Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) O tempo de Goethe: perspectiva histórica e modernidade no Fausto Daniel Gonçalves da Silva* Transmutar o temor em esperança – farsa ou feito do poeta. Elias Canetti. Sobre os escritores, 2009. Desvelar a escrita do tempo no Fausto e entender como o poeta respondeu às incertezas e às angústias de uma época em que conjunturas históricas ensejaram a reestruturação da própria Arte, o objetivo deste trabalho. Para isso, propõe-se partir de dois pressupostos. Em primeiro lugar, a certeza de que a busca por dimensões históricas e sociais em uma obra de arte literária, requisitada por uma pesquisa historiográfica, não permite desconsiderar sua peculiaridade enquanto fenômeno literário. Tendo em vista tal evidência, será feito um esforço no sentido de se precaver tanto de um reducionismo despropositado – uma análise que almeje, única e exclusivamente, a busca por um referencial na realidade –, quanto de uma interpretação que entenda esta produção artístico-literária como autossuficiente e fechada em si mesma, desprovendo-a de qualquer enraizamento histórico. Por sua vez – e um segundo pressuposto –, é importante que se tenha em mente o significado da consolidação e da hegemonia do pensamento histórico no século XIX. Pensar historicamente passou a ser fator estruturante da existência humana e o desenvolvimento desta consciência histórica deve ser visto como elementar para o surgimento de uma perspectivação histórica em todas as esferas da produção intelectual, como se pode inferir do destaque obtido pela pintura e pelo romance históricos na prática artística do período (SCHORSKE, 2000: 15). Isso posto, explica-se o interesse pelo Fausto, obra máxima do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), no fato de a sua escritura ter se dado entre o final do século XVIII e o início do seguinte – período em que se vislumbrou uma nova experiência do tempo – e por se apresentar enquanto um cânone literário, recebendo reconhecimento imediato e transformando-se, ao longo dos anos, em objeto de estudo de pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento1. *Graduando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 1 Esta assertiva talvez se justifique pelo fato, evidenciado por Walter Benjamin, de o Fausto II significar “o círculo imensurável de seus contínuos estudos [de Goethe] de filosofia da natureza, de mitologia, literatura, arte, 1 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) Fausto como um “arquétipo” da modernidade Criei plano após plano então na mente, Por conquistar o gozo soberano De dominar, eu, o orgulhoso oceano, De ao lençol áqueo impor nova barreira, E ao longe, em si, repelir-lhe a fronteira. Goethe. Fausto II, 1832. As variações interpretativas em relação a este livro de Goethe dão uma dimensão da grandeza e da importância alcançadas pelo Fausto na cultura ocidental. No campo dos estudos literários, a obra é frequentemente revisitada, chegando-se, mesmo, a conclusões que tendem a aclarar posicionamentos ideológicos do autor, associando-os à gênese de eventos futuros que marcariam a história alemã. Na contramão destas interpretações, serão requisitados dois estudiosos que propuseram a associação desta obra a uma ideia de modernidade nascente. Isso servirá, então, como pano de fundo para a proposição de questões que redirecionarão o problema para o que se entende pertinente na associação do Fausto à modernidade. Essa associação, nos trabalhos de Marshall Berman e Michael Jaeger, pode ser entendida como o alicerce para todo o desenvolvimento argumentativo. No livro de Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, no capítulo em que interpreta a obra como uma tragédia do desenvolvimento, típica da modernidade, o autor chama a atenção para o fato de o Fausto goethiano ultrapassar todos os outros “em riqueza e profundidade de perspectiva histórica, em imaginação moral, em inteligência política, em sensibilidade e perspectiva psicológica” (BERMAN, 2010: 51-52), permitindo novo encaminhamento para o autoconhecimento moderno. Dividindo sua análise em três partes, caracterizadas como as três metamorfoses do personagem – o sonhador, o amador e o fomentador –, Berman abarca a obra em sua totalidade, evidenciando a mudança e a passagem de um “microcosmo”2 para um “macrocosmo”, de um mundo inteiramente arraigado na tradição para um mundo nitidamente moderno: filologia, também de sua antiga ocupação com mineração, finanças, atividade teatral, maçonaria e diplomacia” (BENJAMIN, 2009: 170). 2 Os comentadores do Fausto geralmente caracterizam a primeira parte da tragédia como o “pequeno mundo” do personagem, pelo desenvolvimento do enredo se limitar a cenas ocorridas no interior da sociedade tradicional de uma cidade-estado, em oposição à segunda parte, o “grande mundo”, quando há uma ampliação das experiências de Fausto, também no concernente ao deslocamento geográfico. 2 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) O Fausto começa num período cujo pensamento e sensibilidade os leitores do século XIX reconhecem imediatamente como modernos, mas cujas condições materiais e sociais são ainda medievais; a obra termina em meio às conturbações espirituais e materiais de uma Revolução Industrial (...) Na versão goethiana do tema do Fausto, o sujeito e objeto de transformação não é apenas o herói, mas o mundo inteiro. O Fausto de Goethe expressa e dramatiza o processo pelo qual, no final do século XVIII e início do seguinte, um sistema mundial especificamente moderno vem à luz (BERMAN, 2010: 52). Desconsiderando a perspectiva analítica nitidamente marxista em relação à obra do poeta de Weimar, o interessante a ser destacado no trabalho de Berman é como o autor evidencia uma cisão no personagem – entre um Fausto intelectual, preso em seu quarto gótico, e um Fausto que tem maior necessidade de ampliação das experiências humanas –, cisão esta que caracterizaria a sociedade moderna, tornando-a, juntamente com o herói, “sujeito e objeto de transformação”. Essa luta entre o mundo tradicional e o moderno – evidenciada interiormente em Fausto e que se expandiria para a sociedade inteira – ou, num primeiro momento, a inconstância das fronteiras delimitantes destes dois universos, possibilita evidenciar o surgimento de sínteses, a saber, a manutenção de um Fausto intelectual em um mundo que lhe era repulsivo e/ou a emergência da destruição como força de poder criativo. A questão em torno do pacto ou, como o autor interpreta, do acordo com Mefistófeles, funcionaria como uma maneira de tornar possível a existência desses paradoxos, típicos da modernidade. A interpretação do Fausto como uma tragédia característica da modernidade ganha novos contornos nos estudos de Michael Jaeger. Partindo da análise dos versos mais famosos da obra, os que consolidam o pacto diabólico entre o doutor e Mefistófeles, o autor associa a efetuação do acordo à necessidade da eterna negação do tempo e da realidade presentes por Fausto, uma vez que o deter-se momentâneo e a inação significariam a sua submissão a Mefistófeles. A negação do tempo presente e a busca incessante pelo ainda não existente seriam representativos dessa modernidade inaugurada no entardecer do século XVIII. Como demonstrado por Jaeger, essa proposição é passível de ser corroborada por dois eventos significativos do período: o primeiro, no campo político – a Revolução Francesa –, ensejou o desejo pelo novo e pela negação de todo o sistema político vigente; o segundo, no econômico, exerceria sobre o sistema de produção uma necessidade constante de renovação, uma vez que 3 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) a Revolução Industrial trouxe consigo o aprimoramento de técnicas que possibilitaram, entre outros resultados, o desenvolvimento do consumo: O espírito desse Fausto-Mefisto, espírito que sempre nega, é a imagem literária de Goethe para o pensamento processual que caracteriza a Modernidade, o qual nega todo o existente com vistas ao novo, o ainda-não-existente, o melhor, e tão logo este surja e esteja dado, é por seu turno condenado como insuficiente em nome de um inatingível estado de felicidade localizado sempre no futuro, de modo a logo ser obrigado a ‘perecer’. Esse processo dinâmico da revolução política e econômica, que reúne em si os momentos da negação e inovação, caminha ad infinitum (JAEGER, 2007: 312). Direcionando seu estudo para a análise das metrópoles contemporâneas e para a consolidação da utópica sociedade fáustica, o autor explana e atualiza a pergunta de Margarida, centrada no questionamento da real necessidade desta eterna mudança almejada por Fausto e da sua consequente ruptura com a tradição, que seria o alicerce de toda estabilidade. No embate entre o questionamento de Margarida e o propósito desenvolvimentista de Fausto, entre tradição e modernidade, Jaeger encontra argumentos que justificariam o posicionamento de Goethe frente a este anseio por uma eterna mudança, a este ideal dos tempos modernos: (...) pois a concreta resposta goethiana ao moderno furor de negação, colonização e movimento foi a própria Arte, e em especial uma arte inteiramente alheia ao ideal moderno de dinamicidade e progresso, mas que, em vez disso, reverencia o ideal do Classicismo, precisamente aquele momento do deter-se contemplativo-reflexivo, ou mesmo espiritual em face do Belo, o qual Fausto amaldiçoa em sua angústia mórbida (JAEGER, 2007: 318). Pode-se observar nos trabalhos dos dois autores o propósito de distinguir no Fausto um processo desenvolvimentista moderno, que teve origem, como anteriormente explicitado, na Europa do final do século XVIII. Entretanto, as duas análises da obra tendem a considerar os problemas e conflitos das sociedades do século XX, associando-os ao espírito empreendedor de Fausto que é, geralmente, representado pelas transformações tecnológicas e, especificamente, pelos avanços arquitetônicos. A apropriação do personagem como um “arquétipo” da modernidade pode ser demonstrada através da passagem que encerra o texto de Berman, e que é representativa de uma série de trabalhos que seguem esta mesma perspectiva analítica: 4 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) Homens e mulheres modernos, em busca de autoconhecimento, podem perfeitamente encontrar um ponto de partida em Goethe, que nos deu com o Fausto nossa primeira tragédia do desenvolvimento. É uma tragédia que ninguém deseja enfrentar – sejam países avançados ou atrasados, de ideologia capitalista ou socialista –, mas que todos continuam a protagonizar. As perspectivas e visões de Goethe nos ajudam a ver como a mais completa e profunda crítica à modernidade pode partir exatamente daqueles que de modo mais entusiasmado adotam o espírito de aventura na modernidade. Todavia, se Fausto é uma crítica, é também um desafio – ao nosso mundo, ainda mais que ao mundo de Goethe – no sentido de imaginarmos e criarmos novas formas de modernidade, em que o homem não existirá em função do desenvolvimento, mas este, sim, em função do homem. O interminável canteiro de obras de Fausto é o chão vibrante, porém inseguro, sobre o qual devemos balizar e construir nossas vidas (BERMAN, 2010: 107-108). A sombra do tempo nas entrelinhas do Fausto Eternidade é palavra encostada em Deus. Manoel de Barros. Tratado geral das grandezas do ínfimo, 2001. Os trabalhos de Marshall Berman e Michael Jaeger apresentam Fausto como um representante alegórico do homem moderno, aprisionado a um ideal desenvolvimentista por eles relacionado, sobretudo, ao processo de produção. Os autores lançam mão da análise de uma obra literária buscando nela indícios que evidenciem transformações político-econômicas e, a partir de suas constatações, embasam o estudo empírico de suas sociedades coetâneas. Encontram na representação literária uma realidade representada, não problematizando, porém, as interfaces desta representação. Ainda que seja possível discordar desses autores em vários pontos, não se deseja uma oposição completa a Berman e a Jaeger. Em seus trabalhos, existe a exposição de um embate entre mudança e continuidade, observado na leitura do Fausto, que vem ao encontro de conclusões aqui apresentadas. Entretanto, estas terão como ponto de partida outro enfoque, distinto do daqueles autores. O que se propõe é pensar a modernidade no Fausto de um ponto de vista diferente, relacionando-a à concepção de uma modernidade estética. Para isso, é importante considerar, de antemão, a consolidação do pensamento histórico no início do Oitocentos, como anteriormente ressaltado. Tomando-a por centro norteador da questão, esta ideia permite 5 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) compreender a historicização da arte no período, uma vez que deixa de ser regida pelas regras normatizadoras do universalismo clássico. Acredita-se, então, na possibilidade de apreensão de uma nova experiência do tempo por meio desta mudança de paradigma estético, apoiada no lidar cotidiano do homem com as contingências da vida prática. Sendo assim, ao contrário de tentar encontrar no Fausto elementos de um referencial real-concreto – projetos de colonização e expansionismo, por exemplo – através de uma relação direta entre obra e realidade, o que se deseja é desvelar a sutileza desta nova temporalização presente na escrita do Fausto. Fica explicitado, num primeiro momento, a oposição entre Romantismo e Classicismo. Embora seja problemática a análise de uma obra a partir de conceitos preestabelecidos – pois se chega, também, a conclusões preexistentes –, a busca por dimensões românticas e clássicas no Fausto mostra-se pertinente em alguns pontos, como no que diz respeito ao problema proposto neste estudo, em último resumo, pensar uma nova temporalidade nesta obra de Goethe através de proposições estéticas ensejadas por conjunturas históricas. Sendo assim, é importante ratificar que um elemento fundamental da visão de mundo romântica foi, justamente, uma relação diferenciada do homem com a história. Como demonstrado por Jacob Guinsburg, “o Romantismo é um fato histórico e, mais do que isso, é o fato histórico que assinala, na história da consciência humana, a relevância da consciência histórica” (GUINSBURG, 2002: 13-21). Esta última categoria, consciência histórica, é fundamental para a sustentação da hipótese delineada, pois a incerteza sobre sua existência entre os alemães do XIX implicaria, no Fausto, a não superação de um sistema literário precedente, isto é, fundamentado numa noção de tempo cíclico, que delimita as condições humanas do agir e universaliza os parâmetros artísticos. Esta questão será brevemente analisada em diálogo com dois autores, Erich Auerbach e Mikhail Bakhtin. Seu entendimento permitirá, num primeiro momento, perceber como a historicização da arte se alicerçava na compreensão que então os homens passaram a ter de seu papel enquanto agentes históricos, reitera-se, a partir de uma nova experiência do tempo, possibilitando, em seguida, que se desfaça o nó do paradoxo criado pelo retorno, no Fausto, a elementos do classicismo. No capítulo de Mimesis intitulado “O músico Miller”, Auerbach investiga as causas que impediram a plena formação do realismo moderno entre os escritores alemães, apesar da existência de pressuposições estéticas favoráveis, entre elas, o historicismo. O elemento 6 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) principal apresentado pelo autor é o fato de o contexto histórico alemão, politicamente fragmentado, ser mais favorável à especulação que à apreensão do prático e do real. Isso pode ser entendido em oposição ao caso francês, onde a unidade nacional fez com que as transformações sócio-políticas, decorrentes do movimento revolucionário, fossem mais intensamente sentidas, possibilitando, na literatura, uma modificação da forma de representação da realidade. No início do capítulo, Auerbach analisa um trecho da obra de Friedrich Schiller, Luísa Miller, demonstrando que, embora houvesse a tentativa de aprofundamento em questões sócio-políticas – um dos fatores característicos do realismo moderno, para o autor –, essa tentativa foi desenvolvida apenas superficialmente, não sendo um “depoimento artístico da realidade da época”. Em seguida, são feitas algumas considerações sobre Goethe, que se mostram mais pertinentes, aqui, para a análise do problema em questão. À semelhança de outros autores, Auerbach discute o posicionamento de Goethe em relação à Revolução Francesa, argumentando que o conhecimento de sua ideologia política é de fundamental importância para a análise de sua produção literária. Tal importância, entretanto, dá-se não por permitir observar sua atitude conservadora, aristocrática e antirevolucionária frente aos eventos de 1789, mas por “esclarecer de que forma foi impedido por sua ideologia de apreender os processos revolucionários com o seu método genético-realistasensorial, que lhe era habitual em outros casos” (AUERBACH, 2004: 339), levando-o a se refugiar em um moralismo artístico – que contribuiria para a fomentação dos ideais clássicos do autor – afastando-o, também, em sua produção literária, das forças dinâmicas em ação. A conclusão de Auerbach é totalmente satisfatória dentro de sua abordagem literárioanalítica. Ao se pensar, com o autor, a história enquanto continuidade, a estratificação semântica do seu conceito de realismo possibilita sua associação, no século XIX, à representação de mudanças sócio-políticas. Entretanto, o grande problema do filólogo foi, justamente, ter compreendido a literatura a partir de um caráter evolutivo. Essa ideia de uma literatura em progresso não lhe permitia relacionar a existência de uma consciência histórica aos alemães do Oitocentos, uma vez que não representariam literariamente a dinâmica social e as transformações dela advindas, o que só seria possível, segundo Auerbach, com os escritores realistas franceses do século XIX. Tomando por base o trabalho de Mikhail Bakhtin sobre o “romance de formação” (BAKHTIN, 2003: 203-258), é possível encontrar um ponto seguro para uma oposição ao 7 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) filólogo alemão. Embora o autor se dedique ao gênero romance, observa-se, por meio de sua análise da relação tempo-espaço nas obras de Goethe, a perspicácia histórica do poeta e sua ideia de tempo que rearranja a relação entre passado, presente e futuro. Mais do que isso, a visão histórica de Goethe lhe deu margem para a representação da dinamicidade tempoespacial, ao conceber tanto o homem quanto o mundo em permanente transformação. A assimilação de um tempo histórico real pela literatura é indiscutível no Wilhelm Meister, romance de Goethe. Seu herói, e o mundo pelo qual transita, passam por um processo de educação e modificação que seria inconcebível, ao menos nesta dimensão, pelos autores precedentes. Isso evidencia como o ambiente alemão – ou numa visão mais modesta, os horizontes de Jena e Weimar – já propiciava uma nova experiência do tempo pelo homem que era, inclusive, assimilada literariamente. Com isso, chega-se ao ponto final da discussão. Partindo do conceito de cronotopo em Bakhtin, relação indissociável entre tempo e espaço na literatura, o entendimento de que essa relação se apresentava dinâmica e saturada de história em Goethe permite a compreensão, primeiro, do fato de sua produção literária já se sustentar na consciência de uma historicidade que rompia com um tempo cíclico, conformador da ação humana; segundo, que essa historicização possibilitou a transformação do paradigma artístico, uma vez que não mais se podia pensar o homem e a sociedade a partir de um ponto de vista estático. Essa transformação é a base de uma estética moderna. Sendo assim, menos do que associar a obra à determinada corrente literária, o que se deseja é demonstrar como a perspectivação histórica do período alicerçou movimentos literários que se fundamentavam em uma noção de tempo diferenciada. Com isso, a busca por dimensões românticas no Fausto se explicaria a partir deste ponto de vista, pois o Romantismo, sobretudo em sua primeira geração, fez ruir o “edifício do universalismo clássico”3, juntamente com sua normatização artística. Entretanto, por outro lado, apresenta-se um problema: concomitante a essa dimensão romântica, não seria a existência de ideais clássicos no Fausto um paradoxo, uma vez que suporia, para o período, uma concepção de tempo estático, inconcebível numa sociedade consciente de seu lugar único na história? A peculiaridade do Classicismo de Weimar pode ser entendida, justamente, neste ponto. Ao contrário de um retorno a elementos clássicos que vislumbrasse a possibilidade, já inexistente, de uma arte regida por conceitos atemporais – como no caso do Classicismo 3 O termo é de Luis Costa Lima (LIMA, 2007: 83-164). 8 Luna Halabi Belchior; Luisa Rauter Pereira; Sérgio Ricardo da Mata (orgs) Anais do 7º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha. Ouro Preto: EdUFOP, 2013. (ISBN: 978-85-288-0326-6) francês, criticado já pelo Sturm und Drang –, o que Goethe desejava, em diálogo com Schiller, era encontrar na tradição um ideal artístico que redirecionasse a estética moderna, dando-lhe bases sólidas para sua afirmação4. Este retorno a uma tradição tendo em vista uma arte moderna – que, afastada da estabilidade clássica atemporal, apresentasse uma proposta estética garantidora, mesmo, de uma superioridade sobre os antigos – era a busca artística de Goethe. A partir desta proposição se entende a posterior aversão do poeta aos românticos, dos quais se afastou devido à oposição ao classicismo sem uma problematização do “fazer artístico” que afastasse a própria Arte de um perigo de decadência – embora lhes fosse devedor, sobretudo por terem ampliando o horizonte histórico. Entende-se com isso, também, que a luta entre tradição e modernidade, a inconstância entre o limite da estabilidade e da dinamicidade, o retorno artístico a um ideal clássico tendo em vista as condições de possibilidade de uma arte moderna, enfim, o ponto de choque entre continuidade e ruptura é a fronteira na qual a história se faz e é o tempo desvelado nas entrelinhas do Fausto. O poeta, em relação com as proposições artísticas de um passado reconfortante, mas insustentável, e com as de um futuro já vislumbrado, mas ainda não alcançado, consegue, por meio da Arte, mais do que responder ao tempo. Realizá-lo. Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. 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