Ronald de Carvalho: moderno e anti-moderno Juliana Cristina Terra de SOUZA 1 Resumo: O presente artigo busca analisar o poeta e ensaísta Ronald de Carvalho (1893-1935) como figura histórica imbuída da dualidade da modernidade do Brasil. Vemos em sua obra e concepção estético-literária a transformação que sai da tradição para a busca de moldes modernos e modernistas do fazer poético. Contudo, no torvelinho da transformação do espaço urbano e da mentalidade do homem moderno e possuidor de uma formação clássica, Ronald não efetuará a passagem do velho para o novo de forma efetiva. Percebe-se em sua obra, seja nos ensaios ou na poesia, uma mescla da tradição com a novidade, do clássico com o moderno. Palavras-chave: Ronald de Carvalho; Literatura Brasileira; Modernidade. Abstract: This paper will seek to analyze the poet and essayist Ronald de Carvalho (1893-1935) as a historical figure imbued with the duality of modernity in Brazil. Thus we see in his work and design aesthetic-literary transformation that comes from tradition to search for patterns and modern modernist poetic. However, the turmoil of transformation of urban space and the mentality of modern man, and possessed of a classical education, Ronald will not make the transition from the old to the new effectively. We shall see in his work, whether in testing or in poetry, a blend of tradition and innovation, with classic modernism. Keywords: Ronald de Carvalho; Brazilian Literature; Modernity. Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. [...] Dir-se-ia que para ser moderno é preciso ser anti-moderno. Marshall Berman 1 Licenciada em História Licenciatura Plena, pelo Centro Universitário Barão de Mauá, de Ribeirão Preto (SP). Graduanda em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Araraquara (SP). Docente da rede pública e particular de ensino de Monte Alto (SP). CEP: 15.910-000 – Monte Alto – SP – [email protected]. Como observado por Massaud Moisés (1989, p.51), “Ronald representa a união entre a belle époque e o Modernismo”. Um homem que viveu em dois mundos simultaneamente, Ronald aderiu ao movimento modernista chegando a participar ativamente da Semana de Arte Moderna de 1922. Buscou, dessa forma, romper com a tradição, pregando um novo ideal de criação estética moderno. Ainda assim, não conseguiu se despir plenamente de sua herança tradicional. Para analisar a trajetória poética do autor, nosso trabalho divide-se em duas partes. Em um primeiro momento, buscaremos levantar aspectos relevantes sobre a vida e a obra de Ronald. Arrolaremos informações sobre seus primeiros livros de poesia: Luz gloriosa, Poemas e sonetos, Epigramas irônicos e sentimentais e Toda a América. Analisaremos a temática e o aspecto formal em cada um, buscando mostrar a mudança empreendida ao longo das obras com o amparo da bibliografia sobre o poeta, bem como abordar a mudança de “tom” de Ronald ao aderir ao projeto modernista lançando uma espécie de manifesto a favor de um novo fazer poético (no seu clássico livro de crítica literária Pequena história da literatura brasileira), além de abordar sua participação na Semana de Arte Moderna, em 1922. Em um segundo momento, iremos nos concentrar na análise de poemas de Ronald inserido nos quatro livros, buscando encontrar na obra os pressupostos já abordados nos capítulos anteriores, assim como tentando trazer à luz elementos que validem nossa ideia de demonstrar no poeta uma mescla do velho com o novo. Da tradição à modernidade: Ronald de Carvalho, um pouco sobre o escritor. Ronald de Carvalho está presente entre os modernistas comumente tidos como poetas menores. Foi ele “o retrato da efemeridade e da glória” (MOISÉS, 1989, p. 48), pois tendo conquistado considerável reconhecimento em vida, seu nome caiu no esquecimento após sua morte prematura aos quarenta e um anos, vítima de um acidente automobilístico. Como observa Antônio Donizeti Pires, seu nome permanece, para muitos, apenas em virtude de três acontecimentos: [...] o primeiro, sua participação no grupo da revista Orpheu, que em 1915, escandalizou a sociedade lisboeta e tornou-se o marco inicial do Modernismo português; o segundo, a publicação em 1919, de sua Pequena história da literatura brasileira, obra afortunada e ainda atual, a primeira a abordar, crítica e historicamente, o Simbolismo no Brasil e a poesia inovadora de Cruz e Sousa; o terceiro, sua participação ativa na Semana de Arte Moderna de 1922 [...] (2006, p. 119). Nenhum desses três acontecimentos alude à sua produção poética. Entretanto, Ronald de Carvalho publicou cinco livros de poesia. Qual seria então a explicação para que um artista consagrado em seu tempo e entre seus pares tenha resvalado para o limbo do esquecimento? A resposta não é simples: questões de gosto, preferência e renovação devem ser levadas em consideração. Ainda assim, nos parece legítimo observar que a qualidade de Ronald como poeta possa ter relação direta com tal advento. Isso porque ele foi poeta, mas “não foi um grande poeta” (CARVALHO, 1972, p. 247). A importância de sua poesia centra-se mais em postulados estéticos que podem ser percebidos por meio de seu fazer poético. Conforme se modificava sua visão sobre a arte e o artista, sua obra denotava essa mudança de “tom”. Dessa forma, é inegável sua importância entre os artistas do primeiro quartel do século XX. Ronald de Carvalho teve formação clássica. Em 1912 cola grau em Direito antes de concluir vinte anos. Dois anos depois, ingressa no Ministério das Relações Exteriores, iniciando uma profícua carreira política que chegará ao ápice com o cargo de Chefe da Casa Civil durante o governo de Getúlio Vargas, em 1934. Amplia seus conhecimentos ainda no âmbito das Letras, Ciências Sociais, Filosofia e Sociologia. Será, então, um dos mais cultos a participar da Semana de Arte Moderna. Luz gloriosa (1913) e Poemas e sonetos (1919): influências simbolistas e parnasianas. Luz gloriosa foi a obra de estreia do poeta. De acordo com Júlio Carvalho, Luz gloriosa é um livro “tematicamente artificial” (1972, p. 226). Como o poeta trata de um tema e um sentimento relacionados aos impactos emocionais da Primeira Guerra Mundial, Ronald os teria tratado artificialmente, por serem assuntos quee não lhe diziam respeito diretamente. A obra tem a temática da descrença pela vida e de um sentimento exacerbado de individualismo. Para além desses elementos, observa-se na obra como um todo, uma forte marca simbolista e uma preocupação grande com o cromatismo (cor, luz e brilho), sinestesia e musicalidade. Júlio Carvalho dispõe ainda de que também podemos observar a influência simbolista por meio do vocabulário presente nas poesias. É frequente o uso de palavras como ouro, rubro, branco, cinza, âmbar e o uso de maiúsculas na grafia de algumas palavras (1972, p. 231). Luz gloriosa foi um sucesso. Alceu de Amoroso Lima assinala que Graça Aranha “exultou com o livro de Ronald nas mãos” (LIMA apud CARVALHO, 1972, p. 232), sendo que Aranha já era então figura importante no meio artístico do Rio de Janeiro. Em 1919, seis anos após o lançamento de Luz gloriosa, Ronald publica seu segundo livro de poesias, intitulado Poemas e sonetos. Nesse momento, a cidade de São Paulo já tinha começado a viver as emoções e fermentações do Modernismo. Ronald, três anos antes, “embora pouco tivesse de revolucionário” (BOSI, 2006, p. 332), ligarase à revista portuguesa Orpheu, responsável por iniciar o modernismo em Portugal. Mas, ao contrário do que esse engajamento possa nos levar a crer, Poemas e sonetos não avança em direção ao Modernismo, mas retrocede aos moldes parnasianos. Tratouse, na visão de Júlio Carvalho, de: [...] um bem comportado livro de versos parnasianos. Tão bem comportado que a Academia Brasileira de Letras resolve outorgar-lhe um prêmio. Não só a consagração oficial do poeta, mas o seu reconhecimento público como poeta que não rompe com o padrão oficial. (CARVALHO, 1972, p. 232) Assim, podemos entender que o livro não prima pela originalidade. Formalmente, estrutura-se a partir do Parnasianismo. Vemos em Poemas e sonetos o amor tratado como contido, artificial. A mulher é vista à distância, como uma espécie de semideusa. Mas além de ser meramente estruturado pelo Parnasianismo, o Simbolismo também deixa suas marcas na obra de Ronald, como afirma Antônio Donizeti Pires. Sobretudo quando o poeta faz uso de um “vocabulário vago, cambiante, sugestivo e musical” (2006, p. 128), preterindo o vocabulário e a expressão precisos do Parnasianismo. Curiosamente, ou não, é após a premiação de Poemas e sonetos pela Academia Brasileira de Letras – e consequente vinculação como poeta do cânone – que Ronald passa a vincular-se ao Movimento Modernista. Fase de transição: Epigramas irônicos e sentimentais (1922). Como dito anteriormente, Ronald passou a integrar o movimento modernista. Com isso, suas ideias estéticas passaram a beber de uma nova ideologia. É dessa dinâmica que nasce Epigramas irônicos e sentimentais, no mesmo ano em que ocorre a Semana de Arte Moderna em São Paulo. Ronald participa dela ativamente. Na primeira noite do evento, pronunciou a conferência “A pintura e a escultura moderna no Brasil”, e na segunda declamou o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, versos que ridicularizavam o Parnasianismo em uma postura de negação de seu passado. Essa busca de cisão com o velho pode ser observada em Epigramas. Revolucionando formalmente sua poesia de até então, Ronald passa a utilizar-se na obra do verso moderno. Em relação ao seu passado: Ronald não é mais aquele poeta de formas e fórmulas consagradas e colecionador de gastos lugares-comuns. Percebeu que mais importante do que um prêmio da organização oficial, e por isso consagradora só do que era velho (respeitador do passado e do oficializado como certo), mais importante do que isso era revelar um estado de consciência. [...] (CARVALHO, 1972, p. 237) Tal estado de consciência já vinha sido desenvolvido pelo poeta. Essa obra foi uma grande revolução se comparada formalmente com as obras anteriores do escritor. Entretanto, não podemos deixar de salientar que mesmo possuindo o germe do novo, a obra não abandona aspectos tradicionais. Nesse aspecto, concordamos com Pires a respeito de que essa obra “deveria ser considerada de transição, pois é nítida sua oscilação entre a tradição e o novo programa estético abraçado pelo poeta. [...]” (2006, p. 129), e ela formalmente vincula-se ao Modernismo por possuir estrofes irregulares e versos livres e brancos, além de tematizar aspectos do cotidiano. Os temas e motivos, entretanto, são ainda penumbristas. O conceito de epigrama é utilizado apenas no que tange à forma enquanto composição breve. A ironia que se espera permanece somente no título da obra. Além de não ser irônica, também não é crítica. O autor acaba conferindo caráter lírico, o que não é comum a esse fazer poético. E o livro, que se pretende modernista, acaba pendendo ao neorromântico. Nele ainda “perduram as notas precedentes, para os lados duma estética sutil, sem eloquência, calma, discreta, fina, cheia de pudor” (MOISÉS, 1989, p. 49). É nessa relação e mescla do novo e da tradição que vemos em Ronald um paradigma moderno. Ele tenta impor na sua criação literária a sua ânsia de renovação, mas acaba envolvido também com sua tradição clássica. E o homem moderno do Brasil, naquele momento, nada mais era que aquele que se pretendia adepto do novo, em meio, muitas vezes, a um contexto arcaico. Nova visão estética modernista, Toda a América (1926) e Pan-americanismo: conceitos. Em sua conferência na primeira noite da SAM, eis um dos últimos dizeres do escritor: Não desejamos ser gregos, nem romanos, nem franceses, nem italianos, nem portugueses, nem espartanos. Pesa sobre nós a fatalidade do grandioso. Nossa alma é um eterno conflito de raças diferentes, dominadas pela brutalidade do ambiente cósmico em que céus movemos [...]. (CARVALHO apud CARVALHO, 1972, p. 242) Esses dizeres denotam uma vontade não somente de inovação, mas que esta fosse pautada em uma inspiração brasileira, não mais em moldes estrangeiros / europeus. A busca por renovação empreendida na atividade engajada no movimento modernista e na publicação de Epigramas não parou por aí. Ronald seguiu no desenvolvimento de uma nova postura estética moderna. Faz-se imprescindível para o entendimento do desenvolvimento desse pensamento, assim como das novas ideias do poeta no que concerne à criação poética, a leitura do último capítulo de sua Pequena história da literatura brasileira. Tal capítulo foi adicionado na terceira edição da obra, tendo sido escrito no ano de 1925, em meio a essa nova visão e postura de Ronald em relação ao fazer poético. Nesse texto, Ronald expõe ideias sobre o homem moderno do Brasil que vem de uma cultura elementar e sem instrução, e que por isso espera que o artista use de uma linguagem clara, que deseja viver a realidade do momento (sem voltar atrás, pois a imitação não é fecunda); da necessidade de disciplinar a inteligência procurando uma arte livre de preconceitos e que reflita o tumulto nacional (CARVALHO, 1949, p. 3657). Para ele, “o artista moderno é um deformador”, mas que se utiliza por vezes de técnicas antigas com novo olhar e intuito (CARVALHO, 1949, p. 369) Nesse discurso de repúdio ao velho e valorização do novo, “o que caracteriza a arte moderna é o horror ao acessório, ao indeterminado, ao trivialismo das reproduções fáceis. Toda a criação estética de hoje está sujeita a uma grande lei de lirismo cerebral”. (CARVALHO, 1949, p. 370) Renegando o elemento europeu e a partir de suas muitas viagens ao longo da América, Ronald defenderá uma integração americana. Sobre a relação entre o homem moderno, o artista moderno, literatura moderna e esse pan-americanismo, Ronald dispõe que: O homem moderno do Brasil deve, para criar uma literatura própria, evitar toda espécie de preconceitos. [...] Uma arte direta, pura, enraizada, profundamente na estrutura nacional, uma arte que fixe todo o nosso tumulto de povo em gestação, eis o que deve procurar o homem moderno do Brasil. Para isso, é mister que ele estude não somente os problemas brasileiros, mas o grande problema americano. O erro primordial das nossas elites até agora, foi aplicar ao Brasil, artificialmente, a lição europeia. Estamos no momento da lição americana. Chegamos, afinal, ao nosso momento. (1949, p. 370) Em 1926, Ronald lança dois livros de poesia. Analisaremos aqui somente um deles, intitulado Toda a América. Nessa obra “o ritmo livre [...] impõe-se: o poeta moderniza-se, repudia o europeu” (MOISÉS, 1989, p. 50). O autor preocupa-se não somente com o nacional, mas com toda a América. Esse advento afasta-o do nacionalismo primitivista que era a linha básica da primeira geração modernista. Enquanto isso, “o tônus lírico decai visivelmente: bordejando a prosa, como outros poetas do tempo, substitui a emoção pensada de antes pela ênfase retórica que não esconde o vazio sobre que balança” (MOISÉS, 1989, p. 50). Em suma, Ronald busca imprimir nessa obra todos os pressupostos que dispôs no último capítulo de sua Pequena história. É o esforço do poeta em consubstanciar na obra sua postura estética e ideológica. Toda a América é o resultado de um entusiasmo, de alguma experiência, de observações e de uma ideologia. Seus versos são comprometidos. Compromisso assumido com a ideologia dominante nas Américas, o americanismo, aliada a uma crença entusiasmada no futuro do Brasil. (CARVALHO, 1972, p. 242) Produção poética: os pressupostos estéticos na obra de arte “Canções do Sol-Pôsto” (Luz gloriosa) I Vens de longe... que trouxeste das terras que a bruma ensombra... - A Saudade de um cipreste na Memória de uma Sombra... Aonde vais alma perdida?... - Não sonha ventura, pois toda a Alegria da Vida é uma Tristeza depois... II Andei em busca de pérolas entre arrecifes e abrolhos, e fiz um trono de nácar para a dona dos meus olhos... Roubei ao vento harpas eólias e bandolins embutidos de ouro... e dei flautas e cítaras à dona da minha boca... Despetalei tirsos virides sobre o âmbar de incensos louros... Queimei todos os turíbulos à dona dos meus tesouros... Opus correntes hercúleas aos meus desesperos vãos, e, entreguei as mãos exóticas à dona das minhas mãos... Destino... Perto da tua alma esplêndida são poucos os bens perdidos... Glória ao nosso Amor translúcido ó dona dos meus sentidos... CARVALHO, 1976 Como dito anteriormente, Luz Gloriosa é a obra de estreia de Ronald de Carvalho. O livro reflete sua formação clássica, o apreço e o vínculo do poeta à transcendência do símbolo e ao universo penumbrista. Todos os poemas preocupam-se com a cor, luz e som e possuem uma atmosfera intimista, crepuscular e de penumbra. A poesia escolhida para análise de Luz Gloriosa comporta todos esses aspectos. O poema estruturalmente é dividido em duas partes. Em um primeiro momento, o eulírico sente que “a não significação da vida é fruto da sombra da morte” (CARVALHO, 1972, p. 254). O universo é de penumbra e de cinzento e reflete-se em imagens como a bruma, o cipreste e a sombra. O conselho do eu-lírico frente a isso é o de não sonhar venturas, uma vez que a sombra da morte se impõe à vida. Essa composição tem nítida influência simbolista e penumbrista, com os reflexos do mundo exterior na alma do eu-lírico. Na segunda parte do poema, a influência simbolista é deveras reiterada. Esta pode ser observada de várias formas. Uma delas é o uso de palavras grifadas em maiúsculo, que é “uma evidente intenção de individualizar, de caracterizar e destacar certos vocábulos importantes no contexto do verso” (CARVALHO, 1972, p. 231). Também encontramos tal advento pela verificação da ocorrência de diversos lugarescomuns do léxico, intrínsecos à estética simbolista. São eles: • Parte I: bruma, cipreste, sombra. • Parte II: pérolas, abrolhos, nácar, harpas eólias, bandolins, ouro, flauta, cítaras, âmbar, a expressão “Despetalei tirsos virides” etc. Esse léxico traz para o poema o cromatismo e a sinestesia, elementos característicos de toda a poesia produzida por Ronald de Carvalho. Refletindo a herança simbolista do poeta, eles não serão abandonados inteiramente nem mesmo após a adesão de Ronald de Carvalho ao movimento modernista. Para a musicalidade, notase uma grande ocorrência de sibilantes e um recurso ainda mais direto do qual o poeta faz uso: a referência a instrumentos musicais como o bandolim, flautas e cítaras. Mas é a cor que predomina ao longo do poema: a sombra, o ouro, o âmbar. Ronald faz uso de símbolos, imagens, sinestesias, recursos sonoros e cromatismos para expressar o mundo interior e a subjetividade do eu-lírico. É a linguagem da sugestão, em que nada é objetivo. “Elegias (II)” (Poemas e sonetos) Pela névoa, a ondular, como um acorde lento, Os pés brancos ao luar, e o cabelo ao vento, Estendeste-me as mãos esguias e nervosas, Numa ronda aromal de cravos e de rosas Que lâmpada flamenga o teu olhar desvenda? És longa como um lírico aberto numa taça, E, nas águas de um lago, a tua forma lassa Tem gumes de punhal e escumilhas de renda Serias Colombina? Ah! Se eu fosse Pierrot, No jardim silencioso, à margem dessa estrada, Por onde vieste, a rir, e onde sonhando vou, Dar-te-ia o coração no fim de uma balada! Há teorbas a chorar nos bosques de jasmins, Sobre as fontes, em torno, entre violetas, boia O plenilúnio, como uma pálida joia, E move-se na sombra a cauda dos golfins... Mas apenas beijei as tuas mãos nervosas Como um flamingo de ouro o teu vulto passou, Numa ronda aromal de cravos e de rosas. Se fosses Colombina, e se eu fosse Pierrot!... CARVALHO, 1923 Já dispomos alhures que Poemas e sonetos foi um retorno do poeta ao Parnasianismo. A obra é inteiramente composta de poemas em versificação tradicional e estrofação regular. Ronald bebe da estética do Parnaso no que tange à métrica e gramaticalidade. Ressaltemos, porém, que ele despreza um terceiro pressuposto dessa escola quanto à precisão vocabular e de expressão em prol do vocabulário vago, cambiante, sugestivo e musical que marcou o Penumbrismo e Simbolismo (PIRES, 2006, p. 128). O próprio título do poema escolhido, “Elegia”, reflete um motivo penumbrista. O eu-lírico descreve um ambiente de névoa. Ainda influenciado pelo Simbolismo, traz uma carga imagética forte. O eu-lírico frequentemente evoca imagens da natureza, outro elemento presente amiúde em Ronald de Carvalho. Esse poema trata de forma parnasiana um lirismo amoroso. A emoção e a subjetividade são deixadas de lado e o que acaba sendo valorizado é a escolha de um vocabulário rico e refinado. A busca é pela beleza e emoção estéticas. Um exemplo se dá nas rimas em que o poeta procura evitar o uso de palavras de mesma classe gramatical buscando agregar, com isso, maior valor estético. Essas rimas se dão alternando em cada estrofe a forma paralela e intercalada. Entretanto, ocorre uma quebra da perfeição conseguida até então na terceira e na quinta estrofes. Nota-se que as rimas efetuadas em Pierrot-vou e passou-Pierrot são imperfeitas. Além da metrificação, da escolha vocabular e da preocupação com a rima, notamos também da estética parnasiana “o enjambement, recurso abusivamente usado pelos adeptos do Parnassus” (CARVALHO, 1972, p. 256) “Canção da vida quotidiana” (Epigramas irônicos e sentimentais) O sol brilha nas pedras da rua pobre e pequenina, entre as pedras da rua humilde o mato cresce. De uma janela aberta vem uma voz dolente, uma voz sem timbre, uma voz de lágrimas ignoradas... O sol queima as couves dos quintais desertos Vibra na luz o olho metálico de uma poça d’água (Rua pobre e pequenina, onde o mato cresce, rua monótona como o céu azul, rua monótona como a noite cheia de estrelas, rua dos muros caiados e dos jardins sem flores, rua dos pregões melancólicos e inúteis, rua da vida quotidiana...) CARVALHO, 1976 Nesse epigrama, vemos a tentativa do poeta de renovar sua produção abandonando a tradição. Ronald pela primeira vez introduz os versos livres e brancos no fazer poético e pratica um dos postulados de vanguarda modernista ao trabalhar a temática do cotidiano e do prosaico. Fala agora “da rua pobre e pequenina”, da “rua humilde” em que “o mato cresce”, das “couves dos quintais desertos”, da “poça d’água”. Trata, enfim, dos elementos reais do cotidiano. É patente em todo Epigramas irônicos e sentimentais a tentativa da renovação, mesmo Ronald não sendo efetivamente um revolucionário. Até o fim da sua produção poética, manteve certa postura tradicional, ainda quando tentando inovar. Seus epigramas são considerados epigramas mais pela forma que pela essência, já que conceitualmente um epigrama expressa de forma breve um pensamento satírico. Sendo breves, os epigramas do livro adequam-se à forma. O livro se pretende modernista e possuidor de epigramas irônicos e sentimentais. O que se verifica, contudo, é que Ronald não desenvolve a ironia e nem mesmo uma crítica e sátira relevantes. O poeta, a partir da forma do epigrama, desenvolveu um conteúdo lírico. Em “Canção da vida quotidiana”, Ronald canta a pobreza, o subúrbio. Já não se utiliza de fórmulas consagradas para tanto, rompendo assim com Poemas e sonetos. Mas o espaço continua refletindo uma melancolia do eu-lírico que observa essa rua e os elementos do cotidiano. O poeta inicia a obra em forma de epigrama, mas acaba resvalando ao longo dela para motivos clássicos imbuídos de forte carga afetiva. A rua adquire carga simbólica desse modo. “Brasil” (Toda a América) Nesta hora de sol puro palmas paradas pedras polidas claridades faíscas cintilações Eu ouço o canto enorme do Brasil! Eu ouço o tropel dos cavalos de Iguaçu correndo na ponta das rochas nuas, empinando-se no ar molhado, batendo com as patas de água na manhã de bolhas e pingos verdes; Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara e grave melodia, Amazonas, a melodia da tua onda lenta de óleo espesso, que se avoluma e se avoluma, lambe o barro das barrancas, morde raízes, puxa ilhas e empurra o oceano molhe como um touro picado de farpas, varas, galhos e folhagens; Eu ouço a terra a que estala no ventre quente do nordeste, a terra que ferve na planta do pé de bronze do cangaceiro, a terra que se esboroa e rola em surdas bolas pelas estradas de Juazeiro, e quebra-se em crostas secas, esturricadas no crato chato; Eu ouço o chiar das caatingas – trilos, pios, pipios, trinos, assobios, zumbidos, bicos que picam, bordões que ressoam retesos, tímpanos que vibram límpidos, papos que estufam, asas que zinem rezinem, cris-cris, cicios, cismas, cismas longas, langues – caatingas debaixo do céu! Eu ouço os arroios que riem, pulando na garupa dos dourados gulosos, mexendo com os bagres no limio das luras e das locas; Eu ouço as moendas espremendo canas, o glu-glu do mel escorrendo nas tachas, o tinir das tigelinhas nas seringueiras; e machados que disparam caminhos, e serras que toram troncos, e matilhas de “Corta-Vento”, “Rompe-Ferro”, “Faíscas” e “Tubarões” acuando suçuaranas e maçarocas, e mangues borbulhando na luz, e caitetus tatalando as queixadas para os jacarés que dormem no tijuco morno dos igapós... Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo, gritando, vociferando! Redes que se balançam, sereias que apitam. usinas que rangem, martelam, arfam, estridulam, ululam e roncam, tubos que explodem, guindastes que giram, rodas que batem, trilhos que trepidam, rumos de coxilhas e planaltos, campainhas relinchos, aboiados e mugidos, repiques de sinos, estouros de foguetes, Ouro Preto, Bahia, Congonhas, Sabará, vaias de Bolsas empinando números como papagaios, tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus, vozes de todas as raças que a maresia dos portos joga no sertão! Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil Todas as tuas conversas, pátria morena, correm pelo ar... a conversa dos fazendeiros nos cafezais, a conversa dos mineiros nas galerias de ouro, a conversa dos operários nos fornos de aço, a conversa dos garimpeiros, peneirando as bateias, a conversa dos coronéis nas varandas das roças... mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora de sol puro palmas paradas pedras polidas claridades brilhos faíscas cintilações é o canto dos teus braços, Brasil, de todos esses teus berços, onde dorme, com a boca escorrendo leite, moreno, confiante, o homem de amanhã! CARVALHO, 2001 Escolhemos para a análise o poema “Brasil”, tido pela crítica como um dos principais poemas de Toda a América, podendo ser considerado “como núcleo ideológico de todo o sistema de ideias que [o] inspirou” (CARVALHO, 1972, p. 273) Aqui o poeta, por meio dos versos livres e brancos, explora intensamente a sonoridade, a musicalidade e o cromatismo. Tais elementos já haviam sido consagrados por ele ao longo de toda a sua criação poética e são oriundos da influência simbolista, já alhures citada, que Ronald carrega por toda sua vida e obra. A sonoridade do poema se dá, sobretudo, no uso exaustivo dos fonemas /s/ e /p/. O ritmo é construído na oscilação do verso ora mais longo ora mais curto, criando um efeito de aumento ou diminuição rítmica. O poeta busca, por meio da sinestesia, apreender a realidade do país. Já em relação ao cromatismo, ele enaltece as cores e a luz que banham o Brasil. Esse é o elemento nacional essencial do poema. A luz que brilha, faísca e cintila sobre os espaços diversos, entre os vários rincões brasileiros que o eu-lírico alude ao longo das estrofes. É nessa particularidade que reside o caráter tipicamente modernista de “Brasil” e de Toda a América, justamente no canto ao país. Entretanto, esse canto volta-se para o Brasil, e não para a figura do índio primitivo tão apreciado e louvado pela primeira geração modernista. A esse ponto de divergência entre Ronald de Carvalho e os modernistas paulistas de vanguarda soma-se outro advento. Ronald busca escapar da tutela da tradição europeia. Busca, mais que isso, uma integração de seu nacionalismo particular com um sentimento de americanismo e assume, desse modo, uma postura pan-americanista. Considerações finais Ronald de Carvalho é considerado pela historiografia literária um poeta pertencente ao modernismo. Sua participação na revista modernista portuguesa Orpheu e na Semana de Arte Moderna de 1922 servem como amostras desse engajamento ao universo modernista. Contudo, buscamos em nosso trabalho demonstrar que Ronald, possuidor de formação clássica, não foi um revolucionário. Foi antes um homem que vivia em dois mundos – o arcaico/tradicional e o do novo/modernista. Tendo iniciado sua produção sob influência Simbolista e Penumbrista, chegando mesmo a escrever um segundo livro de poesia diretamente relacionado à escola Parnasianista, o poeta amadureceu em sua concepção estética ao longo do tempo, de acordo com as novas tendências modernistas que pululavam no meio literário desse primeiro quartel do século XX, sobretudo nas décadas de 1910 e 1920. Essas ideias modernistas que se desenvolviam na sua criação literária davam-se gradualmente. O poeta aos poucos introduzia as novidades em sua poesia, como o uso dos versos livres e brancos e a temática nacionalista e do cotidiano sem, contudo, abandonar inteiramente algumas características tradicionais que marcaram sua produção poética inicial. Com isso notamos que mesmo em sua fase “modernista”, Ronald nunca deixou de fazer uso de características, tais quais: grande sonoridade, sinestesia e cromatismo na obra. Também podemos dizer que ele nunca aderiu à liberdade gramatical do cânone modernista. Assim, fundiram-se no poeta a tradição e a novidade. É a partir dessa visão de mescla que buscamos ao longo do trabalho demonstrar que Ronald foi antes de tudo, moderno. Moderno no que concerne justamente a essa contradição do novo homem do início do século XX. O homem que vivia em duas realidades distintas. Foi Ronald de Carvalho um poeta moderno e anti-moderno. Referências BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 46.ed., revista e aumentada. São Paulo: Cultrix, 2006. CARVALHO, J. Ronald de Carvalho. In: AZEVEDO FILHO, L.A. de. Poetas do modernismo: antologia crítica. Brasília: Instituto Nacional do Livro (MEC), 1972 (vol. II). CARVALHO, R. de. O espelho de Ariel e poemas escolhidos. Rio de Janeiro/Brasília: Nova Aguilar/INL (MEC), 1976. CARVALHO, R. de. Pequena história da literatura brasileira. 8.ed. 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