“Tudo o que gosto é ilegal, imoral ou engorda” Maria Cristina da Cunha Antunes Flávia Lana Garcia de Oliveira Introdução: O campo freudiano de orientação lacaniana trabalha segundo o axioma de que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização. Esta afirmativa de Miller se estabelece no rastro das tradições freudiana e lacaniana. Freud apresenta esta tese em textos como “Totem e tabu” (FREUD, 1996b[1913]), “Moral sexual civilizada e doença nervosa” (FREUD, 1908) ou ainda em “Mal estar na civilização” (FREUD, 1996d[1930]). Nestes artigos, Freud explicita de diferentes formas que o funcionamento subjetivo em jogo na modernidade se caracteriza pelo antagonismo entre pulsão e civilização. A renúncia ao gozo incestuoso, cuja origem é remontada por Freud (1996b[1913]) ao mito do assassinato do pai primevo; a inibição da finalidade pulsional com o abandono do investimento libidinal dos objetos edipianos em prol dos objetos disponíveis na cultura (FREUD, 1996a[1908]); e a consideração do mal-estar intrínseco à civilização relativo à produção de um excesso pelo supereu como resíduo da pulsão de morte no interior do próprio psiquismo (FREUD, 1996d[1930]) são os mecanismos destacados por Freud que possibilitam a organização da sociedade moderna. A lei representada pelo pai barra a satisfação autoerótica da sexualidade infantil, transmitindo a promessa de satisfação na esfera da partilha sexual adulta. A via do sintoma clássico, neurótico, é a via da moral sexual civilizada, fruto da renúncia à sexualidade infantil. As diferenças entre as gerações e entre os sexos produzem efeito de regulação da pulsão, do corpo e do gozo pela referência fálica, permitindo a inserção do sujeito nesta modalidade de laço social. Lacan, em Ciência e verdade (1966), aponta o corte que a ciência moderna produz entre o mundo antigo e a modernidade. Sustenta que este corte tem como conseqüência uma mutação subjetiva, denominada por ele de sujeito da ciência. Desse modo, Lacan estabelece uma equivalência entre sujeito da ciência, sujeito moderno e o sujeito do inconsciente. Com essa articulação propõe o axioma fundamental da orientação lacaniana: o sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência. A descoberta freudiana do inconsciente só pôde acontecer num contexto sócio-histórico caracterizado pelo advento da ciência moderna. Esta promove a expulsão de Deus do mundo, recusando a autoridade religiosa e o conhecimento fundado na fé. Promove o esvaziamento dos significados coletivos que organizavam o funcionamento social em torno da religião e de suas práticas ritualísticas. Institui, em seu lugar, a produção do conhecimento a partir da razão, cujo operador foi a lógica matemática. A psicanálise opera, por excelência, sobre essa modalidade específica de constituição subjetiva, isto é, do sujeito moderno que se supõe despido dos sentidos tradicionais e míticos aportados pelo desejo do Outro (do pai). No contexto moderno, o sujeito é despojado de todas as qualidades subjetivas por meio do recalque da dívida simbólica com a tradição e a autoridade. Assim, da fé divina medieval, o homem moderno herda a internalização da crença inconsciente no pai. Lacan (1998[1966]) assinala que a psicanálise reintroduz o Nome-do-Pai na consideração científica, demonstrando que o campo psicanalítico recupera essa dimensão subjetiva repelida pelo individualismo moderno. A psicanálise atenta precisamente para este sujeito dividido entre as exigências da civilização e o gozo autoerótico que, embora recalcado, não cessa de retornar sintomaticamente. Portanto, a psicanálise surge a partir desse contexto da civilização que institui uma profunda modificação na relação dos homens com o gozo e inaugura uma nova posição subjetiva. Até a Idade Média, o espaço coletivo era indiferenciado e as vinculações entre trabalho e família eram superpostas. A partir da era moderna, uma cisão é estabelecida entre a esfera pública e a esfera privada da existência, de modo que Estado e família não comungam mais o mesmo espaço. Institui-se a família nuclear de base patriarcal, fundada na tradição e na hierarquia geracional. Com isso, surgem novos saberes que destacam a distinção da infância em relação à idade adulta e enfatizam a participação dos pais na socialização primária e na constituição infantil (COELHO DOS SANTOS, 2001). Sob a orientação de Miller, esta tradição é renovada com a noção de novos sintomas. Com este termo, o campo freudiano busca localizar e formalizar os efeitos sintomáticos dos sujeitos na civilização contemporânea, estruturada sob a égide do avanço do capitalismo de consumo. Nesta configuração, a relação dos sujeitos aos ideais – que estão referidos ao campo do recalque e ao do imperativo de renúncia ao gozo – submerge sob o imperativo de gozo com os objetos. Os novos sintomas dizem respeito, portanto, ao campo dos vícios, das adições, em que a relação de gozo a um objeto autoerótico se mostra a céu aberto. São as toxicomanias, obesidades, anorexias, bulimias. O sintoma clássico, freudiano, é uma formação do inconsciente. Isso significa dizer que ele é uma formação de compromisso entre os ideais e o gozo da sexualidade infantil, que aparece sintomaticamente de maneira disfarçada e deformada. Desse modo, tratado pelo inconsciente, esse gozo apresenta-se para o eu como irreconhecível e produz uma experiência de sofrimento. É por causa do sofrimento e da sua divisão que o sujeito, então, procura um analista. Já os novos sintomas não são uma formação do inconsciente, mas sim soluções que localizam o gozo para um sujeito. Nessas configurações, o sujeito está eclipsado, elidido, comparecendo como objeto do circuito pulsional, arrastado por um imperativo de gozo. O Núcleo Sephora de Pesquisa do Moderno e do Contemporâneo trabalha alinhado a esta orientação. Sob o âmbito do ISEPOL, surgiu o projeto de psicanálise aplicada ao tratamento da obesidade, com o objetivo de investigar a articulação entre obesidade e sintomas contemporâneos e delinear a potência do dispositivo analítico no tratamento desses chamados novos sintomas. Para os nossos propósitos no momento, interessa-nos ressaltar os seguintes pontos: 1. A obesidade não é um fenômeno idêntico em todos os sujeitos. Há, portanto, obesidades, cuja função psíquica desempenhada para o sujeito varia na particularidade do caso a caso. 2. O fenômeno da obesidade precisa ser investigado, em cada caso, à luz do processo de sexuação, ou seja, a partir dos operadores do complexo de Édipo e do complexo de castração. Sob esta orientação, podemos definir, de saída, que as obesidades das mulheres não são idênticas às dos homens. Conforme nos alertou Freud (1996c[1923]), embora as posições subjetivas do homem e da mulher surjam no rastro da alternativa entre ter e não ter o pênis em jogo no complexo de castração, as consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos incidirão de maneira diferenciada nos destinos da sexuação masculina e feminina. 3. Nosso estudo sobre as obesidades femininas localizam o seguinte ponto comum; nas mulheres obesas cônicas, os seus corpos estão fora do sexo. Ou seja, o corpo, no fenômeno da obesidade. Isso exige um exaustivo trabalho preliminar de investigação no sentido de localizar se esse corpo fora do sexo é efeito do recalque, caracterizando uma neurose. Neste caso, a obesidade pode compreendida como uma resposta subjetiva que implica o não consentimento da mulher ao lugar de objeto causa do desejo de um homem, já que, por meio do engordamento abdicam o semblante de mulher desejável. Ou então a obesidade pode revelar-se uma neoconversão, e, portanto, uma psicose não-desencadeada. Neste último caso, estaríamos no âmbito das psicoses ordinárias, isto é, segundo Coelho dos Santos e Antunes (2006), no campo dos novos sintomas conversivos da contemporaneidade; Neles, não é possível rastrear sua história e significação inconsciente e a obesidade parece se configurar como uma solução a serviço de impedir a desorganização subjetiva. Neste encontro, apresentaremos três casos de mulheres obesas crônicas. O ponto em comum entre elas é justamente a evidência de corpos que estão fora do sexo. Centraremos nossa apresentação no processo laborioso dessa investigação preliminar e a construção de uma hipótese, em cada caso, que permita definir se a obesidade em questão é um novo sintoma ou se está articulada, e de que maneira, ao campo dos sintomas clássicos. “Tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda” Maria tem 30 anos, é obesa crônica (130 Kg). Mora com os pais. Terminou um curso superior, mas não trabalha. Praticamente, não sai de casa. Vivia com os pais numa cidade do interior, onde passou a infância e a adolescência. Sua família é de classe média. O pai tem curso superior e trabalha como autônomo. A mãe é dona de casa. Maria não tem relacionamentos amorosos. Ela me procura porque estava muito gorda e não agüentava mais isso. A maioria das obesas que recebemos são encaminhadas por um médico. Maria, entretanto, procura primeiramente uma análise, dizendo que sabe que seu problema é psíquico. Na ocasião, seu corpo está abandonado. Apesar de estar muito obesa e apresentar taxas metabólicas perigosamente alteradas, não faz qualquer tratamento clínico. Sequer possui um médico a quem recorrer. Primeiro tempo: o Édipo. A partir da narrativa da sua história, localizo a posição de Maria na cena edípica. Ela ocupa o lugar da outra mulher, a preferida do seu pai, que saía à rua e a levava para passear. Para ela, ele fazia isso com ela em detrimento da sua mãe. Sua fantasia é a de um pai todo poderoso, que sempre tomará conta dela e da mãe. Maria vive até hoje em casa, sendo sustentada pelo pai. Para ela, ele sempre coloca os filhos em primeiro lugar. Como efeito dessa fantasia, Maria se apresenta como uma débil. Não sabe de nada, me pede informações banais para a idade dela. Não vai sozinha a nenhum lugar, porque diz que não sabe andar no Rio de Janeiro. Solicita sempre a companhia do pai e da mãe. Só vai sozinha à análise. Na posição de analista, transferencialmente, não acredito nessa debilidade. Até respondo às suas perguntas, mas afirmo que sei que ela não é débil. Não se trata de uma incapacidade cognitiva, mas de uma decisão: ela não quer saber. Nesse momento, as interpretações giram no sentido de localizá-la na cena edípica, entre os pais. Ela faz parte da vida do casal e, como tal, seu corpo está entregue a esse gozo. Por outro lado, faço intervenções no sentido de limitar a fantasia desse pai todo poderoso, que tudo dá, é eterno, não morre. Introduzo o real como impossível pela via da sucessão geracional e da diferença sexual. Maria fica embaraçada com esse impossível: para ela tudo se passa no campo da proibição. Segundo tempo: O corpo entra em cena. A subjetivação da castração do pai, pela via do sexo e da morte tem efeitos sobre o corpo de Maria. Este entra em cena na análise. Antes, adormecido, mudo, indiferenciado entre os pais, esse corpo começa a se manifestar, a doer e a adoecer. É um momento de seguidas doenças, vários sintomas no corpo, até a fratura de um braço. Essa fratura é alçada por mim ao campo da metáfora, como sendo a quebra, a perda desse primeiro corpo que incluía seus pais. Seu corpo. Seu corpo, vivo, dói e a convoca a existir nele. Há uma exigência de trabalho, nesse ponto, para Maria: subjetivar a dor que agora explode no seu corpo e tratar dele. Terceiro tempo: a obesidade e sua relação com a proibição. Falando de sua alimentação, extraio a seguinte frase de Maria: eu como escondido com o meu pai. Entendo esse enunciado como uma tradução na linguagem oral do gozo incestuoso, edípico, que Maria usufrui. Essa tradução regressiva permite a Maria recalcar – não saber nada – do gozo que ela usufrui quando come. Ela não come qualquer coisa. Ela não goza da comida. Ela goza da comida que lhe é proibida. Seu gosto é burlar, transgredir. Ela gosta do que é proibido. Uma série de objetos, marcados para ela pela transgressão, desfilam na sua narrativa: a bebida, o cigarro, algumas drogas. Elevando o comer à dimensão da satisfação sexual, quantifico esse excesso: o seu corpo exibe quarenta quilos de gozo incestuoso. Como resposta a essa interpretação, Maria cria um mapa da sua perda de peso. Deixa esse mapa no meu consultório e me pede que registre, semanalmente, a sua perda de peso. Com a medida criada em análise – quilo=gozo - Maria perdeu seis quilos de janeiro até hoje. De acordo com a hipótese que me orienta neste caso, considero que a perda gradativa de peso é o índice do seu consentimento em tentar se privar do gozo incestuoso que a parasita e que seu corpo exibe. Pela primeira vez, ela admite que tem vergonha do seu corpo obeso. Referências bibliográficas: COELHO DOS SANTOS, Tania. Quem precisa de análise hoje?: o discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. COELHO DOS SANTOS, Tania. e ANTUNES, M.C. da C. Se todo gordo é feliz, a obesidade é um sintoma ou uma solução? In: Bastos, A. (org.). Psicanalisar hoje. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006. FREUD, Sigmund. Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna. Rio de Janeiro: Imago, 1996a[1908]. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9). FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1996b[1913]. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13). FREUD, Sigmund. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1996c[1923]. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19). FREUD, Sigmund. Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996d[1930]. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21). LACAN, Jacques. A ciência e a verdade. In: Escritos: Rio de Janeiro: Zahar, 1998[1966].