas (Ibidem, 2011, p.
233): “Quem me dera um mundo diferente, sem cerca e sem traição, sem cancela e sem
persiga [...]”
4.4.2 Percurso da significação
A propósito da estrutura narrativa, temos um Sujeito figurativizado em uma fantástica
representação de – homem & terra. Dessa vez, não é lenda nem mito, é admiração por essa
figura imbricada, um homem que é o que é pelo espaço que ocupa, pelos princípios culturais
que defende.
Episódio sertanejo
Tua gravata de urtiga
tua farda de avelós
tua alpercata de légua
e um boi trançado na voz [...]
Paulo Bandeira da Cruz, 1985.
Somando aos conceitos semióticos uma base antropológica, podemos dizer que o Sujeito1 é o
homem, em busca de seu Objeto de Valor – a terra, enquanto espaço de identidade cultural.
104
O Sujeito2 é a terra, em busca de seu Objeto de Valor – o homem, enquanto resgate da
imanência telúrica.
SIMBIOSE
SUJEITOS
SEMIÓTICOS
TERRA
HOMEM
Figura 6 – Simbiose homem - terra
Mas, ao lermos os últimos versos do cordel, procedemos a outro percurso narrativo: “Fogofátuo no Angico / (procissão de dor e grito) / e a cabeça do proscrito / Virgulino Lampião /
cortada por um milico”. Sob essa perspectiva, a análise seria mais específica, com dois
sujeitos semióticos em clima de guerra: Sujeito1 = Lampião, cujo Objeto de Valor é vencer a
Volante e escapar da morte; o Sujeito2 é a milícia, destinada a perseguir Lampião até a morte.
Do ponto de vista de Semântica Narrativa, os versos acima anunciam a vitória da
Volante, que passa do querer-fazer para o poder-fazer. A referência a Angico define a
passagem da potencialidade à ação, com a conseqüente “degola” de Lampião e seus
companheiros.
Em relação ao início do texto, o enunciador recorre a imagens líricas, a metáforas,
para homenagear o sujeito de “gravata de urtiga” e “farda de avelós” – urtiga e avelós,
liricamente usados, escondem os efeitos agressivos dessas plantas sertanejas, para se
transformarem em artefatos constitutivos da indumentária do cangaceiro, para se
transformarem em ingredientes cúmplices dessa figurativização de “herói”.
É como se o cangaceiro depurasse essa mistura do profano, do lírico e do popular.
Nesse contexto, o percurso figurativo se inebria de cheiro e de cor, uma sensação direcionada
a conduzir o enunciatário ao seio da terra. Não poderia ser outra a interpretação desse cordel,
cujas figuras, sinestesicamente construídas, avançam para uma performance conquistada pelo
universo das personagens euclidianas, tal a luta, a garra, a errância: alpercata de légua (como
a de “sete léguas”, do conto popular)/ um boi trançado na voz (a voz é um berro) / bornal que
105
a fome mastiga(...) Essa recorrência a símbolos constata a tendência da literatura popular para
um universo ambivalente, como referido, porque sitiado entre a fantasia e a realidade.
Assim também procede a lírica da poetisa Fraga, que adotamos como texto de
apoio, quando promove o belo encontro do lírico com o erótico. Diante do efeito de sentido
provocado pelos arranjos, a linguagem se liberta do seu torpor metafórico, para falar,
explicitamente, do que interessa, ou seja, das sensações tátil-visuais que ganham força na cena
final:
Teus beijos como lâminas
Como espadas
Pasto de aves meu corpo
Que trabalhas
Como quem corta e lavra [...]
Myriam Fraga foge, então, do roteiro convencional, para mostrar uma mulher
apaixonada, uma Maria Bonita, sem a aura de rainha, mas assumindo seus desejos femininos;
uma Maria distante da ingênua Cinderela, porém materializada em fêmea, sem o pudor do
moralismo cultural reinante.
S (Maria Bonita)
∩
S (Maria Bonita)
U O (moralismo burguês)
O (amante Lampião)
O tema erótico, figurativizado no emprego metafórico de elementos e ações da
natureza, transfere para a condição humana o prazer liberto dos vícios e vulgaridades.
Também aqui flagramos o cruzamento de sensações formando a sinestesia, como já referido,
recurso que empresta ao texto um sabor doce e agreste: “Vem e apaga / Na pele do meu peito /
Esta fome sem data.”
Nesta passagem, o cruzamento de sensações reitera a sinestesia e, já que uma das
características da linguagem verbal é a sua incompletude, a poetisa busca modelizar o mundo
por diferentes apelos. O apelo ao erótico se sobressai, através de conjuntos de signos que, ao
interagirem, reforçam o espaço de produção e de interpretação.
Os encantos da literatura popular residem, sobretudo, na força dos frames, capazes
de acordar os fantasmas do nosso inconsciente, forçados que somos a fazer associações. As
analogias nos levam a colher, através de um ato reflexivo, aquilo que estava retido na
memória, mas de forma desordenada. As imagens construídas nesse cordel fazem emergir
corpos cobertos de folhagens, homem-peixe, mulher com calda de peixe, enfim, homens e
106
troncos de árvores compondo uma unidade – amálgama que vagueia entre a realidade e a
ficção.
São figuras lendárias que se reconhecem no território das zonas identitária e proximal,
em cujo entorno situam-se as demandas culturais, com seus fetiches e ídolos. Na zona distal,
localizamos um cangaço desenraizado, sem história, distante da feira, dos cordéis, e dos
apelos populares. Com relação de proximidade, apenas, na austeridade racional do discurso,
predominante e típico, da memória oficial.
4.5 A mulher e o Cangaço
4.5.1 Preliminares
No espaço reservado à presença das mulheres, predominam os cordéis que focalizam a
figura de Maria Bonita, presa a diferentes temáticas, em versos que misturam o lírico ao
erótico e ao épico. Claro que os ingredientes da semiose, na literatura de cordel, apresentam
um colorido mais instigante, na alegoria da linguagem etnoliterária, as ilustrações nos tocam
pela força do sentimento. Pode parecer óbvio, mas precisamos insistir no fato de que essa
figurativização do mundo é característica dos cordéis, nos quais não se flagra qualquer traço
de austeridade racional, daí por que fomos buscar apoio nos efeitos produzidos pelo discurso
etnoliterário.
Os cordéis desse segundo quadro foram analisados mediante moldura tipológica
programada como “Vozes e ecos sobre a saga das mulheres”. Essa estratégia metodológica
tenta reforçar a tese inicial de que a microestrutura está condicionada aos valores agregados
ao contexto macroestrutural. Dessa forma, o segmento feminino, no interior do cangaço, não
consegue mostrar a “cara”, a não ser comparada a mais um adereço de feição estética ou
cultural.
Debatendo-se entre o complexo de Cinderela e a cumplicidade do Tarzan, elas se
rendem a um contexto sociocultural, que parece dirigido, exatamente, para serem carreadas
essas representações sociais, como podemos antever na seguinte transcrição (versos de
domínio popular, publicados no DP, transcritos por Monteiro (2002, p. 64).
As moças de Água Branca não cozinham mais feijão
pois só vivem na janela esperando Lampião.
Para abrir o cenário dedicado às mulheres, focalizamos um folheto de Fanka,
poetisa cearense, que se debruçou sobre as pesquisas no campo da cultura popular,
107
preocupada em focalizar as transformações propostas pelas mulheres, ao ingressarem no
mundo nômade do cangaço. É uma posição abalizada por conhecidos teóricos que trataram
do mesmo tema, entre eles, Antônio Amaury.
Para ilustrar esse viés, que trata do ingresso das mulheres no cangaço, vale
lembrar um depoimento de Ângelo Roque, registrado no livro “Nas entrelinhas do Cangaço”
1994, da pesquisadora também cearense Fátima Menezes. A autora se declara apaixonada
pelo tema, disposição que é revelada pela seleção das ilustrações e dos depoimentos.
Discorre sobre o Cangaço como se tivesse penetrado no Raso da Catarina, tal a
cumplicidade que demonstrou ao descrever o grupo em errância pela caatinga.
Menezes registra a posição de Ângelo a respeito do comportamento dos
homens após a entrada das mulheres no bando, estendendo-se também às condições a que as
cangaceiras se submetiam. “Com a participação feminina no bando, os homens não
mudaram apenas o seu comportamento em relação aos estupros. As vestimentas dos
cangaceiros ganharam um novo colorido e mais enfeites [...]”
O texto de Ângelo pode ser dividido em dois núcleos temáticos: o primeiro se
prende às qualidades das mulheres, dotadas que eram para trabalhos manuais; quanto ao
segundo núcleo, trata-se do receio de alguns cangaceiros, liderados por Balão, a respeito da
fidelidade das mulheres dentro do bando. Está explícita, no depoimento, a lei que prevê
castigo fatal para o caso da traição feminina: “[...] segundo a lei do cangaço, era morte
certa.”
É certo que existem semelhanças entre a temática de Fanka e a de Ângelo, porém
devemos chamar a atenção para as possíveis diferenças. No cordel, constatam-se traços
afetivos, em um discurso, obviamente, permeado por posições eufóricas, em relação às
mulheres. Já o depoimento se reveste de um teor mais racional e, se reconhece alguns dotes,
por um lado, levanta alguns questionamentos de ordem disfórica, por outro lado “Muitas
mulheres passaram pelas hostes do cangaço. Muitas se celebrizaram: pela beleza física,
outras pela valentia, e outras ainda pelas traições ao companheiro”.
Reunimos, neste espaço, elementos analíticos capazes de configurar um universo de
ilustrações, que respondem às perguntas levantadas nesta pesquisa, orientada para uma
releitura acerca do cangaço, especificamente, as mulheres do cangaço. Trata-se da reunião de
um poema e sete cordéis, nos quais vamos focalizar peculiaridades referentes à saga particular
envolvendo aquelas guerreiras que se aventuraram pela vida nômade do cangaço.
Já dissemos antes que Maria Bonita foi a primeira mulher a ingressar no grupo, pois
agora vamos conhecer um cordel, cuja temática foca o Cangaço antes e após o ingresso das
108
mulheres. A assinatura é de Fanka, uma cearense de Juazeiro do Norte, pesquisadora no
campo da literatura popular, tendo concluído seu doutorado nessa área, no PPGL – UFPB.
No texto da Dra. Fanka, vislumbramos a intenção de destacar a coragem e
determinação das mulheres, na tentativa de aliviar as tensões no mundo do cangaço. Ela
acredita que, realmente, houve mudanças a partir da inserção das mulheres; acredita que elas
inauguraram um novo jeito de viver, forçando o cangaço a equilibrar-se num jogo dialético,
construído a partir da antítese violência vs. afetividade.
Em que pese a força dos versos da Doutora, as pretensas mudanças ainda povoam um
cenário idealizado pela literatura popular, levando-se em conta a linguagem alegórica dos
cordéis, que tanto podem revelar como prestar-se ao simulacro. Quem poderá decifrar o
inconsciente simbólico coletivo, com suas configurações míticas, responsáveis pela nossa
maneira de pensar, sentir e agir?
Enfim, enquanto Fanka acredita, sem nenhuma restrição, que as mulheres
humanizaram o cangaço, transformando um ambiente hostil em oásis de afetividade, alguns
depoentes, a exemplo do já referido Ângelo Roque, fazem questão de lembrar as convenções,
as quais acabam por neutralizar o efeito laudatório do cordel. Vale insistir mais uma vez no
aspecto da diferença de gênero, já que o discurso do depoimento tem caráter documental, mas
os versos da poetisa se revestem de emoção, como convém ao discurso etnoliterário.
Pretendemos focalizar as três fases do Percurso Gerativo do Sentido, atendendo à
sequência prevista nos manuais da semiótica francesa: (1) transformação de estados pela ação
do sujeito; (2) o sujeito transfere para a narrativa as marcas discursivas; (3) o cenário das
oposições, espaço onde se analisa a semântica mínima.
Aplicaremos, também, neste bloco, as rupturas categoriais preconizadas por Rastier,
com o objetivo de relacionar as fronteiras empíricas, com base nas zonas identitária e
proximal, e o mundo transcendente, de responsabilidade da zona distal. À primeira
conjuntura, devemos agregar elementos que evidenciam o terreno dos fetiches, enquanto na
segunda recorreremos aos ícones, que vão representar os símbolos.
4.5.1 Percurso da significação
A mulher e o cangaço
Autora: FANKA
Da história do cangaço /Muito tem pra se saber:
Enfeite e bala de aço / Conhaque para beber.
109
A mulher participando, / Sugerindo nesse bando
Outro jeito de viver.
Há dois sujeitos semióticos: Sujeito 1 (cangaceiros) e Sujeito 2 (mulheres do cangaço).
Sobre o sujeito 1
O S1, destinado pela cobiça, vai em busca de seus Objetos de Valor, a riqueza e a
violência. No caso também aparece um antidestinador, que seria o amor que esses cangaceiros
sentiam por suas mulheres. Também podemos dizer que, no Programa Narrativo do Sujeito 1,
as mulheres aparecem como oponentes e também como antissujeitos, já que se torna possível
tais funções serem ocupadas pelo mesmo sujeito. O oponente é quem, de alguma maneira,
atrapalha o sujeito, pode ser a chuva, a seca ou outro sujeito, como nesse caso. O antissujeito
é aquele que busca um objeto de valor contrário ao S1, porém, às vezes, ele não atrapalha o
sujeito.
Dário
Adjuvante
(falta de justiça)
S1
Oponente
Dor
(Amor pelas mulheres)
OV1 (riqueza)
Figura 7 – Percurso narrativo: Mulheres no cangaço
Pode-se dizer que, a partir do momento em que os cangaceiros atenderam aos pedidos
de suas mulheres, eles passaram de uma situação de conjunção à disjunção com seu objeto de
valor “violência”.
PN= F[S1→ (S1∩OV2)→(S1UOV2)]
Sobre o sujeito 2
O Sujeito 2, mulheres do cangaço, é autodestinado por sua vontade e vão em busca de
seu objeto de valor, a paz. Nesse contexto, elas têm como adjuvante o amor de seus “homens”
e como oponentes os próprios cangaceiros, movidos por sua cobiça e ajudados pela falta de
110
justiça. Os cangaceiros também representam, no programa narrativo do S2, o antissujeito,
uma vez que seu objeto de valor se opõe diretamente ao que buscam suas mulheres.
Pode-se dizer que, a partir do momento em que os cangaceiros atenderam aos pedidos
de suas mulheres, o Sujeito 2 (mulheres do cangaço) passou de uma situação de disjunção a
conjunção com seu Objeto de Valor “paz”.
PN= F[(S2UOV1)→(S2∩OV1)]
No patamar das estruturas narrativas, identificamos, pois, um Sujeito tentando mudar
o estado de turbulência para estado de tranquilidade, ou seja, “outro jeito de viver”. Com base
na seleção lexical do cordel, é válido afirmar que o Sujeito-Mulher cumpriu os papéis do
saber e do querer-fazer.
O programa narrativo, no cordel de Fanka, cumpre o percurso hierárquico de
enunciado do FAZER e do enunciado de ESTADO, pelo menos na imaginação da poetisa,
que insiste em mostrar a competência feminina na busca de um estado de conjunção com o
seu Objeto de Valor.
Nessa sucessão de estados e de transformações, flagramos, na
linguagem alegórica do cordel, a imagem romântica de um cenário em que a mulher é capaz
de semear afeto e flores, onde antes só havia espinho.
Ainda sobre estruturas narrativas, pode-se falar em S1– diz respeito às referências
elogiosas, um sujeito que passa por uma transformação, para ceder aos apelos do outro,
descobrindo Objeto de Valor e com ele entrar em conjunção, portanto capaz de passar da
potencialidade à ação.
O S2 – representado pelas mulheres ameaçadas por leis machistas, cujo conteúdo as
tornam vulneráveis a uma espécie de pré-julgamento, em virtude da insegurança presente no
discurso de alguns homens.
Eis o vaticínio de Balão, um cangaceiro que lutou sistematicamente para evitar a
inserção de mulheres no bando: “Homem de batalha não pode andar com mulher. Se ele tem
uma relação, perde a oração, e seu corpo fica como uma melancia: qualquer bala atravessa”
(BALÃO apud PERNAMBUCANO, 2010, p. 52).
Cabe aqui fazer uma alusão à semiótica das paixões no sentido de explorar os efeitos
de uma configuração de modalidades que se desenvolvem em vários percursos passionais.
Observam-se, por um lado, estados da alma fortemente localizados no terreno da
“malquerença” – quando o foco são os homens– relações modais de hostilidade e ódio; por
111
outro lado, a satisfação e a confiança femininas conduzem à “benquerença” da afeição, sob a
forma da amizade, da estima e da simpatia.
Chegamos à etapa em que as estruturas narrativas convertem-se em discursivas,
passando para a instância da enunciação, lugar onde se integram os componentes que vão
materializar o plano da manifestação. Exatamente nesse território é que se configura um
contexto em que o sujeito instaura o discurso e se converte em sujeito histórico, social e
ideológico. Nesse plano, podemos flagrar marcas de uma prática discursiva capaz de intervir
na realidade “A Maria participa e sugere nesse bando outro jeito de viver”.
Em relação à semântica discursiva, podemos observar, na primeira estrofe, escolhas
lexicais que imprimem ao texto imagens predominantemente figurativizadas. Na segunda
estrofe, porém, o cordel realça a tematização, à medida que invoca as relações de causalidade,
no trecho “pela falta de justiça/ e também pela cobiça”.
Voltamos aqui às modalizações da Semântica Discursiva, no caso dos depoimentos
sobre o Sujeito Dadá. Este reconhece um estado de disjunção – saber e não querer – mas luta
para alcançar o estado de – querer-fazer. Dessa forma, reconstrói o percurso e entra em
conjunção com o seu Objeto de Valor. Aí estão valores do ser humano, quando consegue
vencer a barreira das paixões negativas, ressentimentos e ódio, para aderir a uma dimensão de
harmonia e amizade.
Os relatos de Zatz (2004) continuam no mesmo patamar de admiração por aquela
mulher que soube transformar um estado de ódio em um sentimento contrário, um amor que
durou a vida inteira Zatz (2004 p.40) “[...] aí, então, viramos carne e unha, nós dois, eu
enfrentava qualquer coisa ao lado dele”.
As marcas de pessoa, no depoimento de Dadá, confirmam a instalação no enunciado
do eu, que utiliza o tempo da enunciação. Trata-se, nesse caso, de embreagem actancial e
temporal enunciativas. As formas verbais “viramos” e “enfrentava” constituem representações
evidentes de um tempo não concluído, ou seja, um tempo duradouro.
Sejam as leituras temáticas – de “dominação e luta pela justiça” –, sejam os
investimentos figurativos materializados nos performativos “pedir, comandar, amenizar,
mudar” – são todos caracterizados pela oposição de traços sensoriais, espaciais e temporais
que separam, no texto, a vida no Cangaço – antes e depois da mulher.
Quanto ao nível das estruturas fundamentais, reconhecemos como oposição semântica
mínima o quadro que segue, em que os termos encontram-se em relação de contrariedade, já
que expressam, por um lado, a ação redentora do Sujeito-mulher e, por outro lado, a ação
112
vingativa do Sujeito-homem. Longe de representar um trabalho de gênero, o texto de Fanka
alimenta os velhos mitos cristãos, pondo a salvação nas mãos da mulher.
Cangaço antes X Cangaço após a mulher
violência X afetividade
Um jeito de viver X Outro jeito de viver
No texto, as categorias fundamentais, tachadas como negativas ou disfóricas, são
expressas linguisticamente por uma sequência vocabular permeada de substantivos que se
associam ao campo semântico da masculinidade: bala de aço, conhaque para beber,
bagaceira, violência; por outro lado, as intervenções femininas são interpretadas como
positivas ou eufóricas, como se pode atestar nos termos associados à pretensa ação das
mulheres: amenização, outro jeito de viver, muita coisa se mudou. Assim, as escolhas feitas
pelo Sujeito-enunciador guiam o enunciatário nesta difícil operação interpretante.
Cangaço
Vingança
Redenção
Mulher
Homem
Não-vingativo
Não-redimidoNNkkk
Não-redimido
Ø
Figura 8 – Tensão Dialética entre Redenção e Vingança
Para aplicar o quadro de categorias analíticas preconizadas por Rastier, temos que
nos reportar aos elementos epistemológicos da Antropologia, para estabelecer relações
coerentes entre o homem e o seu entorno. Não seria possível explicar, por exemplo, a ruptura
de TEMPO, sem associá-la a um enredo em cuja trama vamos perceber um passado (sem as
113
mulheres), construído com ódio, agressões, violência. Em contrapartida, um presente (com as
mulheres) em que se antevê a esperança de mudança.
Em relação a ESPAÇO, repete-se o quadro, pois constatamos um “aqui”, povoado de
fetiches relacionados a guerras; e um “lá”, com os ídolos que se materializam no desejo de
paz. Enquanto os primeiros estão nas zonas identitária e proximal dos cangaceiros, os
segundos permanecem na zona distal em relação às mulheres.
A correspondência proposta no quadro de Rastier também exibe a tensão dialética entre
os indicadores de PESSOA – “eu/nós”, por um lado, apontando para o mundo óbvio, e
“tu/vós”, por outro, correspondendo a um mundo ausente. Seria o mesmo dizer que, nas
categorias “eu, aqui e agora”, atesta-se a representação de um cangaço, onde impera a
violência; as contraditórias seriam “tu, ali, em seguida”, configurando a distância entre o real
e o idealizado.
Com relação à ruptura de MODO, devemos associar o “certo” ao contexto históricosocial de onde brotou e se desenvolveu esse fenômeno nordestino, com suas causas e
consequências. A certeza que existe é de que o cangaço foi o resultado das crises de ordem
econômica, política, ideológica e de autoridade. Neste cenário, devemos identificar as
bandeiras das zonas identitária e proximal, terreno onde habitam as coincidências, e onde se
identificam as vozes dos que respondem, com violência, à injustiça institucionalizada.
O “provável” vai corresponder à grande metáfora patrocinada pelas personagens
quixotescas, todas aquelas que povoaram os romances de Rabelais, e que levaram Bakhtin a
formular a sua tese da carnavalização. No entorno deste ser, criado pela antropologia
semiótica, encontram-se as imagens e símbolos de uma luta metaforizada nos cordéis e
divulgada pela voz da sabedoria popular: a voz dos simples e dos românticos.
Esse desejo deve ser localizado na zona distal, lá onde se localizam as rupturas, com
seus respectivos componentes: “ele/se/futuro/alhures/irreal” – o mundo transcendente –
habitado pelas mulheres que, voluntariamente ou não, abraçaram a vida nômade do cangaço.
As mulheres, que lutaram por “outro jeito de viver”, são as mesmas que emergem na
linguagem alegórica da literatura popular.
114
4.6 As Mulheres Cangaceiras Humanizaram o Cangaço
4.6.1 Preliminares
Para dar sequência à proposta temática, trazemos a seguir um folheto de Kydelmir
Dantas, membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, Mossoró – RN.
Com o cordel “As Mulheres Cangaceiras Humanizaram o Cangaço”, Kydelmir faz uma
exposição, mostrando as duas fases do movimento, sendo a segunda enfeitada pela presença
feminina, como ele diz: “Surgiu a Maria Déa / Quebrando toda a rotina”. Desfilam, no cordel,
várias mulheres, sempre acompanhadas dos respectivos companheiros. Enfim, é válido dizer
que o texto tem um viés otimista e laudatório.
Esse texto enriquece a discussão sobre o ingresso das mulheres no movimento do
cangaço, já que traz elementos que fortalecem o viés histórico-cultural. O título “As Mulheres
Cangaceiras Humanizaram o Cangaço”, já antecipa a posição do autor, Kydelmir Dantas,
membro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, Mossoró – RN. O folheto
traz um elenco significativo tanto da ala masculina como da feminina. Faz questão de situar o
movimento a partir da origem: “Foi Cabeleira o primeiro / Com seu bando pequenino /
Também o Lucas da feira / Baiano muito ferino / Viriatos, Guabirabas / E o grande Jesuíno”.
Acompanha Fanka em relação ao teor laudatório do texto, com escolhas de epítetos–
“quase que um cavaleiro andante” – com que constrói uma saga segundo a qual a entrada
para o cangaço está amparada em razões históricas e sociais. Preocupa-se, também, com
detalhes terminológicos, por exemplo, a explicação do nome: “Em noite de escuridão / Seu
rifle brilhava tanto / que „alumiava‟ o sertão/ Daí ficou conhecido / Por alcunha Lampião”.
Nos versos de Kidelmir, vamos identificar aspectos característicos da cultura popular,
destacando-se a trama conhecida como lavar a honra com a morte da mulher adúltera.
Lembramos, também, os títulos de “Rainha” e “Princesa”, valores que mantinham viva a
velha aristocracia monárquica, na memória coletiva.
Finalmente, um traço da cultura nordestina é que o homem sempre aparece como dono
da mulher: Dadá de Corisco, Sila de Zé Sereno, Lídia de Zé Baiano, Nenê de Luiz Pedro,
Inacinha de Gato, Lili de Moita Brava, Áurea de Manuel Moreno, Maria de Azulão etc. Todos
esses detalhes depõem em favor da problemática da nossa pesquisa, quando realçam os
fatores históricos e culturais, que condicionam a trajetória das mulheres ao contexto geral.
115
4.6.2 Percurso da significação
No percurso narrativo, existem três sujeitos semióticos, instaurados pela modalidade
do dever-fazer as transformações. Importante reiterar que, porque todos estavam
condicionados aos mesmos fatores histórico-culturais, apresentam o mesmo Objeto de Valor –
vencer os obstáculos que faziam do Nordeste uma região atrasada e violenta.
No percurso do Sujeito1, vamos encontrar a figurativização dos primeiros cangaceiros:
O Cabeleira, Antônio Silvino e Jesuíno Brilhante. O destinador atribui a eles a “fama de
justiceiros”, portanto buscavam valores do Bem, como a justiça e a solidariedade.
O Sujeito2 está discursivizado em Lampião, que se destina ao mesmo Objeto de Valor:
lutar em defesa da população carente. Os Adjuvantes de Lampião ora são figurativizados por
nomes próprios, como Sinhô Pereira e Luiz Padre, ora com papéis temáticos, como primos e
amigos. Quanto aos Oponentes, cita o próprio contexto: Foi um tempo atribulado / No
Nordeste brasileiro.
Relata, também, o sentimento disfórico instalado pela traição do coiteiro em quem
Lampião confiava. Essa refrega lhe custou algumas perdas: Colchete morreu na hora /
Jararaca foi ferido / mais uns três foram chumbados / Com o bando esmorecido / Fugiu para o
Ceará / Com seu orgulho banido.
No percurso narrativo, vamos encontrar ainda o Sujeito3, figurativizado pelas
mulheres, com especial enfoque para Maria Bonita. Todas elas são destinadas a perseguirem
seus Objetos de Valores, representados pelos companheiros. Aliás, o cordelista cita todas as
representantes do S1 acompanhadas do correspondente OV.
Quanto ao Sujeito3 discursivisado por Maria Bonita, destina-se o papel principal, não
só por ter sido a primeira a quebrar a rotina do cangaço, mas também por ser destinada a
Lampião. Em face desses adereços, Kidelmir a trata como “Independente e valente / Sedosa
igual uma chita / A Rainha do Cangaço / Foi a Maria Bonita”.
É importante registrar a preocupação de Kydelmir em delimitar as dimensões espaçotemporais, por exemplo, ao citar, com precisão, “em nove (9) dos oito (8) estados / o cangaço
fez roteiro (...) / Pernambuco, Paraíba, E o Rio Grande do Norte / Mas topou em Mossoró /
Um povo valente e forte”. As referências a tempo também são recorrentes: “E no ano de
dezoito (1918) / Entrou na década de vinte (1920) / A 13 do mês de junho, de vinte e sete
(1927) o ano / No ano de vinte e oito (1928)”.
Mas logo as paixões negativas foram substituídas por uma luz que lhe invadiu o
coração, transformando o estado de tristeza em estado de felicidade. Foi quando lhe apareceu
116
“Uma morena formosa / com os olhos de catita / Independente, valente / Sedosa, igual a uma
chita.”
Maria Déa deixou sua casa, para abraçar a vida do cangaço, elegendo Lampião como
companheiro e amante. Começa, então, uma nova etapa na vida dos cangaceiros. Em que
pesem as cismas do desconfiado Balão,“A presença feminina / O cangaço humanizou”. Como
podemos ver, há um diálogo de grande cumplicidade entre Kidelmir e Fanka, ambos
assumindo papel de Adjuvantes quanto à relação do Sujeito-Mulheres, tendo como Objeto de
Valor a “Humanização do Cangaço”.
O notável cordelista, para exaltar o papel do segmento feminino, promove um desfile
de nomes próprios e papéis temáticos, numa ordem hierárquica, começando com a Rainha do
grupo, Maria Bonita. Em seguida “Nas margens do São Francisco / Apareceu a Princesa / de
temperamento arisco / Foi Sérgia da Conceição / Companheira de Corisco”.
Continua o elenco com Sila de Zé Sereno, Durvinha ou Durvalina, companheira de
Moderno, Adília, Cristina, Lili e Enedina. “Inacinha foi de Gato / Um cangaceiro arisco /
Maria, de Juriti / E Lídia , de Zé Baiano”. Esta última destacava-se pela formosura, mas teve
um fim trágico. Lídia não conseguiu, como Maria Bonita e Dadá, entrar em conjunção com o
seu Objeto de Valor (a boa convivência com Zé Baiano). Sabia o que queria, mas não atingiu
as modalidades atualizantes, porque o ciúme e a brutalidade de Zé Sereno interromperam seu
programa narrativo. “Por ser bonita e fogosa / Traiu, serviu de lição / Pois foi morta a
pauladas, pelo monstro, sem ação”.
Do ponto de vista de Semântica Discursiva, como referido, pretendemos aplicar a
categoria de Pais – o discurso etnoliterário – o qual, conjugado à Figurativização, pode
explicar as formas de enunciados que recorrem à ação da linguagem alegórica, típica da
tradição oral. Mais uma vez reiteramos a tese de que só esse modelo – do mundo
figurativizado na descrição etnoliterária – é capaz de dar conta dessas narrativas fabulosas, em
que as personagens se debatem entre a fantasia e a realidade.
Como já foi dito sobre as escolhas do poeta, há uma visível preocupação em garantir a
ancoragem espaço-temporal, no sentido de convencer o seu enunciatário sobre a veracidade
do discurso. Assim também Kidelmir deixa marcas enunciativas que atestam seu interesse em
tratar de temas, como preconceitos, valores sociais e culturais.
Se é pra falar de cultura popular, não poderíamos omitir desse procedimento analítico
o discurso da hegemonia masculina, por exemplo, quando se refere a Sila ”Que viveu com Zé
Sereno / Seu marido e capataz. Importante lembrar também o detalhe das mulheres serem dos
117
homens, estes sempre abrindo os caminhos. Outro costume do cotidiano sertanejo é o uso
sistemático de apelidos, aspecto bem marcado no texto de Kidelmir.
No plano das estruturas fundamentais, este poeta soube traçar um perfil do cangaço,
cujas oposições poderiam ser resumidas em “homens valentes e rudes, e suas doces
companheiras”. As descrições das cenas envolvendo as mulheres, em que pese o inevitável
viés machista, foram sempre carregadas de relações eufóricas. As referências negativas
ficaram a critério dos que não acreditam na humanização do cangaço por força do segmento
feminino.
Quanto às rupturas categoriais, em todo o cordel, foi usada a terceira pessoa. O tempo
verbal sempre flexionado no passado: “surgia Sinhô Pereira /Juntou-se com Luiz Padre /
Partiu pra fazer justiça (...) Em relação ao modo, Kidelmir contempla no nível do provável as
transformações benéficas promovidas pelas mulheres, ou seja, a “humanização do cangaço”.
4.7 A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita
4.7.1 Preliminares
Em Manuel Pereira Sobrinho, vamos flagrar essa mesma imagem fantasiada, no
cordel de título “A verdadeira história de Lampião e Maria Bonita”. É importante registrar a
cena da capa: um casal em pose de cena holywoodiana. Noventa por cento do conteúdo é
sobre as peripécias de Lampião, mas, nos poucos versos que protagoniza com Maria Bonita,
predomina o enfoque romântico.
Continuemos, pois, a problematizar um pouco mais as próprias interpretações
recorrentes sobre as cangaceiras, levando em conta o olhar do homem ao versar sobre a
matéria. Veremos, a seguir, o cordel de Manuel Pereira Sobrinho, denominado “A Verdadeira
História de Lampião e Maria Bonita”. Como já anunciamos no preâmbulo, o texto tem um
teor fortemente romântico: primeiro, coroando Lampião com as qualidades de um cavaleiro
andante; depois, emprestando a Maria Bonita os mesmos caracteres, como se fora uma
personagem de conto de fadas.
Pela extensão, e pela reunião de contendas, até poderia ser chamado de “saga”, pois
não fica a dever às grandes narrativas da historiografia universal. O folheto verseja a história
de Lampião, desde o seu nascimento, em Vila Bela, passando por todas as refregas entre
Saturninos, Nogueiras e Zé Lopes, o pai de Lampião, enfim, por todo o percurso do cangaço,
até a degola, em Angicos.
118
Trata-se de uma longa narrativa, misto de simpatia e desafeto, porque exalta tanto os
defeitos quanto as qualidades. Há lances em que torce por Lampião, ao descrevê-lo como
vítima de injustiça, por exemplo, quando foram à delegacia denunciar o assassinato do pai:
“Um tal José Balduíno / era o sub-delegado / não deu atenção a eles / pois estava combinado
/ apenas disse: os Nogueira / são os grandes do Estado”.
Outros trechos são marcados por fortes acusações, com descrição de cenas chocantes,
que expõem ao mundo a tirania do cangaceiro. A narrativa alterna, assim, momentos de
ternura e de maldade. Tanto faz falar de um Lampião sensível aos sofrimentos dos irmãos
nordestinos, como nestes versos: “Na cidade de Capela / deu comida aos famintos / comprou
tudo e pagou bem / fez como um homem de bem” [...], como referir-se ao cangaço exaltando
o lado mais brutal: “Ele com sua mulher / um menino e uma menina / Lampião sangrou os
quatro / com sua fúria assassina [...]”.
Assim o cordelista transita entre o teor laudatório e as palavras que soam como
sentença, dirigidas a um réu culpado. Aliás, muito já se disse sobre esses depoimentos
oscilantes, diante do julgamento de Lampião. Falar acerca dessa dualidade é correr o risco da
repetição, mas isso é inevitável, vez que representa o corte escolhido para este trabalho: uma
leitura semiótica da trajetória de construção da identidade. Trata-se, pois, de um percurso
íngreme, porque mediado por fatores culturais, míticos e religiosos.
4.7.2 Percurso da significação
Para proceder à análise das categorias referentes ao patamar das estruturas narrativas,
vamos demarcar dois quadros separados, para mostrar a tensão entre os sujeitos semióticos. O
primeiro focalizando a referida dualidade, com o S1, figurativizado por Lampião – o
justiceiro; por outro lado, o S2, correspondendo também a Lampião – como bandido. O
primeiro destinado a proteger os pobres e desamparados, portanto tem como Objeto de Valor
a prática do Bem; já o S2 busca um Objeto de Valor contrário, porque centrado em ações
criminosas.
Os dois Sujeitos, o justiceiro e o bandido, na mesma proporção, passavam das
modalidades virtualizantes para as atualizantes, isso porque as formas de manipulação
funcionavam, nos dois percursos e, na mesma medida, o destinatário-sujeito acreditava no
119
destinador. Em outras palavras: a competência e a performance do S1 para o bem era
proporcional à do S2 para o mal. Essa luta do bem contra o mal está no imaginário popular,
figurativizada no discurso do cordel:
Matava por brincadeira
com pura perversidade
dava comida aos famintos
com amor e caridade.
A aura de generosidade atribuída ao justiceiro (S1) era reforçada pelos papéis
temáticos, que não eram poucos:
Jogava todos os jogos
era fino sapateiro
vaqueiro destro e veloz
e era ótimo ferreiro [...]
Prosseguir nessa alternância entre os dois papéis parecia ser o modelo metodológico
escolhido pelo poeta, que persistia na descrição daquele amálgama:
Mil e duzentas cidades
e vilas bem povoadas
por Virgulino Ferreira
todas foram saqueadas
porém pra tudo há motivos
também fez ações honradas.
Dessa forma, o cordelista aponta a tensão dialética que acompanha o programa
narrativo. É um itinerário cingido em duas direções, determinadas pelas condições tensivas e
contraditórias que perfazem o percurso do Sujeito em busca do seu Objeto de Valor.
Em que pesem todas as convenções da época e da região, Maria Bonita abandona o
marido e os pais, para seguir a vida do cangaço. Sem medir as conseqüências, independente
da pecha de justiceiro ou bandido, Maria Déa se entrega a Lampião, como atesta fragmento do
cordel: “porque foi o único homem / a quem dei meu coração”. Por tal façanha, cabe-lhe
melhor a categoria de Adjuvante dos Sujeitos 1 e 2, pois, como referido, em qualquer versão,
ela devotava ao companheiro amor e fidelidade.
Em relação ao segundo quadro, vamos encontrar o S3 – protagonizado por Lampião e
seus familiares. Eles vivem tempos tranquilos, trabalhando em paz, portanto, em conjunção
com o seu OV, que é a luta pela subsistência: “Cruzei na casa paterna / Quis ser um homem
de bem / E viver dos meus trabalhos / Sem ser pesado a ninguém [...]”
120
Ainda neste segundo quadro, apontamos o S4, discursivizado pelos Saturninos –
Oponentes do S3, responsáveis pelo assassinato do velho José Ferreira. A partir desse fato,
ocorrem as seguintes transformações: o S1 passa a S2 – o bandido, o qual tem como
destinação a vingança pela morte do pai. O S3 também se transforma, entrando em disjunção
com seu OV, porque é obrigado a abandonar a vida tranquila e passa a viver na ilegalidade:
“Nunca pensei que na vida / Fosse preciso brigar / Apesar de ter intrigas / Gostava de
trabalhar / Mas hoje sou cangaceiro / Enfrentarei o balceiro / Até alguém me matar [...]”
S3 (Lampião)
∩ OV (vida em família – antes do assassinato do velho)
S3 (Lampião)
U OV (ordem social – após o assassinato)
E assim Manuel Pereira vai narrando as peripécias de Lampião, num enredo em que
não faltam lutas, injustiças, vingança e fugas. Também não faltam referências históricas, a
exemplo da Coluna Prestes: “Nessa época Carlos Prestes / Fez uma Revolução / Reuniu um
grande grupo / E saiu pelo sertão [...]”. A participação do cangaceiro nesse episódio valeu um
prêmio, como veremos a seguir: “O padre, no mesmo dia, / Arranjou uma patente / Promoveu
a Capitão / Lampião ligeiramente [...]”
LAMPIÃO
Em conjunção
com a
companheira.
Em conjunção
com o
companheiro.
Em disjunção com
a volante.
História de
AMOR e de
LUTA
Em disjunção com
os valores
convencionais.
MARIA
BONITA
Figura 9 – Estado de conjunção e disjunção do Sujeito com seu OV
121
Afinal, chega o momento em que o poeta se debruça sobre as cenas românticas, nas
quais o valentão se rende, sem reservas, aos dotes da beleza feminina: “Morena, cor de canela,
/ Dessas que o vento palpita / Muito bem feita de corpo / Lábios da cor de uma fita / Disse
Lampião: te levo / Minha Maria Bonita”.
Aliás, é bom lembrar que a capa do folheto exibe uma cena que não fica a dever a
nenhuma campanha cinematográfica. Identificamos aí as marcas de um poema épico, senão
vejamos: “Grande Deus, Senhor dos seres / Mandai-me orientação / Ideias, forças e rimas /
Para versar a história / Da vida de Lampião [...]”. Após construir a imagem do herói, o poeta
alterna com versos que fazem referência à figura feminina, como já referido, perpassados de
romantismo: “Tive também meus amores / Cultivei minha paixão / Amei uma flor mimosa /
filha lá do meu sertão [...]”.
A partir do momento em que encontrou Maria, e permitiu que ela seguisse o
bando, os cuidados se multiplicaram, pois tinha que enfrentar os adversários, orientar os
párias, e proteger a mulher amada. O cordel conta o detalhe de uma luta em que Maria Bonita
foi ferida e Lampião teve que carregá-la nas costas: “Por fim Lampião pegou / a sua mulher
sem par / tinha dado um passamento / e não queria tornar / ele amarrou-a nas costas / e foi
descendo a vagar.”
Pereira não poupa títulos para mostrar a grande paixão que, daquele dia em diante,
invadiu o duro coração cangaceiro. Parecia não haver oponente, para perturbar o percurso
amoroso, só adjuvantes, num clima de completa euforia, como confirmam os versos
laudatórios: “Lampião era de aço / Porém ante a beleza / daquela mulher mimosa / Com um
porte de princesa / Cabelos e olhos grandes / Parecendo uma duquesa”.
De tudo que foi exposto, chegamos à estrutura discursiva convencidos de que as
relações entre enunciador e enunciatário estão amparadas nas mesmas condições de produção,
dado o levantamento das marcas de enunciação, com valores eufóricos (S1) e disfóricos (S2)
em igual medida. Para obter esse resultado, contou-se com a ajuda dos meios de persuasão,
mecanismos tão eficazes à figurativização do bem quanto à figurativização do mal.
Com base nas leituras feitas, e mais ainda nas análises dos folhetos, queremos reforçar
essa recorrência à temática da dualidade humana. Há cordéis que apontam somente o aspectos
negativos; outros reconhecem no cangaço funções e valores positivos. Há, ainda, os que
contemplam, na mesma análise, os dois lados, como no cordel do poeta Manuel Pereira, nos
quais se alternam as referências a essa natureza dual. Aliás, essa abordagem dialética acerca
do cangaço responde coerentemente às perspectivas metodológicas deste trabalho, que se
122
preocupa em definir as tênues fronteiras entre ficção e realidade, ou entre a identidade do
indivíduo e a do grupo.
4.8 Sombras do Cangaço
4.8.1 Preliminares
Mais um cordel vem ilustrar nosso acervo, apresentando dois títulos: “Sombras do
Cangaço” ou “A Versão de Maria Bonita”. Revisado e reeditado em dezembro de 2010, o
texto narra, com delicadeza e sensibilidade, a versão da mulher sobre o Cangaço, uma história
permeada de paixão e sofrimento, e o mais interessante, com um desfecho recriado.
Susana Morais de França Medeiros, recifense, com raízes no Pajeú, foi membro
fundador da UNICORDEL. Participa do grupo Vozes Femininas e ocupa o tamborete nº 19 da
Galeria dos Mortais, no www.interpoetica.com. Desde 2005 a autora se dedica a escrever
cordéis, com mais de vinte títulos individuais publicados.
A começar pela capa, com xilogravura figurativizando o garboso cavaleiro com a
amante na garupa, o texto vai do tema político-ideológico ao cenário de gloriosa trama
romanesca. É preciso reconhecer aí o resgate de aspectos que fazem parte das grandes
histórias de amor: o valente e garboso cavaleiro, carregando a bela princesa.
Aliás, é interessante registrar que os cordéis, com autoria feminina, inclinam-se para
um corte que varia entre o erótico e o romântico. É a Madame Pompadour, por um lado, e a
Cinderela, por outro. Essas personagens, que povoam o imaginário coletivo, ainda se debatem
em um mundo distante, emergindo nas mãos das cordelistas mulheres, que trazem para a
superfície os temas romanceados, que nos fazem lembrar as epopeias.
Esse também é o perfil de um dos textos consultados, que não fazem parte do corpus,
mas dão apoio ao debate. Trata-se de um poema de Myriam Fraga, sob o título “Maria
Bonita”. É um texto que presenteia o leitor com a deliciosa mistura do componente lírico com
o erótico. As escolhas lexicais e os movimentos sinestésicos pintam Maria Bonita como uma
mulher bela e sensual, que nada fica a dever às grandes damas do cinema mundial.
Essa imagem idealizada, típica da estética romântica, se repete em vários folhetos
analisados nesta pesquisa, e pode ilustrar, com precisão, as referências destacadas nos
parágrafos anteriores. Os versos insinuam que os sujeitos entram numa relação de
reciprocidade, ou melhor, que se encontram em conjunção com seu OV. Ele = homem amado
/ Ela = mulher amada.
123
Esta noite em Angico
A brisa calma
No silêncio farfalham minhas anáguas.
A seleção da forma verbal “farfalham” invoca o som, ao mesmo tempo estridente e
harmonioso, como convém ao encontro do lírico com o erótico. Aliás, em todo o cordel há a
prevalência de uma figurativização, cuja temática se declina para um erótico, com sabor
agreste, como se pode avaliar nesta passagem:
E no escuro minha carne cheira a mato.
Para fechar este quadro, a invocação da mulher, a delicadeza e a emergência do convite, como
se fora uma transfiguração, entre o humano e o vegetal:
Vem, meu amor
E lavra este roçado [...]
Na base da construção desse texto, não circulam categorias em relação de
contrariedade, mas sentimentos materializados na impaciente natureza cosmohumana, à
espera do companheiro que lhe trará todo o insumo de que precisa para ser feliz. Eis um
percurso gerador de harmonia o qual, à luz da Semântica Discursiva, deve identificar a
organização de modalidades densamente atualizantes.
Por outro lado, tais recorrências vão conferir ao texto aquilo que se conhece por
“presentificação do instante”, a partir do que ocorrerá o milagre da transformação de vozes
dispersas em papéis sociais. Essa é a explicação que se dá à passagem do sujeito individual a
ente coletivo, um processo tantas vezes flagrado na literatura, sobretudo na literatura popular,
quando as produções encontram respaldo no imaginário e passam para o domínio popular.
Como vimos, a tensão entre fantasia e realidade marca o teor dos versos cordelinos,
obrigando-nos a retomar a problematização desta pesquisa, ou seja, levantamos a hipótese da
ameaça à identidade dessas mulheres. Duas razões explicam essa opacidade identitária: a
primeira se localiza na macroestrutura, e se explica pela tênue fronteira entre a dimensão
individual e a de grupo; a segunda está situada no discurso fartamente recheado de apelos
simbólicos e míticos.
Dado que o real é a interpretação que os homens atribuem, entramos em contato, a
partir do corpus deste trabalho,com as imagens que permeiam o imaginário popular, em cujo
esteio construíram-se deuses e demônios, heróis e bandidos. Alimentadas por uma tradição
124
messiânica, essas representações vão sendo projetadas em situações concretas, conduzidas
pela vontade e pelas intenções dos atuantes.
4.8.2 Percurso da significação
No percurso narrativo, vamos encontrar a figurativização de Maria Bonita, cuja
trajetória se desdobra em dois sujeitos semióticos.
 S1 discursivizado por Maria Bonita, que vai em busca de seu OV = Lampião. Neste
primeiro momento, o S1 está em conjunção com seu OV, conforme atestam os versos
que seguem:
É um conto de romance
de quimera irreal
fantasia, devaneio
criação tão desigual [...].
São esses os primeiros versos de Susana, na sua transfiguração, personalizada em
Maria Bonita. Todo o texto se reveste de uma ternura assumida, depois transformada em
paixão. O Sujeito-enunciador sai do seu estado manso e terno para um Sujeito do fazer, com a
firmeza e decisão das grandes amantes: “No meu nome sou Bonita / Sou Maria, sou a Santa /
Lampião, meu companheiro / Do meu pranto ele encanta / E se de noite ele chora / Cubro-o
com minha manta”.
Até aí a narrativa permanece em clima de euforia, com o Sujeito-mulher em conjunção
com o seu Objeto de Valor – o Companheiro. É preciso reconhecer aí o resgate de aspectos
que fazem parte das grandes histórias de amor: o cavaleiro andante, carregando a princesa.
Fala a autora: “É um conto de romance / De quimera irreal [...]”.

O S2, também figurativizado por Maria Bonita, enfrenta um novo estado de SER,
transformado pela perda do companheiro – processo que a põe em disjunção com o seu OV =
o cpmpanheiro. Esse desenlace está descrito no fragmento iniciado com uma palavra que
representa, semioticamente, uma adversidade: “Mas a vida é arapuca [...]”.
125
1º Momento
2º Momento
MARIA BONITA
Conjunção com o OV
Disjunção com o OV
Figura10 – Maria Bonita: entre conquistas e perdas
Com o desdobramento da análise, devemos reiterar a acentuada demarcação entre o
momento de conjunção do Sujeito com seu Objeto de Valor, e a ruptura do percurso. Outro
aspecto relevante é que a poetisa deixou bem claro para o interpretante a intenção de subverter
a história, criando outro desfecho, segundo o qual Maria Bonita sobrevive à tragédia.
Daí em diante, Maria se pergunta o que vai fazer da vida sem a presença do seu amor.
É uma indagação que faz parte do discurso do senso-comum, mas que ganha charme e força
nos textos dramáticos, do tipo Lisbela e o Prisioneiro: “E agora, que faço eu da vida sem
você???”.
O texto de Susana Morais, como referido, ora faz referências de teor histórico e político,
como se pode constatar nestes versos: “E nas terras do Nordeste / Castigado pelo sol / Um
Brasil Republicano / Ofuscado pelo rol / De coronéis governantes”; ora faz alusão a demandas
sociais: “Contra uma Reforma Agrária / (a medida que não falha) Pra matar a fome alheia”.
A esses temas de feição ideológica, somam-se as cenas românticas até atingir o trágico
desenlace, com a perda do amante. Conforme anunciado, a autora recria o final, poupando a
mulher da morte, mas deixando-lhe o legado da dor e do desamparo.
Nesse nível semiótico do entorno humano, o “conto de romance e quimera
irreal”, antes localizado nas zonas identitária e proximal, a partir de então, deslocou-se para a
zona distal: “Mas a vida é arapuca [...]”. A ruptura da proximidade para o distanciamento dos
valores eufóricos está visível, marcada pela adversativa “Mas”.
É importante informar que a poetisa faz opção pelo par enunciativo EU/TU,
pronomes de primeira e segunda pessoa, tanto antes quanto após a ruptura do percurso
narrativo. “Encontrei-me neste bando [...] / Pois te sigo qual cangaço [...]. As categorias de
pessoa continuam as mesmas, após a perda: “Ocorreu que Lampião neste mundo me deixou”.
Tais escolhas enunciativas caracterizam a situação de embreagem a qual, teoricamente,
significa envolvimento do Sujeito com a enunciação.
126
Essa mudança define o quadro de termos em contrariedade: gozo x
sofrimento / harmonia x desenlace / encontro x perda, entre outros. Essa tensão dialética,
portanto, marca a versão da mulher, neste roteiro de ficção, criado por Susana Morais.
Para concluir a análise, voltamos aos postulados de Rastier, para associar a fase do
“encontro” às zonas identitátria e proximal, em relação ao discurso do destinador. Este
instaura os sujeitos semióticos, ao mesmo tempo, coloca-os em conjunção com o Objeto de
Valor.
Quando ocorre a morte do S1, o destinador desloca os sentimentos eufóricos para a
zona de distanciamento em relação aos sujeitos semióticos, os quais transitam do encontro
para o desenlace. A partir de então, o cenário do entorno humano torna-se sombrio, pela
grande incidência de elementos disfóricos.
A sistemática oscilação entre o Bem e o Mal constitui característica específica não só
do corpus da pesquisa, mas também de toda bibliografia consultada. Como já dissemos, a
convivência com dois princípios irredutíveis entre si está na natureza metodológica deste
texto, já que a problematização se instaura numa opacidade identitária, ou melhor, numa
identidade sufocada: por um lado, entre o plano individual e o grupal; por outro, entre a
realidade virtual e a virtualização do real.
4.9 Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás
4.9.1 Preliminares
O nome do poeta JOTABARROS não poderia estar ausente desse elenco, até porque se
destaca entre os que mais se ocuparam com acontecimentos de viés messiânico, localizados
no Nordeste. Sob o título “Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás”, os
versos encenam o drama vivido por Lampião após a morte, quando nem no inferno encontrou
abrigo. Depois de vagar sem destino, implora pela misericórdia divina, até que São Pedro
recebe autorização para lhe abrir as portas do céu.
Em seguida se vale do poder de Padim Ciço, que intercede junto a Jesus,
conseguindo trazer Maria Bonita para viver junto ao amado. São Pedro os conduz ao Paraíso e
vai logo explicando: a felicidade dos dois dependerá da obediência às regras. Há um cajueiro
do qual eles não devem se aproximar, para que não caiam na tentação de comer o fruto
daquela árvore. Afora essa restrição, podiam desfrutar daquele espaço de paz e conforto.
127
Então, veio o demo, figurativizado em uma cobra e, com o desfecho já conhecido: a tentação
seguida da desobediência.
Este cordel traz a história reeditada do mito de Adão e Eva – “Lampião e Maria
Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás” – mais um atestado do messianismo que permeou
essas sagas. E também mais uma voz reforçando o discurso que defende a tese da fragilidade
da mulher.
Foi escrito por João de Barros (JOTABARROS), cordelista e xilógrafo, natural de
Glória do Goitá, um dos maiores expoentes da nossa Literatura de Cordel. O título “Lampião
e Maria Bonita no Paraíso, tentados por Satanás” já acena, cataforicamente, para o teor
messiânico do texto, como convém à cultura popular e ao discurso etnoliterário, tomado como
coadjuvante.
A estrutura deste pode ser dividida em quatro momentos: o primeiro se ocupa das
razões que motivaram a opção pelo cangaço: “Todos sabem Virgulino / Por obra do malfeitor
/ Tornou-se um cangaceiro / Para vingar uma dor”. Neste tópico, o poeta faz alusão à tragédia,
que desencadeou o ingresso na vida cangaceira, ou seja, a morte dos pais de Lampião.
O segundo momento, o mais longo, dedica-se às peripécias de Lampião e seu bando,
nas andanças pelos caminhos do sertão nordestino, perseguido pela polícia, segundo
JOTABARROS, “Ficou mais endiabrado / junto com seu batalhão”. Para expressar a revolta
do cangaceiro, o cordelista recorre a cenas burlescas que lembram personagens de Rabelais,
eternizadas pela teoria da carnavalização de Bakhtin, como podemos ver na seguinte
passagem: “O Prefeito passeou / em um jumento cansado / com um sujeito puxando / o
animal enfadado / nuzinhos como nasceram / Foi um carnaval gozado”.
É bom informar que o poeta, ao mesmo tempo em que descreve os desmandos, vai
amenizando o efeito com registros que mostram o lado justiceiro. “Muitos diziam que ele /
Era péssimo, era mal / Mas não, ele defendia / a um certo pessoal”. A adversativa “Mas”
aparece sempre para gerar a tensão dialética entre o bem e o mal.
Conforme já foi dito, o acervo consultado, na bibliografia geral ou nos folhetos e
depoimentos, apresenta sempre essa característica de teor contraditório. Isso porque, na nossa
pesquisa, confrontamos o racional com o afetivo, quando buscamos comparar a memória
oficial com a memória social.
No terceiro momento, após ser derrotado e morto pelas tropas do poder oficial,
Lampião perambula pelo além, à procura de um abrigo. Satanás não o quis no inferno, então
ele foi bater às portas do céu: “Falou São Pedro a Jesus / Aí está Lampião / Pedindo para ficar
/ Nessa Divina Mansão / O que é que digo a ele? / Que pode ficar ou não?”. A curiosidade do
128
leitor logo é satisfeita, pois não dura nada o tempo entre a consulta e a aprovação. Mas
...existe uma condição: ele não pode tocar num certo cajueiro que há no pomar do Paraíso.
Reedita-se a velha cena bíblica de Adão e Eva. Aliás, não faltam apelos míticos nos
versos de JOTABARROS, sejam no resgate de passagens messiânicas, sejam na recorrência a
cenas burlescas que lembram personagens de Rabelais, eternizadas pela teoria da
carnavalização de Bakhtin. “O Prefeito passeou / Em um jumento cansado / Com um sujeito
puxando / O animal enfadado / Nuzinhos como nasceram / Foi um carnaval gozado”.
Finalmente, o último momento da narrativa registra a generosidade de Jesus Cristo, ao
concordar com a ida de Maria Bonita ao céu. Mas [...] diante da mesma advertência:
“Comerás todos os frutos, mas é isento o caju”. Lampião logo avisou que, da parte dele,
garantia a obediência àquela prescrição divina. Já a mulher, tal qual a Eva bíblica, encheu-se
de curiosidade para experimentar o fruto proibido. O final da história todos já sabem. A
mulher seduzida pela serpente. E o homem seduzido pela mulher.
4.9.2 Percurso da significação
No folheto de BARROS, em todos os momentos vamos encontrar uma configuração
narrativa semelhante, com o Sujeito figurativizado por Lampião, com variação apenas quanto
ao Objeto de Valor. Assim, o Sujeito se instaura na narrativa pela modalidade complexa do
querer-ter, indo em busca de seu OV, que é a vingança. No segundo quadro, o S 1 é o mesmo,
mas o OV torna mais possessivo o querer-ter, daí uma performance mais agressiva.
Quanto ao terceiro momento, o S1, vencido pelo Oponente, vai buscar apoio na figura
de Cristo, figurativizado como seu Adjuvante, pois a divindade conhece os bons propósitos do
S1. Este, já em harmonia com o Paraíso, debate-se, mais uma vez, com seu Oponente –
Satanás, que ameaça a conquista do OV, a busca da paz ao lado da mulher amada.
Por outro lado, temos o S2 representado por Maria Bonita, cujo Objeto de Valor é
viver em conjunção com o companheiro. Mas esse percurso é quebrado, quando o Oponente
arma-se de um discurso manipulador, para investir na tentação. A partir daí, o S2 muda o OV,
que passa a ser o desejo de provar do fruto proibido. “Participas desse fruto / Que ganharás a
mansão / Irás viver sem trabalho / E não prove sozinha não”.
As palavras do inimigo Oponente convencem o S2 para o querer-fazer e o primeiro
passo foi persuadir o S1 a mudar de estado e segui-la naquela ação de desobediência, indo os
dois na direção do cajueiro. Assim é que o S2 não só cai na cilada, mas também leva o S1 ao
129
pecado. Nesse novo percurso, que representa o quadro final da narrativa, ambos entram em
estado de disjunção com a Paz que lhes fora ofertada naquele Paraíso.
JOTABARROS, como tantos outros poetas populares, costuma reeditar passagens
bíblicas, através das quais vai alimentando crenças e valores, no caso em foco, o respeito a
princípios que defendem a obediência e a fidelidade. Em se tratando de valor cultural, nessa
releitura, podemos constatar o reforço a um comportamento atribuído à mulher, como sendo
um ser frágil, que cede facilmente à tentação.
Se nos voltarmos para a análise das estruturas fundamentais, que representa o nível
semiótico profundo, vamos constatar uma oposição semântica básica entre FIDELIDADE x
TRAIÇÃO, estabelecendo-se, durante a narrativa, um percurso da primeira à segunda e, no
clímax da trama, da segunda à primeira.
Os semioticistas propuseram a figura do quadrado octógono, para a apreensão mais
lógica das situações de conflitos mais gerais, extraídos da narrativa. Este é o modelo do SER e
do PARECER, modalidades que vão representar a tensão dialética de um universo semiótico.
Vamos observar a imagem representativa a seguir:
Cangaço
Fidelidade
Traição
Contexto Social
Maria Bonita
Não-traição
Não-fidelidade
Ø
Figura 11 – Tensão Dialética entre Fidelidade e Traição
Obediência e traição inserem-se no eixo da contrariedade, sendo que a primeira tem
valor tímico positivo e a segunda é timicamente negativa, portanto encontram-se em relação
de pressuposição recíproca. Se aplicarmos uma operação de negação a cada um dos
contrários, obteremos termos contraditórios. Assim não-obediência é o contraditório de
obediência, e não-traição é o contraditório de traição.
Para finalizar, recorremos às categorias de Rastier, para mostrar que as rupturas
oscilam, a depender das mudanças ocorridas no contexto, em que se localizam os sujeitos
130
semióticos. A proximidade ou distanciamento dos valores eufóricos, em relação ao S1 e ao S2,
constituem situações definidas a partir do entorno desses atores, figurativizados em Sujeitos.
Esses fatores condicionantes entre os Sujeitos e seu entorno parece emergirem dos
contos da tradição oral, quando havia sempre uma bruxa, ou madrasta malvada, ou um lobo
mau, no caminho das inocentes meninas. As fadas restam como privilégio para os desfechos
com final feliz. Mas todas essas figuras buscam soluções no plano da fantasia, um percurso
simbólico, ao longo do qual estão projetadas as representações socioculturais responsáveis
pelas tendências valorativas.
4.10 Lampião vai ao inferno buscar Maria Bonita
4.10.1 Preliminares
O viés mitológico continua recorrente, quando lemos o título “Lampião vai ao
inferno buscar Maria Bonita”, de Apolônio Alves dos Santos. Nesse cordel, também podemos
constatar a recriação de valores bíblicos, com a recriação das figuras mitológicas de Adão e
Eva. Nesta história o foco dramático é a luta de Lampião para tirar Maria das garras de
satanás. Aliado ao messianismo reinante, identifica-se também o culto à coragem e à valentia
do herói, para salvar a donzela indefesa.
Este folheto foi premiado em 2º lugar, no Concurso Nacional de Literatura de Cordel
sobre Lampião, patrocinado pela UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana, e
publicado pelo Museu Casa do Sertão – UEFS, em 1998. O Concurso procurou atingir dois
objetivos: (1) colocar em discussão a memória do Nordeste onde a Universidade está inserida;
(2) valorizar a Cultura Popular, notadamente a Literatura de Cordel, também conhecida como
“Folhetos de Feira”.
Temos, então, mais uma história que reedita o mito de Adão e Eva. Assim como o
folheto anterior, “Lampião e Maria Bonita no Paraíso, Tentados por Satanás” – este é mais um
atestado do messianismo que permeou as sagas que povoam o universo da literatura popular.
E também mais uma voz reforçando o discurso que defende a tese da mulher indefesa, salva
pelo corajoso varão.
O viés mitológico continua recorrente, quando lemos o título “Lampião vai ao inferno
buscar Maria Bonita”, como se fora uma característica prevista no corpo de critérios de uma
Academia. Nos dois cordéis, podemos constatar a recriação de valores bíblicos, a exemplo da
tentação e da consequente desobediência da mulher, ao comer o fruto proibido. Aliado ao
131
messianismo reinante, identifica-se também o culto à coragem e à valentia do herói, para
salvar a frágil donzela.
Nesse cordel, como em tantos outros, o componente simbólico é a luta entre o Bem e o
Mal. A trama é tecida a partir de sentimentos ambivalentes que vão desaguar naquilo que os
psicanalistas chamam de existência triádica. Em primeiro lugar, simula-se a figura da filha,
vítima do desamparo, após ficar órfã; em segundo plano, a madrasta, figurativizada pelo
demônio; finalmente, o caçador, que simboliza proteção, no caso o cangaceiro, confundindose com a figura paterna. Quanto mais tentamos escapar dessa tríade familiar e profética, mais
nela nos enraizamos, presos às imagens construídas por verdades e crenças, todas elas
aninhadas no imaginário.
A narrativa traz mais um enredo dramático, envolvendo a trajetória romanesca de
Lampião e Maria Bonita. Se pararmos no título, já podemos inferir que este, assim como os
anteriores, persiste na recorrência a elementos simbólicos e messiânicos, como se quisesse
provar que o fenômeno em foco não sobrevive fora desse contexto alegórico. Falar da
prevalência do discurso etnoliterário torna-se óbvio, já que adiantamos a tendência mitológica
do texto, consequentemente, o distanciamento da austeridade racional.
A história começa com a morte dos dois amantes e o posterior estágio, conforme
vaticínio da tradição cristã: “Diz a lenda que os cristãos / Quando aqui termina a vida / Vão
viver em outra esfera / Numa área permitida / Até purgarem os pecados [...]”
Após a etapa da purgação, os amantes atingiram um estado espiritual elevado e assim
foram desfrutar da felicidade, concebida aos que já passaram pelo Purgatório – que era o lugar
da anistia. Viveram felizes, até que surgiu o perverso Oponente, que outro não era senão
Satanás. Este se interessou por Maria e decidiu tomá-la de Lampião: “Peguem ali o narcótico /
E levem uma porção / Lá chegando narcotizem / A mulher de Lampião / O marido deixem lá /
A mulher me tragam cá / Que eu tenho precisão”.
Ao acordar e dar pela falta da mulher, Lampião urra feito um bicho bravo. Já
adivinhando quem lhe causara tamanha desgraça. Logo acorre ao Inferno e luta ferozmente
até adentrar o terreno do inimigo: “Lampião entrou lá dentro / Aberturou Lucifer / Dizendo
seu condenado / Não é como você quer / Mato um milhão de capeta / Mas levo minha
mulher”.
A refrega durou horas, o Inferno foi revirado de cabeça para baixo, era cão morto pra
todo lado, e Lampião continuava enfurecido até descobrir o esconderijo onde estava Maria:
era um porão velho e sombrio, sem nenhuma ventilação, e pior, infestado de insetos, mosca,
132
pulga e escorpião. “Maria soltou um grito / Oh! Que momento bendito / Que você veio, meu
amor / Me libertar desse horror”.
Enfim, o herói salva a donzela e prende o maldito raptor naquele lugar macabro e
repugnante. Depois, enche sua amada de afagos, e a conduz no colo, como se faz a uma
criança indefesa. O desfecho, todos sabemos, tal qual os contos de fada, foram felizes para
sempre.
4.10.2 Percurso da significação
O campo das informações preliminares foi encerrado no momento em que o valente
Lampião salva Maria das garras do inimigo. Dessa forma, o percurso narrativo do querer-ser
do Oponente Satanás foi interrompido pela performance do Sujeito1, que lutou com todas as
forças até passar da potencialidade à ação, atingindo as modalidades atualizantes, ao salvar
sua amada.
No percurso do Sujeito2, figurativizado por Maria Bonita, entra em cena o S1, que a
salva das garras do maldito. Na fase da sansão, já descrita no tópico anterior, os falsos heróis
são desmascarados e os verdadeiros são reconhecidos, conforme prevê Fiorin (2002, p. 24).
Passemos, agora, às categorias da Discursivização, que correspondem às estruturas
mais específicas, ao mesmo tempo, mais complexas. Nesse estágio, podemos identificar as
marcas de delegação de voz e de efeitos de enunciação que participam da constituição do
narrador e do observador.
O texto começa com embreagens actancial e temporal enunciativas. O autor se vale da
primeira pessoa e do tempo presente, para criar efeito de subjetividade, ao mesmo tempo,
como recurso de sedução, para imprimir a ilusão de realidade: “Peço a meu bom leitor /
Venha ofertar-me um abraço [...]”
A partir da segunda estrofe, o poeta opta sempre pela terceira pessoa a qual, embora na
maioria dos casos signifique distanciamento do sujeito, no modelo analisado, a história é
conduzida por um observador que se identifica com os actantes da narrativa.
Quanto à categoria de tempo, privilegia o pretérito perfeito e imperfeito, mesmo assim,
não se pode falar em distanciamento, até porque a recorrência ao discurso direto equilibra as
relações entre os papéis do discurso e os papéis da narrativa.
A categoria espacial vacila entre o aqui / ali, a depender do efeito de realidade que
pretende, ao acompanhar a ancoragem actancial e a enunciação pressuposta. A marca “lá” só
aparece para figurativizara valentia de Lampião quando tenta desobstruir a passagem e
133
descobrir o esconderijo, onde se encontrava a mulher amada, um porão velho e sombrio:
“Lampião entrou lá dentro”. Neste caso, o autor pretende representar muito mais a morbidez
do espaço que a distância.
Não podemos deixar de registrar a figurativização representando a refrega entre as
forças do Bem e as do Mal, numa revelação de agressividade, cujas marcas estão expressas
nas escolhas lexicais. É um acervo chocante, para dramaturgia nenhuma botar defeito: sendo
aço eu destempero / sendo de bronze eu derreto / seu coisa ruim / seu condenado / mato um
milhão de capeta / pode vir com a murrinha / seu mulambudo / você está fedendo etc, etc, etc.
O trecho acima transcrito serve de testemunho, no campo da estrutura semântica
mínima, para insistir no fato de que, nesse percurso profético, alternam-se, como referido,
manifestações situadas entre o Bem e o Mal, esse rótulo referencial originado nos mitos e
reforçado pelo modelo burguês.
Desdobrando esse núcleo em unidades menores, sugerimos outros pares
antonímicos que podem representar o embate de relações eufóricas e disfóricas, por exemplo:
covardia x valentia / amor x ódio / dignidade x esperteza etc. Esse quadro de oposições deve
corresponder à tensão subjacente, cujas representações sociais e estereótipos são manipulados
por anjos e demônios, entre tantos outros fantasmas que povoam o imaginário coletivo.
4.11 LAMPIÃO: sua vida e sua morte – Gilvan Santos
4.11.1 Preliminares
Gilvan Santos, natural de Serra Talhada, participa dos movimentos culturais da terra
natal, marcando sua atuação no teatro popular, na poesia, e dançando no Grupo de Xaxado
Cabras de Lampião. Com tal currículo, presume-se que conhece de perto o cenário cultural de
que foi cercado o Cangaço.
“LAMPIÃO, SUA VIDA E SUA MORTE” é sua primeira obra publicada, na qual
narra, com os mínimos detalhes, a trajetória do cangaceiro, desde o nascimento, numa fazenda
rural, em Serra Talhada, até o trágico episódio, ocorrido numa manhã de julho, em Angico,
entre Sergipe e Bahia. Muitas passagens, como o assassinato do velho Ferreira, não
apresentam novidade, tal a semelhança com os relatos dos cordéis anteriores. Para evitar a
repetição, reservamo-nos o direito de falar apenas de alguns fatos curiosos, que Gilvan sabe
muito bem figurativizar, a fim de seduzir o leitor.
134
Com seus versos X a X e rimas abertas, Gilvan realça a natureza dicotômica do
Cangaço, convencendo o interlocutor pela perfeita descrição, seja quando se trata de herói ou
quando se refere ao bandido. As escolhas lexicais dão cores bem contrastantes ao conhecido
amálgama, que divide opiniões em relação à figura do Rei do Cangaço. Aliás, é importante
reiterar que esta contradição está incorporada à literatura, seja qual for o gênero que se
dedique ao tema “Cangaço”.
Também são interessantes, no cordel de Gilvan, as referências a aspectos da cultura
local, como o menu preferido: bode assado com farinha e rapadura. Também merece alusão as
cenas de entretenimento: “E mesmo na caatinga / O bando era animado / Quando o coito era
seguro / Que estavam sossegado / Eles faziam forró / Dançando numa perna só / Originando o
xaxado.”
Um fato curioso foi a morte acidental do irmão de Lampião. Numa brincadeira para
disputar uma rede, Luiz Pedro não viu que dentro havia uma espingarda. Ao sentar de vez, a
arma disparou e atingiu Antônio Ferreira. Os que assistiram à cena, logo aconselharam o
companheiro a fugir antes que Lampião soubesse do sucedido. Mas Luiz Pedro assim reagiu:
“Daqui não arredo um passo / Se tiver de morrer, morro / Mas não escondo o que faço”.
Foi ao encontro de Lampião e contou o acidente, entregando-se à sorte: “Sei que é um
drama ruim / Mas pode fazer de mim / Tudo que você quiser”. Lampião ficou muito abatido,
mas confiava naquele companheiro, por isso teve uma reação inesperada. Disse que sofria
muito pela perda do ente querido; sabia, entretanto, que o amigo não tivera culpa, então pediu
a Luiz Pedro que, daquele dia em diante, substituísse o irmão, acompanhando-o em todos os
momentos, como fizera Antônio em toda a vida.
Tinha razão Shakespeare, ao profetizar que “há mais mistérios entre o céu e a terra do
que pensa a nossa vã filosofia”. Nessa direção, também podemos afirmar que “há mais
tolerância e compreensão na convivência entre os cangaceiros do que preveem os contadores
de história”, sobretudo os que não acreditam na boa intenção dos que tiveram que optar por
essa vida nômade. Enquanto todos apostavam na fuga de Luiz Pedro, tiveram como resposta
uma atitude de firmeza e bom caratismo.
Enquanto apostavam na revolta de Lampião, e na consequente
vingança,
surpreenderam-se com um exemplo de perdão e amizade. Esse elenco de sentimentos nobres,
que emergiram dos versos de Gilvan, por um lado, confirma a crença popular no cangaço
como um movimento do Bem, abençoado por Padre Cícero Romão. Por outro lado, porém,
contraria a voz oficial dos que o perseguiram, como a uma turba de assassinos cruéis e
sanguinários.
135
4.11.2 Percurso da significação
No percurso geral da narrativa, existem quatro sujeitos semióticos, figurativizados da
seguinte forma:
S1- representado pelos Ferreiras, que tinham como Objeto de Valor cuidar da pequena
propriedade e garantir a sobrevivência, extraída da roça e da pequena criação de bovinos e
caprinos.
S2- discursivizado por Zé Ferreira, cujo OV era administrar os poucos bens e cuidar da
família. O velho Ferrreira, sem qualquer má intenção, protagonizou a história do chocalho
amassado, encontrado no meio do mato e por ele utilizado em uma rês de sua propriedade. O
chocalho pertencia aos Nogueiras os quais, a partir de então, passaram a difamar os Ferreiras,
acusando-os de ladrões. Este foi o pontapé inicial da refrega, que culminou com o assassinato
do velho Ferreira.
S3 – figurativizado pelos Nogueiras, advervários dos Sujeitos 1 e 2, por isso
considerado o antissujeito. Este tem como Objeto de Valor a perseguição e destruição da
família Ferreira, tachada por ele de vadia e bandoleira.
S4 – protagonizado por Lampião que, após a morte do pai, foi destinado a fazer a
vingança - seu Objeto de Valor. Essa foi a razão que o levou à vida nômade do cangaço.
Focalizando apenas o episódio do acidente, podemos mostrar uma configuração
narrativa com dois sujeitos semióticos: S1 = Lampião e o S2 = Luiz Pedro. O Objeto de Valor
do primeiro, ao contrário do que apregoam, é a paz e a boa convivência dentro do bando. Para
conquistar seu OV, o S1 passou pela transformação do Ser poderoso e vingativo à modalidade
do querer e fazer o Bem, através da compreensão com o que aconteceu ao companheiro.
O S2 tinha como Objeto de Valor a fidelidade ao amigo Lampião e, em que pesem os
conselhos de alguns actantes, teve a coragem de assumir a verdade dos fatos. Por isso
mereceu como sanção a confiança do amigo, consequentemente, uma amizade mais forte,
com laços mais estreitos.
Ficam registradas, pois, como categorias tímicas positivas a atitude decente de Luiz
Pedro, ao enfrentar as consequências de uma fatalidade; e a tolerância de Lampião que,
embora sofrendo a perda, soube confiar e perdoar. As categorias negativas estão implícitas, e
suas marcas devem aparecer no discurso dos que criticam e se recusam a reconhecer na
cultura popular o lugar privilegiado, onde se multiplicam os cadinhos de sonhos e
socializações.
136
Enfim, Gilvan não é só quantidade de versos, é qualidade, sobretudo, até porque
colabora com a semântica mínima, na esfera fundamental, propondo não apenas um par de
oposição, mas uma rica escala antonímica, para mostrar que os Sujeitos se enriquecem nos
papéis do Discurso e nos papéis da Narrativa.
Sugerimos as oposições, apresentando como categorias tímicas positivas, as atitudes
assumidas pelos Atores e legitimadas pelo Destinador. Como categorias negativas, aquelas
que eram esperadas pelos Actantes, os que presenciaram a cena:
Morte Acidental
Perdão
Castigo
Lampião e Luiz Pedro
Outros Cangaceiros
Não - castigo
Não - perdão
Ø
Figura 12 – Octógono entre perdão e castigo
Importante falar sobre o envolvimento do enunciador ao relatar o encontro de Lampião
com Maria Déa. Depois de tantas versões sobre o fato, acreditava-se não haver mais novidade
a respeito. Ora, ora, não é que Gilvan nos emociona com uma figurativização picante e
colorida, mostrando a incompletude da linguagem verbal para revelar a grandeza daquele
sentimento. Segundo o poeta, só mesmo a combinação de vários sistemas modelizantes, em
formulações sinestésicas, pode ser capaz de dar conta da paixão que une aqueles dois seres:
Mas o homem sem mulher
É um sapato sem meia
Se dana fazendo calo
De mostra é uma coisa feia [...]
Mas como diz o poeta
Pra ser expresso o amor
Não precisa de palavras
Gestos ou outro vetor,
Se sente no coração [...]
137
Aproveitando esse quadro, para aplicação das rupturas de Rastier, devemos informar
que, no entorno dos sujeitos semióticos, no eixo da proximidade, identifica-se um mundo
óbvio, transbordante de afeto. Na zona de distanciamento, localizam-se os Oponentes. Entre
estes, o coiteiro – delator do local onde os cangaceiros se abrigavam.
A partir dessa traição, invertem-se os papéis, deslocando para a zona de
distanciamento toda a harmonia que povoava o entorno humano. Naquele alvorecer do dia 28
de julho, em Angico, restava a obviedade da dor, pela chacina, programada e realizada pela
Volante.
Enfim morreu Lampião
Ele e Maria Bonita
Mais nove cabras do bando
Numa manhã tão aflita [...]
A 28 de julho,
Essa tragédia se deu
Também morria o Cangaço
Que Lampião acendeu
E hoje a sua memória
Está expressa na história
Que o próprio povo escreveu.
Há pessoas que acreditam que o raiar do dia é uma hora de angústia e de presságios, a
hora mais propícia a pesadelos, pois foi com os primeiros raios de sol que os protagonistas
desta fantástica saga disseram adeus ao sertão e à caatinga, ao mandacaru, ao juazeiro.
Entretanto, continuam vivos na memória de seu povo, envoltos em uma lenda tingida de
sobrenatural e de místico. O cangaço continua vivo, porque alguma coisa naquelas pessoas e
naquele movimento transcende o nosso mundo.
4.12 VIRGÍNIO: o juiz do grupo de Lampião
4.12.1 Preliminares
Finalmente, o último modelo cordelino, folheto com versos de Gonçalo Ferreira da
Silva, denominado “Virgínio – o juiz do grupo de Lampião”. Temos dois argumentos que
justificam a inserção desse recorte: primeiro, chamou-nos a atenção o papel temático que até
138
então não aparecera no elenco; depois, a cena que narra a traição e sacrifício de Lídia pelo
companheiro Zé Baiano.
“Lampião: sua vida e sua morte”, de Gilvan Santos, narra a saga completa do Rei do Cangaço
a partir da transição entre a vida pacata dos Ferreiras e a briga com os Nogueiras e Saturninos,
culminando com a morte do velho, pai de Virgulino. A inclusão desse cordel se justifica pela
alusão às mulheres, inclusive pela bela descrição do encontro do cangaceiro com Maria Déa.
Gonçalo Ferreira da Silva, membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel,
escreveu e editou este folheto no Rio de Janeiro, em abril de 2008, e traz como título
“VIRGÍNIO: o juiz do grupo de Lampião”. O texto foi escolhido pelo realce que foi conferido
ao papel temático; também porque rompe com o convencional, trazendo como Ator um
cangaceiro na função de Juiz – Dr. Virgínio. Não é só isso: ocorre que esse cidadão, apesar
das circunstâncias adversas do contexto, consegue ser respeitado, a ponto de ganhar fama por
suas atitudes firmes, na luta pela justiça. Apesar de ser cunhado de Lampião, não hesitava em
punir os culpados, independente da tribo a que pertencesse o transgressor.
O cordelista começa falando sobre o lugar onde ocorreram os fatos: “Talhada para a
política / Extremamente inflamada / Para discursos veementes / Para batalha acirrada / Foi
sempre assim Vila Bela / Para proezas talhada”. Depois diz que foi o berço ideal para um juiz
“Frio, justo e decisivo”.
As qualidades do Meritíssimo foram figurativizadas no epíteto “Paladino da Justiça”.
O poeta continua seu relato laudatório, dizendo que Dr. Virgínio, quando queria punir um réu,
não se constrangia, fazia-o sem pestanejar, pois era “rigorosamente atento” para exercer a
função. Enfim, tratava-se de um homem que pronunciava lentamente as palavras, imparcial
nos julgamentos, implacável nas decisões.
Foi então que a cidade foi sacudida pelo episódio de Lídia, a cangaceira adúltera, à
qual o cordelista se refere como “Saltitante e fogosa / Mulher de José Baiano”. A população
em peso se volta contra ela, repetindo-se a cena bíblica de Maria Madalena. Todos queriam
apedrejá-la. Lídia traiu o marido com Bentivi, um cangaceiro mais novo, bonito, e com fama
de conquistador. Lídia tinha que pagar com a vida. Assim o homem lavava a honra com
sangue.
As pessoas também não sabiam qual seria o fim de Bentivi. Pelas leis vigentes, todos
esperavam que também teria o mesmo destino trágico reservado a Lídia. Mas o juiz chamou
Lampião e disse que o tempo da barbárie já passara, fosse qual fosse o crime, o réu tinha
direito a um julgamento sob os critérios da legalidade. Preparou os trâmites legais, divulgou a
data para toda a cidade.
139
No dia do julgamento, Bentivi se defendeu: “Eu quis Lídia, na verdade, / E ela
também me quis [...] / Portanto em nome do amor / Imploro o perdão do juiz”. O resultado do
júri foi a absolvição de Bentivi. Mas não houve tempo para Lídia ser julgada nas mesmas
condições. Contra ela, pesaram os rigores da cultura medieval, com o sacrifício da adúltera,
sendo morta a pauladas, pelo marido traído.
4.12.2 Percurso da significação
No percurso narrativo, temos o S1, representado pelo juiz, Dr. Virgínio, cunhado de
Lampião. Este aparece, na configuração, como Adjuvante, sempre procurando seguir os
conselhos do juiz, a fim de mudar as regras do cangaço e evitar os desmandos. O Oponente
ficava a critério da sociedade, com suas regras morais e seus costumes selvagens, a que todos
deviam obedecer, e aos quais Zé Baiano sempre fora fiel.
No plano do S2, ficam Lídia e Bentivi. O Adjuvante também era Lampião o qual,
como referido, após o ingresso do Dr. Virgínio, procurava acompanhar suas prescrições,
tentando afastar qualquer prática que ameaçasse a ordem vigente. A temporada de paz,
promovida pelo S1 e seu Adjuvante durou enquanto as forças da oposição não avançavam,
com suas ferramentas desagregadoras.
Temos que lamentar, porém, que o percurso do S1 tenha sido interrompido, pois
custou-lhe a vida sua meta em viver em conjunção com o seu Objeto de Valor – a Justiça. Ele
devia-ser e queria-ser justo, contou com o apoio de um Adjuvante, ao mesmo tempo, reuniu
elementos para passar da competência à ação. Mas a cultura enraizada arrastou as boas
intenções do juiz, privando-o das virtudes atualizantes.
Assim termina a saga do juiz Virgínio, que lutou contra leis ultrapassadas, mas não
conseguiu salvar Lídia nem a si próprio. Ela, por ser mulher e adúltera, não teve direito ao
perdão. Até porque não teve a mesma sorte de Maria Madalena, que contou com um
Adjuvante poderoso: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra!” Ele, por tentar
mudar as regras do jogo, fazendo prevalecer a ordem e a justiça, onde reinava o caos e a
barbárie.
Se focalizarmos as relações intersubjetivas, podemos constatar que o Locutor, ao criar
o papel temático de juiz, trouxe para o percurso narrativo a aura de uma classe prestigiada.
Dessa forma, assumia um lugar social, ao mesmo tempo em que materializava, lingüística e
enunciativamente, a voz coletiva. Essa é uma característica do discurso etnoliterário, presente
no cordel em foco, nas marcas das crenças e valores do imaginário popular.
140
Embora não seja pretensão nossa prender-nos ao discurso hegemônico masculino, não
podemos deixar de reconhecer, nesse desfile de mulheres, a figurativização de um mundo
onde elas permanecem com papel de coadjuvante. A não ser talhadas na madeira, como
expressão pictórica da fantasia nordestina, ou ainda em uma miscelânea de verdades, na
literatura de cordel, através da qual os Locutores assumem um lugar social, na tentativa de
familiarizar a sociedade com o estilo de vida do cangaço.
O octógono que segue representa o embate de forças que atravessaram o caminho do
S1, figurativizado por Dr. Virgínio, um homem que contou com o apoio de Lampião,
enquanto Adjuvante, nessa luta contra a barbárie, em favor da restauração de princípios
alinhados pela proposta de ordem e de justiça.
Tensão dialética
Justiça
Barbárie
Virgínio
Co
Não-barbárie
Contexto Social
Não-justiça
Ø
Figura 13 – Tensão Dialética entre Justiça e Barbárie
141
5 RESULTADOS
Os resultados dessas leituras foram altamente positivos para os nossos propósitos,
nessa perseguição por elementos teóricos, metodológicos e empíricos, que nos levassem ao
resgate de verdades plurais, e também conflitantes, nessa tentativa de reconstruir um modelo
cultural e histórico. Em primeiro lugar, reunimos elementos, para conhecer as demandas e as
veredas do cangaço, enquanto macroestrutura.
As análises nos colocaram diante de uma tensão, pois, de um lado, flagra-se a figura
de Lampião como um bandido sanguinário, enquanto, por outro lado, desfila um herói
justiceiro, vítima de uma estrutura fundiária feudal. A primeira acata a historiografia oficial,
cuja versão entende o Cangaço como um movimento marginal; quanto à segunda, o fenômeno
é contextualizado, portanto um evento motivado por causas políticas e ideológicas.
No processo de aplicação das categorias, empreendemos um esforço triplicado, já que
tentamos contemplar o percurso gerativo nas suas três etapas. Analisamos os elementos que
se inserem nas estruturas fundamentais, procurando situar as oposições mínimas. No caso das
mulheres do cangaço, por exemplo, sentimentos contrários e contraditórios, como amor x ódio
/ fidelidade x traição / covardia x firmeza / tolerância x agressão etc. desfilaram nas longas
narrativas e nos depoimentos, de onde colhemos menos certezas e mais dúvidas.
Na análise das estruturas narrativas, identificamos sujeitos semióticos, cujo percurso
apresentava características diferenciadas. O Sujeito Maria Bonita, por exemplo, sempre à
mercê do entorno e das rupturas, oscilando entre a conjunção e a disjunção com seu Objeto de
Valor, a companhia do amante. Contou com o apoio e a simpatia da maioria dos poetas e
depoentes. Quase todas as formações discursivas a definiram como valente, formosa e fiel ao
companheiro. Quase todos foram seus Adjuvantes, exceto quando enfrentaram forças
oponentes que provocaram a ruptura, com a consequente separação dos amantes.
Um outro desvio foi flagrado, quando o Locutor era obrigado a cumprir um roteiro
mitológico, para servir às fantasias da memória coletiva. Foi o caso de JOTABARROS,
quando a comparou à figura mítica de Eva, para lembrar a fragilidade feminina diante das
tentações.
É importante perceber que nem sempre as vozes das mulheres entoam o “cântico dos
cânticos”, como no folheto em que o Sujeito – Maria Bonita – busca seu Objeto de Valor – a
companhia de Lampião. De acordo com essa perspectiva, o cangaço foi uma escolha
consciente, fruto de um grande amor, em que pesem as dificuldades enfrentadas. Essa é a sua
142
versão dos fatos, o ponto de vista da narrativa, segundo o qual o Sujeito está em conjunção
com o seu Objeto de Valor.
No depoimento da cangaceira Sila, por exemplo, relatando sua estréia no cangaço,
podemos observar que, ao contrário da euforia erotizada de Maria Bonita, para quem a vida
nômade foi uma escolha consciente, o relato de Sila está recheado de categorias disfóricas,
como constatamos no seguinte fragmento: “Saímos pelas veredas da caatinga, sem destino,
todos caminhavam calados. Nenhum comentário [...]”.
No percurso do Sujeito – Sila –, havemos de identificar que o seu Objeto de Valor do
Dever Fazer está representado no desejo de conviver em paz no cangaço. A ida para o
nomadismo não foi uma decisão voluntária, mas forçada por Zé Sereno, o companheiro que a
sequestrou. Diante dessas circunstâncias, o Sujeito Sila está em conflito consigo mesmo: deve
se adaptar àquele ambiente estranho, mas não esquece o aconchego da família – Objeto
Querer Fazer.
No trecho “triste, isolada da minha família, desiludida e amedrontada”, a depoente
desabafa esse seu estado de SER, ao mesmo tempo, a incerteza quanto à transformação e
consequente conquista da liberdade e da paz. Assim também o Sujeito entra em estado de
disjunção com o Objeto do Querer Fazer. Enfim, as modalidades virtualizantes não atingem as
atualizantes.
Seguem os símbolos que explicam o percurso gerador de sentido referente ao nível da
estrutura narrativa:
S (Maria Bonita)
∩
S (Sila) Dever Fazer
U O (convivência no cangaço)
O (companhia de Lampião)
S (Sila) Querer Fazer U O (voltar para o seio da família)
Focalizando a análise do percurso gerativo da significação – estruturas discursivas,
este texto apresentou também marcas explícitas da posição do sujeito enquanto agente da
enunciação. Os argumentos que sustentam essa tese apoiam-se, em primeiro lugar, no
emprego da primeira pessoa “eu e os demais” / “Eu parecia estar em outro mundo”.
Em segundo lugar, devemos flagrar o discurso nas escolhas lexicais, especificamente
os adjetivos: triste, isolada, desiludida, amedrontada. Se não bastassem esses, lembramos o
estado de mudez, ou seja, a negação da fala na seguinte passagem: “Não falava [...] Não
conhecia aquela gente [...]” - a mais penosa imagem de solidão.
O Sujeito também assume o discurso-enunciado nas escolhas que faz, por exemplo, a
primeira pessoa confirmada no verbo “creio” e no possessivo “minha”, sobretudo, no trecho
143
“eu lhe digo”. Além disso, a transformação da narrativa em discurso pode ser constatada nas
marcas referentes a tempo e espaço.
Em relação a tempo, o Sujeito alterna presente –“E agora eu lhe digo” – com pretérito
“Perdi minha mocidade / eu vivia no sertão”, para significar que não cabe no contexto o plano
cronológico, mas sim o psicológico. Essas marcas que permeiam os enunciados fornecem
elementos discursivos para nos convencer de que houve ativação dos mecanismos de
embreagem, ou seja, o narrador assume a posição de sujeito da enunciação.
O predomínio da tipologia descritiva empresta ao texto um sabor amargo de
desesperança. Esse sentimento de pesar encontra-se não só nas escolhas lexicais, mas também
no aspecto da figurativização, ou seja, a descrição espacial dá visibilidade a modelos que
podem ser associados a um ambiente hostil: “veredas fechadas da caatinga / caminhavam
calados, sem destino”.
Diante desses elementos figurativizados, cabe estabelecer a relação de contrariedade
entre os termos [ERRÂNCIA vs. DIREÇÃO], uma antítese que tenta explicar a herança
medieval, subjacente em todo o texto, do qual se pode inferir um sentimento de culpa. Tais
fantasmas emergem de um imaginário construído sob a égide de referências mítico-lendárias,
de base religiosa.
Com relação às rupturas instituídas por Rastier, convém lembrar que a principal
dificuldade de localização da zona identitária, reside no fato de não se ouvir a voz das
mulheres. Isso porque o lócus está distante e o sujeito, desterritorializado. Diante desse
desamparo, fica fácil localizar as outras duas zonas: flagra-se a proximal exatamente nos
elementos que constroem o lugar do Oponente, na adversidade, no mundo estranho com o
qual ela não se identifica.
Sila foi arrancada do seu verdadeiro habitat, lá onde morava o afeto, e conduzida à
força para uma vida nômade e acidentada, mas teimava em manter dentro dela suas raízes, sua
identidade. Essa ruptura só lhe traz sofrimento, porque entra em clima de disjunção com todos
os valores desse meio. Enquanto isso, o Objeto do desejo fica na zona distal. Qual o maior
desejo, o Objeto do Querer? voltar, territorializar-se, recuperar a identidade, reconquistar o
poder da fala, enfim, SER ... E ser feliz.
A busca da felicidade, todos sabemos, está na essência da condição humana, porém há
sempre obstáculos que impedem a conjunção com o nosso Objeto de Valor. Assim ocorreu
com as mulheres do cangaço, às vezes, pela cumplicidade com os vexames por que passavam
os companheiros, outras vezes, por serem privadas da convivência com os filhos.
144
Finalmente, por se sentirem desterritorializadas, não do ponto de vista toponímico,
mas psicologicamente falando. Sua história foi construída à base de estereótipos, por isso
gerou-se uma enorme distância entre o querer e o poder-fazer. Como vencer o abismo entre o
ser e o não-ser?
145
6 CONCLUSÕES
Os resultados desta pesquisa foram tanto mais significativos quanto mais nos
aprofundamos em conceitos que estão no entorno da ciência denominada Semiótica. Isso
porque se trata de uma análise que busca a construção de um percurso gerativo de sentido,
para vencer a distância entre o eixo das representações e o eixo das interpretações.
Sendo a semiótica uma ciência que se insere no quadro das teorias que se preocupam
com o texto, e não podendo este se reduzir a um campo homogêneo de construção do sentido,
abre-se um leque de conceitos relacionais, para um encontro com outras áreas. É nessa
perspectiva que se entende o texto, em diálogo permanente com outros textos, confirmando-se
a multivocalidade como traço essencial.
É a partir dessa concepção que as pesquisas no campo da Semiótica encontram-se com
os postulados bakhtinianos, que propõem a polifonia e a alteridade como características
constituintes da linguagem. Se toda palavra é uma resposta a outra palavra, nossa investigação
está fadada ao “já-dito”. Batalhamos no sentido de uma historicidade atualizada, construindo
um percurso de ressignificação, para, finalmente, chegarmos ao lugar social das mulheres do
cangaço.
Na análise do corpus em questão, recorreremos a essa multiplicidade funcional, para
contemplarmos a macroestrutura, unidade subjacente aos quadros emoldurados, estes que se
constituem microestruturas e serão responsáveis pela delimitação das fronteiras, seja do ponto
de vista da ação modelizante, seja em relação à temática mais geral – texto da cultura.
Apelando para as duas formas, tentamos fechar a ação da semiose, uma operação complexa, já
que lida com a linguagem verbal e a não-verbal.
Os recortes que compuseram o corpus, sejam cordéis ou depoimentos, vieram atestar a
natureza antagônica do cangaço, já que as marcas ideológicas apontaram para duas direções:
primeiro, a tendência para a idealização das personagens, no caso das mulheres, admiradas
como heroínas. A segunda tendência – ou banalizava as personagens, com uma linguagem
estereotipada, ou as demonizava, apelando para arquétipos que habitam o imaginário, a saber:
vândalos, bandidos, marginais, revoltosos etc.
Tomando como base as pesquisas no campo da tradição oral, tentamos inferir o elo
que faz a articulação entre a memória individual e a memória coletiva. Os cordéis, embora já
tenham atingido a fase da modalidade escrita, atraem temas que apontam para esse potencial
146
representativo da extensão do indivíduo, para construir um universo de histórias, causos,
mitos e narrativas do povo – um universo denominado memória social.
Os folhetos de feira apresentam características perfeitamente identificadas com a
cultura popular, porque traduzem, através de alegorias, as aventuras dos heróis suburbanos; e
também dos antiheróis, já que as narrativas às vezes recorrem a imagens que lembram o
projeto cultural de Mário de Andrade, em Macunaíma – e todas essas figuras que
protagonizaram os dramas humanos, tendo como palco uma terra com palmeiras e com sabiás,
contando com a cumplicidade de um sol tropical.
Os autores recorreram a fatos bíblicos e a títulos nobiliárquicos, para fazer analogias.
Esses apelos servem para reforçar nossa tese de que o tempo do Cangaço foi marcado por
fatores históricos, culturais e ideológicos, semeados densamente, e densamente imbricados, de
tal forma que é quase impossível extrair do amálgama “hoste” um ser individual.
A referida dualidade também atingiu as mulheres, que foram atraídas para esse
convívio, voluntariamente ou não. Essa escuta inclui os dois pontos de vista da narrativa: de
primeira ou de terceira pessoa. Sem a intenção de nos prender ao tema gênero (masculino ou
feminino), procedemos a uma operação comparativa, que contemplou tanto a analogia quanto
o confronto, para superar as fronteiras de viés identitário, enfim, para filtrar do sistema geral a
essência, a forma de ser e agir desse segmento feminino.
Buscamos apoio, também, nas rupturas categoriais previstas por Rastier, até para
mostrar o deslocamento das zonas antrópicas quando se faz o cotejo entre registros formais e
recortes da literatura popular. A depender dos fatores determinantes, sejam culturais,
políticos, ideológicos ou religiosos, essas categorias podem apontar posições diferentes em
relação ao objeto da pesquisa.
A grande maioria dos relatos jornalísticos pesquisados mostra o predomínio do
discurso da racionalidade, trazendo informações descontextualizadas, portanto o chamado
“cangaço social” localiza-se na zona distal. Nos cordéis, entretanto, cujo discurso etnoliterário
aponta para os elementos afetivos, vislumbramos o percurso entre o identitário e o proximal.
Embora a historiografia do cangaço tenha como foco principal a figura do cangaceiro,
é possível se flagrar a construção da imagem de Maria Bonita, desenhada com ternura e
admiração, tal qual uma rainha. Por outro lado, através dessa rede de discursos que ajudou a
inventar e reinventar o sertão, não é raro encontrarmos adjetivos que apontam para um perfil
coletivo. “Quem são essas Marias Bonitas? Em que ambiente elas viveram? Como se
comportavam as mulheres do seu tempo, no seu Sertão baiano? O que essas mulhereres
tinham de especial?”
147
Em relação a outras mulheres, como Sila e Dadá, tiveram que enfrentar Oponentes na
sua própria relação, por isso alternavam os programas narrativos, variando entre relações
eufóricas e disfóricas, a depender dos companheiros e da situação contextual. As duas tiveram
seus momentos de disjunção com o Objeto de Valor enquanto não aderiram aos apelos dos
cangaceiros, ou melhor, enquanto não se apaixonaram por seus respectivos sequestradores.
Se prevaleciam as circunstâncias adversas, elas queriam, mas não podiam entrar em
conjunção com o seu Objeto de Valor. Quando pesava a competência da ordem Adjuvante,
elas sabiam, queriam e faziam, entrando em conjunção, ao mesmo tempo, recuperando o
estado de harmonia e benquerença. A ousadia dessas mulheres em busca da conjunção com
seu OV deve ser celebrada, levando-se em conta o longo período de depuração, até a
descoberta do amor.
Se observarmos sob o ponto de vista da Discursivização, principalmente nos
cordéis, permitiu-se ao sujeito o exercício da figurativização, através do qual construiu-se um
mundo idealizado em relação ao cangaço, um simulacro de realidade, ao mesmo tempo,
favoreceu a criação de categorias tímicas negativas. Como consequência, perde-se a nitidez
com relação à identidade, enfim, tornam-se tênues as fronteiras entre a realidade e a fantasia,
bem como entre a identidade de grupo e a individual.
A figurativização da linguagem do cordel nos leva a refletir sobre a relação que se
instaura entre o que poderíamos chamar de “memória interna” (aquela situada nos membros
do grupo) e a “memória externa” (aquela dos objetos culturais). A leitura do corpus,
sobretudo os cordéis, nos traz de volta a inquietação acerca do lugar dessas mulheres.
Se a proposta desta pesquisa é refletir sobre essa complexa rede de significados,
estamos certos de que reunimos algumas diretrizes epistemológicas que pontuaram a
interferência dos estereótipos, responsáveis pela nossa percepção cultural. Por outro lado, a
leitura semiótica das representações femininas, no cangaço, inquietaram ainda mais,
apontando respostas para as quais ficamos devendo algumas perguntas.
Continuam as dúvidas em relação aos limites que separam a identidade individual da
coletiva, até porque a história é contada sob pontos de vista diferentes. A verdade, pois, vai
depender do lugar da enunciação. Sem falar que, se o mundo é construído semioticamente, a
verdadeira face dessas mulheres está oculta por trás de uma infinidade de símbolos, fetiches e
ídolos.
Quem ouve falar nessas mulheres pode julgar que elas viveram sempre andejando com
seus eleitos. Mas o clube fechado, no qual se permitia somente a presença masculina só foi
148
rompido na segunda fase da vida cangaceira de Lampião, depois da travessia do Rio São
Francisco, em 1928.
Qual a função histórica dessas mulheres, que curavam os ferimentos dos homens,
deitavam com eles, dançavam o xaxado, e ainda bordavam suas vestimentas e adereços.
Viveram entre fetiches e mitos, num universo simbólico, em que se confundiam imagens
estigmatizadas, por um lado e, por outro, um mundo figurativizado, cujos habitantes tinham a
aparência pomposa de reis e rainhas.
A fuga para o plano da fantasia é uma recorrência tão óbvia e legítima que torna
ainda mais tênue a linha divisória entre realidade e ficção, assim também mais instável a
relação entre a linguagem e os objetos-de-mundo. Essa instabilidade, paradoxalmente, vai
gerando resultados sólidos e duradouros, pois, uma vez construído o imaginário coletivo, a
ideologia predominante nessas histórias se dissemina através do processo de ativação de
modelos cognitivos, ao mesmo tempo em que vai determinando comportamentos. À mercê
dessa manipulação, vão-se forjando os valores, em um jogo maniqueísta de onde emergem
bruxas e fadas.
Enfim, convém insistir no fato de que, não só os cordéis, mas também os depoimentos
reforçaram a natureza dual, que marcou a trajetória histórica do cangaço. Isso vem a propósito
das contribuições semânticas e discursivas, extraídas do percurso da significação, todas na
direção das hipóteses levantadas pela nossa pesquisa. Estamos falando da dificuldade de
delimitação de fronteiras entre o bando e o indivíduo, ou entre o perfil-cultural masculino x
feminino.
Evidentemente, não temos a pretensão de ter contribuído com a palavra final sobre o
tema “Mulheres do Cangaço”, mas acreditamos ter problematizado, oferecendo uma
interpretação a partir da reorganização de dados, apresentados em material bibliográfico, nos
cordéis e em alguns depoimentos. De posse desse acervo, ousamos dizer que, se não
protagonizaram a saga, pelo menos um papel foi representado por essas mulheres: elas
transformaram as relações nos bandos, tanto nas relações de conjugalidade como nas demais
relações.
Há um segmento da literatura popular que insiste em reinventar referenciais sobre o
cangaço, que foram esquecidos ou silenciados. É um tipo de historicidade atualizada que, a
partir de um viés social, compara o movimento às lutas sociais da contemporaneidade.
Acredita-se, porém, que a “memória volante” e anti-cangaceira ainda pesa enquanto
construção do imaginário. Por isso o cangaço não se tornou história, é ainda memória, campo
de luta e ferida aberta nas lutas políticas da região.
149
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155
ANEXOS I – FOLHETOS ANALISADOS
156
LAMPIÃOHERÓI DE MEIA TIGELA
Autor: Manoel Monteiro
156
Todo cordel produzido
Era só para fugir,
Com, ou sem inspiração,
Para atacar, não prestava,
Mostrando a VIDA e os CRIMES
No dia em que foi testado
Do facínora LAMPIÃO,
PRESTES passou a seu lado
Não soube, ou fez-se esquecido,
Enquanto ele cochilava.
Que só aplaude bandido
Quem admira ladrão.
Lembram da COLUNA PRESTES
Cruzando o país inteiro
Tem centenas de folhetos
E pondo sob o chinelo
Sobre a vida dessa escória,
O Exército Brasileiro?
Mas, se uns não dizem nada,
Para caçá-la e vencê-la
Outros lhes cobre de glória,
LAMPIÃO ganhou estrela,
Sem pesquisa, se diluem,
Arma, munição, dinheiro.
E, em nada contribuem
Com subsidio pra a história.
Deram-lhe de faz de conta,
O posto de Capitão,
Ainda hoje a imprensa
Mas, era pra pegar PRESTES,
Toda hora e todo instante
Que amedrontava o Sertão,
Procura justificar
Como o besta fracassou
Conduta de meliante
Quem "deu o posto" tomou
Do tipo de LAMPIÃO
Desfazendo a armação...
Dizendo que a exclusão
É o fator dominante
Essa armadilha foi obra
Do "padre" do Juazeiro,
Justificar os desmandos
O que foi excomungado
Desse vulto celerado
Por amar posto e dinheiro,
É uma tarefa inglória,
Enganar o povo crente
Pois, esse "cabra safado",
E reconhecidamente
Foi, do meu ponto de vista,
Protetor de cangaceiro.
Na fuga, um estrategista,
No ataque, um desastrado.
Roubar porque foi roubado,
Assassinar por vingança,
A estratégia de "guerra"
Tomar dos ricos pra dar
Que LAMPIÃO dominava
Ao pobre? Pura lambança.
157
Pagar o mal com o mal
Figura amaldiçoada.
Não é exemplo legal
Para deixar como herança.
Uns dizem que LAMPIÃO
Nasceu em Mil novecentos,
Dizer que pobre é forçado
Aos 12 do 02, e, outros
A roubar, porque precisa,
Falam nos Mil oitocentos
Não é verdade, pois, tem
e noventa e sete, são
Ricaço de cara lisa
Feitos de contradição
Que rouba a torto e a direito,
Os seus primeiros momentos.
Mal feito é sempre mal feito
Com camisa e sem camisa.
Contudo – Mil oitocentos
e noventa e oito acata
Só entrava no cangaço
O dia 04 de junho
Quem odiasse a justiça,
Como ano, mês e data
Invejasse os bens alheios,
Que esse sujeito simplório
Fosse um servo da cobiça,
Foi registrado em Cartório,
Beijasse os pés da maldade,
O resto é lenda barata.
Amasse a perversidade,
Tivesse a mente enfermiça.
Já da morte do bandido
Não se questiona o dia,
Depois desta introdução
Foi 28 de julho
Chamo o leitor e combino
Numa madrugada fria
Ir comigo a "VILA BELA"
Do ano de 38
(Cá no Sertão nordestino)
Que – ELE – e seu grupo afoito,
Aonde um guri chegou
Findou como deveria.
E no batismo ganhou
O nome de Virgulino.
Quem planta espinho não pode
Colher flor, só colhe espinho,
VILA BELA foi crescendo
Foi isso que LAMPIÃO
Passou a SERRA TALHADA,
Fez desde pequenininho,
Cidade pernambucana,
Tivesse modos corretos
Hoje, muito divulgada,
Veria filhos e netos
Por ser uma região
Morreria bem velhinho.
Que viu nascer LAMPIÃO,
158
Esse jovem sertanejo
Pois o roçado ocupava
Morreu cedo, por tentar,
Todo filho que nascia.
Alimentar o desejo
De comer sem trabalhar.
Pela ordem, foi nascendo,
Virgulino, o LAMPIÃO,
Não quis trabalhar a terra
Antônio e Ezequiel,
Plantar pra depois colher,
Livino, depois João,
Casar, ter filho, educá-lo
Angélica, Amália, Maria
Na senda do bom viver;
E Venturosa que iria
Entre o trabalho e o roubo
Encerrar a produção.
Escolheu o jeito bobo
De ganhar sem merecer.
Enquanto estavam pequenos
A festa era permanente
Hoje a onda de delitos
Gastavam as horas do dia
Vem sendo justificada
Em brincadeira inocente,
Pelos milhares sem terra,
Mas, ao crescerem, os rapazes
Sem emprego e sem morada,
Não se mostraram capazes
LAMPIÃO não se redime
De conviver como gente.
Porque se abraçou o crime
Foi pura escolha e, mais nada.
Brigavam com á vizinhança
Por dá cá aquele galho,
Seu pai era o que se chama
Trocando tapas e murros
Pequeno proprietário,
Esquecidos do trabalho,
Se não tinha grandes posses
Somavam desarmonia
Como um latifundiário,
Até que.chegou o dia
Mas, sua propriedade,
Da - história do chocalho.
Supria a necessidade
Do que fosse necessário.
Por brincadeira ou maldade
Os filhos do seu Ferreira
Seu João Ferreira, o pai,
Amassaram o chocalho
Sua mãe, Dona Maria,
De uma vaca parideira
Tiveram ELE e; mais oito
De Saturnino, um vizinho,
Filhos e essa quantia
Que morava bem pertinho
De filhos não atrasava
Quase porteira a porteira.
159
Da "profissão bandoleira"
E o pai de Virgulino
Com um velho cangaceiro
Mesmo tomando ciência
Chamado Sinhô Pereira,
Do mal feito por seus filhos,
E, nesse grupo lhe dão
Sem medir a consequência
O vulgo de LAMPIÃO
Deixou pra lá a questão,
Por sua mira certeira...
Foi essa ausência de ação
Que alimentou a pendência.
À noite quando o "garoto"
O seu fuzil disparava
Esse pequeno incidente
Tão certo e veloz no tiro
De um chocalhinho amassado,
Que o fogão alumiava
Uma brincadeira insossa
Como um candeeiro aceso,
E um pai despreparado
Sinhô Pereira surpreso
Acenderam no Sertão
De LAMPIÃO o chamava.
O facho de um lampião
Até então apagado.
LAMPIÃO viu que roubar
Era um "negócio" excelente
Toda guerra começou
Dava muito mais futuro
Porque ninguém se entendeu,
Que viver honestamente,
Reparem, que nesse caso,
Deu tanto crédito a carreira
Foi um chocalho que deu
Que deixou Sinhô Pereira
Afigura do bandido
Pra roubar independente.
Mais perigoso e temido
Que o Sertão já conheceu.
Formou o seu próprio grupo
Que ele chamava - negócio,
Virgulino aproveitou
E, nessa empresa do crime
A desavença criada
Fez de cada irmão um sócio,
Entre os seus e os vizinhos
Levando irmão por irmão
Para ganhar a estrada
Ao fundo do alçapão
Passando dali pra frente
Pra deixar de ser beócio.
A viver de roubar gente,
Assassinar de emboscada.
Há um dizer dos mais velhos
Que vale a pena dizer:
Fez Curso Preparatório
Uma ovelha ruim
160
Põe um rebanho a perder;
Do tipo de LAMPIÃO
LAMPIÃO, sendo o mais velho,
Fosse do time também.
Foi Cartilha e Evangelho
Para a irmandade ler.
E olhem que o Pe. Cícero
Ensinou ao desgraçado
Por seguirem seu exemplo,
Uma oração que deixava
De viver na bandalheira
O corpo dele fechado,
Trocando foice e enxada
Só não fechou cem por cento...
Por rifle e por cartucheira,
Mas, esse procedimento
O ganho fácil gorou
Deve ser ignorado.
E, como esponja, apagou
A família dos Ferreira.
Acho que foi negativo
Ter trocado um sapateiro
Mas, todo mundo já sabe
Por um ladrão, fugitivo,
A - história de LAMPIÃO –
Assaltante e cangaceiro.
Que foi contada e cantada
Do Litoral ao Sertão,
Não vou dizer que Maria
Até lá no estrangeiro
Criou enfeite de boi,
Esse machão brasileiro
Mas, no Sertão se dizia,
Tem merecido atenção.
Com segurança, que foi.
Só que pra falar de alguém
Que ELE era corno sabemos
Eu investigo um bocado
Porque teve o Cartomante
E nessas minhas pesquisas
Pra quem MARIA BONITA
Li e reli, publicado,
Era freguesa importante,
Num jornal da região
Importante, porque dava,
O informe que LAMPIÃO
A mão pra ler e deixava
Era um pouco afeminado
Ele "estudar" o restante.
Não que isso seja pecha
É certo que ELE mandou
Que desmereça ninguém,
Sabonete o liquidar,
Hoje, ser veado é chique;
Mas, não serviu porque chifre
(ratem, nem tanto, porém,
Quem ganhou tem que levar
Nunca esperei que um machão
Pela vida eternamente
161
Sendo mais inteligente
Pacificamente usar.
Essa Fazenda
Veneza Era uma propriedade
Ele tinha outras facetas
Que vou, resumidamente,
Trazer à baila, porque,
De um sujeito tão "valente"
Talvez ninguém esperasse
Que o "bichinho" se mostrasse
Um costureiro excelente.
De Childerico Fernandes
Que por infelicidade
Tinha alguma relação
Com a fuga de LAMPIÃO,
Pura casualidade.
Childerico era parente
De Rodolfo, então Prefeito
Da Mossoró atacada
Quando não estava ocupado
Assassinando ou rugindo,
Jogando cartas, bebendo,
Sequestrando e perseguindo,
- Supliciando pagãos –
Limpava o sangue das mãos
Ou modelando ou cerzindo.
Pra quem tem memória curta
E dar valor a bandido
Lembrarei ligeiramente
Um pormenor ocorrido
Quando LAMPIÃO fugia
De Mossoró que havia
Expulsado o pervertido.
E detentora do feito
De ter enxotado o bando
Que agora estava chegando
Na Veneza, desse jeito
Lógico que Seu Childerico
Por ter esse parentesco
Tinha plena consciência
Que aquele bando grotesco
Não iria deixar barato
Tornando seu lar pacato
Num mar de sangue dantesco.
E, foi isso, exatamente,
Que aconteceu nesse dia,
Uma centena de "cabras"
Raivosos se divertia
Na fuga desesperada
Os marginais, sem pudor,
Sequestravam barganhando
Roubando tudo e quebrando,
Num baú velho encontrando
Uma vultosa quantia.
Salvo conduto e valor
Quando a horda, de surpresa,
Era um dinheiro que estava
Chega a Fazenda Veneza
Lá num canto separado
Para instalar o terror.
Para o Sr. Childerico
162
Pagar a compra de um gado,
Luto, tristeza, orfandade.
Roubaram tudo, queriam
O resto, pois, presumiam
Haver muito mais guardado.
Por isso foi bom Angicos
Bom que tivesse João,
Foi bom que João tivesse
Mais não tinha e, por não ter,
De um coiteiro indicação
O massacre começou;
Para sorrateiramente Degolar,
Várias pontas de cigarros
covardemente,
Um miserável apagou
Os onze filhos do Cão.
Numa pobre criançinha,
Em favor da pobrezinha
A mãe debalde implorou.
O João de que falamos
Era o "bravo" comandante
Que estava dando as ordens
A mãe pedia clemência
Aos "meninos" da Volante
O pai, impotente olhava,
Naquela manhã de julho,
Sofrendo dores terríveis
Mas, ninguém teria orgulho
O menininho chorava
De o ter por representante.
De cortar o coração
Enquanto isso, LAMPIÃO,
Na rede se balançava.
CAPITÃO JOÃO BEZERRA
Também ficou conhecido
Por traficar armamento
Faz dó só de imaginar
Quanto aquela mãe sofria
Vendo o filho padecer
Toda aquela covardia.
Admira inda ter gente
Solidária e complacente
Com tanta selvageria.
O Rei, como alguns o chamam,
Se foi rei foi da maldade
Pois viveu de sequestrar,
Matar por perversidade;
Quando o Diabo o levou
Como herança só deixou
E munição pra bandido,
LAMPIÃO, por várias vezes,
Fora um dos seus fregueses
Pedindo e, sendo atendido.
Um bandido desarmado
É fácil de ser vencido,
Mas, só que tem o soldado
Pra vender arma ao bandido.
A arma que foi vendida
Ao ladrão, pelo soldado,
É a mesma que tira a vida
Do policial honrado.
163
Nada é novo sobre a terra
Pois isso de marginal
Comprar arma e munição
Das mãos de policial
É tão velho quanto à chuva,
Choradeira de viúva,
Ou baile de carnaval.
Pra limpar esta sujeira
O Brasil carece urgente:
Um Judiciário honesto,
Uma polícia decente,
Legisladores direitos
Não desses que são eleitos
Para saqueara gente.
Matar alguém só se for
O- jeito, pra não morrer,
N-ão vale a pena viver
T- endo carência de amor.
E- sta vida é passageira
I- sto todo mundo sabe
R- ia antes que o mundo acabe
O- resto? É resto, ou leseira!
0
8.2. O CANGAÇO SUSTENTADO
PELOS CORONÉIS
Varneci Santos do Nascimento
164
Em sua tenra idade.
Criticam os cangaceiros
Chamando-os de infiéis,
As volantes da policia
Facínoras e malfeitores
Não agiam com precisão
Assassinos e cruéis
De “macaco” eram chamados
Mas, não diz como foram,
Os membros da guarnição
Bancados por coronéis!
Atacados com freqüência
E com bastante agressão.
Desse tema recorrente
Todo mundo já falou
Os coronéis sem volantes,
Criticando e execrando
Acharam eficiente
Todavia, ninguém mostrou,
Suprir um grupo e tomá-lo
Que quem financia um crime
Protetor de sua gente
Tem culpa igual quem matou.
Assim como dos seus bens
Roubados freqüentemente.
À nossa historiografia
Faço e renovo um convite
Dono de terra e político
Para alargar a visão
Dominava a cidade
Sem preconceito ou limite
Precisando de jagunços,
E fazer história sem,
Cruéis sem humanidade
Os olhos cegos da elite!
Para intimidar o povo,
Com sanha e ferocidade.
“Tudo falado do todo”
Pode não ser bem assim
O voto de clavinote
Não sou daquele que crê,
Fora muito praticado
Que o meio legítima o fim
Consistindo no votante,
Todo fato tem dois lados
Ao votar ser ladeado
Um é bom, outro é ruim.
Por mais de um jagunço quê,
Certamente estava armado!
Fizeram de Lampião
Já corrigir muita gente
O rei da perversidade
Por causa dessa expressão
O injusto, o bandido
Chamar Nordeste de Norte
O creador da maldade
Pra tal não via razão,
Sem contar como ele foi
Mas, existe, é pelo pouco,
165
Tempo dessa região.
Que era um pouco evoluído.
Em matéria de poder
Contudo, só para os ricos,
Formou-se vários cartéis
Coronéis e fazendeiro
Por isso, analisemos
Os quais podiam viver
Os seus devidos papéis
De modo mais prazenteiro
O cangaço sustentado
Enquanto, pra maioria,
À época por coronéis.
Vinha dor o tempo inteiro.
Cada cidade existente
O povo sofria bastante
Era pouco habitada
Sem ter a quem recorrer
Política repugnante,
A não ser chamar por Deus
Asquerosa, praticada
Nada podiam fazer,
Deixando à população
Dando uma triste impressão
Totalmente abandonada.
Que nasceram pra sofrer.
Não existia estrada
Normalmente poucos tinham
Só vereda aqui se via
Terra para trabalhar
Um hospital era um sonho
Quando possuía casa
Um médico uma utopia
Ruinzinha para o coronel
A doença uma certeza
Obrigados trabalhar.
De que sem cura morria!
Às vezes para ganhar
Quando alguém adoecia
O pão para cada dia
O remédio natural
Com uma procura enorme
Se não fosse feito em casa
O coronel escolhia
O desespero geral,
Quem trabalhasse bem mais
Tomava conta porque,
E que menos cobraria.
Uma gripe era mortal!
Daí porque os mais pobres
A não ser no grande centro
Davam para batizar
Pouco mais desenvolvido
Um filho ao coronel
Como Salvador, Bahia,
A fim de se aproximar
O Recife, conhecido,
Da fazenda e, de quem,
Ou no hospital de Campina
Poderia lhe ajudar.
166
À sua sobrevivência.
À mão-de-obra sobrava
Graças à grande procura
Porém, quando o coronel
Pobre vivia na miséria
Na condição de assaltado
E o rico na fartura
Reagia com seus homens,
Desfrutando das benesses
Duramente era enfrentado
Duma exploração segura.
O tiroteio deixava
As marcas de cada lado.
Enquanto, outras pessoas,
Os coronéis começaram
Eram deixadas de lado
Sentir a grande agressão
Do trabalho existente
Pela qual vinham passando
Pelas fazendas de gado
Nas fazendas do Sertão
Excluídos vão formar,
Resolveram urgentemente
Cada bando bem armado.
Tomar uma decisão.
Se não podiam trabalhar
Já diz o velho ditado:
Não teriam o quê comer
Quem quer enfrentar aquele
E muitos se decidiram
Rei, primeiro avalia,
A de fome não morrer
Se tem força igual à dele
Criaram então o Cangaço
Senão tem, é bem melhor,
Pra dele sobreviver.
Logo se aliar a ele.
O qual surge bem disposto
Apesar dos coronéis
Ir ás fazendas roubar
Terem um monte de gente,
Pronto pra qualquer batalha,
Agregada, trabalhando,
E se preciso, matar:
Para si, diariamente
“Se ninguém nos dá emprego
Percebem tal força como
Comemos sem trabalhar.”
Não sendo suficiente.
Tinha bando que por ética
Para poder enfrentar
Não usava a violência
Numeroso bando armado
Na fazenda invadida
Necessitava ter homem
Era breve a permanência
Corajoso, denodado
Pegando só o necessário
Rapidíssimo no gatilho,
167
E mais em mato fechado!
Disposto a ser resguardado.
Nem todos seus agregados
Ás vezes um bando grande
Dispunham-se a brigar
Dois coronéis, sustentava
Ou tampouco numa arma
Suprindo às necessidades
Ninguém queria pegar
As quais o mesmo passava
Pois, não desejavam guerra
E o coronel, desse jeito,
Ansiavam trabalhar!
Por risco nenhum passava.
Ao nordestino comum
Outrora quem tinha sido
Faltava paz, esperança,
Uma vítima da agressão
Pra o fazendeiro escassa,
Dos cangaceiros armados
O mínimo de segurança
Houve agora uma inversão
Só se via tempestade,
Com o pacto tinha deles,
Sem ares de vir bonança.
A mais forte guarnição.
Assim cada coronel
Em troca a cangaceirada
Via-se em um dilema
Também era protegida
Sendo atrapalhado como,
Para quem o coronel
Quem contra a maré rema
Devia dar-lhe guarida
E para não sucumbir
E suprir a jagunçada,
Só encarando o problema!
De água, roupa e comida.
Contudo, faltava força,
Além disso, armamentos
Necessária pra lutar
Junto com a munição
Enfrentando os cangaceiros
Objetivando assim
Não podiam declarar,
Armá-los com precisão
Um combate e, foi o jeito,
Preparando-os fortemente,
Chamá-los pra conversar.
Pra qualquer sublevação.
Nessa conversa ficava
Dá cavalo, quando um,
Totalmente combinado:
Em um combate morria
O bando cessa os ataques
Arreios novos, seguros,
Para ser financiado
Para a nova montaria
Por um coronel ou mais,
Robusta e equipada
168
Com potente artilharia.
Sente-se injustiçado!
Quanto mais aparelhado
Morrer de fome enquanto,
Ágil pra locomoção
Outros gozam mordomia
E armado até os dentes
Indigna e faz até,
Treinados para agressão
Partir pra selvageria
Mais o coronel teria
Onde a certeza era só,
Uma eficaz proteção.
Que depois pioraria.
Quando da fama dum grupo
Por outro lado também
Muito se ouvia falar
Tornara-se complicado
Outro, embora equipado,
O coronel ter de tudo
Não ousava ir ao lugar
Todavia, ser roubado
Invadir nenhuma fazenda
Quase que constantemente
Com medo de apanhar.
Por qualquer bando armado!
Cada grupo de cangaço
Por isso, o coronel,
Evitava agredir
Pensa logo em seu juízo
Os rivais que todos tinham
"Esse lugar foi outrora,
Pra guerra não progredir
Para mim, um paraíso,
Seu foco eram os "macacos"
E tá virando um inferno
A quem queriam destruir.
Eu só tendo prejuízo”.
Assim cada coronel
Então se alia mesmo
Com seu bando bem munido
Por pura necessidade
Sentia-se totalmente
Afim de nessa aliança
Seguro e, bem protegido,
Encontrar tranqüilidade
Era o lugar da justiça
E o amparo acontece
Ocupado por bandido!
Numa reciprocidade.
Bandido, não sei se tanto,
As volantes da policia
Deve assim ser chamado
Não agiam com precisão
Com quem rouba porque tem
De “macaco” eram chamados
O seu direito negado
Os membros da guarnição
Qualquer um faz isso quando,
Atacados com freqüência
169
E bastante agressão.
Publicamente escutado.
Os coronéis sem volantes,
Quem ali dissesse não,
Acharam eficiente
Ao candidato indicado
Suprir um grupo e torná-lo
Seria de imediato
Protetor de sua gente
Brutalmente espancado
Assim como dos seus bens
Muitos chegaram a morrer
Roubados freqüentemente.
Isso é fato confirmado.
Dono de terra e político
Tal aliança ajudou
Dominava a cidade
A ocorrer fatos críticos
Precisando de jagunços,
Levando a violência
Cruéis sem humanidade
A atingir altos picos
Para intimidar o povo,
Coronéis eliminando
Com sanha e ferocidade.
Seus inimigos políticos.
O voto de Clavinote
Cangaço pelo cangaço
Fora muito praticado
Não se deu, está provado,
Consistindo no votante,
Mas, á falta de governo,
Ao votar ser ladeado
Competente e articulado
Por mais de um jagunço quê,
Fez surgir tal movimento
Certamente estava armado !
No Nordeste abandonado.
Graças à força brutíssima
O cangaço vai além
E recíproca proteção
Dum bando de agressores
Conjuntamente aliados
Foi grito de liberdade
Expandiam sua ação
Dos pobres trabalhadores
Pois, queriam conquistar,
E um não dos explorados
Total consolidação.
A todos exploradores.
Outra maneira de voto
Pesquise mais largamente,
Denominava Cantado
E pare de silogismo
Onde o eleitor dizia
Conclusões precipitadas
O nome do seu votado
Condenam o cangaceirismo
Por todos e, por jagunços,
Absolve a Policia
170
E salva o Coronelismo.
Quando todos três têm culpa
Nessa bela discussão
A respeito do cangaço
E sua manutenção,
Apontei outra vertente,
Mostre a sua, meu irmão!
171
8.3. Cancioneiro de Lampião – Nertã Macedo
Menina vou te contar
A história de um cangaceiro,
Bicho bom, de pé ligeiro,
Lobisomem do sertão.
Reparava a injustiça
Estrangulava menino
Por ato de diversão,
Entrava nos povoados
E deixava em petição
De miséria o prepotente
Vergado na punição.
Desocupado, erradio
Vagueou como um papão,
Por muitos anos a fio
Não buscou a salvação,
Tinha grande protetor
O padre Cícero Romão.
No lugar onde chegava
Era vigário e juiz,
Amancebava e casava
E livrava o infeliz
Que nas grades da cadeia
Vivia curtindo peia,
Delegado de polícia
Escapava por um triz.
Nos doze pares de França
Foi buscar inspiração,
Seu chapéu era igualzinho
172
Ao do rei Napoleão.
O imperador Carlos Magno
Houvera de ter paixão,
Valente como Olivério,
Brigava como Roldão,
Dos tempos mais recuados
Só Osório e Cipião
Podiam ser comparados
Ao guerreiro Lampião.
Nestes autos vou narrar
A vida de Lampião,
Quem tiver oiças, escute
E faça do coração
A via do entendimento,
Pois nada vale a razão,
Sangue e terra se misturam
Em perpétua comunhão,
Na linguagem do mistério
Dou a minha tradução.
O demônio sobrevive
No descendente de Adão,
Quem de si não o afugenta
Apodrece na prisão.
O homem não nasce bom,
Já nasce na expiação
Se o Anjo prevalecesse
Já teria morto o Cão.
Oriundo do Pajeú
Foi morar em Nazaré,
Quando um chefe de volante
Matou o velho José.
173
O nome de sua mãe
Era o da Virgem Maria,
E foi tanto o seu pesar
Que morreu no mesmo dia.
O sargento João Maurício
Enterrou os dois velhinhos,
Lampião pegou o rifle,
Armou-se pelos caminhos.
No meio daquele mundo,
Daquele mato rasteiro,
A alma fica liberta
E o peito mais ligeiro
No seu fundo respirar.
Sebastião Pereira
É hora de caminhar.
Não haja mais um Carvalho,
Não haja mais um Nogueira,
Sou uma aberta ferida
Toda ela consumida
Como pasto de bicheira.
Ferreira de Vila Bela,
Era bom filho e irmão,
Teve gado, teve terra,
Teve cerca de melão,
Burro, garrote, novilho,
Sabiá e azulão,
Galo de crista vermelha,
Arapuá e alçapão,
Mestre-escola, oratório
E santos da devoção,
O menino Virgulino,
Pegador de barbatão.
174
Seu cavalo era um fidalgo
Com narinas de trovão,
Rufava como um tambor
Na frente de um batalhão,
Cada pancada do casco
Fendia a terra do chão,
Nas cores do meio-dia
Era cinzento e cardão,
Era de prata azulada,
Era vermelho alazão,
Ancas de ouro e negro,
Rompe-nuvem de algodão.
Cavalgando nas auroras,
Em remotos incendidos,
No viver dos perseguidos
Nos calcanhares do dia,
O olho fundo vazado
Sem retenção dos outroras
Capitão do meio-dia,
Governador dos gerais,
Foi Virgulino Ferreira
De alcunha Lampião,
Que nasceu em Vila Bela
Pra varar a solidão.
Pelos caminhos da noite,
Pelos caminhos do dia,
As alpercatas de couro
Batiam no duro chão,
E os rolos de poeira
Subiam da imensidão.
As redes avermelhadas
175
Entre celas e cangalhas
E o cheiro suarento
Das alimárias exaustas.
E na frente do comboio,
Reluzindo entre punhais,
O capitão do meio-dia,
Governador dos gerais,
Óculos, anéis, cinto, lenço,
Rutilantes minerais,
Nomes de guerra afamados,
Inscritos nestes anais.
Mas a grota dos Angicos
Foi a sua perdição,
Maria bem que dizia
Aquilo tem maldição.
Estava tão reduzido,
Em tão ruim situação,
Tão deprimido e doente,
Era tão grande aflição,
Que não mais se separava
De um frasco de veneno
Do tamanho de um breve
Pendurado junto ao peito,
Na altura do coração.
Alvores da madrugada,
Nos ermos da solidão,
Estrela bela, cadente,
Tombando do céu luzente
Na cova escura do chão.
Existiu na natureza
Como o ar na amplidão,
Como o lume e o braseiro,
176
Como a água e o clarão,
Do pó da terra oriundo,
Ficou sozinho no mundo
Perdido na criação.
8.4. EPISÓDIO SERTANEJO
Paulo Bandeira da Cruz, 1985.
Tua gravata de urtiga
tua farda de avelós
tua alpercata de légua
e um boi trançado na voz.
Punhal de prata no cós
bala certeira na régua
bornal que a fome mastiga
e fuga no lombo da égua.
Fogo-fátuo no Angico
(procissão de dor e grito)
E a cabeça do proscrito
Virgulino Lampião
Cortada por um milico
Sem pai-nosso ou extrema-unção.
8.5. A MULHER E O CANGAÇO
Autora: FANKA
Da história do cangaço
As geras diminuíram
Muito tem pra se saber:
E até vidas poupadas
Enfeite e bala de aço
Devido ao que pedira,
177
Conhaque para beber.
A mulher participando,
Sugerindo nesse bando
Outro jeito de viver.
Alguma foi escutada.
Maria Bonita, Dadá,
As duas a comandar
No sertão essa cruzada.
O cangaço começou
A mulher só ingressou
Com o Mestre Cabeleira
A partir de Lampião.
Foi dele que iniciou
Muita coisa se mudou
Toda aquela pasmaceira
Com a sua opinião
Pela falta de justiça
Pois Maria interferia
E também pela cobiça
Da maneira que podia
Começou a bagaceira.
Em cada situação. (...)
Violência era o lema
No resgate da memória
Desse bando no sertão,
Tudo pode acontecer.
Porém, para este tema,
Aparece na história
Houve uma amenização
A mulher para tecer
Com força feminina
Outro lado da versão,
Ingressando, de menina,
De Pereira a Lampião
Mudando essa visão.
Ela procurou vencer.
FANKA – Ed. Esp. JDO, 1997, Juazeiro do Norte, CE.
178
8.6. AS MULHERES CANGACEIRAS
HUMANIZARAM O CANGAÇO
Autor: Kydelmir Dantas
179
O Cangaço é nosso tema,
Surgia SINHO PEREIRA,
cativante do sertão.Teve
nos seus comandantes,
Juntou-se com Luiz Padre,
Nomes famosos de
Seu primo e um grande amigo,
ação, Que ganharam
Partiu pra fazer justiça,
muita forma,
Combatendo o inimigo,
Bem antes de Lampião.
Na luta contra os Carvalhos,
Enfrentou grande perigo
Foi CABELEIRA, o
primeiro,
E no ano de dezoito (1918)
Com seu bando
Juntou-se a seus „menino‟
pequenino,
Dois filhos de Zé Ferreira,
Também o LUCAS DA
Brigados com Saturnino,
FEIRA,
Valentes e prontos pra luta,
Beiano muito ferino,
Eram Antônio e Virgolino.
Viriatos, Guabirabas,
E o grande JESUÍNO.
Antônio era o mais quieto,
Taciturno e caladão.
Teve em ANTÔNIO
O segundo, mais arisco,
SILVINO,
Inteligente e brigão,
Que nem o nosso
Tanto atirava em pé,
BRILHANTE,
Como rolando no chão.
A faina de justiceiro,
Antes que de meliante,
Numa brigada que deram,
Defensor da honra
Em noite de escuridão,
alheia,
Seu rifle brilhava tanto,
Quase um cavaleiro
Que „alumiava‟ o sertão,
andante.
Dai ficou conhecido,
Por alcunha: LAMPIÃO.
Com pouco tempo, adiante,
No fim da grande carreira
Entrou na década de vinte (1920)
Do velho “Rifle de Ouro”
Sem mostrar nenhum cansaço,
Na tribuna justiceira,
Herdou de Sinhô Pereira,
No sertão de Vila Bela
Audácia e desembaraço,
180
E por essas qualidades,
Ceará e ainda mais,
Tornou-se O REI DO CANGAÇO.
Traído pelo coiteiro
Que confiava demais.
Foi u n tempo atribulado
No Nordeste brasileiro.
Daí, espalhou o bando
Em nove (9) dos oito (8) estados,
A procura de outro coito.
O cangaço fez roteiro,
Desaparecendo o grupo
Deixando, aonde passava,
Composto de cabra afoito,
A canga do desespero.
Vindo surgir na Bahia
No ano de vinte e oito (1920.
Pernambuco, Paraíba
E o Rio Grande do Norte.
Começa a segunda fase
Mas topou em Mossoró,
De Lampião no Cangaço.
Um povo valente e forte,
Na Bahia, em Alagoas
Se Lampião não recua,
Em Sergipe deixou o traço
Tinha encontrado a morte.
Em todos estes estados
A presença do sela braço.
A 13 do mês de junho,
De vinte e sete (1927) o ano,
Diferente de outros chefes,
Ao invadir Mossoró,,
Daquela gente ferina,
Com seu pensamento insano,
Que não queriam nos grupos
Perdeu dois cabras valentes,
A presença feminina,
Que o fez mudar de plano.
Surgiu a MARIA DÉA
Quebrando toda rotina
Colchete, morreu na hora,
Jararaca foi ferido,
Uma morena formosa,
Mais uns três (3) foram chumbados,
Com os olhos de catita,
Com o bando esmorecido,
Independente e valente,
Fugiu para o Ceará,
Sedosa igual uma chita,
Com seu orgulho banido.
A Rainha do Cangaço
Foi a MARIA BONITA.
E lá foram combatidos,
Por três Forças estaduais:
Com sua entrada no grupo,
Paraíba, Rio Grande
Ficou o espaço aberto,
181
Para os outros cangaceiros
Pela caatinga baiana,
Que queriam ter, por perto,
A costureira do bando,
Suas amantes com eles,
Que costurava bacana.
Pra aquecer seu deserto..
Pela sua valentia
De Onça Sussuarana.
A presença feminina,
O Cangaço humanizou.
Só ela pegou em armas,
A mulher por ser mais fina,
Nunca saiu na carreira,
Logo ele transformou,
Que enfrentou a Polícia,
Ficando menos sangrento
Comandando a cabroeira,
E muitas vidas poupou.
Mais das vezes defendendo
Seu marido na trincheira.
Portanto, vamos citar,
Essas amantes e guerreiras,
SILA foi outra guerreira,
Que ficaram conhecidas,
Daqueles tempos atrás,
As mulheres cangaceiras,
Que viveu com Zé Sereno,
Por todos os pesquisadores
Seu marido e capataz,
Escritores das fronteiras.
Escreveu a sua história:
“Memórias de Guerra e Paz”.
Das fronteiras do Cangaço,
Muitos passaram no teste,
DURVINHA ou DURVALINA,
Pesquisando, indo a fundo,
Companheira de Moderno,
Aqueles cabras da peste,
Jurava ao companheiro
Escrevendo um capítulo
Para sempre, amor eterno,
Da História do Nordeste.
Com a morte de Virginio,
Viu as portas do inferno.
Logo depois da Rainha,
Nas margens do São Francisco,
Até que enfim, resolveu,
Apareceu a Princesa,
Num clima: morno e sereno,
De temperamento arisco,
Juntar-se ao maior amigo
Foi Sérgia da Conceição,
Como este mundo é
Companheira de Corisco.
pequeno,
Morreu há pouco casada (28/06/2008)
DADÁ ficou conhecida,
Com o Antônio Moreno,
182
DULCE, ainda hoje vive,
Este lhe foi infiel,
Não lhe faltando a
Lhe trocando por ROSINHA,
lembrança,
Fazendo feio papel.
No interior de São Paulo,
INACINHA foi de Gato,
E evangélica, não dança,
Um cangaceiro arisco.
Teve como companheiro
MARIA de Juriti,
O cangaceiro Criança.
Inda correu muito risco,
Vindo morrer este ano (2008)
Agora vamos listar,
Em Belém do São Francisco.
Pra não sair do roteiro,
Os nomes das conhecidas,
AUREA de Manoel Moreno,
Ligadas a um
Um cabra paraibano,
companheiro.
Dizem que era muito frouxo,
Que foram mais de sessenta (60)
De lutar não tinha plano.
Vivendo com cangaceiro.
MARIA de Azulão
E LÍDIA de Zé Baiano.
ADÍLIA, era de Canário,
CRISTINA, de Português.
LÍDIA foi a mais formosa,
LILI, foi de Moita Brava
Cangaceira do sertão.
E ENEDINA se fez
Por ser bonita e fogosa,
No bando, com Cajazeira,
Traiu, serviu de lição,
Morreram os dois d‟uma
Pois foi morta a pauladas,
vez.
Pelo monstro, sem ação.
Moita Brava foi traído
MOÇA, era de Cirilo,
Por Lili, numa semana,
Geniosa e eficaz.
Com o cabra Pó Corante,
Mais JOANA e DELMIRA
Ela foi morta com gana.
Do cangaceiro Calais.
E o Moita se juntou
LIGA, ADELAIDE e SABINA,
Com uma SEBASTIANA.
Ainda teve muito mais.
NENÉ foi de Luiz Pedro,
Maria! Teve um bocado,
O cangaceiro fiel.
Mais ou menos afamada.
OTÍLIA, de Mariano,
Teve Maria dos Santos,
183
Por MARIQUINHA é lembrada.
Cristina Mata Machado
Também MARIA JOVINA
E Aglae de Oliveira.
Ou MARIA de Pancada.
Do Cangaço se aprecia,
Teve MARIA ISIDORO,
Entre os pesquisadores
MARIA de Gitirana.
As histórias e valores,
Ângelo Roque teve duas:
No tema que se anuncia.
A Manquinha e a ANA.
Seus nomes são sem
Laura Alves ou DONINHA,
deslize,
Disposta alagoana.
Geraldo, Umberto,
Élise,
Tinha ANTÔNIA de Baliza,
Na pesquisa que semeia.
A QUITÉRIA e a LOL´P.
Alcino como seu libelo,
BIDIO de Volta Seca,
Pernambucano de Mello
Este só tinha gogó.
E Antônio Amaury
VERÔNICA de Beija-flor
Correia.
E a cangaceira LIÓ.
FIM
ARISTÉIA de Catingueira,
Apareceu há uns dias.
Na cidade Paulo Afonso,
Interior da Bahia,
Para João de Souza Lima,
O biógrafo de Maria.
Livros há, com este terna:
As Mulheres e o Cangaço.
As Amantes e Guerreiras,
Todas com nervos de aço.
São de bons pesquisadores
Grandes historiadores,
Daqui e doutra ribeira.
Homens e mulheres de brado,
0
8.7. A VERDADEIRA HISTORIA DE LAMPEÃO E MARIA BONITA
Autor: Manoel Pereira Sobrinho
185
Grande Deus senhor dos seres
mandai-me orientação
Jogava todos os jogos
idéias, forças e rimas
era fino sapateiro
de que tenho precisão
vaqueiro destro e veloz
para, versar, a historia
e era ótimo ferreiro
da vida de Lampeão
lia, escrevia, e contava
trocador e estradeiro
Existem vários poetas
que escreveram alguns fatos
E para finalizar
porém coai inconsciências
e ninhuem se aborrecer
devido a muitos boatos
Lampeão fazia tudo
agora eu escreverei
quanto se pode fazer
seus golos e seus maltratos
e sua vida completa
vamos ouvir com prazer
De todos os criminosos
de que nos fala a historia
No ano 1080
não houve outro no mundo
em junho a 15 do mez
de idéia .mais finória
nas tenras de Vila Bela
parece que algo estranho
extremando a Santa Inez
lhe auxiliava a vitória
dona Maria Ferreira
Tinha todas qualidades
deu a luz a ultima vez
que pode ter ura um vivente
era enfermeiro e parteiro
Seu esposo José Lopes
falso, covarde e valente
não queria mais menino
fraco igualmente ao sedeiro
esperava uma menina
astuto como a serpente
que tinha Antonio e Livino
porém como foi um homem
(2)
batizou-o por Virgolino
Matava por brincadeira
com pura perversidade
(3)
dava comida aos famintos
E por ser ele o Caçula
com amor e caridade
criou-se muito mimado
foi sanfoneiro e poeta
aos 9 anos foi
de primeira, qualidade
em uma escola internado
186
na cidade em Vila Bela
e por homem de coragem
para ser bem educado
nadava mais do que peixe
caçava em qualquer paragem
Da fazenda São Domingos
seu pai era fazendeiro
Porém como nossa sorte
no lugar Serra Vermelha
só quem mostra é o futuro
honrem pacato e ordeiro
é um globo muito ingrato
com sua esposa Maria
um lado claro outro escuro
vivia ali prazenteiro
Lampeão viu-se obrigado
a topar um galo duro
E Virgolino Ferreira
enquanto isso estudava
A fazenda São Domingos
saiu aos 14 anos
de outra era vizinha
lia, escrevia e contava
João e Raimundo Nogueira
era enfermeiro e ferreiro
homens sem lei e sem linha
cosia, e apalazava
eram seus legitimas donos
iguais a mãe da murrinha
Os seus pais pediram muito
para ele ir estudar
Ricos e bem conhecidos
ser médico ou advogado
chefes de bandos armados
ele não quiz aceitar
homens moços e muito fortes
dizendo: dê-me une cavalo
criminosos depravados
que eu quero é Campear
e políticos de renome
queridos em 3 Estados
o pai deu-lhe um bom cavalo
por nome de azulão
Entenderam de tomare
Virgolino em cima dele
de Zé Lopes a fazenda
Vaqueijava igual ao cão
Matá-lo com os 3 filhos
E nuncaencontoru boi bravo
e carregarem-lhe a tenda.
Prá não botá-lo no chão.
Sem pensarem que achavam
(4)
A desgraça de encomenda.
E assim vivia ele
no meio da camaradagem
(5)
conhecido por Sabido
Lá em Vila Bela havia
187
três chefes de cangaceiros
Virgolino e seus irmãos
com muitos homens armados
nada mais adiantaram
desonestos e desordeiros
venderam o que tinham e logo
Casimiro do Navio
seguras armas compraram
Né e Quelé trapaceiros
na noite do outro dia
em São Domingos chegaram
Os Nogueira como ricos
os três mandaram chamar
Cercaram logo a fazenda.
para matarem Zé Lopes
do tal Raimundo Nogueira
foram a fazenda cercar
os 3 grupos estavam dentro
mas só encontraram o velho
numa grande bebedeira
cuidaram logo em sangrar
Virgolino abriu o fogo
despertou a cabroeira
Mataram o velho Zé Lopes
como quem mata assassino
Era 10 horas da noite
porém não estavam em casa
quando o fogo começou
nem Antonio e nem Livino
deu 11, 12, deu uma
e a verba, também tinha
duas, 3, 4 marcou
saído com Virgolino
cinco, 6 o sol saiu
e o fogo não cessou
Estavam em Nazaré
quando chegou a notícia
Virgolino e os irmãos
a velha deu um colapso
gritavam nessa contenda,
Morreu cheia de malícia
- vamos Raimundo Nogueira
então os 3 irmãos foram
nós viemos de encomenda
procurar logo a polícia.
vamos matá-lo sangrado
Um tal José Balduino
e queimar alfa fazenda
Era o sub-delegado
Não deu atenção a eles
Né, Quelé e Casimiro
Pois estava combinado
Que tinham disposição
Apenas disse: os Nogueira
Mandaram os cabras pularem
São os grandes do Estado.
Para pegá-los a mão
Ficou de esteira de mortos
(6)
Então passaram no portão
188
Até o cerco fechar
(7)
Gritavam mulher e filhos
(8)
Do tal Raimundo Nogueira
Um entrou pela janela
Choravam e se maldiziam
Outro foi pela cozinha
Enquanto Antônio Ferreira
Outro avançou pela a frente
Com Virgolino e Livino
Se juntaram na salinha
Mandavam balas de esteira
Raimundo com a família
Estava na camarinha
Assim que findou-se o dia
e as trevas se espalharam
Como oratório aberto
Virgolino e os irmãos
Ajoelhado rezando
em gritos e tiros avançaram
Severino e Antonio pegavam
e na calçada da casa
E Virgolino sangrando
todos 3 se entrincheiraram
Entre grandes gargalhadas
Gritaram Bago a Raimundo
E uma ruma formando
- o seu momento é chegado
de fumaça e fendentina
Reuniram os outros mortos
o campo estava empestado
Dentro da casa botaram
Quelé gritou aos parceiros
Cercaram a casa com lenha
- o Virgolino é pesado
De querosene ensoparam
Tocaram fogo e saíram
Né gritou: Vamos furar
Nas brenhas se internaram
o cêrco e vamos embora
combinaram todos três
João Nogueira o outro irmão
e pularam logo fora
Que confiava em Quelé
quando pisaram no campo
Em Né e em Casimiro
foi 3 cadáveres na hora
De tudo perdeu a fé
Deixou a fazenda e foi
Virgolino aí gritou
Embora prá Nazaré
- Raimundo cuide em rezar
Deu ordem para os irmãos,
Quando Virgolino foi
Em cada freate avançar
Na fazenda procurá-lo
Entraram pelas 3 frentes
Não encontrando matou
189
Boi, carneiro, vaca e galo
Virgolino aguentou-se
E mandou dizer que ia com poucos dias
e deixou anoitecer
matá-lo.
por traz retirou 10 homens
sem “Zé” Bonifácio ver
botou-lhe dentro do cerco
(9)
ninguém mais polida correr
Pausado 90 dias
Virgolino preparou-se
Depois de estar apoiado
junto com os dois irmãos
mandou a tropa avançar
da cidade aproximou-se
Antonio Livino e o resto
com 17 “cabras”
trataram de recuar
aí o tempo turbou-se
uniram-se a Virgolino
cercaram todo lugar
Do Recife havia ido
48 soldados
Dos cabras de Bonifacio
prá casa de João Nogueira
19 faleceram
todos eles bem armados
os 11 se entregaram
e por José Balduino
João Nogueira balduino
eram todos comandados
Com o resto se renderam
José Bonifácio soube
João Nogueira foi sangrado
do cerco que Virgolino
e Balduino também
ía fazer em seu tio
incendiaram a cidade
disse: eu vou dar-lhe um ensino
roubaram o último vintém
e partiu com 30homens
dos contra naquele dia
para cumprir o destino
não ficou vivo ninguém.
ao chegar em Nazaré
Foi dessa luta que veio
a rua estava cerceada
O nome de Lampeão
Virgolino e os irmãos
Porque ele onde atirava
Gritando: arrocha negrada
Via-se de longe o clarão
Disse Bonifácio, vamos
Parcela 20 homens
Botar-lhe uma retaguarda
Atirando de canhão
(10)
(11)
190
Lampeão juntou os homens
22 tinham morrido
(12)
tinha 9 baleados
Mandou fazer uma carta
e ele estava ferido
explicando a Lampeão
porém gritou: os Nogueira
que voltar-se a Nazaré
agora acharam marido
sem fazer qualquer ação
e por ordens do governo
Sepultou os seus defuntos
todos teriam o perdão
alguns feridos curou
juntou os outros cadáveres
Fez uma baixa assinada
em uma ruma queimou
muita gente se assinou
e no mesmo dia com
afirmando ser verdade
o resto se retirou
pelo um portador mandou
entregar a Lampeão
Lançou-se dentro das serras
pela resposta esperou
em 16 e 18
e somente em 21
Antonio Ferreira disse
como um guerreiro afoito
- isto é tapiação
voltou a luta, outra vez
Livino disse eu também
e abandonou o coito
não dou crença nisso não
disse Lampeão eu vou
o polícia dos Estados
porém sei que é traição
Paraíba, e Pernambuco
perseguiram Lampeão
Chamou os cabras e contou
com jeito, perícia e suco
os novos acontecidos
e de quando em quando ele
todos ficaram tristonhos
deixava um chefe maluco
porque eram bem unidos
- eu vou, disse Lampeão
Nessa época um cidadão
- mas vocês ficam escondidos
delegado em Nazaré
disse: eu vou fazer um plano
Vai eu, Antonio e Livino
e posso jurar até
cubar a situação
que destruo todos Ferreira
os outros ficam pertinho
todos em mim tenham fé
todos de armas na mão
191
e será logo amanhã
e peço aos 3 que dêem
não quero ouvir discussão.
as armas para guardar
vamos farrar e beber.
(13)
Na noite do outro dia
(14)
lá em Nazaré chegaram
Virgolino deu as armas
Lampeão com os dois manos
Antonio também entregou
na dita cidade entraram
Livino não fez questão
e os cabras escondidos
pegou as dele e guardou
todos pertinho ficaram
e na velha e santa paz
a festa continuou
E o Gomes Jurubeba
como sub-delegado
Gomes Jurubeba logo
para o casório de Enock
mandou as portas fechar
havia sido chamado
os Ferreira já queimados
sobrinho de Lampeão
nada puderam notar,
nesse mesmo povoado
ele entrou e foi ao quarto
com muita urgência se armar
Aproveitando esse dia
Quando os Ferreira chegaram
Lá avisou aos comparsas
todo mundo ali presente
todos eles se armaram
com todos 3 se abraçaram
os Ferreira cá dançando
e para á trama maldita
de nada desconfiaram
diversos se prepararam
quando cuidaram na vida
foi tarde os cabras agarraram
Gomes Jurubeba disse
perante a reunião
Porém Lampeão pulou
- hoje aqui será liberto
se armou de uma cadeira
perante a população
cada pancada, que dava
Antonio Ferreira e Livino
caia gente de esteira
juntos com o Lampeão
os cabras que estavam perto
encostaram na careira
Os Ferreira são bons homens
nascidos nesse lugar
Chegaram e Cercaram a casa
192
a grande luta, travada
(16)
punham, faca, bala e foice
Assim até 26
murro, balão, cacetada
Lampeão nesses Estados
apagaram o candeeiro
prendia e matava gente
aumentou a batucada.
com muitos hoimens armados
a Policia, e o Exército
(15)
não tiravam resultados
Os cabras quebraram as portas
todos de armas na mão
Atacava os fazendeiros
emburacaram na bala
as vilas e as cidades
na medonha escuridão
acabou tropas inteiras
Lainpeão ai gritou
com grades barbaridades
- vamos dar fim questão
queimava sitio e fazenda
praticando crueldades
Com duas horas de luta
estava o espatifado
Nessa época Carlos Prestes
de Lampeão morreu 11
fez uma revolução
Livino foi baleado
reuniu um grande grupo
o Jurubeba foi preso
e saiu pelo sertão
na mesma hora sangrado
com nome de revoltosos
foi até ao Maranhão
Enock a sua, noiva
ainda se evadiram
Mas chegando em Piancó
pegaram as mulheres todas
pegou una padre e matou
no mesmo instante despiram
a o nosso padre Cícero
dançaram o resto da noite
dessa vez ele jurou
mataram tudo e fugiram
Lampeão sabendo disso
outra atitude tomou
Foram prá Serra do Vale
Livino foi se tratar
Com 170 homens
Aumentou mais o seu grupo
todos de armas na mão
e se danaram a roubar
foi bater aonde estava.
carregar mola e mulher.
(17)
193
O padre no mesmo dia
De lá veio a Cajazeiras
arranjou uma patente
Sousa, Piancó; Pombal
promoveu a capitão
Conceição, Misericórdia
Lampeão 1igeiramente
sem cometer nenhum mal
Antonio como Primeiro
a sua terra natal
Sabino 2 o tenente
De lei passou prá Bahia
E ficou o Juazeiro
em Tucano foi cercado;
por Lampeão vigiado
levava 200 “cabras”
comandando aos paisanos
cada qual bem preparado
até ao menor soldado
por 3 enormes volantes
esperando Carlos Prestes
foi ele logo apertado
com os cabras preparado
Tinha forças do Exercito
Porém quando os revoltosos
da Policia e recrutadas
Souberam que Lampeão
três oficiais valentes
Como comando e chefe
com armas bem preparadas
Das forças lá do sertão
metralhadora e canhão
Esperava Carlos Prestes
morteiro, bomba e granadas
Fugiram pro o Maranhão
Na Fazenda Cruz Vermelha
Lampeão passou o resto
bem pertinho da cidade
D ano no Juazeiro
Lampeão estava acampado
Coma sua turma armada
Gozando tranqüilidade
Como capitão ordeiro
foi atacado das forças.
Sem fazer mal a ninguém
Ouvindo o seu conselheiro
(19)
Lampeão de quando em quando
Em 27 ele foi
Gritava prá os comandantes
Ao rio Grande do Norte
- vamos macacos dos diabos
Andou até Mossoró
Com vozes bem arrogantes
Quase que acha a má sorte.
As balas cruzavam os céus
Como as lutas dos gigantes
(18)
194
Passaram o resto do dia
porque me fiz assassino
A grande luta travada
Quando anoiteceu de novo
- Querendo mesmo brigando
Lampeão disse: negrada
pode prestar-me atenção
Vamos fugir desse fogo
vamos negrada pra frente
Que a coisa está acochada
que estou dando explicação
quem foi quem é Virgolino
Preparou seu necessário
por alcunha Lampeão
Falou com a cabroeira
No terreiro da fazenda
Nasci lá no Pajeú.
Caíram numa trincheira
de Pernambuco o Estado
Lampeão gritou os cabras
no Riacho São Domingos
Caía gente de esteira
o lugar denominado
nas perras de Vila Bela
As tropas fecharam o cerco
por Lampeão apelidado
Mas não podiam atirar
Porque matavam os amigos
Até 17 anos
Disseram: vamos pegar
vivi calmo e descansado
Esse Lampeão a mão
e todos me conheciam
Para depois se sangrar
pelo o almocreve honrado
e nessa idade o destino
O comandante das tropas
fez de mim iam desgraçado
Gritava muito animado
- Lampeão você se entregue
Sei que tenho um triste fim
Porque está bem cercado
bom é que não pode ser
Das duas escolha uma
mato João, Pedro e Martins
Prisão ou morrer sangrado.
faço qualquer um sofrer
capitão tenha cuidado.
(20)
(21)
E Lampeão respondia
Enquanto isto os punhais
-veja que não sou menino
empunhados em cada braço
hei de morrer como homem
cruzavam pelo o escuro
o meu nome é Virgolino
que retinia o espaço
vou brigar dizendo em versos
e Virgolino gritando
195
- vamos, vamos mete o aço
pediram uma informação
saiu de dentro uma dona
As 4 da madrugada
disse Luiz: ou peixão
a trincheira foi rompida
e Lampeão, são e salvo
disse a dona: aqui se faz
entrou na mata querida
com a melhor perfeição
e o restante da tropa
meu marido é sapateiro
ficou de cara lambida
mas quero uma.a explicação
a que grupo estão 1igados
Assim que amanheceu o dia
Luiz disse: a Lampeão
toda a tropa foi vencida
de 800 soldados
Ela aí mudou de cor,
que enfrentaram a partida
e tomou suspiração
restava apenas 300
depois disse: eu só queria
quinhentos perderam a vida
ainda ver Lampeão
porque foi o único homem
Morreram 110 cabras
a quem, dei meu coração
da tropa de Lampeão
ficaram 30 feridos
Fizeram 20 encomendas
foram pegados a mão
e sem demora, voltaram
sangrados de um a um
e lá no acampamento
sem a menor compaixão.
tudo a Lampeão contaram
em risos e gargalhadas
E Lampeão coza o resto
a conversa terminaram
enfrentando a qualquer risco
veio acampar bem pertinho
com 15 dias depois
do rio de São Francisco
Luiz Pedro e Lampeão
mandou fazer apercata
Foram ver asencomendas
por Luiz Pedro e Curisco
Para sair do sertão
Assim que chegaram ela
(22)
Disse logo a pretensão.
Eles foram a cachoeira
com a maior .precaução
(23)
na casa de um sapateiro
- Meu nome próprio é Maria
196
embora você estranhe
Na cidade de Capela
o que eu vou lhe dizer
Entrou não matou ninguém
talvez nisso nada ganhe
Deu comida aos famintos
quer me levar hoje consigo
Comprou tudo e pagou bem
ou quer que eu lhe acompanhe?
Roupa, dinheiro e comida
Fez como um homem d bem
Lampeão era do aço
Porém diante a beleza
Prá o raso da Catarina
Daquela mulher mimosa
Com o seu grupo marchou
Com um porte de princesa
Lá fez seu acampamento
Cabelos e olhos grandes
Muito tempo descansou
parecendo uma duquesa.
Em novecentos e trinta
Novamente viajou
Morena cor de canela
dessas que o vento palpita
No lugar Gerinumbó
muito bem feita do corpo
No Estado da Bahia
lábios da cor de uma fita
Foi cercado com o grupo
disse Lampeão: te levo
Pelo um major de valia
minha “Maria Bonita”
Dessa vez Livino Velho
Deu comida a terra fria
ela aí entrou ligeira
o cobertor amarrou
Morreram 10 cangaceros
com dois bisacos de mescla
Ficaram 2 balcades
logo mais se apresentou
O major e um sargento
despediu-se do marido
Todos dois foram sangrados
e com Lampeão “pirou”
Ficaram 11 feridos
Levaram os pares de alpercaia
E morreram 15 soldados.
Calçaram uma nova equipe
(25)
Lampeão dizendo que
Em 31 ele foi
Estava com uma gripe
Com seu grupo a Pedra Branca
Pegou com a turma toda
Atacou a baronesa
Viagem para Sergipe.
Levou-lhe até alavanca
De jóias não deixou nada
(24)
Nisso sua alma era franca
197
as 2 horas da tarde
Porém perto foi cercado
em bem verdejantes prados
Por uma força valente
210 soldados
Aí o fogo travou-se
O cercaram novamente
morria gente de rurna
Dessa vez quase que ele
o comandante dizia
Perdia o último vivente
- Lampeão hoje se apruma
e Lampeão respondia
Os seus cabras nessa época
- Você hoje talvez suma
Eram: Curisco e Sabino
Dois de Ouro e Cobra Nova
As balas faziam enxame
Antonio Ferreira e Silvino
dos cabras com os soldados
Peitica e José Baiano
só se ouvia gemidos
Bicho péssimo e assassino
gritos e espolinhados
a força avançando a trote
Estrela Dalva e Coruja
e os cabras bem cercados
Garatujo e Putrião
Espinhola e Cobra Cega
Antonio Ferreira e Livino
Aza Branca e gavião
foram ambos baleados
Patativa e Nevoeiro
lá no beco do Preiá
Pancada e Azulão
morreram e foram exumados
mais de 19 “cabras”
Anum Preto e Caracará
pegaram foram sangrados
Moita Brabaebentivi
Pé de Bola eAratanha
trinta soldados morreram
Cajueiro e Colibri
em menos de um instante
Engole Cabra e toitiço
Lampeão pegou a mão
Pássaro Preto e Juriti.
O capitão comandante
Sangrou ele e dois sargentos
(26)
Quase que acaba a volante.
Ele e Maria Bonita
todos 32 armados
(27)
porem pela a grande tropa
E Fugiu como restante
foram todos bom cercados
da tropa toda cansada
198
levou Maria Bonita
Lampeão com muita fome
nas costa, já, baleada
toda comida comeu
e seguiu pra o Araiípe
deu a Maria Bonita
a grande serra, falada
poreé depois conheceu
mas o veneno foi fraco
Na fazenda de Izaias
por isto vinguem morreu
na dita serra citada
Lampeão pediu abrigo
Tiveram dor de barriga
sem desconfiar de nada
porém foi logo passando
ele deu porem mandou
nisso viram a grande serra
dar comida envenenada
de fogo se acabando
e a grande labareda
Mandou Lampeão pra serra
deles se aproximando
e a comida mandou
mandou buscar grande tropa
Lampeão viu que morria
dentro de casa, botou
pois não podia voltar
e tocou fogo na serra
Maria estava doente
uma só passagem deixou.
Nem siquer podia andar
Ele jogou-a nas costas
Dizia, ele consigo
E disse: vamos fugar.
- não fica hoje um cangaceiro
O fogo assolou a serra
Subiram de serra acima
até o despenhadeiro
Até o despenhadeiro
e a comida também
tiraram todas as roupas
veneno foi seu tempeiro
fizeram um cordão grosseiro
que ia de cima em baio
Aqui prá capanga entrando
experimentaram primeiro.
Juro que não passa nada
E a Maria Bonita
Amarraram em pau e pedra
Está doente e baleada
Depois Curisco desceu
Quem escapar do veneno
Foi descendo de um a um
Fogo ou espingarda.
Como quem enlouquecei
Disse Lampeão: o último
(28)
Que tem que descer sou eu.
199
Na fazenda de Izaias
(29
E sem compaixão cercaram.
Por fim Lampeão pegou
a sua mulher sem par
(30)
tinha dado um “passamento”
Ele com sua mulher
e não queria tornar
Um filho e uma menina
ele amarrou-a nas costas
Lampeão sangrou os 4
e foi descendo a vagar
Com sua fúria assassina
E partiu com os seus cabras
E quando o fogo chegou
Prá o razo da Catarina
Lampeão já estava em baixo
reuniu os homens e foram
Lá existiu um coiteiro
para a orla de um riacho
Em quem ele confiava
porém jurou que voltava
Mandava comprar por ele
para provar que era macho
Tudo quanto precisava
Assim até 36
Foi tratar de sua amante
Boa vida ali passava
pegando caça na mata
ela numa barraquinha
Até que um certo dia
pertinho de uma cascata
Surgiu novo comandante
os cabras todos ali
Comandando novos homens
esperando a ordem exata
Com uma estranha volante
Com um plano diferente
Lampeão como um Leão
E botou-o logo avante
com a cara carrancuda
disse: vamos rodeiar
E quando surgiu a história
a serra, Deus nos ajuda
- Virgolino pereceu
e vamos dar um ensino
Porém tem quem diga alto
a Izaias Arruda
Que Lampeão não morreu
O que eu posso afirmar
Maria já estava boa
Pé que desapareceu
Uma noite eles marcharam
Rodeando a grande serra
Não sei se foi vivo ou morto
De madrugada chegaram
Porque há contradição
200
Tem gente que afirma sim
meu peito é uma ferida
Porém tem quem diga não
E que sei é que o mesmo
Quando me lembro senhores
Nunca veio ao sertão.
Do meu tempo de inocente
que brincava nos cercados
(31)
do meu sertão sorridente
Mil e oitocentos crimes
sinto que meu coração
a historia registrou
magoado dessa paixão
mais de 700 vezes
bate e chora amargamente.
a policia lhe cercou
400 e tantas moças
(32)
Virgolino devorou
Cruzei na casa paterna
quis ser um homem de bem
Mil e duzentas cidades
e viver dos meus trabalhos
e vilas berra povoadas
sem ser pesado a ninguém
por Virgolino Ferreira
fui almocreve na estrada
todos foram saqueadas
fui até bota camarada
porém pra tudo há motivos
e tive amigos também
também fez ações honradas
Tive também meus amores
E sua vida em resumo
cultivei minha paixão
já mostrei em poesia
amei uma flor mimosa
vou recitar versos dele
filha lá do meu sertão
de sua própria autoria
sonhei de gozar a vida
escutem com atenção
bem perto a prenda querida
porque foi que Lampeão
a quem dei meu coração
em ruim vida vivia
Nunca Pensei que na vida
Fosse preciso brigar
- Por minha infelicidade
Apesar de ter intrigas
entrei nessa triste vida
Gostava de trabalhar
não gosto nem de contar
Mas hoje sou cangaceiro
a minha história sentida
Enfrentarei o bolceiro
a desgraça enche o meu rosto
Até alguém me matar.
em minh‟alma entra o desgosto
201
Provou que quis viver bem
Estimando e sendo amado
Revoltou-se com razão
Também sem resultado
Implantou o terrorismo
dolou no véu do abismo
Até o último intrigado.
FIM
202
8.8. SOMBRAS DO CANGAÇO
OU A VERSÃO DE MARIA BONITA
Susana Morais
203
Sou Maria, sou a Santa
É um conto de romance
Lampião meu companheiro
De quimera, irreal
Do meu pranto ele canta
Fantasia, devaneio
E se de noite ele chora
Criação tão desigual
Cubro-o eu com minha manta
Da história verdadeira
Porém creio ser real
Mas a vida é arapuca
Que o destino complicou
Nos livros dessa história
E meu peito é só carência
O cangaço é conhecido
Que ligeiro se fincou
Porém a minha versão
Ocorreu que Lampião
Já dará certo sentido
Neste mundo me deixou
Que estava encoberto
E agora eu lhe digo
E agora o que faço?
Desatada a sangria
Pra viver um grande amor
O meu peito se lamenta
Perdi minha mocidade
De angústia e euforia
Eu vivia no sertão
Meu amor não se findou
Com a falta da verdade
Não se findará um dia?
Não havia violência
Muito menos crueldade
E por isso hoje eu sou
Sombras de desilusão
Minha sina foi traçada
Onde passo, deixo rastro
Pois te sigo qual cangaço
Desamor sem compaixão
Que na vida corre o risco
Se me volto no passado
Da Caatinga, no escasso
Logo vem a comoção
Invisível caminhando
Nas sombras do teu mormaço
O que eu tentei dizer-te
Lampião meu camafeu
No meu nome sou Bonita
Por desejo de te ter
204
Para sempre em braço meu
Eu pedi para a Volante
Com um papo amarelo
Impor credo a ti ateu!
Tanta vida consumada
Lampião e os companheiros
Sem bater em retirada
Mas ela se misturou
Complicou-se no mandado
Lutando contra a má sorte
Que por mim foi empregada
Tua vida se exauriu
E meu mundo desolado
Hoje anda na penumbra
Eu cheguei a conclusão:
De quem vive angustiado
Minha vida é sem abrigo
Me entreguei a tal volante
Pra morrer junto contigo
Nesta noite de agonia
Te dedico este verso
E aqui eu te confesso
Que não sou feliz comigo
E os faço porque que sei
Que meu amor submerso
Nunca mais virá à tona
Pois que hoje está disperso
Degolada e descarnada
Com o peito a céu aberto
Encontrei felicidade
E agora desabafo
Num poema tortuoso:
Nesta vida hoje sou
Como um fardo tenebroso
Pois que já fui condenada
Num caminho nebuloso
Que não há felicidade
E tampouco há sossego
Pois então o que me resta
É o chorar o desapego
De ter dado ao meu amor
Um destino sem apego
Pois que tenho aqui bem perto
Virgulino Capitão
A razão por qual desperto...
FIM
205
8.9. LAMPIÃO E MARIA BONITA NO PARAÍSO DO ÉDEM TENTADOS POR
SANTANÁS
JOTABARROS
206
Caro leitor eu Peço
que leia com atenção
Nesse ínterim também
este livro até o fim
fez algumas palhaçadas
é grande a satisfação
em uma cidadezinha
se queres saber um pouco
agarrou um camarada
da vida de Lampião.
e o ilustre Prefeito
pra cortirem uma massada.
Já ouvi alguém dizer
Lampião está vivendo
O Prefeito passeou
eu assevero que sim
Em um jumento cansado
o que o povo anda dizendo
Com um sujeito puxando
se acreditas ou não
O animal enfadado
continue o livro lendo.
Nuzinhos como nasceram
Foi um carnaval gozado.
Pois eu já ouvi dizer
por mais de um companheiro
Só porque o tal prefeito
que Lampião já foi visto
Tinha uma tatuagem
lá no Rio de Janeiro
Num lado de suas nádegas
teve um até que disse
O mofino sem coragem
que ele é bodegueiro.
Do capitão Virgulino
Recebeu uma massagem.
(4)
Assim viveu alguns anos
(5)
quando a infame notícia
Pois uma, pisa cubada
chegou as ouças das forças
levaram em plena rua
que pertencia a poli
gritada-lhe: Virgulíno
seguiram ao seu encalço
não é safadesa sua?
com dedicada perícia
você carregar na bunda
retrato de mulher nua.
Ele sabendo a notícia
da grande perseguição
Quem assistia, o presépio
ficou mais endiabrado
gritavam horrorisados
junto com seu batalhão
que vergonha meu senhor
matava e dava surras
solte estes desgraçados
sem ter dó nem compaixão.
o prefeito e seu colega
207
iam em prantos banhados.
um quilo de Sal continha.
O prefeito nunca pensou
Pois não, havia um meio
sofrer tal decepção
daquele se defender
rogava por todos os santos
porém se viu oprimido
meu senhor meu capitão
teve mesmo que comer
quando surgiu uma tropa
duma maneira ou de outra
para pegas, Lampião.
tinha que obedecer.
A polícia lhe cercou
Deu-lhe sede bebeu água
ouviu-se à bala zuar
e o bicho foi crescendo
Lampião com sua tropa
pois defecar não podia
não temia ao azar
ficou o pobre sofrendo
Venceram a tropa e um cabo
com o reto costurado
Vivo puderam pegar.
e assim terminou morrendo.
O pobre pediu por tudo
Virgulino viajando
que não lhe fizesse nada
Com seus capangas de lado
és um nobre camarada
foi parar em uma festa
mas vou obrigá-lo hoje
dum povo muito animado
comer, só uma buchada.
empiquearam a casa
e foi triste o resultado.
(6)
(7)
Deu-lhe logo umas pancadas
Pararam e samba, com medo
que e cabo ficou tonto
dia Lampião sem londú
tirou-lhe à roupa e no teto
botem o frevo pra frente
fez um ligeiro pesponto
quero todo mundo nú
e disse, pode comer
quem não despir-se hoje sobe
o seu almoço está pronto
num pé de mandacaru
Coitado do pobre cabo
Todos se despindo foi
com sua sorte mesquinha
o samba recuperado
foi obrigado a comer
os cabras e Lampião
uma buchada todinha
com seu instinto malvado
além de ser exagero
fazia os homens dançarem
208
um com outro agarrado
talvez até muito bem
Velhos, moças e meninas
Depois de sofrer bastante
foram todos deparados
sem achar uma pousada
estes não sofreram nada
penou por um agasalho
porém os homens coitados
qual um pedinte em estrada
quando amanheceu o dia
ou um jumento cansado
estavam todos castrados.
com uma carga pesada.
Foi triste a situação
Dizer que foi ao inferno
E ali ninguém reclamava
Lá não encontrou lugar
Só capitão Virgulino
Satanás não aceitando-o
Naquela casa mandava
Ficou a perambular
Se alguém tentava fugir
Pediu a Deus que o tirasse
Com certeza se acabava.
Daquele horrendo penar.
Baixou a várias sessões
Depois do serviço pronto
mas nunca foi apoiado
Virgulino despediu-se
no lugar em que chegava
Quem na sala estava nú
sempre era recusado
Rapidamente vestiu-se
cofreu até que ficou
Ninguém soube para onde
sem dever nem um pecado.
Virgulino dirigiu-se.
(8)
(9)
Quando ninguém esperava
Resolveu ir para o céu
de repente apareceu
ver se achava um lugar
aquela infeliz notícia
tocou numa campainha
que Virgulino morreu
São Pedro mandou entrar
daí por diante a paz
mas disse o Senhor qui
pra muitos apareceu.
no céu não pede ficar.
Não somente pra alguns
Disse Lampião: São Pedro
como pra ele também
Faz um jeito e me conduz
ele depois de ser morto
Até os pés do Senhor
não tentou a mais ninguém
O nosso Cristo Jesus
reconciliou-se e vive
Pra ver se ele me guia
209
Pelo caminho da luz.
Tem na vida grande gosto
Procuras um meio para
Satanás lhe tentará
Aliviar meu sofrer
Mais do que tentou Adão
O inferno não me quis
Virado em surucucu
O céu não quer me valer
Para a condenação
Desse jeito meu Senhor
Ele se apresentará
Como é que posso viver.
Ao famoso Lampião.
São Pedro lhe disse espere
E tem mais, no cajueiro
Que nesse momento eu vou
Ele não pode tocar
Falar com Cristo Jesus
E se Satanás puder
Ele contente ficou
A ele incentivar
Sem ter demora São Pedro
Para chupar um caju
A Cristo se apresentou.
Pra terra tem que voltar.
Falou São Pedro a Jesus
Será este o estatuto
Aí está Lampião
Que se regerá por ele
Pedindo para ficar
Diz S. Pedro a Lampião
Nessa Divina Mansão
Que cuide da vida dele
O que é que digo a ele?
Recebendo ele a mensagem
Que pode ficar ou não!?
Entrou vida nova nele.
(10)
(11)
Disse Jesus a S. Pedro
Lampião ficou contente
De Lampião eu preciso
E agradeceu ao Santo
Precisamos restaurar
Foi para o paraíso
O amigo paraíso
Ficou só, em um recanto
Diga a ele, se pecar
Lembrou Maria Bonita
Não me responsabilizo.
Começou chorar seu pranto.
Diga também qu‟ele tenha
O! minha linda Maria
Cuidado ao lado oposto
Vem pra cá minha morena
Se der crença a satanás
Estás sofrendo na terra
Sofrerá grande desgosto
Eu daqui choro com pena
Se ao negligenciar
Não posso ter alegria
210
Longe de minha pequena.
Receba sua mulher
Um dia ele lembrou-se
disse S. Pedro benquisto
Do Padre do Juazeiro
Lampião a recebeu
Exclamou oh1 meu Padrinho
E um assumo previsto
Vós que sois tão justiceiro
S. Pedro lhe fez ciente
Mandai Maria Bonita
de que lhe dissera Cristo.
Unir-se a seu companheiro
Comerás todos os frutos
Parece que foi ouvida
Mas é isento o caju
A prece de Lampião
cuidado, em tua mulher
De nosso Padrinho Cícero
porque um surucucu
Recebeu a proteção
mandado por Satanás
De ir ao céu, de Maria
enganará ela e tu.
Palpitou o coração.
Lampião disse S. Pedro
Falou para o padre Cícero
garanto de minha parte
Que desejava um passe
Satanás me aparecendo
Pretendia ir ao céu
farei um grande descarte
Custasse o que custasse
o capitão Virgulino
Já tinha sofrido muito
jamais fará uma arte.
Queria um novo enlace.
(12)
(13)
O padre o aparecido
O Santo despediu
deu um passe a Maria
E Virgulino ficou
e disse o que pretendia
contemplando um novo dia
S. Pedro a receber
que Jesus Cristo mandou
com bastante alegria
ao lado de Maria
tudo se tranqüilizou
S. Pedro falou pra Cristo
Agora mesmo chegou
Junto com sua Maria
a mulher de Lampião
Entoava essa canção:
Cristo então ordenou
“é lampe é lampe é lampe
que as levasse o marido
É lampe é Lampião
S. Pedro alegre a levou.
O meu nome é Virgulino
211
O apelido é Lampião.
Que com ela assim falou.
Nas horas de alegria
Maria vêdes que és
Não paravam de cantar
Uma santa está previsto
“olê mulher rendeira
Digo-te em viva voz
olê mulher rendar
Podes acreditar nisto
me ensina a fazer renda
Se provardes deste fruto
qu‟eu te ensino a namorar”.
Viverás junto ao Cristo
Passa do dias depois
Participas deste fruto
tudo já correndo bem
Que ganharás a mansão
o jardim bem conservado
Irás viver sem trabalho
costumados também
E não prove sozinha não
Lampião e sua esposa
Um só fruto dá pra tu
Começaram com REM-rem.
E teu homem Lampião.
Maria dizia, eu quero
Maria tirou um fruto
ir naquele cajueiro
Saiu danada pra traz
tirar de lá una caju
Foi encontrar Lampião
pra ver se é verdadeiro
Bem saltitante e sagaz
o recado de S. Pedro
Sem pensar que aquela cobra
eu descobrirei primeiro.
Era o puro Satanás.
(14)
(15)
Lampião dizia não
Partiu o caju e deu
Não tenha tal ousadia
Um pedaço a Lampião
De ir tocar no caju
O qual mordendo lembrou-se
Não faças a rebeldia
De sua rebelião
Ao que nos disse S. Pedro
Porém não teve mais jeito
Toma juízo Maria.
Derramou prantos no chão.
Foi assim que a tentação
Uma multidão de anjos
De repente começou
Cada qual com uma espada
Maria um dia sozinha
Expulsaram Lampião
No cajueiro chegou
Junto com sua amada
Avistou um surucucu
Os quais desprezaram o Édem
212
Sem ter direito a mais nada.
Mesmo quem é da cangalha
Não se acostuma com sela.
Tornou voltar para terra
Jesus Cristo avisou com atenção
Por conselhos de Caim
Organize o novo Paraíso
Desobedeceram as ordens
Tudo faças em seu lugar preciso
Que lhe deu o Eloim
A ninguém darás este galardão
Quem é desobediente
Bem te aviso, cuidado Lampião
Sempre é mau o seu fim.
Adão caiu no pecado és sabedor
Regala-te com fé e com pudor
Não teve a quem se queixar
Recebeste um lugar de inocente
Bem que estava avisado
O livro arbítrio está em tua mente
Errou desobedeceu
Se errar não serei teu protetor.
Veio ao mundo do pecado
Mas, o destino dos dois
Ainda é ignorado.
Não entrará mais no céu
Por ordem do Pai Eterno
Jesus Cristo já tirou
O seu nome do caderno
Talvez agora ele arranje
Um lugar lá no inferno.
(16)
Satanás interessou-se
Ajudá-lo a rebeldia
Talvez tenha um lugar
Para ele e pra Maria
É como diz o rifão
Para tudo tem um dia.
Ninguém sabe o causador
Se foi ele ou se foi ela
Quem não teve vida boa
Se tiver não Cida dela
FIM
213
8.10. LAMPEAO VAI AO INFERNO BUSCAR MARIA BONITA*
Autor: Apolônio Alves dos Santos
214
Peço a meu bom leitor
quando aqui termina a vida
venha ofertar-me um abraço
vão viver em outra esfera
retribuindo meus versos
numa área permitida
neste poema que faço
até purgarem os pecados
com toda convicção
pra irem purificados
falo sobre Lampeão
para a mansão concebida.
que foi o Rei do Cangaço.
Pois assim ficou ali
Lampeão quando viveu
vivendo aquele casal
com seu grupo desordeiro
se amando com fervor
não foi à tôa que ele
na vida espiritual
transformou-se em cangaceiro
felizes se divertiam
com seu gênio vingador
igual a quando viviam
tornou-se o maior terror
na vida material.
do Nordeste brasileiro.
O diabo interessado
No ano de 38
na mulher de Virgulino
Lampeão foi emboscado
chamou-o logo o “Invisível”
no lugar Fazenda Angico
e o diabo Quengo-fino
foi morto e decapitado
disse: vão na moradia
por uma força volante
de Virgulino e Maria
no ataque fulminante
fazer o que determino.
acabou-se o seu reinado.
- Peguem ali o norcótico
Morreu Maria Bonita
e levem uma porção
junta ao Rei do Cangaço
lá chegando narcotizem
as duas almas subiram
a mulher do Lampeão
voando para o espaço
o marido deixem lá
num ciclone inesperado
a mulher me tragam cá
Lampeão subiu pegado
que eu tenho precisão.
com Maria pelo braço.
Tragam Maria Bonita
2
e Lampeão eu não quero
Diz a lenda que os cristãos
que ele é muito perverso
215
muito pior do que Nero
com a mente indignada
já teve aqui uma vez
compreendeu a cilada
e o que ele me fez
saiu igual furacão.
Nada bom dele ou espero.
Quando chegou nó portão
Quando Lampeão dormia
do inferno, foi gritando:
O sono do meio-dia
- seu Lucifer desgraçado
os diabos lá chegaram
vá logo se preparando
narcotizaram Maria
com sua fuzilaria
e num transporte moderno
se não me entregar Maria
a levaram pro inferno
vou a tudo incendiando.
na tarde chuvosa e fria.
Lampeão foi agarrando
Lampeão não pôde ver
com toda disposição
quando levaram Maria
o diabo "Carrancudo"
porque passaram narcótico
que estava no portão
no nariz quando dormia
e disse ou deixa eu entrar
não viu nada que passou-se
ou hoje aqui vai se dar
pois ele só acordou-se
a maior revolução.
na manhã do outro dia.
Disse o cão: só se você
Ele gritou por Maria
pisar no seu esqueleto
correndo até o jardim
se quer ver experimente
disse: ela me deixou
que nada bom lhe prometo
vai ser o meu triste fim
a você não considero
do seu amor sou cativo
sendo aço eu destempero
qual terá sido o motivo
sendo de bronze eu derreto.
dela me deixar assim?
5
4
Lampeão foi agarrando
Mas Lampeão foi sentido
o diabo péla guela
naquela ocasião
e disse seu coisa ruim
um grande cheiro do enxofre
abre logo esta cancela
com mistura de alcatrão
fique fora que eu entro
216
que minha volta é por dentro
Lücifer gritou avança
igual pavio de vela
peguem este valentão
Lampeão entrou lá dentro
os diabos investiram
aberturou Lucifer
todos de armas na mão
dizendo seu condenado
de facão, foice e espada
não é como você quer
numa luta encarniçada
a minha brigada é preta
enfrentaram Lampeão.
mato um milhão de capeta
mas levo a minha mulher.
Nisto um diabo velho
querendo ali se mostrar
Disse o diabo: leva nada
partiu para Lampeão
pode vir com a morrinha
mas foi só pra se acabar.
Maria daqui não sai
Lampeão lhe disse agüente
porque ela j á é minha
comigo a brigada é quente
vá já embora e me deixe
briga quem sabe brigar.
que eu vou comer o peixe
e você come a espinha.
Quando a luta terminou-se
Quando ele disse isto
ficou tudo esbagaçado
Lampeão o agarrou
todos móveis do inferno
e disse: seu molambudo
ficou tudo revirado
vou lhe mostrar quem eu sou
nessa hora Lampeão
você já está fedendo
foi encontrar o chefão
pode já ficar sabendo
tremendo e todo mijado.
que sua hora chegou.
7
6
Lampeão pegou o diabo
O diabo deu um grito
e disse: seu parasita
que o inferno estremeceu
me diga logo onde está
chegaram tanto diabos
minha Maria Bonita
que o gabinete se encheu
se me desobedecer
Lampeão estava só
terá por certo morrer
mas mandou balas sem dó
com sua corja maldita.
que o inferno escureceu.
O diabo implorando disse:
217
não me mate Lampeão
de alegria, dizendo
que sua mulher está
oh! que momento bendito
trancada ali no porão
que você veio meu amor,
você tem todo direito
me libertar deste horror
ela vai do mesmo jeito
das garras deste maldito.
você ganhou na questão.
Lampeão disse ao diabo:
Lampeão lhe disse então:
por sua intenção maldita
me leve onde ela está
você é quem vai ficar
se me fizer traição
nesta prisão esquisita
aqui mesmo morrerá
para saber respeitar
disse o diabo obediente
e não querer conquistar
seja mais calmo e prudente
minha Maria Bonita
que levarei você já.
Ali o diabo ficou
Lampeão saiu pegado
amarrado no porão
com diabo na cintura
Lampeão disse a Maria
até um elevador
veja que situação
em uma saleta escura
esta nossa sem pousada,
ele apertou num botão
sem moradia, sem nada
foram descendo o porão
sumiram na amplidão.
com mil metros de fundura.
8
Maria Bonita estava
trancada lá no porão
em um velho quarto imundo
quente sem ventilação
desde o piso até o teto
era infestado de inseto
mosca, pulga, escorpião.
Quando avistou Lampeão
Maria soltou um grito!
FIM
218
8.11. LAMPIÃO, SUA VIDA E SUA MORTE
Apolônio Alves dos Santos
219
Agora, caros leitores
Suas terras eram poucas
Me prestem bem atenção
E de pouca criação
Para entender o relato
Nós como eram tropeiros
Desta minha narração
Ganhavam muito dinheiro
Concentrem bem a memória
Nas viagens do sertão.
Que vou contar a história
Do famoso Lampião.
Já os outros fazendeiros
De gado ninguém contava
Nascido em Serra Talhada
Suas terras eram muitas
Numa fazenda rural
Aonde a vista alcançava
Aprendeu desde menino
Quase tudo possuía
O trabalho artesanal
Seus bens eram maioria
Com a perfeição de ouro
Mas dinheiro lhes faltava.
Moldando as peças de couro
Em arreios de animal.
Por serem tão vaidosos
Os Ferreira sempre andavam
Também foi grande vaqueiro
Muito cheirando a perfume
Ágil e inteligente
Que nas viagens compravam
Pegava boi na caatinga
E todas festas que iam
Bravo sem nunca vê gente
As moças lhes perseguiam
Logo que o boi se espantava
E só a eles paqueravam.
Que o tropé começava
Ele partia na frente.
Além da boa aparência
Que despeitava atenção
Trabalhou como almocreve
Vestiam melhores roupas
Viajando noite e dia
Das feiras da região
Com seu pai e seus irmãos
E sempre que viajavam
Levando mercadorias
Por onde eles passavam
Andavam de feira em feira
Sobrava admiração.
Por isso é que os Ferreira
Todo o Sertão conhecia.
Com isso os outros rapazes
Sentiam-se enciumados
Os Ferreira eram pobres
Vendo a fama dos Ferreira
Para aquela região
Crescendo em todos os lados
220
Só pensavam de má fé
Assim começou a briga.
Procurando qualquer pé
Para acusá-los culpados.
Depois do caso chocalho
Bastava qualquer asneira
Um dia andando no mato
Para haver desavença
Zé Ferreira percebeu
Com a família Nogueira
Um chocalho amassado
Chegando a brigar armado
Que algum animal perdeu
Quando saiu baleado
Ele pra casa levou
Um da família Ferreira.
Depois que desamassou
Boiou num animal seu.
Com Antonio baleado
Zé Ferreira disse então
Não sabia Zé Ferreira
Vamos embora daqui
Que isso ia dar galho
Antes que aumente a questão
Quando os Nogueira souberam
Isso não saí findar bem
Tiveram pouco trabalho
Conheço os filhos que tem
Encheram na região
Aqui não vai prestar não.
Que os Ferreira ladrão
Nesse tempo Lampião
Tinham roubado o chocalho.
Começou se interessar
Já com alguns cangaceiros
Quando os Ferreira souberam
Que existia por lá
Dessa mentira medonha
E o seu pai preocupado
Tentaram em todas formas
Pôs a família do lado
Mostrar que tinham vergonha
E partiu pra outro lugar.
Com os Nogueira insistindo
Terminaram discutindo
Foi morar em Alagoas
E começou a enronha.
Pra se livrar da questão
Mas sua mulher doente
Começou mode um chocalho
Sofrendo perturbação
Essa questão tão antiga
Sentindo peso da dor
Com José de Saturnino
A velha não aguentou
Iniciou-se a intriga
E morreu do coração.
Um debochava de cá
Outro xingava de lá
Não estando satisfeitos
221
Os Nogueira se juntaram
Já se notava o darão
Com a forçada volante
Foi de tanto clarear
Pra Alagoas marcharam
Que passaram a lhe chamar
E com instinto assassino
Como grande Lampião.
Logo o pá de Virgolino
Sem piedade mataram.
Tão logo Sinhô Pereira
Um pouco cansado estando
Zé debulhava um milho
Resolveu ir viajar
Sentado ao lado de fora
Pra voltar num sabe quando
Guando os Nogueira chegaram,
E ao deixar o sertão
Num impulso sem demora
De uma vez Lampião
Começaram urra tiroteio
Tomou de conta do bando.
Acertando o velho em cheio
Que morreu na mesma hora.
Já estando no cangaço
O famoso Virgolino
A morte de Zé Ferreira
Seu mano Antonio Ferreira
Foi grande causa que fez
Seguiu no mesmo destino
Virgolino Cangaceiro
Para engrossar a fileira
Com toda altivez
Seguiu na mesma carreira
Juntou-se a Sinhô Pereira
Ezequiel e Livino.
E foi ser na capoeira
Cangaceiro de uma vez.
O nome de Lampião
Foi crescendo em todo canto
Virgolino era valente
E a sua cabroeira
Tinha boa pontaria
Sempre aumentando de tanto
Se orientava no tempo
Que aonde eles passavam
Todo sinal conhecia
Todos se admiravam
Na luta contra o inimigo
E provocava espanto,
Na caatinga era uni perigo
Pois com ele ninguém ia.
Assim seguiu Lampião
Por esse sertão treiteiro
Todos se admiraram
Quando tinha precisão
Corri a sua empolgação
mandava pedir dinheiro
A noite quando atirava
Já tinha os que lhe mandavam
222
É o que os macacos chamavam
Era muito estrategista
Normalmente de costeio.
Virgolino Lampião
Num tinha medo de nada
Mas havia fazendeiros
Nas veredas do sertão
Ricos que nada faltava
Nunca esquentou a moringa
Lampião pedia ajuda
E no meio da caatinga
E este quando negava
Rugia feito um leão.
Aborrecido ele vinha
Queimava tudo que tinha
Sempre dividiu seu grupo
Outras vezes lhe matava.
Pra não ser surpreendido
Já chegando em casa pobre
Quando a volante o seguia
Se muita fome trazia
Ele mudava o sentido
mandava fazer comida
Ali seu bando escapava
E depois que ele comia
E o inimigo ficava
Pra compensar seu empalho
Dentro do mato perdido.
Pagava todo trabalho
Com uma alta quantia.
Às vezes ele deixava
Um grupo numa trincheira
Se alguém lhe entregasse
O resto seguia em frente
Ao seu perseguidor
fazendo muita zueira
Este pagava com a vida
Quando a volante passava
E outras vezes com dor
o cerco então se fechava
Mas ele sempre matava
massacrava a tropa inteira.
Toda vez que encontrava
O tal do rastejados.
Teve início em Pernambuco
Essa história que um dia
Se um cabra atrevido
Migrou para Alagoas,
Desrespeitasse um chegado
Sergipe e então Bahia
Desonrasse sua filha
E pra ver como era forte
Bastava vir o recado
A Rio Grande do Norte
Quando Lampião chegava
Lampião às vezes ia.
De duas uma: ou casava
Ou o obra era capado.
Os macacos da polícia
Diziam que Lampião
223
Matava muitos soldados
E na constante rotina
Era perverso e ladrão
Faziam da carabina
Quando enfrentava a volante
Sua fiel companheira.
Quem vacilasse um instante
Morria sem compaixão.
E mesmo na caatinga
O bando era animado
E à Lampião dizia
Quando o coito era seguro
Que a volante porém
Que estavam sossegado
Eram macacos nojentos
Eles faziam forró
Veacos como ninguém
Dançando numa perna só
“Tenho mesmo é que os matar
Originando o xaxado.
Pois se eles me pegar
Eles me matam também”.
Como não tinham mulher
Era de arrua na mão
De tanto ser perseguido
Eles faziam uma roda
Não podia trabalhar
Arrastando o pé no chão
Pedia sempre a quem tinha
E o chiado que fazia
E quem quisesse lhe dar,
Direitinho parecia
Esse tinha proteção
Com o xaxear do feijão.
Na hora duma aflição
Lampião vinha ajudar.
Assim surgiu o xaxado
A dança de Lampião
Era uma vida medonha
Que não usava uma dama
Na caatinga andando a pé
Nem se dançava em salão
Se tinha poucos amigos
E se num dado instante
E muito menos mulher
Aparecesse a volante
Comida só o que tinha:
Tavam de arma na mão.
Bode assado com farinha
Rapadura e outros quaisquer.
Mas um homem sem mulher
E um sapato serra meia
Até então no cangaço
Se dana fazendo calo
Mulher nem de brincadeira
De mostra é uma coisa feia
Quando sentiam vontade
Por isso é que Lampião
Iam buscar pela feira
Resolveu lançar a mão
224
Em uma mulher alheia.
Junte só o necessário
O resto de tudo esqueça
Já estando na Bahia
Ela disse: Eu já tô pronta
O famoso Lampião
Vamos antes que anoiteça
Soube que uma mulher
Ao sair disse: adeus Zé
Lhe tinha admiração
E o coitado sequer
Casada com um sapateiro
Quis levantar a cabeça.
Mas ao grande cangaceiro
Lhe dava seu coração.
E partiu com Lampião
Para virar cangaceira
Lampião sabendo disso
Saiu o marido vendo
Ficou logo interessado
Sentado numa cadeira
Para ver Maria Déia
Não foi homem pra agir
Resolveu ser apressado
Deixou a mulher fugir
Se ela foi com minha cara
Sem dizer eira nem beira.
Lá da Malhada Caiçara
Volto com ela de lado.
Tiraram toda viagem
Sem nada nenhum falar
Com a ajuda da mãe dela
Ela pensava na vida
Lampião agiu ligeiro
No rumo que ia dar
Chegou montado a cavalo
E ele pensava nela
Com um bando de cangaceiro
Por sertão frágil e tão bela
Mas deixou-os no caminho
Como ia se adaptar.
E se apresentou sozinho
Na casa do sapateiro.
Mas como diz o poeta
Pra ser expresso o amor
Ao Lampião ver Maria
Não precisa de palavras
Sentiu logo uma alegria
Gestos ou outro vetor
Viu que ela era bonita
Se sente no coração
Gostou da mercadoria
Pois Maria e Lampião
Disse: Vá se arrumar
Nem a morte os separou.
Que hoje vou lhe levar
Antes de acabar o dia:
Maria sendo a primeira
Foi como acender um facho
225
Iluminando seu bando
Tinha que pensar ligeiro
Que antes só tinha macho
O entregava a um coiteiro
E junta com Lampião
Ou alguém que conhecia.
Nas caatingas do Sertão
Nunca ficava por baixo.
Lampião era católico
Sempre fazia oração
Assim tiveram uma filha
Devoto do Padre Cícero
Ele e Maria Bonita
Lhe tinha muita atenção
No meio da caatinga
E quem quisesse morrer
Naquela vida esquisita
Bastava vim desfazer
Ele mesmo batizou
Do Padre Cícero Romão.
E Maria colocou
Seu nome de Expedita.
Sempre ia ao Juazeiro
Pra visitar seu padrinho
Lampião sempre dizia
E sempre pedia a ele
Que no cangaço menino
Pra não lhe deixar sozinho
Dava motivo a volante
E pedia vez em quando
Pra saber do seu destino
Pra abençoar seu bando
Além do grande empalho
E bendizer seu caminho.
O choro é como chocalho
Que soa mais do que sino.
Quando a Coluna Prestes
Andava o Brasil inteiro
Por isso disse a Maria
Que passou pelo sertão
Nós não podemos criar
O Padre ficou cabreiro
Procure um homem de posse
E mandou logo o recado
que possamos confiar
Pra Lampião vir vexado
Aqui não tem segurança
Defender o Juazeiro.
O jeito é dar a criança
Pra um coiteiro cuidar.
Ao receber o recado
Lampião não demorou
Assim era no cangaço
Juntou seus cabras ligeiro
Quando um menino nascia
Pra Juazeiro rumou
A mãe não tinha direito
Se o padim mandou chamar
De amamentar sua cria
Nós não podemos faltar
226
Ao nosso protetor.
Um certo dia o bando
Descansava na ribeira
Chegando no Juazeiro
Na disputa de uma rede
O bando de Lampião
Num clima de brincadeira
Tratou logo em procurar
Luiz Peão ao se sentar
O Padre Cícero Romão
Viu sua arma disparar
O Padre disse: vem cá
Matando Antonio Ferreira.
Que eu vou lhe apresentar
Ao chefe da nação.
Lampião tinha saído
Com assuntos pra tratar
Contaram que a coluna
Avisaram a Luiz Pedro:
Tava invadindo o sertão
Fuja enquanto ele não tá
Uma tropa comunista
Se apresse, dê no pé
Representante do cão
Que depois que ele souber
Se você nos defender
Por certo vai lhe matar.
Nós entregamos a você
Patente de Capitão.
Luiz Pedro disse a eles
Daqui não arredo um passo
Já estando com a patente
Se tiver de morrer, morro
Lampião formou trincheira
Mas não escondo o que faço
Mas lhe disseram que estava
Eu não matei porque quiz
fazendo grande besteira
Foi o destino infeliz
Quando notou que o rival
Que lhe prendeu com seu laço.
Tinha seu mesmo ideal
Voltou para capoeira.
Quando Lampião chegou
Luiz Pedro tomou pé
Dois irmãos de lampião
Disse: Eu matei seu irmão
Foram mortos por volantes
Sem nem ao menos dar fé
E outro por insucesso
Sei que é um drama ruim
Com um disparo inconstante
Mas pode fazer de mim
E sofrendo a consequência
Tudo que você quiser.
Teve força e competência
Pra levar o grupo adiante.
Lampião muito abatido
Suspirou e disse a ele:
227
Antonio era um irmão
Entre Sergipe e Bahia
Que eu confiava nele
Lugar onde em poucos dias
Só tem uma solução
Houve a batalha tirana.
Tu se tomar meu irmão
E ficar no lugar dele.
Nisso Curisco gritou:
Eu não gosto desse assunto
Luiz Pedro emocionado
Quem quiser ir pra lá, vá
Disse: Grande Capitão
Eu não vou nesse adjunto
De hoje em diante somos
Não que eu queira ser melhor
Duas almas num coração
Mas lugar de entrada só
Até na hora da morte
É uma cova de defendo.
Se essa for nossa sorte
Ficam os dois corpos no chão.
Mas Lampião confiado
Num coiteiro que ele tinha
Lampião tinha inimigo
Chamado Pedro de Cândido
Que não largava seu pé
Pois toda vez que ele vinha
Davam surras em coiteiros
Ficava com segurança
Homem, menino e mulher
Promovia até festança
Quem sempre esteve na frente
Com vinho, bode e galinha.
Foi Zé Refino tenente
E as forças de Nazaré.
Assim seguiu Lampião,
Sem Curisco e sem Dadá
Teve todo seu reinado
Para a Fazenda Angicos
O Capitão Virgolino
Querendo enfim descansar
Fez tudo que desejava
Numa grota de pedreira
Neste sertão nordestino
Logo depois da fronteira
Ele traçou sua sorte
Quase ninguém ia lá.
Até na hora da morte
Como lhe quiz o destino.
Alguém mandou um bilhete
Para avisara volante
Já se sentindo cansado
Nele escrito: boi no pasto
Da vida cotidiana
Venha pra cá nesse instante
Avisou que ia acampar
E pra poder não falhar
Perto das terras baianas
Trataram de convocar
228
Um cabra mais atuante.
Na noite antecedente
Maria foi conversar
O tenente Zé Rufino
Com Sila de Zé Sereno
O maior perseguidor
As duas a lamentar
Nunca conseguiu ter êxito
E no escuro que tinha
Lampião nunca deixou
Sila viu uma luzinha
Por isso foi descartado
Acender e apagar.
E João Bezerra chamado
Pra comandar sem temor.
Contou a sua parceira
O que havia notado
Lampião tinha mandado
Ela disse é vagalume
Pedro de Cândido comprar
Tem muitos pra esse lado
Algumas mercadorias
E Sila se conformou
Que ele ia precisar
E lá mais Zé se deitou
Porém dois dias passou-se
Sem nada ter lhe falado.
E nada Pedro lhe trouxe
Começou desconfiar.
Na verdade eram macacos
Que vinham se aproximando
Avisou a cabroeira
Passaram a noite todinha
Aqui não vou ter demora
Ao redor se entricheirando
Mandei Pedro fazer compra
Antes do dia raiar
Não voltou até agora
Tava tudo em seu lugar
Está preso por ai
Todos já só esperando.
Hoje a gente dorme aqui
Amanhã nós vamos embora.
Quando o dia amanheceu
Lampião já acordado
Lampião tinha razão
Mandou alguém pegar leite
Pedro estava amarrado
Numa fazenda do lado
Não aguentando o massacre
Deu a alguém uma vasilha:
de tanto ser torturado
Vá pegar água na trilha
Disse tudo que sabia
Para cuidar do grolado.
Mostrou por onde se ia
Onde ele estava acoitado.
Primeiro foi Amoroso
Que acertaram de cheio
229
Depois ninguém viu reais nada
Se lembre do trato seu
Era grande o tiroteio
Pois Lampião já morreu
Ali tudo desabava
Só quero ver sua ação.
Porque a bala cortava
O que tivesse no meio.
Luiz Pedro ouvindo isso
Sentira um fogo nas mãos
Sila saiu avechada
Voltou pra dentro do cerco
Quando acordou meio trôpa
Pra juntar-se ao capitão
Enedina lhe seguiu
Ao lembrar do trato feito
Infelizmente deu sopa
Levou um tiro no peito
Levou um tiro e caiu
E morreu com Lampião.
Foi quando Sila sentiu
Seus miolos em sua roupa.
Enfim morreu Lampião
Ele e Maria Bonita
Mais na frente eia encontrou
Mais nove cabras do bando
O colega Candieiro
Numa manhã tão aflita
Que baleado no braço
E mesmo os que escaparam
Se arrastava o tempo inteiro
O cangaço ali deixaram
Diante todo perigo
De forma muito esquisita.
Pegou a arma do amigo
Então fugiram ligeiro.
Depois que cessou o fogo
Estava feita a desgraça
O valente Luiz Pedro
Pegaram tudo que tinham
Que tinha oração forte
Sem nem baixar a fumaça
Conseguiu furar o cerco,
Pra que o povo reconheça
Ia escapando da sorte
Cortaram as onze cabeças
Mas naquela ocasião
E expuseram na praça.
Lembrou que com Lampião
Tinha um acordo de morte.
Os soldados da batalha
Depois que tudo pegaram
Maria Bonita disse:
Alguns ficaram foi ricos
Tu não disse a Lampião
Com o que eles deixaram
Que aonde ele morresse
E como foram valentes
Os dois ficavam no chão
Todos ganharam patentes
230
Pela luta que ganharam.
A 28 de julho
Essa tragédia se deu
Também morda o cangaço
Que Lampião ascendeu
E hoje a sua memória
Está expressa na história
Que o próprio povo escreveu.
Se foi herói ou bandido
Respeitamos a memória
Ele marcou sua época
Escreveu a sua história
O que pensou que o venceu
Ao lhe matar estendeu
Pra sempre a sua vitória.
231
8.12. VIRGÍNIO
O JUIZ DO GRUPO DE LAMPIÃO
Gonçalo Ferreira da Silva
Aglae com raro talento
foi feliz nesta abordagem
ao referir-se a Virgínio
sua fibra, sua coragem
e o perfil psicológico
da estranha personagem.
Ao falar de Vila Bela
atual Serra Talhada
na terra pernambucana
da capital afastada
por estranha sensação
a nossa alma é tornada.
Foi na então Vila Bela
por tradição explosiva
e de vocação política
efervescente e ativa
responsável, certamente,
por tanta carga emotiva
Terra de homens que, às vezes,
sem plantios, sem colheitas
vencem desafios, passam
por situações estreitas
no entanto morrem de velhos
fazendo as coisas bem feitas.
228
Talhada para a política
extremamente inflamada
para discursos veementes
para batalha acirrada
foi sempre assim Vila Bela
para proezas talhada.
Para defender a honra
em batalha suicida
a presença da peixeira
é normalmente exigida
em que os desafiantes
não raro acabam sem vida.
Portanto berço ideal
para Virgínjo, e propício
ao juiz do grande grupo
da função no exercício
frio, justo e decisivo
desempenhar seu ofício.
Para julgar suas vítimas
transformava-se em algoz
sem o mais leve resquício
de sentimento na voz
dando uma vazão selvagem
ao seu instinto feroz.
Chefe do estado-maior
e homem de muita ação
era também o juiz
cuja elevada função
desempenhava por ser
229
cunhado do Lampião.
Era casado com Amélia
uma irmã de Virgulino
assim cunhado e irmão
de ideal e destino,
credenciais que fizeram
de Virgínio um paladino.
Ao extremo justiceiro
rigorosamente atento
era com palavras lentas
que fazia o julgamento
premiando ou condenando
conforme o merecimento.
Às vezes surpreendia
como por ocasião
do episódio em que Lídia
pobre de inspiração
humilhou José Baiano
com torpe e vil traição.
A saltitante e fogosa
mulher de José Baiano
deitada com Bentivi
cometeu fatal engano:
foi no colóquio amoroso
vista por cabra tirano.
Este levou a notícia
a Zé Baiano que quis
fazer justiça ali mesmo
na presença de Concriz:
matou com furor medonho
230
a traidora infeliz.
Bentivi voltou dois dias
depois do acontecido
cabisbaixo, envergonhado,
hesitante, precavido
porém foi, sem restrição,
ao grupo reconduzido.
Zé Baiano agigantou-se
numa ameaça feroz
mas do capitão, severo,
ouviu-se a potente voz:
-O
grupo tem um juiz
não um furibundo algoz.
Bentivi no mesmo instante
foi conduzido à presença
do rigoroso juiz
que sem ódio, sem ofensa
pacificou os presentes
sem a menor desavença.
Bentivi serenamente
declarou: Senhor juiz
eu quis Lídia, na verdade,
e ela também me quis,
ela fez comigo o mesmo
que com ela eu também fiz.
- Portanto em nome do amor
temos que ser perdoados,
se errei não foi sozinho
fomos os dois os culpados
pecado que só cometem
os seres apaixonados.
231
Virgínio achou o discurso
de Bentivi conclusivo
e disse a José Baiano:
Você é intempestivo
mas acho que Bentivi
deve continuar vivo.
Da decisão assumida
com habilidade e tino
resultou que Zé Baiano
sem cometer desatino
liderando um novo grupo
buscou seu próprio destino.
O pacifista Virgínio
era muito respeitado,
o exibicionismo
não era seu aliado,
assim teve a confiança
da Lampião, seu cunhado.
Os cabras de Lampião
previamente escolhidos
para o primeiro escalão
recebiam apelidos
e era por tais alcunhas
que ficavam conhecidos.
Tinha Virgulino os cabras
debaixo do seu comando
palmatória, ferro e faca
só eram usados quando,
tinha ordem de Virgínio
disciplinador do bando.
Vírgínio ensinava ao próprio
232
Lampião: Não desacate
por nada seu semelhante
se for necessário mate
mas não bata em sua cara
pois em homem não se bate.
O pensamento avançado,
o tratamento fraterno,
cabelos louros e lisos,
na boca um sorriso eterno
renderam-lhe certamente
o apelido: Moderno
Eram os crimes monstruosos
pelos cabras praticados,
por Lampião aplaudidos,
os métodos cruéis usados
em ocasiões diversas,
por Virgínio condenados.
O cangaço no Nordeste
não teve um longo reinado
mas foi o suficiente
para deixar registrado
capítulo que certamente
nunca será olvidado.
No estado da Bahia
em batalha suicida
o juiz dos cangaceiros
sem salvação, sem saída
foi fazer seus julgamentos
do outro lado da vida.
A NEXOS II – FOLHETOS CONSULTADOS
233
MARIA BONITA – MYRIAM FRAGA
Esta noite em Angico
Não quero teu braseiro,
A brisa é calma.
Tua intensa
No silêncio farfalham
Cintilação que queima
Minhas anáguas
Meus vestidos.
Como farfalham asas
e no escuro minha carne
Só quero a tua volta
cheira a mato.
Tua presença
Iluminando a noite
Vem, meu amor, e lavra
este roçado
como quem quebra
Que me cerca
Como uma luz acesa
No postigo.
Um cântaro,
Como quem lava a casa;
Teus dedos como setas
Águas frescas na tarde.
Apontam meu destino:
Meu caminho
Tuas limpas carícias
Na planta de teus pés;
Teus dedos como pássaros
Meu horizonte
E teu corpo que arde
No risco de tuas mãos
Como estrelas no espaço.
E meus cabelos esparsos
Sobre a relva em que me habitas.
Vem, meu dono, meu sócio,
Pasto de aves meu corpo
Meu comparsa,
Que trabalhas
Desarma o teu cansaço,
Como quem corta e lavra.
Desata a cartucheira,
A noite é farta,
Desata a cartucheira,
Como besta no cio.
Teu campo de batalha
Sou eu.
A noite é vasta
Por um momento,
Vem devagar
Esquece o que te mata
E habita meu silêncio
- Fúria e falta -,
234
Como se habita um claustro.
E enquanto a noite é calma,
Vem e apaga,
Teus beijos como
Lâminas. Como espadas.
Na pele do meu peito,
Esta fome sem data.
ANEXOS III - OUTROS
OS PRIMEIROS DIAS NO CANGAÇO
Saímos, eu e os demais do bando, pelas veredas quase fechadas dacaatinga, sem
destino, todos caminhavam calados. Nenhum comentário.
Eu parecia estar em outro mundo, triste, isolada da minha família, desiludida e
amedrontada. Não falava, apenas prestava atenção a tudo que se passava ao meu redor.
Não conhecia aquela gente, todos estranhos, dava vontade de chorar. Era um estado de
choque. Andamos o dia todo a pé. Ao meio dia, eles assaram carne e comeram com farinha de
mandioca. Eu não me alimentei, não tinha fome, estava desolada.
À tardinha, Nenen, mulher de Luiz Pedro, se aproximou de mim para conversar. Tive
uma reação diante daquela situação: uma crise choro tomou conta de mim. Então ela disse:
– Não chore que é pior.
(...)
Ilda Ribeiro de Souza (Sila). Memórias de Guerra e Paz, 1995, p.24.
AS MULHERES DO CANGAÇO
Rosa Bezerra
As mulheres no ou do Cangaço servem, do ponto de vista psicossocial, de
referência num estudo maior sobre gênero e direitos femininos. Ou seja, numa abordagem
psicológica podemos observar que as ditas cangaceiras não participaram de luta armada nem
de combates, exceção de Dadá nos oito meses finais de sua convivência no bando de Corisco
onde passou atuar com arma longa pela impossibilidade de o companheiro atirar. As mulheres
235
que, na maioria das vezes se incorporaram ao Cangaço, o fizeram por vontade própria e não
tiveram aí, atividades domésticas como as mulheres de seu tempo. No cangaço, as tarefas
eram dividas pelos combatentes, o que demonstra uma subversão do tradicional da época.
Mulheres jovens e bonitas, ousaram diminuir o comprimento das saias,
ornamentaram-se com cores e enfeites, saindo do anonimato cinzento à que eram submetidas
as mulheres casadas sertanejas, proibidas de mostrarem-se. As diversas atitudes apresentadas
pelas cangaceiras nos remetem a um tipo de pré-feminismo gestado na caatinga: sem
obrigação de atividades domésticas, sem um lar para cuidar, sem filhos para criar, a mulher no
Cangaço ressignifica seu perfil psicológico, até então regido pelo modelo hegemônico de mãe
e dona de casa.
O gesto de Lampião ao posar para filmes e fotos ao lado da companheira e também
permitindo que as outras mulheres se exibissem às lentes do árabe Benjamin, significa o
resgate do feminino, trazendo à luz da imprensa da época o papel digno que a mulher detinha
no bando, originalmente uma confraria de guerreiros machos. Vale frisar que, na época,
apenas mulheres da elite dominante eram chamadas a posar para fotos, com adereços e joias.
A presença feminina no Cangaço sem que fosse vítima de agressões físicas pelos
companheiros (exceção para a traição marital), revela um tipo de família nômade em que a
mulher era colocada em segurança durante as refregas, e demonstrando que as cangaceiras
saíram da periferia de suas vidas para tornarem-se “sujeitos” de sua trajetória não
permanecendo como coadjuvantes na história de outrem.
EU E MARIA BONITA
Wanessa Campos
“Acorda, Maria Bonita, levanta e vem fazer café ...” Escutava com assiduidade a
musiquinha na minha meninice em Triunfo, Sertão de Pernambuco, a minha cidade. E, diante
da curiosidade infantil, ficava a perguntar a mim mesma quem era essa Maria dorminhoca,
que precisava ser despertada para fazer o café? Mais adiante, ainda menina, ouvindo as
histórias do cangaço, fiquei sabendo que a Bonita era a mulher de Lampião [...].
Já adulta, formada em jornalismo e morando no Recife, fui trabalhar exatamente numa
editoria regional e, fatalmente, iria me deparar com fatos nordestinos. O cangaço,
seguramente, não seria uma notícia fora do contexto. Em 1991, em Serra Talhada, terra de
Virgulino Ferreira, houve um plebiscito em torno de uma pergunta: “Lampião era herói ou
236
bandido?” Dependendo do resultado, ele teria uma estátua na sua cidade. A maioria disse sim,
mas a estátua ainda não foi erguida. Na verdade, ele não foi herói nem bandido, mas história.
Diante de tão importante acontecimento, comecei a ler sobre o cangaço. Fiquei tão
deslumbrada que me apaixonei pelo tema. Fiz inúmeras reportagens e Maria Bonita passou a
ser uma figura que mereceu minha admiração. Com a proximidade do seu nascimento, decidi
escrever sobre essa mulher tão corajosa, tão desafiadora no seu tempo que rompeu
paradigmas, virou musa, mito e fonte de inspiração até hoje.
Pesquisar sobre a mulher do capitão talvez tenha sido a minha maior dificuldade
profissional. As imprecisões, as contradições da sua vida passaram a ser um desafio. Como
“seqüenciar” a trajetória dessa Maria de quem pouco se sabe? (...) O resultado está neste livro
em formato de reportagem.
(A Dona de Lampião, 2012)
Depoimento de Dadá, transcrito da obra de Lia Zatz: “DADÁ: bordando o Cangaço”.
É, eu pensava que o ódio que eu sentia por Corisco, a mágoa que trazia dentro do
coração, eram tão grandes como o sertão, não iam se acabar nunca. Mas quem é que não
acaba amando o homem que carrega a gente no colo pra gente dormir?
Ele acabou me vencendo, conseguiu me conquistar, pela maneira como me tratava,
suportando todas as minhas grosserias sem mexer um dedo, sem me contrariar em nada.
Quando eu decidi virar companheira dele pra valer, aí então viramos carne e unha, nós dois.
Eu enfrentava qualquer coisa ao lado dele, nunca deixei ele sozinho num tiroteio com os
macacos, fosse qual fosse o perigo, eu estava ali, lutando junto (...)
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