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VIDA (TRANS)MIDIÁTICA
(TRANS)MEDIA LIFE
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Ramon Queiroz Marlet / João Carlos Massarolo
Resumo: o presente estudo visa contextualizar e apresentar o conceito de vida
(trans)midiática, entendido como polo de recepção das narrativas transmídia por
parte de seus fãs. Veremos que essas práticas se configuram em decorrência da
midiatização do consumo simbólico dessas manifestações, cujas interações sócioculturais em rede se mostram como instâncias determinadoras dos usos e
apropriações feitos pela audiência dessas produções multiplataformas
midiatizadas.
Palavra chave: Midiatização; Narrativas transmídia; Fãs; Vida (trans)midiática;
Recepção.
Abstract: this study aims to contextualize and introduce the concept of
(trans)media life, understood as a place for reception of transmedia storytelling by
it’s fans. We’ll see that these practices are configured as a result of the
mediatization of the symbolic consumption of these manifestations, whose sociocultural interactions in the digital network appear as instances of uses and
appropriations made by these mediatized multi-platform productions.
Keywords: Mediatization; Transmedia storytelling; Fans; (Trans)media life;
Reception
1. Introdução
Nas últimas décadas presenciamos verdadeiras transformações em nosso ambiente
midiático, principalmente no que se refere à produção, circulação, recepção e consumo de suas
manifestações. Passamos de uma cultura midiática dominada pelo poder e monopólio das grandes
indústrias para um tipo de cultura – ainda em transição – mais participativo, colaborativo e
conectado em rede. À medida em que os produtos que circulam nesses ambientes se
complexificam, temos o surgimento de novas práticas de recepção por parte da audiência, que
passa a ter um papel vital de destaque e importância no atual fluxo midiático. Essa evolução, entre
outros fatores, foi acompanhada principalmente pelo desenvolvimento de novas plataformas
tecnológicas que facilitaram o acesso e manipulação dos conteúdos midiáticos circulados,
juntamente com a consolidação da internet, que logo se tornou um local efetivo de trocas
simbólicas e de relacionamentos sociais e culturais entre o público.
Em resposta ao atual contexto de convergência midiática, tivemos o surgimento de uma
nova ferramenta promissora para a expansão e reconfiguração da arte milenar de contar histórias
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que é específica das plataformas midiáticas, conhecida como narrativa transmídia, que consiste em
dispor trechos ou partes de um universo narrativo em distintas plataformas de comunicação,
objetivando que o público obtenha uma experiência coordenada e unificada de entretenimento mais
rica, compartilhando suas descobertas com os demais (JENKINS, 2009). Nesse sentido, as
narrativas transmídia se configuram como uma forma estética particular que se expande através de
diferentes sistemas de significação e meios (SCOLARI, 2013).
Sendo assim, torna-se importante contextualizar o ambiente em que ocorrem as práticas
específicas de recepção dos fãs dessas manifestações midiatizadas, as quais apresentam certas
particularidades determinadas pelo o que chamaremos de vida (trans)midiática – uma adaptação do
conceito de vida midiática (DEUZE, SPEERS, BLANK, 2010; DEUZE, 2011; BEIGUELMAN,
2011) – como veremos no decorrer do presente estudo. Entretanto, antes de seguirmos,
evidenciaremos como essas transformações no cenário comunicacional podem ser observadas e
compreendidas sob a ótica da midiatização, no sentido de gerar um entendimento das estruturas
que constroem o sentido social e cultural a partir do consumo ficcional das narrativas transmídias
em nossa atualidade, que se dá por meio de novos dispositivos interacionais sócio-técnicosdiscursivos.
2. Narrativas transmídia: convergência e conexão
Quando falamos em convergência midiática, nos referimos a um conceito que “consegue
definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está
falando e do que imaginam estar falando” (JENKINS, 2009, p. 29). Desse modo, caracterizamos
esse cenário pelo fluxo de conteúdo midiático que circula através de múltiplas plataformas de
comunicação, à cooperação entre diversos agentes do mercado midiático e ao comportamento
migratório dos públicos desses meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca
das experiências de entretenimento que desejam (JENKINS, 2009). Ao invés de falarmos sobre
produtores e consumidores de produtos midiáticos como ocupantes de papéis em polos separados,
podemos agora considerá-los como participantes plenos que interagem de acordo com um novo
sistema de regras, definidos pelas características descritas acima.
A convergência das mídias, assim, é muito mais do que uma simples transformação
tecnológica, já que “altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e
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públicos” (JENKINS, 2009, p. 43), podendo ser tanto um processo corporativo – convergência
corporativa – entendido como o “fluxo comercialmente direcionado de conteúdos de mídia”
(JENKINS, 2009, p. 377), de cima para baixo, quanto um processo de baixo para cima, o que
caracteriza a convergência alternativa, ou seja, o “fluxo informal e às vezes não autorizado de
conteúdos de mídia quando se torna fácil aos consumidores arquivar, comentar os conteúdos,
apropriar-se deles e colocá-los de volta em circulação” (JENKINS, 2009, p. 377).
Esse conjunto de novas práticas sociais e culturais, juntamente com as inovações
tecnológicas correlatas que se desenvolveram em torno delas, constituem o que Jenkins, Green e
Ford (2014) denominam de “cultura ligada em rede”. Segundo os autores, esse termo sugere uma
revisão do conceito de cultura participativa, para que reflita realmente essa nova realidade
estabelecida de um ambiente midiático ainda em transformação:
Estamos passando de um foco inicial do fandom como subcultura particular para um
modelo mais amplo que engloba muitos grupos que estão adquirindo maior
capacidade de comunicação dentro de uma cultura em rede, e rumo a um contexto em
que a produção cultural de nicho está cada vez mais influenciando o formato e a
direção da mídia mainstream. Estamos passando do foco sobre o relacionamento de
oposição entre fãs e produtores como forma de resistência cultural para entender
como esses papéis estão cada vez mais complexamente entrelaçados. Estamos
passando da celebração do crescimento de oportunidades de participação para uma
perspectiva ponderada pela atenção aos obstáculos que impedem muitas pessoas de
exercer uma participação significativa (JENKINS, GREEN e FORD, 2014, p. 64-65).
Assim, na visão dos autores, a propagabilidade é a chave para o entendimento desse
contexto, já que se refere ao potencial técnico e cultural dos públicos em compartilharem
conteúdos em suas redes por motivos diversos, às vezes com a permissão dos detentores dos
direitos autorais, às vezes não. É esse mix de forças entre produtores e público que determina como
um material é compartilhado, corroendo as divisões percebidas entre produção e consumo, e,
consequentemente, entre sua a recepção. O importante é destacar a mudança da distribuição do
conteúdo para sua circulação, num movimento onde é possível perceber como são criados valor e
significado à medida em que o material se desloca entre membros de comunidades que
compartilham interesses em comum. Em outras palavras, “os membros do público usam os textos
de mídia à sua disposição para estabelecer conexões entre si, para mediar as relações sociais e dar
sentido ao mundo em torno deles” (JENKINS, GREEN e FORD, 2014, p. 354).
Para que um determinado conteúdo de mídia se torne propagável, ele precisa se concentrar
nos seguintes itens, como apontado por Jenkins, Green e Ford (2014): fluxo de ideias – quando o
conteúdo trocado diz algo significativo sobre as partes envolvidas –, material disperso – criação de
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pontos de múltiplos acessos ao material para facilitar o compartilhamento –, experiências
diversificadas – conteúdos que possibilitam uma maior gama de inclusão de valor e significado
gerando novas experiências –, participação livre – cultura cada vez mais participativa e arbitrária
no sentido de optar livremente por propagar um conteúdo ou não –, motivar e facilitar o
compartilhamento – incentivo à continuidade dessa prática –, comunicação temporária e localizada
– há pouca coisa que seja estática e previsível no atual ambiente de mídia, razão para o surgimento
de modelos híbridos de circulação tanto de produtores quanto do público –, intermediários
autenticamente populares que defendem e evangelizam – usuários que agregam credibilidade ao
direcionarem conteúdo de mídia – e, por fim, a colaboração entre papéis – sinergia entre público e
produtores na propagação de conteúdos de mídia.
Um conteúdo midiático altamente propagável que possui todos esses itens é a narrativa
transmídia. Simultaneamente, temos a expansão da história através de vários meios/plataformas de
comunicação e a colaboração dos usuários nesse processo. Considerando essas circunstâncias,
Scolari (2013, p. 46) define essa manifestação como “um tipo de relato onde a história se desenrola
através de múltiplos meios e plataformas de comunicação, no qual uma parte dos consumidores
assume um papel ativo nesse processo de expansão”. Essa interação só se torna possível pois a
narrativa transmídia se configura como a arte da criação de universos ficcionais (JENKINS, 2009).
Esses ambientes são dotados de complexidade narrativa e desdobram-se em múltiplas camadas ou
níveis, fornecendo, em cada uma delas, experiências que expandem o universo pessoal do público
ao mesmo tempo em que reforça e enfatiza sua noção de pertencimento a esse universo ficcional
criado, fazendo com que seus habitantes se identifiquem com os textos dispersos em diferentes
mídias, de forma autônoma ou relacionada (MASSAROLO, 2011).
A necessidade do público de buscar informações/conteúdos em outras plataformas de
comunicação para entender não somente o que é narrado, mas também a forma como uma
determinada história é contada, além de compartilhar suas descobertas com os demais membros de
uma comunidade, caracteriza “um ato de imersão mais profundo do que a simples prática de
releitura de um texto em busca de novas significações” (MASSAROLO, 2013, p. 339). Esse
modelo de narrativa baseado na autoria compartilhada entre produtores e público permite interagir
com o texto ficcional de uma “obra em andamento”. O texto em aberto e sujeito a diferentes pontos
de vista, institui a visão de uma serialidade que transcende o texto para dialogar não somente com a
“narrativa-base” desenvolvida pelos produtores, mas também com o contexto cultural da
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comunidade de fãs no qual é criado, como um trabalho em contínuo progresso. Os universos de
histórias transmídia demandam interpretações textuais que não se esgotam em si mesmas, o que faz
da serialidade e da dispersão textual ferramentas importantes para o entendimento do
comportamento migratório das audiências de uma plataforma para outra na busca por informações
e conteúdos sobre suas histórias preferidas, visando obter uma experiência mais rica de
entretenimento compartilhado.
Antes de aprofundarmos nossas análises nesse complexo cenário midiático, torna-se
importante destacar como tudo isso pode ser entendido sob a ótica da midiatização, assunto
discutido no item a seguir.
3. Midiatização e consumo ficcional transmidiático
Na busca por refletir sobre a presença midiática na formação dos hábitos e atitudes de
consumo ficcional em nossa atualidade, podemos utilizar a midiatização como conceito-chave para
a compreensão dessa nova dinâmica interacional comunicativa transmidiática, como especificado
em Massarolo e Marlet (2014).
Conceitualmente, a midiatização pode se associar a outros termos no cenário global. Uma
dessas associações que merece nosso destaque é a em relação ao conceito de mediação cultural,
que deslocou a pesquisa dos meios para as mediações culturais, entendendo os processos que
envolvem os meios, as mídias e seus vínculos socioculturais, isto é, proporcionando uma análise
extrínseca aos meios (SILVERSTONE, 2011; SOUSA, 2005, 2007; MARTIN-BARBERO, 2009).
Por outro lado, a midiatização é um processo que verifica nos dispositivos midiáticos e em seus
respectivos processos de interação as lógicas das mídias na vida social, assim como as
possibilidades de construção de sentidos na realidade cotidiana (COULDRY e HEPP, 2013;
HJARVARD, 2012; BRAGA, 2006, 2012; NETO, 2010).
Assim, a mediação “descreve o ato concreto da comunicação através de um meio em um
contexto social específico” (HJARVARD, 2012, p. 66), enquanto que a midiatização se refere a um
processo mais a longo prazo, “segundo o qual as instituições sociais e culturais e os modos de
interação são alterados como consequência do crescimento da influência dos meios de
comunicação” (HJARVARD, 2012, p. 66). Desse modo, a associação entre esses dois conceitos
pode ser feita da seguinte maneira: “a midiatização reflete como as consequências gerais dos
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múltiplos processos de mediação têm mudado com o surgimento de diferentes tipos de mídia”
(COULDRY e HEPP, 2013, p. 197).
Trazendo essa associação ao nosso objeto de estudo, temos que a mediação corresponde à
necessidade de se buscar nas diversas plataformas midiáticas o acesso às narrativas e,
consequentemente, ao universo ficcional criado, enquanto que a midiatização decorrente dessas
ações diz respeito à mudança na lógica pela qual a indústria da mídia opera e pela qual os
consumidores processam o conteúdo recebido, caracterizando a cultura participativa e a cultura
underground dos fãs. Nesses processos, a narrativa transmídia e suas expressões se expandem,
tornando-se os grandes protagonistas do consumo midiatizado, e se firmam como elementos
midiatizadores do consumo ficcional em nossa atual cultura da convergência (MASSAROLO e
MARLET, 2014).
Posto isso, podemos refletir sobre as consequências da onipresença da mídia em nosso
cotidiano através do conceito de vida midiática (DEUZE, SPEERS, BLANK, 2010; DEUZE, 2011;
BEIGUELMAN, 2011) para, na sequência, adaptá-lo à onipresença das narrativas transmídia na
vida de seus fãs.
4. Vida midiática
De uma maneira geral, a relação entre mídia e cotidiano foi estudada por inúmeros autores,
numa tentativa de reflexão sobre o papel desempenhado por essa instância no dia a dia das pessoas.
À medida em que passamos a acessar nossa realidade por meio da mídia, e unicamente através
dela, temos uma reconfiguração tanto da nossa própria noção do que seria essa “realidade
compartilhada” (COULDRY, 2008), quanto das relações sociais e culturais estabelecidas a partir
disso.
Lev Manovich (2009) traz uma série de exemplos dessas transformações analisando as
principais mudanças nesse cenário, principalmente após o grande boom de conteúdos criados e
gerados pelos usuários da internet a partir de 2005, estabelecendo um novo universo midiático
cujos reflexos se mostram presentes até os dias de hoje. Ao analisar o que ele chama de “prática da
vida (midiática) cotidiana”, podemos ver a proliferação de interfaces criadas principalmente pela
consolidação da Web 2.0, no sentido de que se torna possível e extremamente fácil acessar às
mídias de outras pessoas, configurando uma prática diária comum. Assim, tornam-se públicos não
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somente as particularidades de determinadas subculturas, como também o cotidiano de bilhões de
pessoas espalhadas ao redor do globo. Segundo o autor, “o que antes era efêmero, transitório,
imapeável e invisível, torna-se permanente, mapeável, e visível.” (MANOVICH, 2009, p. 290).
Basta observarmos a consolidação das plataformas midiáticas com essa finalidade, principalmente
as redes sociais digitais como MySpace, Facebook, Orkut, LiveJournal, Blogger, Flickr, YouTube,
Hi5 (América Central), Cyworld (Coréia), Wretch (Taiwan), Baidu (China) e milhares de tantas
outras para visualizarmos nitidamente essa onipresença em nossa vida.
Já Bruno Campanella (2014) reflete sobre as recentes transformações nas práticas de
consumo midiático ligadas ao surgimento de mídias alternativas, e como essas afetam os processos
de criação e legitimação de uma forma dispersa de poder, tradicionalmente associado aos meios de
comunicação de massa. Para o autor, esse processo se faz presente através de antigas noções de
rituais midiáticos, que passam a reforçar e a confirmar tais práticas, ou seja, ao mesmo tempo em
que o surgimento dessas novas configurações têm diversificado as possibilidades de organização
do social, “elas parecem reforçar antigas formas de ritualização midiática responsáveis pelo papel
preponderante que os meios massivos de comunicação ainda desempenham na sociedade atual”
(CAMPANELLA, 2014, p. 8). Podemos observar isso em nossa relação com as telenovelas e
reality shows, por exemplo, que também passam a integrar nossas conversas do dia a dia.
De um modo geral, evidenciamos a onipresença midiática tanto em nossas relações sociais
e culturais quanto no acesso à produtos diversificados de entretenimento, entre outros fatores.
Assim, podemos concluir que o ambiente midiático modifica a forma/modo como
usamos/consumimos a mídia. Porém, como explicar isso considerando a complexidade do nosso
atual ambiente midiático, o qual se mostra em constante transformação? Acreditamos que uma
possível resposta se dê através do conceito de vida midiática, como veremos a seguir.
De acordo com Deuze, Speers e Blank (2010), nós gastamos a maior parte do nosso tempo
usando as mídias, cuja realização de multitarefas com elas tornou-se algo extremamente comum
em nosso cotidiano. De fato, temos de reconhecer como os seus usos e apropriações permeiam
todos os aspectos de nossa vida contemporânea. Esse é o cenário em que autores como Roger
Silverstone (2007), Alex de Jong e Marc Schuilenburg (2006) e Sam Inkinen (1998) chamam de
“midiápolis”, ou seja, “um espaço público totalmente midiatizado no qual a mídia é a base e o
entorno das experiências e expressões da vida cotidiana” (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010, p.
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140). Assim, “a vida é vivida na mídia, e não com ela” (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010, p.
140).
Hoje, os indivíduos crescem rodeados pela mídia de maneira que a consideram apenas mais
um componente/elemento natural do seu ambiente. A própria noção de realidade encontra-se
completamente captada pela comunicação midiatizada, afinal, “viver em tal realidade significa uma
vida vivida na mídia” (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010, p. 141). Para esses autores,
Essa midiatização de tudo é estabelecida como premissa pela crescente invisibilidade
da mídia, que por sua vez a torna indissociável da vida cotidiana (e todos os seus
aspectos). No momento em que a mídia se torna invisível, nosso senso de identidade
e mesmo nossa experiência da própria realidade se tornam irreversivelmente
modificados, no sentido de que toda a nossa identidade não é centrada e racional, mas
subvertida e dispersada através do espaço social (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010,
p. 142).
Assim, fica evidente o fato de que toda a nossa existência se encontra dispersa através do
tempo e do espaço por meio da mídia, e que a realidade, por sua vez, não pode ser concebida e
vivenciada em um local separado ou fora dela, já que as barreiras e os limites entre o mundo físico
e o virtual estão se fundindo cada vez mais. De acordo com Beiguelman (2011, p. 38), falar no fim
do virtual não quer dizer apostar numa volta ao mundo analógico, mas, ao contrário, “significa
assumir que as redes se tornaram tão presentes no cotidiano e que o processo de digitalização da
cultura é tão abrangente que se tornou anacrônico pensar na dicotomia real/virtual”.
E em relação aos indivíduos? O quê significa viver plenamente uma vida midiática? A
resposta é dada por Deuze, Speers e Blank (2010, p. 143):
As pessoas na vida midiática inevitavelmente envolvem-se com a realidade em um
constante movimento entre o idealismo (o que percebemos) e materialismo (o que é
aparente), usando as ferramentas e técnicas da mídia contemporânea digital e de
redes de comunicação para selecionar, editar e remixar tanto suas percepções quanto
a aparência daquela realidade.
Esses processos se relacionam com o que Arjun Appadurai (1994) denomina de
“midiapanoramas” ou “paisagens midiáticas”, conceitos que sinalizam como a mídia é central e
determinante na criação de mundos imaginários por parte dos indivíduos e/ou grupos espalhados
pelo mundo, o que “enfatiza a conectividade e a coletividade como os componentes principais da
vida midiática, juntamente com a individualização” (DEUZE, SPEERS e BLANK, 2010, p. 144).
Uma vez definida a ideia de vida midiática e suas principais características, como podemos
adaptá-la ao nosso objeto de estudo, considerando as manifestações midiatizadas das narrativas
transmídia e o complexo ambiente midiático moldado pela propagabilidade e pela convergência?
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Buscaremos responder à essa questão no item a seguir, apresentando o conceito de vida
(trans)midiática.
5. Vida (trans)midiática
De acordo com Deuze (2009), a mídia é nossa janela para o mundo e também possui uma
função de espelho, já que reflete e nos direciona ao mesmo tempo. Assim, a convergência e a
propagabilidade da produção e do consumo de mídia entre as empresas, canais, gêneros,
tecnologias e pessoas é uma expressão da convergência e da propagabilidade de todos os aspectos
da nossa vida cotidiana: trabalho e lazer, o local e o global, individualidade e identidade social.
Uma perspectiva da vida midiática nesse sentido desestabiliza as tradicionais categorias de
produção, conteúdo e consumo, uma vez que essas esferas se fundem, gerando novas práticas
interacionais, ou seja, as pessoas geralmente não possuem sentido de seus processos de
significação e práticas de uso midiático em termos de produção e consumo, que parecem acontecer
ao mesmo tempo.
A convergência midiática cultural se evidencia por meio da convergência de lugar, como
nos locais de produção de mídia, de identidade, como nas noções de identidade profissional versus
amadora, e de experiência, como no modo em que as pessoas interagem com algo, atribuem
significados a esse algo, e ativamente fazem uso da mídia como sua janela para o mundo. Além
disso, ela se refere à inclusão de vários stakeholders (produtores profissionais, audiência,
patrocinadores) na co-criação de conteúdos e de experiências midiáticas, à integração de diversas
indústrias de mídia em uma rede global de produção, à imaterialização das práticas de produção
midiática e, por fim, à coordenação entre distintas frentes (criatividade, comércio, conteúdo e
conectividade) no processo de produção de mídia (DEUZE, 2009). Essa perspectiva evidencia não
somente um olhar mais complexo e híbrido da produção cultural, como abre um enorme espaço
para e inclusão da audiência, do consumidor e do usuário nesse processo, que logo se tornam forças
produtivas na criação e circulação da cultura, afinal, “a maioria das pessoas fazem mídia à medida
em que as usam” (DEUZE, 2009, p. 476).
Em nosso caso de estudo, quando falamos em narrativas transmídia e na criação de
universos ficcionais expandidos, precisamos ter em mente que essas manifestações não se
direcionam apenas para consumidores comuns e passivos; ao contrário, para sua plena
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fruição/consumo, exigem indivíduos ativamente envolvidos e dedicados à história, capazes de se
aprofundar em níveis cada vez mais intensos em seu conteúdo, compartilhando suas descobertas
com os demais. Esses indivíduos são caracterizados como fãs, e basicamente são aquelas pessoas
que respondem a um determinado produto cultural criando, produzindo e compartilhando seus
próprios produtos culturais – na maioria das vezes – em comunidades dispersas pela rede. Para
Jenkins (2009, p. 188), “os fãs são o segmento mais ativo do público das mídias, aquele que se
recusa a simplesmente aceitar o que recebe, insistindo no direito de se tornar um participante
pleno”. Nesse sentido, para eles, “é natural que o consumo deflagre a produção, a leitura gere a
escrita, a cultura do espectador se torne cultura participativa” (JENKINS, 2006, p. 41).Assim,
podemos observar a existência de um diálogo narrativo entre produtores e fãs, e dos fãs entre si,
cujo universo ficcional criado funciona como a grande instância midiatizadora dessas interações.
Considerando tudo o que foi dito até aqui, o que significa, então, para os fãs viverem uma
vida (trans)midiática? Adaptando a ideia de Deuze, Speers e Blank (2010), temos que os fãs na
vida (trans)midiática inevitavelmente envolvem-se com a realidade ficcional criada em um
constante movimento entre o idealismo (o que é percebido) e o materialismo (o que é aparente),
usando as ferramentas e técnicas da mídia contemporânea digital e de redes de comunicação para
selecionar, editar e remixar tanto suas percepções quanto a aparência daquela realidade ficcional,
propagando o conteúdo desenvolvido, numa busca constante por experiências narrativa que os
compensem. Se, na vida midiática a mídia se torna invisível, na vida (trans)midiática, além disso,
as plataformas nas quais a história se desenrola também se tornam invisíveis, uma vez que os fãs
buscam por experiências narrativas que sejam válidas, independentemente da plataforma em si.
Desse modo, temos a conectividade em rede (que permite a propagação do conteúdo), a
coletividade (no sentido de fazer parte de uma comunidade de interesses compartilhados em
comum), a individualização (o conteúdo propagado é resultado das interpretações individuais dos
fãs) e a cultura participativa (que molda e possibilita as interações) como os componentes
principais da vida (trans)midiática. A seguir, analisaremos alguns exemplos que ilustram a
aplicação dessa definição.
6. 'Camarotização' das práticas da vida
Na “cultura ligada em rede” se torna cada vez maior a difusão de conteúdos pessoais
dispersos por várias mídias e disponibilizados nas nuvens e, por outro lado, as plataformas para
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acesso e compartilhamento de informações tornam-se também cada vez mais convergentes e
personalizadas. Assim, o usuário escolhe os canais de mídia ou dispositivos que deseja para
comunicar-se, além de dispor de ferramentas de compartilhamento das imagens cotidianas nas
redes sociais. Atualmente, uma miríade de redes interconectadas e de dispositivos móveis, com
funções similares aos antigos canais de mídia de massa, é responsável pela circulação de conteúdos
"por meio de todos os possíveis canais existentes, com o potencial de movimentar a audiência de
uma percepção periférica do conteúdo para um engajamento ativo" (JENKINS: GREEN e FORD,
2014, p. 30). Este ambiente de redes midiatizadas se mostra mais participativo do que na época da
ecologia de mídia do século XX, promovendo um maior fluxo de trocas, na medida em que
formatos e canais de mídia se tornaram aparentemente invisíveis diante da ubiquidade do conteúdo
nas redes.
Sensores, etiquetas inteligentes, realidade aumentada, mapas colaborativos, objetos
conectados à internet, reconhecimento facial e vocal, câmeras inteligentes, e toda
uma panóplia de dispositivos portáteis e móveis embutidos nos mais diversos objetos
e colados ao corpo estão montando redes com aquilo que está próximo, informando
sobre o que acontece ao redor, no mundo concreto das coisas. (LEMOS, 2014, p. 176)
Partindo da máxima de McLuhan, "o meio como extensão do homem", essas tecnologias
potencializam a 'comunicação das coisas' e multiplicam a circulação de conteúdos moldados pela
lógica da participação. Para McLuhan (2003, p.23), é o meio que "configura e controla a proporção
e a forma das ações e associações humanas. O conteúdo ou usos desses meios são tão diversos
quão ineficazes na estruturação da forma das associações humanas”. Na perspectiva deste artigo, o
meio é formado por um ecossistema midiático moldado como uma rede invisível e onipresente,
acessada por diversas mídias. As ações dos usuários são conectadas a uma variedade de mídias e é
nestes 'mundos midiatizados' (HEPP, 2014) que ocorrem os processos de subjetivação em curso
nas redes através de conteúdos propagáveis. Para o autor, os mundos midiatizados podem ser
entendidos como 'mundos sociais' que se entrelaçam entre si e, ao mesmo tempo, se fragmentam
em diversas partes.
O Instagram, por exemplo, é um aplicativo para dispositivos móveis (smartphones e tablets
, entre outros), que dispõe de recursos para o usuário aplicar filtros em fotografias, mas também
pode ser visto como um pequeno mundo social em conexão com outras redes (Twitter, Facebook,
Foursquare e Tumblr), ampliando, deste modo, os universos de vida (trans)midiática dos usuários
nas redes sociais. Neste processo de multiplicação e adensamento de redes interligadas pelos
mundos midiatizados ocorre a propagação de textos originalmente publicados nos blogs.
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Inicialmente, o Instagram foi pensado para fotógrafos amadores, com o objetivo era resgatar a
nostalgia das polaróides e promover o compartilhamento dinâmico em rede. O aplicativo permite a
aplicação de filtros (efeitos), que cria o aspecto envelhecido ou vintage da imagem; realce de cores
e saturação; opções de bordas à imagem e a percepção de foco. Para valorizar o conteúdo são
editadas áreas que se deseja destacar e esconder, inclusive, o que não se deseja mostrar. No
entanto, um aplicativo ou dispositivo não se define apenas pelas funcionalidades que são embutidas
a priori, mas pelas conexões que é capaz de estabelecer com as ações dos usuários e as redes
sociotécnicas que enformam o dispositivo (LATOUR, 2012). Neste sentido, os recursos oferecidos
pelo aplicativo de cortar, editar e aplicar filtros, estão intimamente ligados ao fenômeno recente
denominado nas redes sociais de 'camarotização' da vida. Para o pesquisador Marcos Hiller (2015,
s/p), esta noção "pode ser entendida como um fenômeno de distinção social promovido por meio de
privilégios em acesso a determinados rituais de consumo".
A popularização deste termo em praticamente todas as camadas da sociedade brasileira
corrobora a tese desenvolvida pelo estudioso da mídia norte-americano, Mark Deuze, de que a
mídia ao se fazer invisível se torna onipresente na vida cotidiana das pessoas. Neste caso, a
estratégia de apropriação e ressignificação de um texto midiático ocorreram por meio de processos
coletivos de criação de significados. As práticas sociais de apropriação das redes discursivas
conectadas aos dispositivos móveis evidenciam as estratégias de produção de conteúdos
propagáveis por ativistas de causas sociais, que buscam atingir com a sua mensagem o público
ligado em rede ao universo das blogueiras (os) profissionais que atuam no Instagram e outras redes.
Neste universo, a 'camarotização' faz referências aos perfis que atualizam tendências momentâneas
de consumo por meio de conteúdos patrocinados que são postados quase que diariamente nos
blogs, mas endereçados aos seguidores da marca que circulam pelas redes. A estratégia comumente
mais utilizada para atrair seguidores para o universo destas marcas é associar hashtags ao conteúdo
da postagem. Assim, outros usuários poderão encontrar uma postagem quando navegarem por esta
hashtag e, deste modo, diferentes usos do aplicativo criam uma infinidade de nichos. Basicamente,
os perfis agregam novos segmentos de mercado através da exposição de estilos de vida. Mas diante
das formas de apropriação, remixagem e recirculação de conteúdos associados ao termo
'camarotização', tanto no Instagram quanto em outras redes, os interesses dos usuários se
pulverizam nas redes e aparecem dissociados das 'comunidades-nicho', pois na cultura ligada em
rede presenciamos "a erosão dos limites tradicionais entre fãs e ativistas, entre criatividade e
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desestruturação, entre nicho e mainstream" (JENKINS: GREEN e FORD, 2014, p.55).
Na primeira internet ainda era possível manter a distinção entre fãs e produtores ou mesmo,
entre blogs amadores e patrocinados por marcas associadas a estilos de vida saudável, mas nos
mundos midiatizados das redes as antigas comunidades de fãs ou de perfis estruturados a partir da
noção de "um para muitos" e com interesses definidos a priori, cede espaço para a comunicação
mais aberta, centrada em conexões contextualizadas e temporárias, resultando em agrupamentos
de fãs/ativistas que se organizam nas redes através de interações que envolvem o engajamento
tanto nos aspectos emocionais quanto políticos e financeiros. Por outro lado, o rastreamento de
hábitos e costumes dos usuários nas redes torna possível identificar o perfil dos consumidores. Para
Lúcia Santaella (2013, p.43), a criação de perfil numa rede social evidencia que na prática os
usuários “passam a responder e atuar como se esse perfil fosse uma extensão sua, uma presença
daquilo que constitui sua identidade. Esses perfis passam a ser como estandartes que representam
as pessoas que os mantêm”. Para Flusser (2007, p.98), o predomínio do mundo codificado pelos
meios de comunicação sobre a experiência de vida gera desequilíbrios e sacrifícios para o ser
humano "apesar da permanente ligação com as chamadas fontes de informação".
7. Considerações finais
A crescente importância dos estudos sobre a recepção em processos midiáticos para as
pesquisas em Comunicação evidencia a necessidade de aprimoramento metodológico, uma vez que
no ambiente da sociedade em rede a informação não é mais buscada nos canais tradicionais de
mídia, tendo em vista que ela chega até nós por meio das redes e conexões sociais. Neste processo,
portais de notícia são usados para a comunicação institucional das empresas de mídia e os sentidos
da vida (trans)midiática são construídos a partir da recepção, o que torna o conteúdo propagável
um dos principais pilares das pesquisas no campo da recepção transmidiática.
Nesta perspectiva, os estudos sobre a recepção em processos transmidiáticos são recentes
no Brasil e no centro destas investigações encontram-se as pesquisas sobre os processos de
recepção televisiva, principalmente da ficção seriada televisiva. Os resultados das análises
desenvolvidas nos últimos anos apontam para uma série de transformações ocorridas no ambiente
das plataformas midiáticas. Entre os procedimentos adotados para o estudo da recepção
transmidiática, destacam-se os processos de midiatização dos produtos propagados, cuja
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onipresença molda e determina as relações construídas entre as pessoas que fazem parte de grupos
midiáticos, estes “fortemente motivados a produzir e fazer circular materiais midiáticos como parte
de suas contínuas interações sociais” (JENKINS: GREEN e FORD, 2014, p.55).
Essas práticas, assim, se configuram em decorrência da midiatização do consumo
simbólico dessas manifestações, cujas interações sócio-culturais em rede se mostram como
instâncias determinadoras dos usos e apropriações feitos pela audiência dessas produções
multiplataformas midiatizadas, cujo entendimento se inicia a partir da recepção na vida
(trans)midiática, como demonstrado no presente estudo, sendo este um possível ponto de partida
para futuras pesquisas sobre o assunto.
1
Mestrando em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da universidade de
São Paulo/ECA-USP; especialista em Gestão de Comunicação e Marketing pela ECA-USP,
ECA/USP, [email protected]
2
Cineasta, professor universitário; Doutor em Cinema pela USP, é diretor e roteirista de vários
filmes, entre os quais, São Carlos / 68 e O Quintal dos Guerrilheiros (2005). É Professor associado
da Universidade Federal de São Carlos; Coordenador do grupo de pesquisa GEMInIS e Editor
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