362 Que fronteiras e que pontes estabelecem entre países? Percebe-se que os imigrantes marroquinos vivem desintegrados das sociedades dos países de origem em consequência da forma como nos entendem e da forma como os entendemos. Padecem, regra geral, de uma espécie de dupla exclusão social: A de serem estrangeiros num país em que a população não os reconhece de igual forma, com a mesma empatia que reconhece os de outras nacionalidades, de não se fazerem entender, de estarem limitados no espaço social de penetração por via de um conjunto de circunstâncias, nomeadamente pela ocupação dominante que desenvolvem. A de serem fechados à sociedade de acolhimento em consequência da situação de ilegalidade em que muitos se encontram e, sobretudo, do distanciamento cultural e religioso face aos nacionais. Pelo exemplo dos marroquinos – que obviamente se apresentam de forma singular em diversos domínios, com maior visibilidade, talvez, para o da actividade da venda ambulante – sabemos melhor como vivem os imigrantes em diversos países da Europa, onde, cada vez mais, urge acolhê-los, pela sua importância para a manutenção do equilíbrio social e demográfico do velho continente e pela necessidade de, na cada vez maior assunção multicultural das sociedades, se esbater a exclusão e os conflitos étnicos. Rui Maia A minha verdadeira imagem está nos livros que escrevi Isabel Ponce de Leão (Coord.) Os dois volumes do livro supracitado, que congregam as comunicações apresentadas no congresso comemorativo do centenário do nascimento de Torga e se pretendem documento vivo (para memória futura), não se compadecem com uma leitura à vol d’oiseau, antes reclamam uma leitura ecfrástica (e, concomitantemente, empática). E não só pela representatividade dos participantes - ampla plêiade de estudiosos (51 concretamente) que com um objectivo claramente definido se debruçaram sobre tão poliédrica obra -, mas também, e precipuamente, pela dissecção (quase ecdótica) a que a mesma foi submetida. Motivo por que as palavras de Eugénio Lisboa alusivas ao congresso (“Cobrindo o amplo território do percurso torguiano […] ficará como um testemunho de alto e variado interesse a juntar-se à já vasta bibliografia que tem sido dedicada ao autor”) se aplicam, na íntegra, ao livro dele emanente. Assim é, de facto, e nada diferente seria expectável das mais de 850 páginas (pelas quais os dois volumes se espraiam) onde estão coligidas e concatenadas as comunicações apresentadas. E que graças à profundidade intrínseca de cada um dos múltiplos ângulos de abordagem por que a obra foi perspectivada em tão profícuo espaço de reflexão permitiram que em torno de um tema aglutinador se entretecesse a maior variedade de pontos de vista provindos dos mais diversos campos científicos e socioprofissionais (e recantos: Brasil, Holanda, Bélgica, França, Reino Unido e Espanha). O que não pode deixar de ter implicações e repercussões óbvias. Mormente, e desde logo, a inexequibilidade de uma referência individual, et pour cause, o imperativo de proceder a uma triagem tendente a seleccionar umas quantas que pela especificidade dos tópicos disquisicionados sejam paradigmáticas, sem menosprezo da prodigalidade e proficuidade das restantes. Comecemos então por Salvato Trigo. Depois de reconduzir o homem, “o cidadão Adolfo Rocha” à condição (e ao destino) do comum dos mortais, (“passou”), eleva à imortalidade “o poeta, o escritor, Miguel Torga”, que “ficou para honra de uma literatura tão minguante de vozes de lucidez ética e estética e tão carente de tão apurado culto da língua, em que inventariou a sua, a nossa identidade, ibericamente portuguesa”. A mesma certeza de imortalidade perpassa nas palavras de Eugénio Lisboa (“Miguel Torga […] ficará, na história literária de Portugal”), que explicita e pormenoriza a via pela qual aquele o conseguirá (“como um dos mais eminentes representantes da brevidade e da concisão: a narrativa curta, o poema relativamente curto”). Importa a propósito sublinhar ser justamente este proficiente conferencista o que mais foge ao panegírico. Logo no prefácio, onde enfatiza haver “neste homem da terra uma estranha e funda sensibilidade, uma sensibilidade de minúcias, quase feminina, que lhe potencia a inteligência e lhe compõe e enriquece o génio criador.”, não se coíbe de também asseverar: “Escritor multifacetado, vigoroso e inteiriço, as suas proclamações e os seus juízos nem sempre primaram - há que dizê-lo - pela subtileza e pela justeza”. Apreciação que reforça ao asseverar que “O homem Torga […] não convidava muito ao convívio.” Afirmação não perfilhada por Bigotte Chorão, que, garantindo não haver em Torga “como em muitos escritores, uma notória dicotomia entre a obra e o homem”, põe a tónica na sociabilidade: “Escritor de monólogo, era porém um homem de diálogo. Gostava de conversar a sós com um interlocutor”. Faceta que o próprio Eugénio Lisboa (norteado pelo rigor, apodixe da sua isenção) reconhece, não se inibindo de corrigir (suavizando) a apreciação precedente: “Parece que, afinal, o caçador implacável e manhoso era um tipo abordável e até cordial.” O que faz sem prejuízo de admitir que Torga “acolheu e acarinhou, dentro de si, um mundo de contradições”. Contradições que Fernando Hilário vislumbra (identifica?) logo no nome: “Miguel e Torga, ou a conciliação, que se diria difícil e penosa, do que é superior e sublime com o que é singelo e terrenal.” E a que também Álvaro M. Machado alude, após frisar haver “escritores cuja imagem, ao longo de décadas […] cristaliza”, numa espécie de “figura granítica que impressiona sobretudo pela grandeza humana”, “imobilismo grandíloquo” que por isso conduz a um “estereótipo, o qual impede de descobrir pormenores, de atentar em graduações ou mesmo em férteis contradições quer da obra quer do homem.” Mas, convoquemos outros olhares. E não menos perscrutadores. Por exemplo, o de Rosa Bizarro, que, depois de postular que “o texto literário […] abre-se aos olhares que nele procuram sentidos para um tempo histórico, concomitante à própria diegese, entendido sempre como o rasto visível da relação dialógica entre um narrador e o contexto que escolheu para os acontecimentos que relata”, nos transporta para um tempo peculiar (“o tempo narrado n’ A Criação do Mundo”). Um “tempo marcado” assim o designa (apoda?) em que, paradoxalmente ou não, “a escola e o professor eram percepcionados respeitosamente pela sociedade, em geral, e pelo microcosmos em que exerciam a sua actividade, em particular.” 363 364 Outrossim assaz peculiar, porque determinado por afinidades profissionais, é o testemunho de um médico, Carlos S. Sousa, que, posicionando-se num ângulo específico, recorre a campos lexicais úberes de vocábulos e expressões do âmbito da medicina, a jogos de palavras (“deste médico escritor, deste poeta operador”) para culminar num convite (ou intimação?): “Continuemos a ler e reler esta obra ímpar […] que nos é legada por Miguel Torga […], otorrino e artista, poeta e operador…”. No que a outras facetas da (por demais complexa) personalidade de Torga concerne, são tão variadas e heterogéneas as apreciações ao longo dos trabalhos produzidas e os testemunhos aportados - de Bigotte Chorão, para quem “A forte personalidade de Torga não se dissolve nos seus livros. […] Não se oculta detrás da página”, passando por Fernando J. B. Martinho que, trazendo “ao proscénio a temática da emigração” diz, citando o próprio: “A minha unidade telúrica desintegrou-se: E convivem na mesma carcaça dois seres opostos. Um europeu, de medidas greco-latinas; outro americano, anárquico e transbordante. E nenhum vence o adversário” - que desfila perante nós todo um carrossel de abordagens, de pinceladas num quadro policromo, que dificilmente terá deixado algum recôndito sem ser disquisicionado. Inclusive o iberismo, tratado por Salvato Trigo, mas também equacionado, na vertente “telúrica”, por Fernando Guimarães e por Isabel Ponce de Leão. No que respeita à relação do escritor com a política (e a liberdade), temática reiteradamente aflorada em diversas comunicações, duas referências, por paradigmáticas, serão o quantum satis para nos esclarecer acerca da postura prevalecente: a de Eugénio Lisboa e a de Salvato Trigo. Último prisma de abordagem, indubitavelmente o mais glosado: a linguagem. Justifica-se, ipso facto, que, antes de nele adentrarmos, nos detenhamos sobre as especificidades do discurso de Torga. Assumidamente exigente consigo próprio (“Sim, esforço-me por escrever bem.”), perfeccionista (“a frase mal lançada que era necessário recomeçar mil vezes”) e em incessante busca do rigor construtivo, predicados estes – exigência, perfeccionismo, rigor frásico – de que não admite prescindir, e aos quais a fidelidade da sua escrita é irrefragável, fica estabelecida a ligação ingénita entre produtor e produto quando, de um rigor inconsútil, postula que “em vez de um habilidoso disfarce” cada frase tem de ser “uma sedução e um acto. Uma sedução sem condescendências, e um acto sem subterfúgios”, concepção que reforça ao aludir ao imperativo de expurgar escrupulosamente a frase “de todas as impurezas e ambiguidades”. Não pode, por isso, constituir surpresa que, discorrendo a tal respeito, Salvato Trigo postule, em magistral síntese: “Inteiro na enxutez de suas palavras, quase sempre sentenciosas e axiológicas, brotando da inteireza do seu carácter pétreo […], eis Torga, qual Camões de ‘lira destemperada’ e de ‘voz enrouquecida’, prenhe de lusitanidade ibérica e de sofrimento da portugalidade, despedindo-se desta ‘pátria nova’”. E que Eugénio Lisboa sobreleve “Torga oscila, no que diz respeito à confiança que debita nos poderes da linguagem, entre um radical desespero e uma confiança que a húbris não raro visita”. Últimos testemunhos: o de Ema Tarracha Ferreira - que, assentando a sua comunicação no conto animalista, nos fala de Torga como o “admirável renovador da prosa portuguesa” e da “linguagem extremamente depurada” que acentua o momento fulcral dos contos - e o de Isabel Ponce de Leão, que sobreleva “uma prosódia enxuta, contida, dialógica, original e convincente, servida por traços estilísticos emblemáticos como o hipérbato, a elipse ou o oximoro.” Quanto à organização interna do livro - dado o objectivo prioritário ser, no dizer da sua coordenadora, torná-lo “um instrumento optimizador da investigação poética de Miguel Torga” - reputamos adequada, porque em total consentaneidade com esse desiderato, a opção por privilegiar a “lógica temática” em detrimento (ou subalternização) da “problemática dos géneros literários”, dos “diversos modelos de abordagem crítico-analítica”. Tanto mais que esta opção, coadjuvada pela inclusão dos textos segundo a ordem alfabética dos nomes dos autores e alheia a “hierarquias académicas”, ao mesmo tempo que propicia a passagem perante os nossos olhos de uma “procissão” de comunicações, torna inevitável a comparação das mesmas. E a ilação imediata é nem todos os “andores” seguirem ao mesmo nível - antes estarem em diferentes socalcos - destarte tornando iniludível (e inelidível) uma décalage de aprofundamento (em termos de conteúdos) e uma estratificação que não podem ser obnubiladas, mormente nas rubricas em que o número de comunicações é maior: 13 em Escrita do Eu e Autoficção, 12 na Narrativa, 11 na Obra em geral e na Poesia. De salientar, ainda neste âmbito, o (excelente) posfácio de António Leite da Costa, que, em lapidar sinopse, regista os tópicos fundamentais do congresso. E, encomiástico para a UFP, não elide o papel desta, que até 1994 fora “a única universidade portuguesa a dedicar-lhe um congresso”, voltou a ser crucial em 2005, nas “várias iniciativas tendentes a desatar o nó cego do silêncio” que começava a pairar sobre Torga e determinante neste, arcando “com todas as despesas inerentes à edição dos cartazes, programas” e outras. Não menos feliz lembrança foi, também, a da adução das palavras do Presidente da Câmara de Coimbra, Carlos Encarnação, que, referindo-se ao homenageado (“um cidadão em estado puro, um ser inapropriável”) e ao congresso, afirmou perceber-se “muito bem porque tantos quiseram reunir-se durante alguns dias a evocá-lo e a discuti-lo”. E, mesmo a concluir, a do testemunho do Reitor da UFP, para quem “comemorar Torga, escritor e cidadão, além de um imperativo ético, é também celebrar valores perenes da nossa identidade”. Plasmando as comunicações as proficientes opiniões dos respectivo autores (e, noutros, não menos doutos, as linhas de investigação que desenvolvem), o que, pela sua variedade em torno de um foco aglutinador enriquece sobremaneira o carácter poliédrico do livro, de que ressumbram as mais diversificadas abordagens, a verdade, contudo, é que ao trazerem ao proscénio da reflexão e questionamento académicos a diversidade de pontos de vista e basculações conteudísticas (conquanto submetidas a um fio condutor que a todas concatena), mais vincam a diferença assinalada, mas alargando concomitantemente as bases para um mais amplo e profícuo entendimento da temática equacionada. Únicos reparos (se, com propriedade, assim podemos designá-los): o primeiro, referente à falta de uniformização nas citações e referências bibliográficas, pelo que bem avisada andou a coordenadora ao alertar, logo na Nota Prévia, para tais discrepâncias; os restantes, intimamente relacionados (quase imbricados), decorrem quer do número (elevado) de participantes quer do prestígio científico dos mesmos. Estatuto que ao tornar impraticável a distribuição (imposição) de tarefas teve consequências quer ao nível das repetições quer das omissões. Das primeiras, porque com tantos participantes era inimaginável alimentar a veleidade de conseguir obstar a que elas ocorressem aquando do desenvolvimento das diferentes abordagens (pluralidade que, no entanto, pode também (e ao invés) ser perspectivada como enriquecedora do todo); das segundas, por criar lacunas depauperadoras da pretendida abrangência. É, em particular, o caso da vertente viajante (“Andarilho impenitente”) que Torga foi, e que, plasmando como algo congénito nele a ânsia de viajar, podia e devia, ipso factum, ter sido mais aprofundada (e não tratada só numa comunicação). 365 366 Notas finais. De âmbito organizacional as primeiras: para assinalar o equilíbrio da mancha gráfica, quase inconsútil, que, ao agregar tão solidamente as comunicações confere ao microcosmos plasmado pelo livro uma unidade na diversidade que inviabiliza liminarmente que qualquer ruído (malsão) perturbe a polifónica orquestra textual, ao que acresce a originalidade da adução de um conjunto de fotos (17) pelas quais perpassa a composição das mesas, destarte constituindo registo visual dos participantes e, por isso, excelente arquivo para memória futura; e uma menção especial para a capa, através de cuja sobriedade o pregnante óleo de Francisco Simões (com o rosto anguloso, esfíngico e austero de Torga) nos transporta para um universo de genuinidade que consubstancia, de forma lapidar, a dicotomia ser/parecer, de cujo primeiro ramo o homenageado foi, na sua austeridade, expoente máximo, arquétipo; conteudístico as segundas: para sublinhar o mérito dos organizadores não só na concreção dos objectivos explicitados, na Nota Prévia, mas, outrossim e precipuamente, no sobrepujar dos mesmos, pois se a coordenadora cingiu o anelo prioritário à consecução de tornar o livro “um instrumento optimizador da investigação poética de Miguel Torga”, como antes referimos, tal foi amplamente excedido: é-o sim, mas da obra como um todo incindível; e para explicar por que não sugerimos que tão ubertoso livro de torne “de cabeceira” - destino que dada a sua idiossincrasia manifestamente não merece: mormente porque o futuro que lhe antevemos é o do que ele constituirá, doravante, uma obra de referência para quem quiser aprofundar o conhecimento do universo torguiano, um imprescindível instrumento de trabalho cuja consulta se tornará imperiosamente recorrente. Um livro cuja leitura muito enriquecerá mesmo o público em geral. Mário Pinto