PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP MARIA DA CONCEIÇÃO ALMEIDA VASCONCELOS ALÉM DA GERAÇÃO DE TRABALHO E RENDA: ECONOMIA SOLIDÁRIA E PARTICIPAÇÃO DE COOPERADOS/ASSOCIADOS EM SERGIPE DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2007 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP MARIA DA CONCEIÇÃO ALMEIDA VASCONCELOS ALÉM DA GERAÇÃO DE TRABALHO E RENDA: ECONOMIA SOLIDÁRIA E PARTICIPAÇÃO DE COOPERADOS/ASSOCIADOS EM SERGIPE DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Serviço Social sob a orientação do Profª. Doutora Maria Lúcia Carvalho da Silva. SÃO PAULO 2007 Banca Examinadora ______________________________ ______________________________ ______________________________ ______________________________ ______________________________ Aos cooperados/associados da CARE, UNIGRUPO e Associação das Mulheres do Camarão. Há muito tempo que eu saí de casa Há muito tempo que eu caí na estrada Há muito tempo que eu estou na vida Foi assim que eu quis, e assim eu sou feliz Principalmente por poder voltar A todos os lugares onde já cheguei Pois lá deixei um prato de comida Um abraço amigo, um canto prá dormir e sonhar E aprendi que se depende sempre De tanta, muita, diferente gente Toda pessoa sempre é as marcas Das lições diárias de outras tantas pessoas E é tão bonito quando a gente entende Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá E é tão bonito quando a gente sente Que nunca está sozinho por mais que pense estar É tão bonito quando a gente pisa firme Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos É tão bonito quando a gente vai à vida Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração E aprendi ... (Gonzaguinha – Caminhos do Coração) AGRADECIMENTOS É difícil agradecer não pelo nobre sentimento da gratidão, mas pelo receio de esquecer alguém. Nesse tempo de doutorado, nunca estive só, apesar de, em alguns momentos, ter havido a necessidade de isolamento. São muitos os familiares e amigos que, mesmo distantes, estiveram todo tempo ao meu lado em mais essa etapa da minha vida. Inicialmente, agradeço a Deus pela sua infinita bondade, pela vida, pela força de continuar lutando pelos meus sonhos e objetivos. Aos meus pais, exemplos de dignidade, amor e solidariedade. Ao meu pai, Manoel Barreto (in memoriam), saudades eternas. A minha mãe, Maria José, pelo apoio, dedicação a mim e aos meus filhos e pela sua presença em minha vida. A Valber e Vinícius, filhos amados, por tudo que vocês significam, pela compreensão nos momentos de estresse, pelo amor incondicional, por compartilharem comigo, mais uma vez, momentos importantes da minha vida. A Valter, companheiro e incentivador constante do meu crescimento pessoal e profissional, o meu carinho e agradecimento especial, por entender as minhas constantes ausências, por ter assumido o papel de pai e mãe durante o tempo em que morei em São Paulo e em todas as etapas do doutorado. Aos meus irmãos Iulná, Iêda, Unaldo, pelo apoio constante, carinho e afeto e ao meu irmão e professor Neto que, além de tudo isso, presenteou-me com a correção do português deste trabalho. Aos meus sobrinhos queridos Virgílio, Priscila, Taíse, Noélia, Lucas, Fellipe, Júnior, Gabriel e Nathália pelo carinho e compreensão nos momentos em que não pude dar-lhes a atenção merecida. Aos meus cunhados e cunhadas pela solidariedade de sempre. A Karla Regina, menina querida, por tudo que você representa em minha vida, pela presença sempre carinhosa nas horas de estresse e também de alegrias. A Netinho pela paciência e empréstimo de sua amada nos momentos de formatação final da tese. A Clarissa, amiga querida e sempre presente, pelas palavras otimistas ao ler os meus rabiscos e fazer valiosas sugestões, pela partilha, acolhida, estímulo e carinho. As amigas Elza Barreto e Izaura Lúcia que me levaram para a extensão universitária e, em seguida, para a economia solidária. Agradeço-lhes pelo estímulo, confiança, interlocução constante, convívio e aprendizado. A Vânia, amiga querida, que sempre me animou com os seus e-mail´s e sábios conselhos, pelas risadas, pela companhia. A Ricardo Lacerda, exemplo de simplicidade e competência, pela partilha e amizade. Aos amigos Denise e Góis pelo carinho, apoio e por todos os momentos de encontro que me fortaleceram diante do cansaço. Aos amigos inseparáveis Juciene, Toinho, Cabral, Márcia e Mel que, mesmo distante, continuam fortalecidos por meio de uma amizade verdadeira Aos amigos de São Paulo com quem partilhei momentos especiais da minha formação profissional e construção de novas amizades: Liliane, Áurea, Sílvio, Lila, Gisele e tantos outros. A Cris e MiIeni, amigas queridas, pelo apoio, acolhida e carinho. Aos amigos de Aracaju que estiveram comigo em São Paulo: Suenilde, Fábio, Iolanda (que pacientemente me acolheu em sua residência) e Ivanete (que agüentou diariamente a minha saudade de casa) pelos momentos de partilha, solidariedade e amizade. Aos companheiros da Comissão de Reestruturação do Fórum de Economia Solidária de Sergipe pelo aprendizado e diálogos constantes: Ana Carla, Adílson, Cláudia, Anderson, Tiago, Wladimir, Ana Dilma. A toda equipe que compõe a Unitrabalho, em Sergipe, e também ao grupo da sede nacional, incluindo os amigos do GT Nacional do Programa de Economia Solidária da Unitrabalho, de forma especial a Nezilda, pela troca e aprendizado. As amigas Marlene, Lúcia Aranha, Ana Melo, Lica, Etelvina, Nadja e Anízia, pela força e torcida. A Amy (in memoriam) pelos ensinamentos. A Rosangela, Cecília e Tereza, companheiras de caminhada no doutorado. A todos que fazem o Departamento de Serviço Social da UFS e a CAPES pela bolsa de estudos. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC, em especial as professoras Carmelita Yazbek, Mariângela Belfiore, Rosângela Paz, Dilséia Bonetti e Rosangela Batistone, pelos ensinamentos e acolhida. A Kátia, secretária, pela atenção constante. Aos professores Luís Eduardo Wanderley, Paulo de Salles Oliveira e Evaldo Vieira pelas valiosas sugestões no momento da qualificação. Aos entrevistados desta pesquisa que me receberam com delicadeza e disponibilizaram seu tempo e pela confiança. Por fim, um agradecimento muito especial a professora Maria Lúcia Carvalho da Silva, ou carinhosamente como todos a conhecem “Malu”, esse ser humano incomparável, a mestra amiga, companheira, atenciosa, dedicada, muito querida e amada. Conhecê-la foi um presente, compartilhar dos seus ensinamentos e da sua presença tem sido uma experiência indescritível. Obrigada, querida mestra, por tudo! Valeu! RESUMO Esta tese tem como objeto de estudo a economia solidária. É seu propósito analisar a economia solidária, enquanto uma possibilidade de gerar trabalho e renda e de exercício da participação, tendo-se como referência as experiências pessoais e laborativas anteriores dos cooperados/associados, as vivências do trabalho coletivo nos empreendimentos econômicos solidários, incluindo-se também a formação continuada. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida em três empreendimentos econômicos solidários localizados no Estado de Sergipe, com atividades nos ramos de resíduos sólidos, confecção e beneficiamento do camarão. Na pesquisa, foi utilizado o método qualitativo, compreendendo a coleta de depoimentos obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas, observação participante e pesquisas bibliográfica e documental. Além disso, foram utilizados dados estatísticos para a caracterização dos empreendimentos e de seus cooperados/associados. O marco teórico tem como base autores que estudam a temática da economia solidária e participação. Os resultados revelaram que os empreendimentos pesquisados vêm propiciando a geração de trabalho e renda para os cooperados/associados, embora ainda sejam limitados os resultados financeiros. Todavia, as experiências mostram que a inserção nos empreendimentos, vai além da geração de trabalho e renda. Tais experiências estão trazendo mudanças significativas para as vidas dos cooperados/associados, destacando-se: o aprendizado do trabalho coletivo autogestionário; o crescimento pessoal; a descoberta e o desenvolvimento de potencialidades; a ampliação da visão de mundo e da importância da participação em outras instâncias sociais. Há, ainda, um longo caminho a percorrer, tanto no sentido da consolidação dos empreendimentos e uma efetiva geração de renda como na perspectiva da autogestão e construção de uma cultura solidária e participativa que assegure o efetivo exercício da cidadania. PALAVRAS-CHAVES: econômicos economia solidários, geração autogestionário. solidária, de participação, trabalho e empreendimentos renda, trabalho coletivo ABSTRACT This thesis has as study object the solidary economy. It is its intention to analyze the solidary economy, while a possibility to generate work and income and of exercise of the participation, being had themselves as reference previous the personal and work experiences of cooperated/the associates, the experiences of the collective work in the solidary economical enterprises, including also the formation continued. One is about a research developed in three located solidary economical enterprises in the State of Sergipe, with activities in the branches of solid residues, confection and improvement of the shrimp. In the research, the qualitative method was used, understanding the collection of depositions gotten by means of half-structuralized interviews, participant and research bibliographical and documentary comment. Moreover, they had been used given statisticians for the characterization of the enterprises and it’s cooperated/associates. The theoretical landmark has as base authors who study thematic of the solidary economy and the participation. The results had disclosed that the searched enterprises come propitiating the generation of work and income for cooperated/the associates, even so still are limited the financial results. However, the experiences show that the insertion in the enterprises, goes beyond the generation of work and income. Such experiences are bringing significant changes for the cooperated lives of/the associates, being distinguished: the learning of the automanagement collective work; the personal growth; the discovery and the development of potentialities; the magnifying of the vision of world and the importance of the participation in other social instances. It has, still, a long way to cover, as much in the direction of the consolidation of the enterprises and an effective generation of income as in the perspective of the automanagement and construction of a solidary and participative culture that assures the effective exercise of the citizenship. Keywords: solidary economy, participation, solidary economical enterprises, generation of work and income, automanagement collective work. LISTA DE SIGLAS ADEMA – Administração Estadual do Meio Ambiente ADS – Agência de Desenvolvimento Solidário AEDIULS – Sociedade de Educação e Desenvolvimento Integral Um Lugar ao Sol ANCARSE – Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural de Sergipe ANTEAG – Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão BB – Banco do Brasil BNCC – Banco Nacional de Crédito Cooperativo CARE – Cooperativa dos Agentes Autônomos de Aracaju CÁRITAS – Rede da Igreja Católica de Atuação Social Brasileira CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba CODISE – Companhia de Desenvolvimento Industrial de Sergipe COMTAJU – Cooperativa de Táxi do Aeroporto de Aracaju CONAES – Conferência Nacional de Economia Solidária CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente CONDESE – Conselho do Desenvolvimento Econômico de Sergipe CONTAG – Confederação dos Trabalhadores na Agricultura COOJARDIM – Cooperativa Agropecuária Mista e de Colonização Jardim COOPAME – Cooperativa Agrícola Mista de Estância COOPE – Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia COOPERGRESTE – Cooperativa Agropecuária Mista e de Colonização do Agreste COOPERTALSE – Cooperativa de Transporte Alternativo de Sergipe LTDA COOPERTREZE – Cooperativa Mista dos Agricultores do Treze LTDA COOPERVEST – Cooperativa dos Trabalhadores de Confecções de Sergipe CRUB – Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras CSL – Cooperativa Sergipense de Laticínios CUT – Central Única dos Trabalhadores DATASUS – Banco de dados do Sistema Único de Saúde DEMA – Diretorias Estaduais DE Agricultura DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos DNOCS – Departamento Nacional de Obras contra a Seca ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EES – Empreendimentos Econômicos Solidários EMATER-SE – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Sergipe EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EMBRATER – Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural EMDAGRO – Empresa de Desenvolvimento Agropecuário de Sergipe EMSURB – Empresa Municipal de Serviços Urbanos FASE – Federação de Orgãos para Assistência Social e Educacional FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador FBB – Fundação Banco do Brasil FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária FMI – Fundo Monetário Internacional FUNDASE – Fundação de Assuntos Fundiários do Estado de Sergipe GT – Grupo de Trabalho IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INFRAERO – Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária ITCP’s – Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares MEB – Movimento de Educação de Base MMA – Ministério do Meio Ambiente MST – Movimento dos Trabalhadores sem Terra MTE – Ministério do Trabalho e Emprego MULTSERV – Comércio e Serviços LTDA OCB – Organização das Cooperativas Brasileiras OCESE – Organização das Cooperativas do Estado de Sergipe ONG – Organização não-governamental PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PRHOCASE – Promoção do Homem do Campo de Sergipe PIN – Programa de Integração Nacional PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento POLONORDESTE – Programa de Áreas Integradas do Nordeste PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste PT – Partido dos Trabalhadores PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SEMA – Secretaria Estadual do meio Ambiente SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária SESC – Serviço Social do Comércio SIES – Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária SNCR – Sistema Nacional de Crédito Rural SUDAP – Superintendência da Agricultura e Produção SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste SUVALE – Sistema integrado de extensão rural do Vale do São Francisco UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro / UFS – Universidade Federal de Sergipe UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância UNIGRUPO – Grupo de Confecção UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISOL Brasil – União e Solidariedade das Cooperativas e Empreendimentos de Economia Solidária do Brasil UNITRABALHO – Fundação Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho USP – Universidade de São Paulo SUMÁRIO Introdução .......................................................................................................... 16 Capítulo 1 – Economia Solidária: Contextos e Percursos ................................. 35 1.1. Revisitando alguns precursores ........................................................................ 36 1.2. A economia solidária no Brasil .......................................................................... 41 1.2.1. Primeiras experiências ............................................................................ 41 1.2.2. Virando o século XXI ............................................................................... 48 1.2.2.1. A ação governamental ............................................................... 48 1.2.2.2. O Fórum Brasileiro de Economia Solidária ................................ 53 1.2.2.3. As instituições apoiadoras ......................................................... 56 Capítulo 2 - Economia Solidária e Participação .................................................. 62 2.1. Conceituando a economia solidária .................................................................. 63 2.2. Refletindo sobre a participação ........................................................................ 83 Capítulo 3 – Sergipe: dos caminhos do cooperativismo a outras iniciativas produtivas solidárias ....................................................................................................... 97 3.1. O cooperativismo e a lógica desenvolvimentista do Estado de Sergipe .......... 98 3.2. Ação governamental por meio da colonização cooperativa ............................. 104 3.3. Declínio do cooperativismo agropecuário e o surgimento de outras iniciativas produtivas solidárias................................................................................................. 116 Capítulo 4 - Contexto e Caracterização dos Empreendimentos Econômicos Solidários e seus Cooperados/Associados ........................................................ 125 4.1. Configurando os Empreendimentos Econômicos Solidários ............................ 126 4.1.1. Cooperativa de Reciclagem dos Agentes Autônomos de Aracaju – CARE ................................................................................................................. 127 4.1.1.1. Localização e antecedentes ...................................................... 127 4.1.1.2. A CARE e seus cooperados ...................................................... 135 4.1.1.3. CARE: cotidiano e rotina dos processos de trabalho ................ 139 4.1.2. Grupo de Confecção UNIGRUPO ........................................................... 144 4.1.2.1. Localização e antecedentes ...................................................... 144 4.1.2.2. O UNIGRUPO e suas componentes ......................................... 147 4.1.2.3. UNIGRUPO: cotidiano e rotina dos processos de trabalho ....... 148 4.1.3. A Associação das Mulheres do Camarão ............................................... 151 4.1.3.1. Localização e antecedentes ...................................................... 151 4.1.3.2. A associação das mulheres do camarão e seus associados .... 155 4.1.3.3. A associação das mulheres do camarão: cotidiano e rotina dos processos de trabalho ............................................................................ 159 4.2. Os empreendimentos no processo de incubação ............................................. 165 Capítulo 5 – Economia Solidária: trajetórias, vivências e aprendizados ......... 170 5.1. Trabalho, desemprego e a experiência de ser cooperado/associado .............. 171 5.1.1. O trabalho infanto-juvenil e a migração ................................................. 172 5.1.2. Desemprego, buscas de geração de renda e os motivos de participar dos empreendimentos ..................................................................................... 177 5.1.3. O trabalho coletivo nos empreendimentos ............................................ 186 5.2. Dimensões e expressões da participação ........................................................ 195 5.2.1. Experiências de participação ................................................................. 196 5.2.2. A participação no empreendimento: significados e exercício de práticas democráticas ...................................................................................... 202 5.2.3. Participação e a formação técnica, política e pessoal ........................... 211 5.2.3.1. A participação e o aprendizado na dimensão técnica ............... 211 5.2.3.2. A participação e o aprendizado na dimensão político-social ..... 214 5.2.3.3. A participação e o aprendizado na dimensão pessoal .............. 216 Considerações Finais ............................................................................................ 220 Bibliografia ............................................................................................................. Anexos 226 16 INTRODUÇÃO “Estamos vivendo a mesma situação. Por isso, temos que se unir um ao outro” (Selma - CARE). Tem sido recorrente afirmar que a sociedade contemporânea está passando por sérias transformações sócio-históricas que têm alcançado as mais diversas esferas da vida social. Tais transformações decorrem, principalmente, da crise vivenciada pelo capitalismo dos países centrais, a partir dos anos de 1970, que passam a conviver com uma desaceleração do crescimento, aumento da inflação e do desemprego. A globalização soma-se a esse processo de mudanças, dando direção para uma nova composição, não só na constituição de blocos econômicos, a exemplo da União Econômica Européia, e aumento da concorrência entre capitais, mas também na base técnica da produção dos diversos setores da economia e construção de um novo padrão de acumulação com inovações tecnológicas, baseado na microeletrônica, robotização e informática presentes não só em produtos e processos industriais, como também em vários setores do comércio e serviços. A mundialização do capital e sua financeirização, conduzidas por empresas, corporações e aglomerados transnacionais, têm colocado ainda mais em evidência a subordinação do trabalho ao capital e também põem em discussão as novas relações entre os Estados-Nação. É notória a capacidade das empresas multinacionais ou transnacionais nesse processo de globalização econômica, na modernização tecnológica e de mobilização dos recursos financeiros em escala mundial e na exploração de vantagens competitivas. O capitalismo vem se desterritorializando, cada vez mais, desafiando as fronteiras dos países, a soberania dos Estados nacionais, e, principalmente, a dos países mais pobres, que se vêem pressionados pelos agentes financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial), no sentido de cumprirem as recomendações feitas por 17 estes para que possam continuar tendo o apoio financeiro. Nesse contexto, conforme Aranha (1999), novos blocos de poder se constituem, outros reconstituem-se para fazer frente à competitividade atual. Alguns deles, inclusive, de caráter regional1, diante das grandes corporações oligopólicas. Associa-se a essas mudanças o colapso dos regimes comunistas que, com a quebra do Bloco Soviético, fornece, ainda mais, poder ao capitalismo mundial, na medida em que este não se sente ameaçado por um bloco ou sistema alternativo, contra-hegemônico. Ao mesmo tempo, observam-se graves indicadores de uma crise também social que envolve parte não só dos países do terceiro mundo, mas também dos países mais ricos que passam a se acostumar com a presença de mendigos nas ruas e com “o espetáculo mais chocante de desabrigados protegendo-se em vãos de portas e caixas de papelão, quando não eram recolhidos pela polícia” (HOBSBAWM, 1995, p.6). Crescem, assim, em todo o mundo, as desigualdades social e econômica, no interior do próprio capitalismo, com conseqüências nefastas para aqueles segmentos da população que, historicamente, já não tinham acesso a bens e serviços, ou aqueles que, mesmo tendo algum tipo de acesso, vêem-se ameaçados com a perda de direitos sociais e dos seus postos de trabalho. Tais conseqüências estão refletidas diretamente nas mudanças recentes do mundo do trabalho, com reflexos visíveis nos números alarmantes de desemprego estrutural; na precarização dos processos de trabalho; redefinições na composição da divisão internacional do trabalho; mudanças na estrutura produtiva, com a adoção de novas formas de organização e gestão do trabalho nos moldes toyotista; crise do modelo de acumulação taylorista/fordista; baixos salários; desregulamentação dos mercados de trabalho; declínio da atuação do movimento sindical; novas exigências de qualificações técnica e social; insegurança no trabalho. No caso do Brasil, a incorporação nessa “nova onda” vai acontecendo mediante sua inserção marcadamente subordinada ao contexto do capitalismo mundial e da hegemonia norte-americana na segunda metade do século XX e adesão ao Consenso de Washington, que exige dos países latinos mudanças 1 Pode-se citar, por exemplo, o Mercosul (Mercado Comum do Sul); NAFTA (Tratado do Livre Comércio da América do Norte); ASEAN (Associação das Nações do Sudoeste Asiático); APEC (Cooperação Econômica da Ásia e Pacífico) e inclusive a própria União Européia, já citada. 18 substanciais nas suas políticas econômicas. No Brasil, essas exigências foram sendo atendidas mediante ajustes macroeconômicos, via planos de estabilização fiscal, além de reformas no sistema previdenciário e enxugamento da máquina estatal pela via de demissão de servidores públicos e privatização de empresas estatais. Concomitantemente, vão acontecendo mudanças na organização da produção, que passa por reestruturação, tanto em termos de inovações tecnológicas, como também organizacionais e gerencias. O setor industrial tem o seu perfil alterado, diante das exigências na qualidade dos produtos, adaptação às formas de gestão, para garantir a competitividade frente aos produtos importados. Fala-se em agronegócios, agrobusiness na agricultura, ao lado de uma gama imensa de agricultores sem-terra. O setor de serviços ganha nova dimensão, tornando-se responsável por boa parte da absorção da mão-de-obra. Essas mudanças vêm acompanhadas da crescente integração aos mercados externos que procuram explorar vantagens comparativas em escala global, privilegiando baixos salários, progressivos benefícios fiscais e mercados de trabalho desregulados, capazes de ofertar elevada produtividade, trazendo reflexos diretos para o mercado de trabalho brasileiro. A nova divisão internacional da economia transfere indústrias para outros países, em busca de isenções fiscais externa e interna, mas, na maioria das vezes, tão avançadas, tecnologicamente, que o seu funcionamento não significa a geração de novos postos de trabalho. Todo esse cenário que envolve o mundo capitalista, na contemporaneidade, tem levado pessoas do mundo inteiro a reagir e pensar estratégias de enfrentamento. Portanto, esse é um processo que não tem mão única. As transformações sócio-espaciais também se expressam por meio de conflitos e são permeadas de reações que vão se construindo por parte de diversos segmentos sociais. Em nível mundial, tem sido constante a presença de vários movimentos que fazem a crítica à globalização, que vão desde Seattle/EUA, (1999), a Gênova em (2001); de Outro Davos ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre (2001/2002/2003/2005), Índia (2004), Nairóbi/Quênia (2007); Fórum Mundial das Resistências em 2003, entre outros. Esses movimentos discutem as mazelas do capitalismo e demarcam posições de resistência à mundialização neoliberal e tem envolvido a participação de 19 movimentos jovens, feminista, camponês, sindical, religioso, indígena, etc. Como diz Houtart (2003), é a própria multiplicidade dos setores afetados pela mundialização contemporânea da economia capitalista, correspondendo a uma nova fase de seu processo de acumulação, que exige uma articulação entre as diversas forças de resistência. Essas reações, entretanto, não estão ocorrendo somente no plano político. Os movimentos sociais, ao tempo em que questionam as mazelas do capitalismo, vêm discutindo também estratégias econômicas de produção. É nesse cenário adverso e complexo que também acontecem os embates e reações que vão se configurando em formas de enfrentamento não só da globalização, mas também da sobrevivência dos segmentos historicamente espoliados de direitos e/ou que os vêem ameaçados. Há, assim, nesse embate e tensão, o re(surgimento) das formas associativas de produção, atualmente, no caso do Brasil, mais conhecidas como economia solidária. A realidade brasileira tem mostrado que, fundamentalmente, a partir da década de 1990, há uma proliferação de iniciativas produtivas, vinculadas à economia solidária2, incluindo cooperativas, associações de produtores, grupos de produção, empresas autogestionárias, bancos comunitários, redes solidárias, de caráter urbano e rural, que se organizam com base na propriedade, gestão e usufruto coletivo empreendimentos do trabalho. econômicos Com afirma 3 solidários Gaiger que (2003, p.135), compreendem são “diversas modalidades de organização econômica, originadas da livre associação dos trabalhadores, com base nos princípios de autogestão, cooperação, eficiência e viabilidade”. Essa proliferação tem relação com todo o cenário de mudanças que vem ocorrendo na base produtiva, na divisão internacional do trabalho, no processo de mundialização do capital, e tem levado grupos de trabalhadores que possuíam 2 Neste estudo, estou considerando o nascimento da economia solidária ainda no século XIX, a partir das idéias desenvolvidas pelos primeiros socialistas, embora tenho clareza de que, no caso do Brasil e de Sergipe, especificamente, houve, durante o século XX, uma predominância de um cooperativismo empresarial ou atrelado ao Estado. Apesar de ter em sua origem a referência dos princípios rochdaleanos, o cooperativismo foi se descaracterizando e se tornando muitas vezes grandes empresas capitalistas. É a partir dos anos de 1990 que outras iniciativas vão (re)surgindo e configurando outro cenário para a economia solidária no Brasil e em Sergipe. 3 Utilizei a expressão abreviada EES para me referir aos Empreendimentos Econômicos Solidários. 20 ocupação e que estão desempregados ou mesmo os que nunca tiveram acesso ao mercado formal de trabalho a constituírem os seus empreendimentos para manter ou criar postos de trabalho e gerar renda. Tomar a economia solidária como objeto de análise é o propósito desse estudo. É um tema permeado de diferentes nuances e interpretações que envolvem perspectivas teóricas com pontos de convergências e divergências. Nos estudos sobre a economia solidária, são várias as possibilidades de interpretá-la: um novo modo de produção e, nesse sentido, a construção de uma economia não-capitalista; uma nova forma social de produção que possibilita a geração de postos de trabalho nos meandros do próprio capitalismo; uma alternativa diante do desemprego por meio da produção associada; economia que se desenvolve com o mercado, mas que a este deve integrar outros princípios; incompatibilidade entre mercado, solidariedade e economia, entre outros. Há também visões de que a economia solidária se insere no campo das políticas sociais, tanto no sentido de requerer ao Estado sua incorporação e atenção, ou ainda, como uma forma visível do descompromisso público com o assalariamento e o incentivo ao autoemprego. Nesse estudo, a economia solidária não será interpretada no âmbito da política social, nem também terá como foco as discussões sobre a gestação de um novo modo de produção, ou se ela é incompatível com o mercado. Esses elementos serão pontuados, na medida em que se faz necessário compreender as suas nuances e interpretações, mas esse não é o cerne da discussão que se pretende. Aqui a intenção é compreendê-la, enquanto uma forma de produção que se desenvolve mediante a presença de diferentes iniciativas produtivas e diante das mudanças sócio-históricas da sociedade em que vivemos, principalmente a partir das vivências cotidianas daqueles que estão inseridos nos EES, tendo-se como horizonte a participação, enquanto elemento presente na organização coletiva do trabalho, na gestão democrática, em todo processo autogestionário, ou seja, de um tipo de trabalho que exige, a todo momento, o exercício da participação. Esta, entretanto, não será analisada apenas no locus do empreendimento. Serão levadas em consideração as experiências dos cooperados/associados em momentos anteriores à entrada no empreendimento e, enquanto seres sociais, inseridos na realidade sócio-histórica de formação da 21 sociedade brasileira. A participação assim compreendida em suas diversas formas de expressão, como algo inerente a todo ser social e que, no caso daqueles que estão envolvidos nos empreendimentos econômicos solidários, adentram a uma realidade que emerge, a partir de uma necessidade imediata, ou seja, a busca de renda e trabalho, mas que exige, ao mesmo tempo, exercitar sua dimensão sócio-política, por meio das diversas mediações presentes no cotidiano do trabalho e nas diferentes instâncias da vida social. Dessa forma, o objetivo deste estudo é analisar a economia solidária, enquanto uma possibilidade de gerar trabalho e renda e de exercício da participação, tendo-se como referência as vivências pessoais e laborativas anteriores dos cooperados/associados4, as vivências do trabalho coletivo nos empreendimentos econômicos solidários, incluindo-se também a formação continuada. Assim, parto da hipótese de que o exercício e ampliação da participação dos cooperados/associados nos empreendimentos econômicos solidários, para se efetivarem, requerem a convergência dessas vivências pessoais e profissionais anteriores e no exercício atual do trabalho coletivo, aliando-se às vivências de formação continuada sobre os princípios e valores da economia solidária. Dessa forma, considero que essa convergência propicia à economia solidária tornar-se uma possibilidade de gerar trabalho e renda, bem como o exercício de processos participativos, seja no empreendimento ou em outras instâncias da vida social. Para alcançar tal propósito, foi necessário conhecer: as trajetórias pessoal e profissional dos cooperados, antes da sua inserção no empreendimento; o cotidiano e a organização do trabalho coletivo e a dinâmica das relações sociais estabelecidas no interior do empreendimento; como os processos de formação continuada dos cooperados/associados, participantes dos EES, têm contribuído para a vivência de experiências de participação no âmbito do trabalho e fora dele; as formas de participação dos cooperados/associados no empreendimento, no cotidiano do trabalho coletivo e em outras instâncias da vida em sociedade. Por que um estudo da economia solidária com esse foco? Para responder a essa pergunta, é importante, inicialmente, descrever como se deu e tem-se 4 Neste estudo, os termos trabalhadores, cooperados, associados e catadores estão sendo utilizados quando me refiro a homens e mulheres. 22 dado o meu encontro com a economia solidária. A minha vida acadêmica tem me oportunizado estabelecer uma relação de proximidade com temáticas vinculadas ao mundo do trabalho, não só no ensino e pesquisa, mas também nas atividades de extensão acadêmica. Em 1997, foi instalado, na Universidade Federal de Sergipe – UFS, o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho, vinculado institucionalmente à Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários – PROEX e, em nível nacional, à Rede de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho – UNITRABALHO, uma Rede que agrega mais de 90 universidades em todo Brasil, cujo propósito é o desenvolvimento de projetos dentro da temática do trabalho, possibilitando subsidiar ações que venham a contribuir para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores. A UFS como já possuía uma gama de ações no âmbito da extensão acadêmica na área do trabalho, seja vinculada à educação profissional, à alfabetização nos projetos de reforma agrária, à erradicação do trabalho infantil, entre outros, considerou importante a sua vinculação à Rede UNITRABALHO e daí convidou vários docentes para compor o Núcleo Local. Incorporei-me com mais presença ao referido Núcleo, a partir de 1999. Participei de algumas atividades de pesquisa, dentre as quais do mapeamento da produção acadêmica sobre o mundo do trabalho5. Até então, as temáticas mais freqüentes estavam relacionadas com as discussões sobre a reestruturação produtiva, movimento sindical, educação profissional, entre outras. A economia solidária passou a fazer parte das discussões do Núcleo Local da UNITRABALHO/UFS, na medida em que se discutia com os movimentos sociais e no âmbito da academia temas relacionados com o desemprego e as múltiplas formas de inserção produtiva. Em Sergipe, já tínhamos, como exemplo, a formação de uma empresa gerida pelos próprios trabalhadores, a Cooperativa dos Trabalhadores de Confecções de Sergipe LTDA – COOPERVEST, além da presença de outros segmentos que demandavam da universidade a assessoria para a criação dos seus empreendimentos. Em outras universidades do país, a exemplo da UFRJ (COOPE), UFC, UNEB, UFRPE, já estavam sendo criadas instâncias que recebiam o nome de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares – 5 Essa pesquisa foi feita em âmbito nacional e minha participação se deu como membro do Núcleo Local da UNITRABALHO/UFS na etapa de levantamento de dados junto aos pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe. 23 ITCP´s, formadas por docentes, estudantes e técnicos que prestavam assessoria a grupos populares na formação de suas cooperativas, associações, redes solidárias etc. Na UFS, essas discussões andaram mais lentamente. Foram muitas as reuniões, seminários, debates até o momento da definição e instalação da Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Econômicos Solidários – ITEES, que veio a ocorrer em junho de 2001. Passou-se primeiro por uma experiência piloto desenvolvida junto a um grupo de mulheres residentes nos bairros Rosa Elze e Rosa Maria, entorno da UFS, e que serviu de base para análises importantes, inclusive quanto aos procedimentos metodológicos a serem adotados no trabalho junto aos grupos. Trabalhar com grupos associativos não era algo novo na universidade. Historicamente, em suas atividades de extensão e de trabalhos comunitários, ações vinculadas à geração de renda sempre estiveram entre as atividades desenvolvidas. O que chamava a atenção, entretanto, a partir do final dos anos de 1990, era o aumento dessas demandas, tanto no sentido da realização de estudos e pesquisas quanto em relação à necessidade de assessorias aos grupos produtivos. Tais demandas chegavam por meio de seminários, palestras, cursos ou solicitações oriundas de comunidades residentes no entorno da universidade e fora dele, inclusive do interior do Estado. As reflexões da equipe do Núcleo Local/UNITRABALHO/UFS indicavam a necessidade de mapear o que estava acontecendo no Estado. Diante da dificuldade de fazer esse mapeamento, centrou-se o estudo sobre o cooperativismo, em Sergipe e, ainda, no ano de 2002, uma pesquisa foi realizada cujos resultados indicavam a proliferação do cooperativismo no Estado, agora não mais com ênfase no setor rural, mas em atividades urbanas. Os dados revelaram uma relação direta com as mudanças que se processavam no mundo do trabalho, permeadas por um crescimento acentuado do desemprego, mas também pela redefinição do papel do Estado, via privatização de empresas públicas, Programas de Demissões Voluntárias, entre outros. Deu-se, portanto, o meu encontro com a economia solidária e o interesse por este tema. Passei, então, a compor a equipe do Núcleo Local da UNITRABALHO – UFS e a partir de 2001, também da Incubadora a ele vinculada. 24 Em meados de 2004, passei a fazer parte do Grupo de Trabalho do Programa Nacional de Economia Solidária da UNITRABALHO. Estava diante de iniciativas produtivas que me traziam inquietações, dúvidas, desafios e surpresas, diante das realidades que se descortinavam em cada reunião que eu participava nos grupos, nos seminários e debates. Tais inquietações passavam por vários questionamentos como: de que maneira foi se configurando o exercício da participação, ao longo da vida, dos que, hoje, participam de uma experiência de trabalho cuja organização deve acontecer de forma coletiva, democrática e participativa? Como se dão esses processos em grupos cujas trajetórias se diferenciam? Que sentidos têm um trabalho coletivo e a participação, por exemplo, para os cooperados que viveram, grande parte de suas vidas, no e do lixão? Como os processos de formação continuada, desenvolvidos por meio da atividade de incubação, têm contribuído para auxiliar na construção de experiências participativas? Além dessas indagações, outro motivo também me impulsionou a fazer esse estudo e que perpassa o meu campo profissional. Considero que essa pesquisa pode fornecer uma contribuição importante para nós assistentes sociais, uma vez que é um tema recentemente estudado entre estes profissionais, apesar de se perceber, cada vez mais, a sua inserção em espaços sócio-ocupacionais e desenvolvendo atividades em ONG’s, que prestam assessoria a variados empreendimentos econômicos solidários; em prefeituras municipais, nos programas de geração de trabalho e renda; nas universidades; em empresas privadas, por meio das suas fundações e dos programas de responsabilidade social, entre outros. A economia solidária, mesmo existindo uma Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, está presente nas diversas políticas sociais de forma transversal e, principalmente, nos programas de geração de renda, com expressão significativa na Política de Assistência Social, uma das políticas de grande atuação dos profissionais de Serviço Social. Uma outra contribuição que esse estudo poderá oferecer é no sentido de ampliar a produção vinculada a essa temática no Estado de Sergipe. Neste, comecei a pesquisar a produção da economia solidária e observei que ela é ainda incipiente. Os estudos feitos têm como foco maior o cooperativismo agropecuário, apesar de que os elaborados, a partir do início de século XXI, já mostram uma 25 tendência para a análise de associações ou cooperativas no meio urbano. Assim, despertou-me o interesse em compreender melhor essa trajetória, seus principais momentos e peculiaridades, por isso minha primeira preocupação foi fazer uma sistematização da economia solidária em Sergipe. Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa tem um caráter qualitativo, na medida em que o seu propósito é capturar o “universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes” (MINAYO, 1998, p.21-22) dos cooperados/associados antes e após sua inserção nos empreendimentos, por meio das suas vivências e trajetórias de vida. Também foram utilizados dados estatísticos constantes 6 Núcleo/Incubadora/UFS , da em pesquisa 2005, realizada para a pela equipe caracterização do dos cooperados/associados participantes dos empreendimentos foco desta pesquisa. A aproximação com o campo temático ocorreu por meio da utilização de etapas metodológicas que se retroalimentavam. Inicialmente, foi realizada a revisão da literatura pertinente ao objeto de estudo, e suas subáreas, em livros, revistas especializadas, teses, dissertações, artigos, papers. Nesse processo de identificação da bibliografia, foi feito um levantamento dos estudos e pesquisas existentes em quatro bibliotecas: PUC-SP, UNICAMP, UNISINOS e USP. Para tanto, foram utilizados, além de consultas presenciais, os sítios destas bibliotecas, por meio dos quais foram identificados inúmeros trabalhos relacionados, principalmente, ao cooperativismo. Desses levantamentos, resultou a sistematização de referências bibliográficas, passando, posteriormente, por uma seleção que atendesse mais diretamente a intenção deste estudo. A participação da pesquisadora em eventos também foi mostrando a produção mais recente nesta área, além dos autores já conhecidos no campo da economia solidária. Esse levantamento bibliográfico, apesar de estar presente em todas as etapas da pesquisa, permitiu a construção do marco teórico deste estudo, tendose como referência autores que estudam a temática da economia solidária, tais como: Singer (1997-2000, 2002, 2005), Gaiger (1999, 2000, 2003, 2004), Razeto (1997, 2001), Coraggio (1997, 2000) e também da participação a exemplo de Dagnino (2002, 2004), Telles (1994, 2004), Ammann (1978), Gohn (1999), Souza 6 Participei desta pesquisa na fase de elaboração e teste do questionário. Para este estudo, utilizei, com autorização da equipe do Núcleo/Incubadora/UFS, os dados brutos e, a partir deles, fiz a caracterização dos cooperados/associados que consta no IV capítulo deste estudo. 26 (2004), Dallari (1984), Paz (2002), Demo (1996). Recorri também a outros autores que contribuíram para a compreensão dos eixos de análise, construídos a partir de temas comuns revelados nas trajetórias de vida das pessoas entrevistadas e na vivência cotidiana nos empreendimentos. Concomitantemente, foi feito o levantamento de dados, pesquisas e estudos existentes sobre a economia solidária em Sergipe. A pesquisa documental foi um recurso fundamental e indispensável na construção metodológica desta etapa da pesquisa. À medida que fui iniciando este levantamento, percebi que não se tratava de uma tarefa fácil, porque as informações estavam fragmentadas em documentos oficiais, livros, dissertações, teses e monografias. Era um verdadeiro mosaico que precisava montar. Visitei vários órgãos públicos7, seus arquivos, bibliotecas, e consultei documentos oficiais (relatórios, projetos, programas etc.), para capturar informações que fossem preenchendo o quebra-cabeça, cujas peças sempre faltavam ou se encontravam perdidas em arquivos destruídos com a extinção de órgãos públicos. Foi feita, pois, uma sistematização da história do cooperativismo, em Sergipe, e do (re)surgimento de outras iniciativas produtivas solidárias, a partir dos anos de 1990. O trabalho de campo foi acontecendo paulatinamente. A escolha dos empreendimentos, para esta pesquisa, deu-se, como já referido anteriormente, tendo em vista a minha vinculação com a economia solidária nas atividades acadêmicas, por se tratar de grupos acompanhados pela equipe do Núcleo/Incubadora da UNITRABALHO/UFS, além de serem empreendimentos que permitem visualizar a heterogeneidade das iniciativas produtivas no campo da economia solidária. No momento da realização desta pesquisa, a equipe do Núcleo/Incubadora UNITRABALHO/UFS acompanhava seis grupos, dos quais um era cooperativa, quatro grupos de produção e uma associação. Dentre estes, foram escolhidos três empreendimentos: a Cooperativa dos Agentes Autônomos de Aracaju – 7 A exemplo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA – Diretoria de Sergipe; Companhia de Desenvolvimento de Recursos Hídricos e Irrigação – COHIDRO, hoje Departamento Estadual de Recursos Hídricos de Sergipe - DEIDRO; a Empresa de Desenvolvimento Agropecuário de Sergipe – EMDAGRO, hoje Departamento Agropecuário de Sergipe – DEAGRO; Secretaria de Planejamento – SEPLAN; Biblioteca Pública Epifânio Dórea; Biblioteca da Universidade Federal de Sergipe, entre outros.de Sergipe 27 CARE, o Grupo de Confecção UNIGRUPO e a Associação das Mulheres do Camarão. No que se refere à associação e à cooperativa, não foi possível selecionar o grupo a ser pesquisado, uma vez que só existia um empreendimento que atendia a essas formas de organização. Com relação à escolha do grupo produtivo, a seleção do UNIGRUPO ocorreu, em virtude de já se encontrar em fase de produção, possuir uma melhor infra-estrutura e um número maior de componentes. Como o propósito foi contemplar a diversidade da economia solidária, a natureza de constituição jurídica também foi critério de escolha dos empreendimentos. Dessa forma, a pesquisa se deu mediante o estudo de três casos de EES: uma cooperativa, uma associação e um grupo de produção que estão desenvolvendo atividades nos setores econômicos de material reciclado, beneficiamento do camarão e confecção, localizados no Estado de Sergipe, nos municípios de Aracaju, Japaratuba e São Cristóvão, respectivamente. Para a pesquisa empírica, foram utilizados os seguintes instrumentos: entrevistas semi-estruturadas, as observações diretas e contatos informais com os cooperados/associados nos vários momentos do cotidiano do trabalho, participação da pesquisadora em reuniões, cursos e oficinas. O caderno de campo foi utilizado para o registro e anotações das observações capturadas e consideradas relevantes para a pesquisa. As observações diretas realizadas, nos empreendimentos, por parte da pesquisadora, foram fundamentais para o conhecimento dos cooperados/associados, de suas rotinas, etapas do processo de trabalho e identificação de aspectos das relações sociais, o que forneceu elementos importantes não só para a análise dos dados, mas também para a caracterização destes. Os primeiros contatos com os empreendimentos aconteceram ainda no ano de 2004 (CARE e UNIGRUPO) e, em 2005, com a Associação das Mulheres do Camarão. Em todos os casos, foi, por meio da equipe do Núcleo/Incubadora, que cheguei até os mesmos. Em 2005 e 2006, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 15 cooperados/associados, mediante a utilização de dois roteiros que se encontram em anexo. O primeiro deles foi utilizado nos contatos iniciais. Entretanto, foi sendo observada, no decorrer da realização da pesquisa e também tendo em vista algumas sugestões por ocasião do momento do exame de qualificação do doutorado, a necessidade de acréscimo de outros aspectos no primeiro roteiro, 28 dentre os quais podem ser destacados: os significados do trabalho coletivo para os cooperados/associados; as formas de participação, antes e após a inserção nos empreendimentos; as instâncias participativas no interior dos EES; significados da participação; o aprendizado por meio dos cursos. A escolha dos participantes da pesquisa teve por base os seguintes critérios: um dos empreendimento. entrevistados Os deveria demais ser membro deveriam da fazer direção parte do da cooperativa/associação/grupo, desde o seu início e também participarem com maior freqüência nas atividades desenvolvidas no empreendimento. Para a seleção destes, contamos com informações de dirigentes, dos cooperados/associados e também da equipe da UNITRABALHO que fazia o acompanhamento dos grupos. Essas informações foram cruzadas permitindo a escolha dos entrevistados. Assim, foram entrevistados 05 (cinco) cooperados/associados de cada empreendimento, escolhidos dentre os seus componentes que variavam de 20 a 30 membros. Para preservar a identidade dos entrevistados, foram utilizados nomes fictícios. Dos participantes da pesquisa, somente um é do sexo masculino. Destaque-se que o UNIGRUPO e a Associação das Mulheres do Camarão são constituídos por mulheres. Já na CARE, existem homens e mulheres, apesar de que, no momento de realização da pesquisa, existia uma presença maior de mulheres e somente um homem dentre aqueles que estavam participando da cooperativa atendia aos critérios estabelecidos para a realização das entrevistas. São sujeitos desta pesquisa: • Cooperativa dos Agentes Autônomos de Aracaju – CARE Selma Sexo feminino, solteira, 40 anos de idade, natural de Aracaju-Sergipe, mãe de um filho, possui casa própria, somente ela trabalha na família, tem uma renda familiar mensal de um salário mínimo, estudou até a sétima série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o 29 empreendimento, recebe benefício de programa governamental (Bolsa Família), não participa de atividades comunitárias, ex-catadora do lixão. Margarete Sexo feminino, casada, 28 anos de idade, natural de Pernambuco, três filhos, possui casa própria, trabalha ela e um dos filhos, tem uma renda familiar mensal de um a dois salários mínimos, estudou até a segunda série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe benefício de programas governamentais, não participa de atividades comunitárias, ex-catadora do lixão. Manoel Sexo masculino, casado, 66 anos de idade, natural de Capela - Sergipe, seis filhos, possui casa própria, trabalha ele e mais dois filhos, tem uma renda familiar mensal de dois a três salários mínimos, estudou até a quarta série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe benefício dos programas governamentais, não participa de atividades comunitárias, ex-catador do lixão. Joana Sexo feminino, casada, 26 anos de idade, natural de Aracaju-Sergipe, quatro filhos, possui casa própria, trabalham ela e o esposo, tem uma renda familiar mensal de um a dois salários mínimos, estudou até a quinta série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe beneficio de programas governamentais, não participa de atividades comunitárias, ex-catadora do lixão. 30 Rita Sexo feminino, separada, 56 anos de idade, natural de Nossa Senhora das Dores - Sergipe, cinco filhos, possui casa própria, somente ela trabalha, tem uma renda familiar mensal de um salário mínimo, estudou até a primeira série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, recebe benefício de programas governamentais (Bolsa Família e PETI – são beneficiários os netos que residem com ela), não participa de atividades comunitárias, ex-catadora do lixão. • UNIGRUPO Regina Sexo feminino, casada, 56 anos de idade, natural Campo do Brito-Sergipe, cinco filhos, possui casa própria, trabalham ela, o marido e dois filhos, tem uma renda familiar mensal de três a quatro salários mínimos, estudou até a terceira série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe benefício de programas governamentais, participa de atividades comunitárias como membro da igreja. Marta Sexo feminino, viúva, 52 anos de idade, natural de Propriá – Sergipe, quatro filhos, mora em casa alugada, somente ela trabalha e recebe pensão do marido, tem uma renda familiar mensal que fica entre dois a três salários mínimos, estudou até o ensino médio completo, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe benefício de programas governamentais, participa de atividades comunitárias como membro da igreja. 31 Renata Sexo feminino, casada, 46 anos de idade, natural de Arapiraca – Alagoas, cinco filhos, possui casa própria, trabalha ela e o marido, tem uma renda familiar mensal que fica entre um e dois salários mínimos, estudou até a primeira série do ensino médio, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, recebe benefício de programa governamental (PETI), participa de atividades comunitárias como membro da associação de moradores, do conselho escolar e membro da igreja. Virginia Sexo feminino, viúva, 59 anos de idade, natural de Alagoas, cinco filhos, possui casa própria, trabalha ela e dois filhos, tem uma renda familiar mensal que fica entre dois a três salários mínimos, estudou até a quinta série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe benefício de programas governamentais, não participa de atividades comunitárias. Carmélia Sexo feminino, casada, 42 anos de idade, natural de Aracaju – Sergipe, três filhos, possui casa própria, trabalha ela e o marido, tem uma renda familiar mensal que fica entre dois a três salários mínimos, estudou até a sétima série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe benefício de programas governamentais, participa de atividades comunitárias como membro da igreja. 32 • Associação das Mulheres do Camarão Camila Sexo feminino, casada, 24 anos de idade, natural de Japaratuba – Sergipe, um filho, possui casa própria, trabalham ela e o marido com a atividade da pesca, tem uma renda familiar mensal que fica em torno de um salário mínimo, estudou até a sexta série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, recebe benefício de programa governamental (Bolsa Família), não participa de atividades comunitárias. Vânia Sexo feminino, casada, 47 anos de idade, natural de Japaratuba – Sergipe, três filhos, possui casa própria, trabalham ela, dois filhos e o marido, tem uma renda mensal que fica em torno de dois a três salários mínimos, estudou até a quarta série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe benefício de programas governamentais, participa de atividades comunitárias como membro da igreja. Rosa Sexo feminino, separada, 30 anos de idade, natural de Japaratuba – Sergipe, três filhos, possui casa própria, trabalham ela e o marido, tem uma renda mensal que fica em torno de um salário mínimo, estudou até a quinta série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, não recebe benefício de programas governamentais, não participa de atividades comunitárias. Margarida Sexo feminino, casada, 59 anos de idade, natural de Japaratuba – Sergipe, doze filhos, possui casa própria, trabalham ela, o marido e três filhos, tem uma renda 33 familiar mensal que fica entre dois a três salários mínimos, sendo que a principal fonte de renda é a aposentadoria, estudou até a quarta série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, recebe benefício de programa governamental (Bolsa Família), não participa de atividades comunitárias. Angélica Sexo feminino, casada, 41 anos de idade, natural de Japaratuba – Sergipe, dois filhos, possui casa própria, só ela trabalha, tem uma renda mensal de menos de um salário mínimo, o camarão é a única fonte de renda, estudou até a sétima série do ensino fundamental, possuía experiência em outro tipo de ocupação, antes de ir para o empreendimento, recebe benefício de programa governamental (Bolsa Família), participa de atividades comunitárias, membro da associação de moradores Este estudo compõe-se de cinco capítulos. No primeiro, “Economia solidária: contextos e percursos” foi feita uma revisão das idéias que serviram de referência ao se falar em economia solidária. Para tanto, foi utilizado o pensamento de alguns precursores, destacando-se a contribuição destes na disseminação do cooperativismo no mundo. Contém, também, uma retrospectiva da economia solidária, no Brasil, mostrando sua proliferação na atualidade. O segundo capítulo, “Economia solidária e participação”, é dedicado à discussão da economia solidária no pensamento contemporâneo, por meio da utilização de alguns autores brasileiros e latinos que têm estudado esta temática, nos últimos anos. Também são feitas reflexões sobre a questão da participação e as primeiras aproximações com a economia solidária. Os terceiro e quarto capítulos introduzem o leitor no campo da pesquisa. O terceiro, “Sergipe: dos caminhos do cooperativismo a outras iniciativas produtivas solidárias”, mostra a história do cooperativismo em Sergipe, procurando identificar os seus principais momentos e peculiaridades, chegando-se aos anos de 1990, quando (re)surgem outras iniciativas produtivas no campo da economia solidária. No quarto capítulo, “Constituição e caracterização dos empreendimentos econômicos 34 solidários e seus empreendimentos, sua são cooperados/associados”, constituição, algumas identificados características os dos cooperados/associados, o cotidiano e organização do trabalho. O quinto capítulo, “Economia solidária: trajetórias, vivências e aprendizados”, é dedicado a análise dos dados obtidos mediante a realização da pesquisa de campo. Foram contemplados dois eixos analíticos: um que trata da questão do trabalho, desemprego e a experiência de ser cooperado, e outro que discute as dimensões e expressões da participação. Nas considerações finais, são elencados os resultados da pesquisa, destacando-se: o aprendizado em todas as dimensões da vida dos cooperados/associados, no que diz respeito ao trabalho cooperativo e autogestionário, a participação no empreendimento e em outras instâncias da vida social. 35 Capítulo 1 Economia solidária: contextos e percursos “Quando a gente trabalha no sistema capitalista, a gente sabe que é tudo muito restrito. Então, muitas vezes, eu fui despedida, porque nunca me conformei com determinadas situações. Com as meninas, aqui, no grupo, tenho conhecido outra forma de trabalhar. Trabalhar em grupo você aprende demais e vê que não tá sozinho” (Renata – UNIGRUPO). 36 CAPÍTULO 1 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: CONTEXTOS E PERCURSOS 1.1. Revisitando alguns precursores Nos últimos tempos, muito se tem falado em economia solidária, economia social, sócioeconomia solidária, economia popular e solidária. Discussões teóricas e experiências variadas estão, sem dúvida, configurando uma realidade, na atualidade, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, cuja lógica se fundamenta na possibilidade de construir outras formas de organização produtiva diferenciadas daquelas peculiares do sistema capitalista, cujo fundamento é a exploração do trabalhador e o lucro. Apesar do vigor que a economia solidária vem tomando, nas duas últimas décadas do século XX e início do século XXI, o surgimento do que hoje tem-se chamado de economia solidária, antes muito mais representada por meio do cooperativismo, uma das suas modalidades históricas mais consolidadas, vai se desenvolvendo, desde o início do século XIX, por intermédio de várias iniciativas, de caráter associativo, que vinham se delineando em alguns países da Europa, com destaque para Inglaterra, França, Suíça e Suécia. Tais iniciativas nascem diante de um cenário de mudanças desencadeadas pela Revolução Industrial, na Inglaterra, e pela Revolução Francesa. São reações do operariado à exploração do capital sobre o trabalho – jornadas excessivas, condições de trabalho insalubres, exploração de menores e mulheres – que vão desde as estratégias de quebra de máquinas ao começo da organização em associações operárias8. As formas cooperativas e associativas tornam-se, pois, caminhos para organizar outras formas de produção e também de proteção, a exemplo das associações mutualistas. O aparecimento do capitalismo e suas mutações vão suscitando constantes debates entre os teóricos socialistas, evidenciando-se o embate de idéias e propostas. Entre os primeiros socialistas do século XIX, são comuns as 8 As associações operárias organizadas por intermédio do movimento owenista, cartista e dos trade-unions. 37 propostas de mudanças permeadas por ideais de justiça e fraternidade, cujo propósito era a construção de uma sociedade mais justa. Tem-se, assim, o desenvolvimento das idéias de um socialismo associacionista por meio das contribuições de Robert Owen (1771-1858) e seus seguidores, cujo propósito era organizar uma comunidade em que os cooperados se reunissem tanto para os fins de distribuição como de produção. Com isso, ocorreria a eliminação do lucro e da concorrência, causas das injustiças sociais. As idéias owenistas contribuíram para a organização das primeiras cooperativas de consumo e, também, na sistematização das idéias dos pioneiros de Rochdale9, consubstanciadas em um programa no qual constavam os valores do cooperativismo que foram se disseminando por diversos países10. Os ideários de liberdade, igualdade e fraternidade contidos na Revolução Francesa vão auxiliar a construção do pensamento dos teóricos franceses da primeira metade do século XIX, sobressaindo-se, dentre eles, Charles Fourier (1772 - 1837), Gide (1847-1932), Saint-Simon (1760 –1825) e Proudhon (1809 1865). Tais ideários estavam presentes nas propostas de Charles Fourier11 de defesa da propriedade comunitária e a criação de elos societários (falanges) que, agrupados, formariam os falanstérios, comunidades voltadas para a produção com harmonia e liberdade; nas indicações de Saint-Simon de mudanças na ordem social onde conviviam explorados e exploradores para uma ordem industrial baseada na associação universal dos trabalhadores; na defesa de Buchez (1796-1865) de que os operários deviam resolver seus problemas por si mesmos, sem a interferência do Estado ou de filantropos12; na construção de um 9 Dos pioneiros do cooperativismo, seis eram discípulos de Owen. Rochdale, pequena cidade da Inglaterra próxima de Manchester, na época contava com menos de 25 mil habitantes. Ao final de 1843, 28 tecelões começaram a se reunir com o objetivo de encontrar uma maneira de amenizar a situação de pobreza em que se encontravam. Decidiram se organizar em uma sociedade cooperativa. Para tanto, reuniram, durante um ano, um capital de 28 libras e fundaram, em 24 de outubro de 1844, a Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale. Em 21 de dezembro, desse mesmo ano, fundaram um armazém que no início tinha um estoque modesto (farinha, aveia, manteiga, açúcar e velas de sebo) e só abria uma vez por semana. Posteriormente, esse estoque foi se ampliando e o armazém passou a funcionar todos os dias. 10 São valores cooperativos: a solidariedade, liberdade, democracia, justiça social e eqüidade. Os seus princípios são: adesão voluntária e livre; gestão democrática pelos cooperados; participação econômica dos cooperados; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação e interesse pela comunidade. 11 Fourier foi considerado o grande precursor da cooperativa integral que, posteriormente, vai ser desenvolvida nos Kibutzim – Israel. 12 Buchez definiu as seguintes regras para a constituição das cooperativas de produção: democracia (os trabalhadores eram os próprios empresários e elegeriam seus representantes); 38 “mundo autogestionário” e mutualista de Proudhon; nas idéias de Gide que entendia a emancipação do trabalhador e a eliminação da lucratividade do capitalista por meio da coletivização total da sociedade, via cooperativas de consumo e produção. É importante destacar também as idéias da Escola de Nimes, que defendia a eliminação da luta de classes, do conflito entre capital e trabalho, via movimento cooperativo, e condenava o regime do salariado em nome da justiça e da solidariedade. O pensamento desses teóricos e, em alguns casos, suas experiências concretas, percorreu todo o mundo e, de forma especial, a Europa, servindo também para o estabelecimento de contrapontos a outros pensadores diante do movimento cooperativista que vinha se desenvolvendo em todo continente europeu. Karl Marx (1919-1883) fez a crítica àqueles que ele chamou de “utópicos” por considerar que faltava-lhes profundidade quanto à crítica ao capitalismo e uma melhor compreensão sobre o funcionamento deste modo de produção, apesar de considerar importante a construção dessas discussões, na medida em que questionavam as bases da propriedade privada e da própria existência do capitalismo. Defendia, entretanto, a autonomia das cooperativas em relação ao Estado, enquanto criações autônomas dos trabalhadores, tendo em vista que “a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”13. Com essa expressão, Marx demarca suas idéias de autogestão que vão servir de referência para a construção de algumas revoluções ou experiências de autogestão14. Frederich Engels (1820-1895), via nas cooperativas uma possível forma de transição para o socialismo, posição essa que se contrapunha ao pensamento de Rosa Luxemburgo (1871-1919). Esta, por sua vez, afirmava que as cooperativas de produção exerciam apenas um papel acessório das cooperativas de consumo e, neste sentido, não tinham força para suprimir o lucro comercial. Já Lênin (1870 - 1924), numa análise sobre o papel do cooperativismo, a partir da experiência russa, tendo o Estado como detentor dos meios de produção, entendia que o distribuição do excedente proporcionalmente ao trabalho prestado; criação de fundos sociais; inalienabilidade do capital social; inexistência de trabalhadores assalariados. 13 Programa de Gotha/1875 e Resoluções do Primeiro Congresso da Associação Internacional, setembro de 1866. 14 A esse respeito consultar: NASCIMENTO, Cláudio. A autogestão e o novo cooperativismo. www.mte.gov.br. 39 cooperativismo devia ser uma alternativa para auxiliar o socialismo na realização de si próprio. Para ele, era preciso agrupar as pessoas em cooperativas, estimular sua participação, fornecer-lhes as condições necessárias para o seu desenvolvimento. Defendia a proposta de intensificar as ações junto ao campesinato no sentido de agrupá-lo em cooperativas e, principalmente, fazer uma revolução cultural, para que pudesse compreender e assimilar a importância do trabalho cooperativo. Todas essas experiências e discussões teóricas do século XIX, como disse Laville (2001)15, foram importantes para a reunião de diversos trabalhadores no campo e na cidade, com o objetivo de defender e reivindicar direitos, diante dos diversos problemas ocasionados pelo capitalismo liberal, cujo foco central era o mercado. O certo é que a economia solidária, nesse momento, na expressão do cooperativismo, esteve sempre presente nas discussões de diferentes períodos históricos e surge, lado a lado, com o capitalismo. Ela sofre as mutações que se processam no meio social e vai se configurando diante das diversas conjunturas. Conforme Pinho (1966), podem ser consideradas duas fases importantes na constituição do cooperativismo no mundo. Num primeiro momento, as iniciativas associativas vivem sob o capitalismo concorrencial no qual a produção acontecia por intermédio de pequenas unidades que trabalhavam concorrendo entre si, cuja intervenção do Estado era quase nula. A outra fase é ainda no capitalismo concorrencial, mas com a presença de grandes unidades produtivas16. Na primeira fase, a referida autora considera que o cooperativismo estava vivenciando duas etapas: uma pré-cooperativa em que existiam organizações comunitárias de grupos confessionais, a exemplo dos Shakers; outra do tipo comunitário, a exemplo da comunidade Nova Harmonia, fundada por Owen, em 1828; os Falanstérios (séc. XIX e XX) idealizados por Fourier e as colônias Icarianas inspiradas por Cabet (1848). Essas experiências foram fundamentais 15 Cf. palestra realizada no II Fórum Social Mundial, 2001, Porto Alegre. A partir da primeira Grande Depressão (1873-1896), que trouxe como conseqüência o fortalecimento das grandes empresas e eliminação das mais fracas, iniciou-se uma nova fase do capitalismo, a fase monopolista ou financeira, que se desdobrou na exportação de capitais e no processo de colonização da África e da Ásia. Sua característica é o imperialismo, caracterizado pela centralização, concentração e exportação de capitais; surgimento dos monopólios internacionais, seja por meio dos trustes, cartéis ou holding; além da fusão dos capitais financeiro e industrial. 16 40 para que as idéias cooperativas pudessem ser sistematizadas e retomadas pelos pioneiros de Rochdale, dando forma aos princípios e valores cooperativos. Na outra etapa, têm-se, como exemplo, as cooperativas de consumo – Rochdale, as cooperativas de crédito (Delitzesch e Raiffeisen), e, ainda, aquelas de caráter confessional – católicas e protestantes cristãos. Na fase do capitalismo monopolista, Pinho (1966) cita como exemplos: o desenvolvimento das cooperativas confessionais existentes no Canadá e as Associações Protestantes para o Estudo Prático das Questões Sociais; as cooperativas de produção industrial e agrícola (França e Canadá); e as cooperativas de consumo (países escandinavos, Suíça). A formação das cooperativas dava-se devido à necessidade de lutar contra os grandes monopólios17. De fato, o cooperativismo foi se estabelecendo em todo o mundo e de forma diversificada. Em alguns países, prevaleceu, inicialmente, o cooperativismo de consumo, mas também houve uma variedade nos tipos de cooperativas que foram criadas. Na Inglaterra (cooperativismo de consumo); Alemanha (crédito e, posteriormente as de consumo); Suíça (cooperativismo de consumo, agrícola, especialmente, o pecuário, de laticínios e carnes); França (cooperativas industriais e artesanais e de produção); Dinamarca (agrícola); Suécia (consumo, industrial, habitacional, agrícola); Noruega e Finlândia (cooperativismo agrícola e de consumo); Holanda (agrícola e consumo); Itália (crédito – caixas Luzzati (inspiradas nas idéias de Schulze-Delitzsch e depois as artesanais e consumo); Japão18 (consumo); Índia (crédito, agrícolas e artesanais); Israel (Kibbutzim); EUA (consumo, agrícolas, crédito, produção (petróleo), eletrificação rural); Canadá (crédito, mineração, pesca). 17 Na Suécia, por exemplo, as primeiras cooperativas surgiram, nos últimos anos do século XIX, por intermédio de associações inspiradas em Rochdale. As primeiras cooperativas começaram, de forma modesta, e logo se expandiram e se associaram à União Cooperativa, mais conhecida como K.F., uma espécie de cooperativa central de caráter atacadista e manufatureira e que ainda tinha a função de orientar e educar os associados. Destacaram-se o cooperativismo industrial e a luta contra os cartéis e monopólios. A K.F. enfrentou várias vezes os trustes assumindo determinada produção (margarina, açúcar, chocolate etc.) e mostrando que podia vender os mesmos produtos por preços bem abaixo do praticado no mercado. 18 O Japão adotou como estratégia a idéia de rede de cooperativas distribuídas em 07 tipos diferentes: cooperativas de consumo (armazéns de distribuição), cooperativas de produtores, cooperativas de vendas, cooperativas de crédito, cooperativas de serviço e de utilidades, cooperativas de seguro e cooperativas de auxílio mútuo. 41 Mesmo que algumas dessas experiências tenham sido reprimidas, não tenham conseguido avançar, ou, em alguns casos, os princípios de democracia, autonomia e liberdade de organização tenham sido completamente desfigurados sob a forma de cooperativismo empresarial ou tutelado, estas iniciativas deixaram uma contribuição importante para a construção das experiências vinculadas à economia solidária. Percebe-se, portanto, que a economia solidária nasce de diferenciadas iniciativas concretas, bem como de idéias e teorias que vêm se consubstanciando em discussões, afirmações, divergências, contrapontos, similaridades, complementaridades, mostrando que as suas idéias são construídas em vários contextos e conjunturas e vão sofrendo modificações com menor ou maior importância, diante das variadas e complexas realidades. 1.2. A economia solidária no Brasil 1.2.1. Primeiras experiências A expressão economia solidária só vai ser utilizada, no Brasil, a partir dos anos de 1990. Mesmo assim, considero importante traçar um breve panorama sobre as primeiras experiências associativas que tiveram como base o cooperativismo. Apesar de essas experiências terem como referência inicial as idéias dos pioneiros de Rochdale, suas práticas foram revelando uma proximidade maior com as formas de atuação das empresas capitalistas do que mesmo com os princípios de autogestão pensados por alguns precursores. Entretanto, convém cautela no sentido de não generalizar para todas as experiências essa afirmação, tendo em vista, principalmente, a diversidade do Brasil e suas peculiaridades. Nesse sentido, ainda que o cooperativismo brasileiro, de forma geral, tenha caminhado para uma prática que não tinha com base uma gestão democrática e participativa, considero importante conhecer os seus antecedentes, inclusive para a reflexão e formas de atuação das iniciativas produtivas que hoje se denominam economia solidária. 42 No seu início, o cooperativismo, no Brasil, conta com a contribuição de imigrantes europeus, principalmente, no sul do país, com a ação dos Jesuítas,19 dos movimentos messiânicos sebastianistas, de origem portuguesa, que tinham conteúdo do cooperativismo comunitário integral. Somam-se também as experiências de ajuda mútua que, posteriormente, em alguns casos, transformaram-se em sindicatos. Enquanto na Europa o cooperativismo nasce, no início do século XIX, como reação aos princípios do liberalismo econômico, no nosso caso, com uma indústria ainda incipiente, o cooperativismo vai percorrer uma história diferente. No Brasil, as cooperativas de consumo foram organizadas, em sua maioria, por patrões, e as agrícolas, predominantes no início, pelo Ministério da Agricultura, enquanto instrumento de política econômica estatal, com o objetivo de estimular a produção, justificando a intervenção do Estado na economia em favor das classes menos favorecidas. Outras foram constituídas por fazendeiros e usineiros ricos para facilitar a sua própria produção. Esse estímulo à atividade cooperativa, por parte do Estado, tinha como propósito auxiliar na crise econômica por que estava passando, oriunda do setor cafeeiro e que já vinha se processando, desde a República Velha. A esse respeito Rios (1989) diz que: (...) no Brasil, o cooperativismo surge como uma promoção das elites (econômicas e políticas) numa economia predominantemente agro-exportadora. Não se trata, pois, de um movimento vindo de baixo, mas imposto de cima. Não é um caso, pois, de um movimento social de conquista, mas de uma política de controle social e de intervenção estatal. Não ocorreu a criação de uma fórmula associativa, mas apenas sua importação e adequação aos interesses das elites políticas e agrárias (RIOS, 1989, p.24). No Brasil, diferentemente da experiência de Rochdale, que esteve vinculada muito mais à atividade urbana em ramos de atividades ligadas ao consumo e produção, houve uma maior proliferação do cooperativismo no campo, cuja prática não teve como propósito questionar a estrutura agrária das regiões. 19 Em 1902, surgem, no Rio Grande do Sul, as primeiras caixas rurais que tinham como referência as experiências desenvolvidas por Raiffeisen. A primeira dessas caixas foi organizada em Nova Petrópolis e o seu organizador foi o padre suíço Teodoro Amstad. 43 A partir de 1930, verificou-se a ampliação do número de cooperativas no país. Foi nesta década que se estabeleceu uma legislação mais completa20 sobre as cooperativas por meio do Decreto 22.239 de 1932, tendo como base os princípios rochdaleanos e o caráter intervencionista do governo Vargas. Em 1944, aconteceu o primeiro Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em São Paulo, quando se comemorou o centenário da experiência dos pioneiros de Rochdale. Nesse Congresso, foi visível toda orientação teórica para a organização do cooperativismo no Brasil, que tinha como base os princípios de Rochdale, reorientados para atender aos interesses dos grandes capitalistas. A partir de meados da década de 1940, o governo passou a oferecer vários incentivos materiais e fiscais às cooperativas e, em 1951, foi criado o Banco Nacional de Crédito Cooperativo (BNCC), extinto no governo Collor. A partir de 1966, o cooperativismo perdeu muitos incentivos fiscais (cobrança de alguns impostos que, anteriormente, não eram efetuados), estabeleceram-se limites nas operações de crédito aos associados, impostos pelo Banco Central, e de liberdades já conquistadas, levando ao fechamento de muitas cooperativas. Diferente do que ocorreu no período de 1930 a 1964, a partir de 1965, o número de cooperativas agrícolas, praticamente, permaneceu o mesmo. Segundo os estudiosos do tema, essas mudanças estão diretamente relacionadas com o conjunto de transformações ocorridas no processo de acumulação do capital pelas quais passou o Brasil com reflexos no desenvolvimento agrícola e, em conseqüência, nas cooperativas. Com isso, constata-se um fortalecimento das empresas industriais mais avançadas, com subsídios importantes para seu desenvolvimento (linhas de crédito a juros subsidiados, isenções tributárias etc.), participação massiva do capital estrangeiro e a contenção dos preços dos produtos agrícolas com o desestímulo do aumento de sua produção. Ainda no ano de 1966, com o Decreto-Lei 59, de 21/11, foi criado o Conselho Nacional de Cooperativismo por meio do qual se definiu um controle excessivo do governo sobre o movimento cooperativista21. 20 Anteriormente teve-se o prenúncio de uma legislação, com os Decretos 979 de 6 de janeiro de 1903 e 1.637 de 5 de janeiro de 1907. 21 Em 1967, o Decreto 60.597 regulamenta a Lei 59 de 21/11/66, atribuindo a fiscalização das cooperativas de crédito ao Banco Central do Brasil; as de habitação ao Banco Nacional de Habitação e as demais cooperativas ao Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário – INDA. 44 No governo Médici, foi criada a Organização das Cooperativas Brasileiras OCB22 (1969), com a finalidade de ser o órgão nacional de representação das cooperativas, no Brasil. Em 1968, acontece, em Porto Alegre, o III Congresso Brasileiro de Cooperativismo. A década de 1970 foi considerada o período em que se tem uma grande preocupação com o amparo e renovação da legislação cooperativa e os instrumentos jurídicos necessários para o seu funcionamento. A legislação criada no governo Vargas foi reforçada pelo autoritarismo do regime militar no governo Médici, com o Decreto-Lei 5.764 de dezembro de 1971, regulando até hoje o funcionamento do cooperativismo no Brasil, já que o propósito, por parte do Estado, era atrelar e controlar a atividade cooperativa. A Constituição de 1988 avançou no sentido de fornecer uma maior liberdade na criação das cooperativas, apesar da necessidade de Leis complementares para regularização da questão, até hoje sem aprovação. A partir da década de 1980, com a multiplicação de outras práticas produtivas solidárias, algumas questões se apresentavam. Por um lado, o cooperativismo, ligado à OCB, começava a se preocupar com o impulso associativista que estava se desenvolvendo no país, vinculado a pequenos negócios com atuação no setor informal, ocupando, muitas vezes, espaços das cooperativas. Por outro, a preocupação é também no sentido de garantir e ampliar o seu espaço no cenário nacional e garantir a independência com relação ao controle estatal23. Esse movimento associativo com que se preocupava a OCB começava a mostrar sua expressão também em outros segmentos da sociedade brasileira. Esses órgãos podiam intervir nas cooperativas para resguardar a lei e defender o interesse coletivo. 22 A Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB foi criada em 1969, fruto da junção da UNASCO – União Nacional das Associações Cooperativas e da ABCOOP – Associação Brasileira de Cooperativas. Nesse mesmo ano de criação da OCB, aconteceu o IV Congresso Brasileiro do Cooperativismo, em Belo Horizonte. 23 Dentre as questões debatidas pelos integrantes da OCB estão: eliminação do controle estatal e a necessidade do movimento cooperativo assumir a própria autogestão; eleição de representantes do movimento cooperativo na constituinte de 1988; integração das cooperativas nos programas de reforma agrária. 45 Observam-se, já em meados dos anos de 1980, uma gradativa emergência e multiplicação de empreendimentos associativos de cunho comunitário e, às vezes, até semi-familiar (...) empreendimentos formados dentro dos movimentos sociais, também de cunho comunitário, ligados a reprodução da vida (GAIGER, 2000, p.168). Ainda, conforme Gaiger (2000), esses empreendimentos possuíam uma vinculação com setores da Igreja e significavam muito mais obras assistenciais e filantrópicas. Destacam-se aí os trabalhos desenvolvidos pelos Projetos Alternativos Comunitários da Cáritas – PACS. Segundo dados da Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB, o número de cooperativas cresceu 43,7%, no período de 1990 a 1998, e 29% de 1999 a 2002. Entre elas, as cooperativas de trabalho tiveram um crescimento de 112%. Já no inicio da década de 1990, começaram a aparecer cooperativas de produção, em virtude da falência de algumas fábricas que passam a ser assumidas pelos trabalhadores. Em 1994, foi criada a Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas Autogestionárias e de Participação Acionária – ANTEAG, cujo objetivo é orientar e acompanhar o processo de formação de empresas geridas pelos próprios trabalhadores24. Segundo informações da ANTEAG, em 1994, 100% dos projetos de autogestão que viriam posteriormente a ser acompanhados por ela, foram originados de ‘crise do negócio, má gestão e situações préfalimentares’. Já em 2000, contemplando um número bastante ampliado destas experiências (cerca de 150, envolvendo aproximadamente 30 mil trabalhadores diretos), 45,7% haviam sido originados na própria iniciativa dos trabalhadores; em 18,3% dos casos, as empresas originais haviam chegado efetivamente à falência; em 10,4% originaram-se por artifícios da terceirização; em 9,8% tratavam-se de situações ainda préfalimentares; em 6,5% as empresas haviam sido apenas desativadas. Somente em 6% dos casos foram atribuídos estritamente à crise do negócio e má gestão. Incluindo nestes casos, os 2% em que a empresa foi simplesmente abandonada e os 1,3% em que eram empresas dirigidas por ‘laranjas’, e considerando também situações falimentares e pré-falimentares, conclui-se que em 2000 apenas 43,9% das empresas de autogestão, ora acompanhadas pela ANTEAG surgiram com os mesmos motivos daquelas de 06 anos atrás (TAUILE, 2001, p.12). Estudos importantes sobre experiências de empresas autogeridas podem ser encontrados em: Alves (2001); Pedrini (1998); Singer (2002b) e ANTEAG (2000). 24 46 Essa proliferação das iniciativas produtivas, no campo da economia solidária, especificamente nas décadas de 1980 e 1990, vem acompanhada de mudanças no cenário brasileiro, marcado por crescentes índices de desemprego, contínua concentração de renda, aumento do endividamento interno e externo, baixo crescimento econômico com redução dos investimentos e ênfase na financeirização, adesão ao processo de internacionalização da economia, elevação dos índices de pobreza e miséria e, conseqüentemente, o aumento do nível de desigualdades sociais. Mesmo tendo vivido anos de ouro (1950–1980) em sua economia, quando houve o maior impulso da industrialização nacional, por meio do Estado Desenvolvimentista, com uma taxa média anual de produção em torno de 7%, o Brasil continuou tendo um dos piores modelos de distribuição de renda do mundo, ou seja, a distribuição da riqueza continuou concentrada nas mãos de poucos. Essa situação é agravada se considerados os dados do IBGE que apontam, nos anos de 1990, a perda de seis milhões de empregos e na década de 1980, cerca de dois milhões. Há uma recomposição do emprego formal que envolve maior insegurança, elevada concorrência, face ao desemprego, flexibilização dos processos de trabalho, aliadas a mudanças significativas na base produtiva das empresas, por meio da adoção de um novo padrão produtivo que leva a reorganização da produção e do trabalho, inovações tecnológicas e, em conseqüência, maior competitividade e produtividade do trabalho. Contribui, nesse processo, a disseminação das idéias neoliberais, a redefinição do papel do Estado por meio da liberalização das importações, desregulamentação econômica e financeira, privilegiando o mercado financeiro com altas taxas de juros, valorização cambial. Vive-se, portanto, um novo momento do capitalismo, cujas características fundamentais estão assentadas na hegemonia do capital financeiro, na flexibilização do trabalho e do trabalhador e na desregulamentação e liberalização sustentadas no modelo neoliberal, que visa a mais completa mobilidade, liberdade e mundialização do capital (DRUCK, 2001, p.81). 47 Os reflexos recaem sobre os trabalhadores que passam a vivenciar situações de desemprego, dificuldades, cada vez mais, de inserção no mercado formal de trabalho, trabalhos temporários e instáveis. Segundo Pochmann (2001), durante a década de 1990, a cada 10 empregos criados, 02 eram assalariados, porém sem registro formal. Dos 13,6 milhões de pessoas que ingressaram no mercado de trabalho, nos anos 90, apenas 8,5 milhões obtiveram acesso a algum posto de trabalho, gerando um excedente de mão-de-obra de 5,1 milhões de desempregados. Em outras palavras, somente 62,5% das pessoas que se inseriram no mercado de trabalho encontraram uma vaga” (POCHMANN, 2001, p.103). É nesse cenário que (re)surgem outras formas de organizar a produção e de gerar trabalho e renda que vão além das experiências vinculadas ao cooperativismo. É comum nos diversos espaços, seja acadêmico, seja dos movimentos sociais, Fóruns, ONG´s, o entendimento de que se trata de experiências que têm procurado trilhar um outro caminho, cujo objetivo não é só gerar renda, mas também construir uma forma de produzir que favoreça a participação de todos os envolvidos nos empreendimentos, não só na gestão, bem como no usufruto dos bens e serviços. O propósito é estabelecer uma prática que se diferencie do chamado cooperativismo tradicional que, historicamente, foi sendo construído no Brasil com o apoio da OCB, com predomínio, inclusive, do cooperativismo agropecuário, cuja gestão sempre ficou ao encargo de um pequeno grupo, com sua produção beneficiando o grande capital. Ao se referir ao cooperativismo Veiga (2002) aponta que hoje o cooperativismo no Brasil vive enorme desenvolvimento. Existe, por um lado, o cooperativismo oficial, mais ou menos ligado a agências governamentais e de iniciativas de grande e médio porte, que não respeitam os princípios do cooperativismo, agindo na prática como empresas capitalistas. Por outro lado, existem inúmeras iniciativas voltadas para a construção de cooperativas autogestionárias, que realizam intercâmbios e se esforçam para a construção de redes de economia solidária (VEIGA, 2002, p.29). 48 Conforme Gaiger (1999a), (...) no campo do solidarismo econômico popular, contam-se hoje empreendimentos os mais diversos, de caráter familiar ou comunitário, sob forma de sociedades informais, microempresas ou cooperativas de trabalhadores. Identificam-se por seus princípios de equidade e participação, que procuram colocar em prática, organizando-se de forma autogestionária e democrática (GAIGER, 1999a, p.3). Na atualidade, o desenvolvimento da economia solidária, no Brasil, além da presença de inúmeros empreendimentos, vem se expressando também em diferentes níveis, dentre os quais podem ser destacados: as ações governamentais, o papel exercido pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária, enquanto articulador dos diferentes segmentos do campo da economia solidária, e a presença de entidades de assessoria e fomento. 1.2.2. Virando o século XXI 1.2.2.1. A ação governamental A partir de meados dos anos de 1990, já começam a se delinear algumas ações governamentais nas quais se tinha como foco o desenvolvimento de programas com vistas à geração de renda, principalmente no sentido de reforçar o caráter associativo e cooperativo. Tais ações se iniciam pelas administrações municipais25 de Porto Alegre e, no final da década de 1990, no Estado do Rio Grande do Sul, com a criação do Programa de Economia Popular e Solidária vinculado à Secretaria do Desenvolvimento e Assuntos Internacionais. O propósito era incentivar a criação de vários empreendimentos, fomentando a organização econômica associativa, principalmente dos grupos de baixa renda. Outras experiências também foram, paulatinamente, sendo desenvolvidas a exemplo dos municípios de São Paulo-SP, Recife-PE, Blumenau-SC, BelémPA, Santo André-SP. 25 A Prefeitura de Porto Alegre, nesse momento, era administrada pelo Partido dos Trabalhadores. Em 1998 foi inaugurada a primeira incubadora de economia popular de Porto Alegre. 49 No âmbito do governo federal, o marco maior de inserção da economia solidária aconteceu por ocasião da criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, em 2003, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego – MTE. A criação desta Secretaria significou o atendimento do governo Lula às diversas discussões que já estavam sendo efetivadas, desde o I Fórum Social Mundial, quando foi criado o Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária – GT Brasileiro26, resultando, posteriormente, na criação do Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES. Para Singer (2005, p.3), a criação da SENAES significou o reconhecimento pelo Estado brasileiro das transformações provocadas no mundo do trabalho, indicando “uma ampliação de responsabilidade do MTE que passa a incluir o cooperativismo e o associativismo urbano (já que o rural continua responsável o Ministério da Agricultura)”. Com o objetivo de proporcionar a visibilidade, a articulação da economia solidária e oferecer subsídios aos processos de formulação de políticas públicas, a SENAES, vem realizando, em todo o Brasil, um mapeamento da economia solidária que vai compor o Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária – SIES27. Os resultados iniciais deste mapeamento têm indicado que, nos primeiros anos do século XXI, é grande o número de empreendimentos econômicos solidários no Brasil. Numa primeira fase de listagem, foram identificados 20.000 empreendimentos, considerando-se cooperativas, associações de produtores, grupos de produção, clubes de troca, feiras etc. Na segunda fase da pesquisa, foram identificados 14.954 empreendimentos econômicos solidários, distribuídos em 2.274 municípios brasileiros, o que 26 Esse Grupo de Trabalho – GT foi criado para facilitar a interlocução entre as diversas entidades nacionais e internacionais que estavam desenvolvendo ações vinculadas à economia solidária. Inicialmente, compunham esse GT 12 Entidades e Redes Nacionais de Fomento. São elas: Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária (RBSES), Instituto Políticas Alternativos para o Cone Sul (PACS), Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE), Associação Nacional dos Trabalhadores e Empresas de Autogestão (ANTEAG), Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas (IBASE), Cáritas Brasileira, Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST/Concrab), Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP's), Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS/CUT), UNITRABALHO, Rede Brasileira de Gestores de Políticas Públicas da Economia Solidária e a Associação Brasileira de Instituições de Micro-Crédito (ABICRED). A esse respeito consultar: www.fbes.org.br. 27 O mapeamento está na terceira fase. Na segunda fase, foram realizadas visitas aos empreendimentos listados na primeira etapa. Os resultados da pesquisa foram condensados no Atlas da Economia Solidária do Brasil, lançado na I Feira Nacional de Economia Solidária, que aconteceu em São Paulo, abril de 2006, e pode ser consultado em www.mte.gov.br. 50 corresponde a 41% destas localidades. O maior número destes empreendimentos, considerando-se a distribuição territorial, encontra-se na região Nordeste (44%). Os demais (56%) estão distribuídos nas outras regiões, sendo 13% na região Norte, 14% na região Sudeste, 17% na região Sul e 12% na região Centro-Oeste. A maior parte dos empreendimentos está organizada sob a forma de associações (54%), seguida dos grupos informais (33%) e organizações cooperativas (11%). As outras formas de organização aparecem com apenas 2%. A pesquisa também indica que há uma tendência comum quanto ao crescimento da economia solidária, no Brasil, principalmente a partir dos anos de 1990, cujas razões da criação dos empreendimentos estão justificadas nos seguintes aspectos: alternativa ao desemprego (45%), complemento da renda dos seus sócios (44%) e obtenção de maiores ganhos (41%). Metade dos empreendimentos atua, exclusivamente, na área rural, 33% atuam, exclusivamente, na área urbana e 17% têm atuação nas áreas rural e urbana. Os ramos de atividades, mais comuns estão relacionados com a agropecuária, extrativismo e pesca (42%), alimentos e bebidas (18,3%) e diversos produtos artesanais (13,9%). Desde 2004, a Secretaria Nacional de Economia Solidária - SENAES vem executando o Programa Economia Solidária em Desenvolvimento, cujo objetivo é “promover o fortalecimento e a divulgação da economia solidária, mediante políticas integradas, visando à geração de trabalho e renda, à inclusão social e à promoção do desenvolvimento justo e solidário”28. Neste Programa, estão sendo desenvolvidos alguns projetos, a exemplo dos Centros Públicos de Economia Solidária29, com o intuito de disponibilizar um espaço para que os empreendimentos desenvolvam ações de formação, comercialização e divulgação dos seus produtos; formação de gestores públicos em economia solidária30; feiras 28 Conforme www.mte.gov.br. Existem hoje em execução 21 Centros Públicos apoiados pela SENAES. Estão localizados nos seguintes Estados: (03 em Minas Gerais; 01 no Ceará; 01 em Pernambuco; 05 em São Paulo; 01 em Mato Grosso; 03 no Piauí; 01 no Rio de Janeiro; 03 no Rio Grande do Sul; 02 em Santa Catarina e 01 no Paraná). Cf. BRASIL. Secretaria Nacional de Economia Solidária. Formação para uma economia solidária: balanço das ações da SENAES – 2003 a 2006. Brasília: MTE/SENAES, 2006 (mimeo). 30 Essa formação aconteceu nos anos de 2005 e 2006 por meio da realização de videoconferências, seminários, oficinas, encontros regionais, quando foram debatidos conceitos, estratégias, financiamento e as responsabilidades do Estado na construção de políticas públicas de economia solidária. Tal formação envolveu gestores que atuam em políticas públicas de 29 51 de economia solidária31 como parte das ações de promoção de ações do consumo ético e comércio justo, entre outros. Além da SENAES, o governo federal criou o Conselho Nacional de Economia Solidária32 que agrega representações da sociedade civil, do governo e dos empreendimentos33. Este Conselho foi concebido como órgão consultivo e deliberativo e tem como atribuições, entre outras, “propor diretrizes e prioridades para a política de economia solidária”34. Outro marco importante em termos de discussões e presença da economia solidária, no cenário nacional e em âmbito governamental, foi a realização da I economia solidária, pessoas interessadas em implementá-las e representantes dos Fóruns Estaduais de Economia Solidária. Foi desenvolvida mediante uma parceria estabelecida entre a SENAES, Rede de Gestores de Políticas Públicas de Economia Solidária, Centro Josué de Castro e Fundação Banco do Brasil. Foram capacitados na primeira fase do projeto, no ano de 2005, 40 gestores públicos na oficina Nacional, 457 gestores em seminários regionais e 450 gestores em videoconferência e plenárias regionais. Em 2006, durante a Fase II do projeto, participaram 70 gestores nas atividades nacionais e 400 gestores de municípios e estados nas atividades regionais e sub-regionais. Ibidem. 31 No ano de 2005, foram realizadas 18 feiras estaduais; em 2006, 26 feiras estaduais. Nas feiras, além da comercialização de produtos, acontecem várias atividades: formação em economia solidária e outros temas correlatos; apresentações culturais; trocas solidárias; rodadas de negócio, etc. Disponível em: www.fbes.org.br. Acesso em: maio de 2007. 32 Toda composição de constituição do Conselho Nacional de Economia Solidária foi discutida e negociada com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, nas reuniões da Coordenação Nacional deste. 33 Fazem parte do Conselho Nacional de Economia Solidária os seguintes representantes: dos governos: Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, SENAES, Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA; Ministério do Desenvolvimento Social – MDS; Ministério das Comunicações – MC; Ministério do Meio Ambiente – MMA; Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA; Ministério da Fazenda – MF; Ministério da Integração Nacional – MIN; Ministério da Ciência e Tecnologia – MCT; Ministério da Educação – MEC; Secretaria Geral da Presidência da República; Secretaria da Aqüicultura e Pesca; Secretaria de Políticas Públicas de Igualdade Racial – SSPIR; Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES; Caixa Econômica Federal – CEF; Banco do Brasil – BB; Fórum Nacional dos Secretários do Trabalho – FONSET; Rede de Gestores de Políticas Públicas de Fomento à Economia Solidária. Dos empreendimentos de economia solidária: Associação Nacional de Cooperativas de Crédito e Economia Solidária – ANCOSOL; Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão – ANTEAG; Confederação Nacional de Cooperativas da Reforma Agrária – CONCRAB; União e Solidariedade das Cooperativas e Empreendimentos de Economia Solidária – UNISOL; União Nacional de Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária – UNICAFES; 15 representantes de empreendimentos econômicos, indicados pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES. Outras organizações da sociedade civil e serviços sociais: Articulação do Semi-Árido – ASA; SEBRAE; Grupo de Trabalho da Amazônia – GTA; Conselho Nacional de Igrejas Cristãs – CONIC; Rede Cerrado; Rede Mulheres Economia; UNITRABALHO; Movimento Nacional de Catadores; Movimento Nacional Quilombolas; Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares – ITCP’s; Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária – RBSES; Cáritas Brasileira; Fórum de Comércio Ético e Solidário do Brasil – FACES Brasil; Associação Brasileira de Entidades de Microcrédito – ABCRED; Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG; Pastoral Social da Confederação Nacional de Bispos Brasileiros – CNBB; Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB. Cf. www.mte.gov.br. 34 Conforme art. 2º. do Decreto 5.811, de 21 de junho de 2006. 52 Conferência Nacional de Economia Solidária – I CONAES35 que aconteceu no período de 26 a 29 de junho de 2006, em Brasília. A temática geral deste evento “A economia solidária como estratégia e política de desenvolvimento” teve como norte a discussão de três eixos36: os fundamentos da economia solidária e seu papel para a construção de um desenvolvimento sustentável, democrático e socialmente justo; o balanço do acúmulo da economia solidária e das políticas públicas implementadas; prioridades e estratégias de atuação para as políticas públicas da economia solidária e mecanismos de participação e controle social. Como resultado das discussões da I CONAES e de seus documentos de referência, tem-se o entendimento da economia solidária como uma prática de produção, comercialização, finanças e consumo que privilegia a autogestão, a cooperação e o desenvolvimento comunitário e que se caracteriza por valores culturais que colocam o ser humano na sua centralidade ética e lúdica e como sujeito e finalidade 37 da atividade econômica, ao invés da acumulação privada do capital . Vêem-se, portanto, a partir do governo Lula, mais especificamente com a criação da SENAES, iniciativas no sentido de construir uma política nacional de economia solidária no Brasil, no âmbito governamental, que têm refletido em ações e iniciativas também em nível estadual e municipal. Em 2007, com a eleição de novos governadores, observa-se uma tendência de expansão da economia solidária nos Estados, tendo como 35 Foi definido que a convocação da I Conferência Nacional de Economia Solidária – I CONAES deveria ser atribuição do Conselho Nacional de Economia Solidária. A composição do Conselho foi decidida no final de 2005, entretanto a sua oficialização só ocorreu, em junho de 2006, às vésperas da Conferência. Para garantir a participação do Conselho, foi realizada uma oficina em fevereiro de 2006, que contou com a participação das entidades que iriam compor o Conselho. Resolveu-se, então, que a I CONAES já deveria ser iniciada em maio com as pré-conferências. Uma comissão nacional foi formada (composta por representantes de empreendimentos, gestores públicos e entidades de apoio e assessoria) para pensar documentos de referência, organização da Conferência etc. Nos Estados, as Conferências ficaram sob a responsabilidade das Delegacias Regionais do Trabalho ou dos governos estaduais. A escolha dos delegados para a Conferência foi feita da seguinte forma: 50% das vagas para os empreendimentos; 25 % para gestores públicos; 25% para entidades da sociedade civil. Participaram 1.017 delegados dos Estados; 56 delegados nacionais; 27 facilitadores; 02 acompanhantes; 34 pessoas no apoio; 177 convidados; 03 representantes da imprensa; e 36 pessoas que participaram da abertura oficial, num total de 1.352 pessoas. A esse respeito, consultar os ANAIS da I CONAES. 36 Discutidos, no âmbito das pré-conferências estaduais, municipais e regionais, cabendo à comissão de sistematização agregar ao documento inicial as sugestões. Durante a realização da I CONAES, novos acréscimos foram feitos, gerando um documento final, onde constam as proposições e resoluções por eixo temático. 37 Cf. ANAIS da I CONAES. 53 exemplos: na Bahia, a criação recente de uma Superintendência de Economia Solidária vinculada à Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte e no Maranhão com a Secretaria de Trabalho e Economia Solidária. Além disso, têm sido criadas Leis em alguns Estados que instituem a Política Estadual de Fomento à Economia Solidária, a exemplo do Estado do Espírito Santo, Projeto de Lei do Rio Grande do Norte e a Lei de Fomento à Economia Solidária do Estado do Piauí. 1.2.2.2. O Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES No I Fórum Social Mundial, realizado em janeiro de 2001, em Porto Alegre, nasceram as primeiras articulações em torno do tema da economia solidária, mediante a constatação da existência de várias iniciativas produtivas e também da identificação de algumas experiências no âmbito das políticas governamentais estaduais e municipais. No referido evento, foi criado um Grupo de Trabalho – GT, já mencionado anteriormente, com o propósito de articular e mediar a participação nacional dos diversos segmentos que trabalhassem com a economia solidária. O GT convocou duas plenárias nacionais, nas quais foram elaboradas uma carta de princípios e uma plataforma de lutas, referendadas por ocasião de uma terceira plenária,38 quando foi criado o Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES. Este Fórum é constituído por representações dos empreendimentos solidários, entidades de assessoria e fomento e gestores públicos39, sendo o interlocutor entre estas representações e outros movimentos 38 A I e II Plenárias foram realizadas em 2002 e 2003, respectivamente, por ocasião do II e III Fóruns Sociais Mundiais. A terceira Plenária aconteceu em junho de 2003. Para essa terceira plenária, foram feitas, como forma de preparação e mobilização, 18 plenárias estaduais que contaram com a presença de mais de 800 delegados. 39 A composição atual do FBES é a seguinte: a sua principal instância de decisão é a Coordenação Nacional, formada por representantes das entidades e redes nacionais de fomento, além de 3 representantes por Estado que tenha Fórum ou Rede Estadual de Economia Solidária. Destes 3 representantes por Estado, 2 são empreendimentos e 1 é assessor ou gestor público. A Coordenação Nacional reúne-se 2 vezes ao ano. Para a gestão política cotidiana, interlocução com outros movimentos e com o governo federal, e acompanhamento da Secretaria Executiva Nacional, há uma Coordenação Executiva Nacional, composta por 13 pessoas, sendo 7 representantes de empreendimentos (2 do Norte, 2 do Nordeste e 1 representante para cada uma das demais regiões), 5 representantes das Entidades e Redes Nacionais de promoção à Economia Solidária, e 1 representante da Rede Nacional de Gestores Públicos. Por fim, para dar suporte aos trabalhos do Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES, propiciar a 54 sociais, principalmente com o governo federal que, por sua vez, inclui nos programas relativos à economia solidária itens da plataforma do FBES. A carta de princípios do FBES define bem a sua identidade e indica a concepção da economia solidária como sendo práticas que prezam a valorização social do trabalho humano; a satisfação plena das necessidades de todos como eixo da criatividade tecnológica e da atividade econômica; o reconhecimento do lugar fundamental da mulher e do feminino numa economia fundada na solidariedade; a busca de uma relação de intercâmbio respeitoso com a natureza e os valores da cooperação e da solidariedade40. Para o FBES, a economia solidária se desenvolve por meio de práticas fundadas em relações de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica, em vez da acumulação privada de riqueza em geral e de capital em particular41. As bandeiras de luta defendidas pelo FBES estão traduzidas na sua plataforma e relacionadas, entre outras, às seguintes questões: a) luta por uma política nacional de finanças solidárias (fundos solidários, grupos de trocas, bancos comunitários, cooperativismo de crédito, crédito solidário,etc.); b) definição de um marco legal para a economia solidária (construção do Estatuto da Economia Solidária; Leis Estaduais de Fomento à Economia Solidária; reforma nas legislações tributária, fiscal, previdenciária, revisão na Lei de Falências; Lei geral do cooperativismo); c) desenvolvimento de um processo educativo que contemple conteúdos de economia solidária no ensino (desde a pré-escola ao ensino universitário) e que perpasse temas transversais; nas atividades de pesquisa e extensão; criação de centros de formação para agentes e atores da economia solidária, garantindo comunicação entre as instâncias e operacionalizar reuniões e eventos, existe uma Secretaria Executiva Nacional. Existem ainda Grupos de Trabalho (GT's) que se conformam, de acordo com a demanda de ações específicas do FBES, e para o avanço na implantação da Plataforma da Economia Solidária. Os GT's, atualmente, são: Mapeamento, Finanças Solidárias, Marco Legal, Comunicação, Políticas Públicas, Relações Internacionais e Produção, Comercialização e Consumo. Cf. www.fbes.org.br. 40 Conforme Carta de Princípios do FBES. Disponível em: www.fbes.org.br. 41 Ibidem. 55 capacitação e assistência técnica; estímulo à participação em programas de educação de jovens e adultos para aqueles que não tiveram a oportunidade de freqüentar o ensino regular; d) comercialização: criação de um Sistema de Comércio Justo e Solidário42; constituição de redes e cadeias de produção, comercialização e consumo; Sistemas Estaduais de Comercialização; realização das feiras estaduais e a feira nacional de economia solidária. Todas essas bandeiras de luta estão presentes nas reuniões da Coordenação Nacional43, da Coordenação Executiva, nos encontros e seminários, tendo-se sempre como referência a carta de princípios e a interlocução com os Fóruns de Economia Solidária dos Estados44. Por meio do FBES, tem ocorrido uma série de mobilizações no sentido de garantir o espaço da economia solidária, não só no âmbito governamental, mas também para o seu reconhecimento na sociedade em geral. Em agosto de 2004, aconteceu o I Encontro Nacional de Empreendimentos Econômicos Solidários no qual compareceram cerca de 2.000 pessoas, sendo 1.800 empreendimentos econômicos solidários dos 27 Estados brasileiros. Recentemente, no dia 08 de maio de 2007, foi lançada, na Câmara Federal, a Frente Parlamentar em defesa da Economia Solidária. Foi uma iniciativa do deputado federal Eudes Xavier (PT – Ceará), resultado da mobilização realizada pelo FBES. Essa Frente Parlamentar tem como objetivo manter um fórum Já foi elaborada uma proposta de Instrução Normativa do Sistema de Comércio Justo e Solidário, a ser negociada com o governo federal. O propósito, do referido documento, é definir um Sistema Público Nacional que regulamente esse tipo de comércio, considerando-se as peculiaridades brasileiras e o papel do Estado nesse processo. Com essa regulamentação os empreendimentos econômicos solidários teriam acesso a benefícios fiscais, licitatórios, agregação de valor ao produto e melhoria da qualidade, a prática do preço justo, organização em cadeias e redes de produção e comercialização, consumo responsável, entre outros. Essas discussões vêm acontecendo no interior do FBES que possui um GT específico para tratar dessas questões. Conta também com o apoio e experiência do Fórum de Articulação para o Comércio Ético e Solidário do Brasil – FACES Brasil. Cf. Notícias da Economia Solidária. Proposta de Instrução Normativa do Sistema de Comércio Justo e Solidário. Disponível em: www.fbes.org.br. Acesso em 19 de maio de 2007. 43 Já ocorreram, até o momento, sete reuniões da Coordenação Nacional do FBES. A IV reunião aconteceu, no período de 07 a 10 de maio deste ano (2007), em Brasília. 44 Existem Fóruns de Economia Solidária em todos os Estados do Brasil. Atualmente, o FBES tem feito uma série de encontros regionais, com o propósito de discutir a sua reestruturação, no sentido de reafirmar sua identidade política, suas bandeiras de luta nacionais, regionais e locais, a sua relação com os diversos segmentos da sociedade civil e do governo, além da sua sustentabilidade e forma de organização e gestão. Esse processo de reestruturação vai ser alvo de discussão por ocasião da realização da IV plenária nacional que deverá acontecer em março de 2008, sendo precedida de plenárias estaduais. 42 56 permanente de debate, estudo, fomento e elaboração de legislações pertinentes ao campo da economia solidária. Destaca-se que FBES tem sido um instrumento de mobilização da economia solidária e desenvolvido o papel de representação dos seus diversos segmentos no diálogo para a construção de uma política nacional para a economia solidária, potencializando a organização destes atores em redes de representação, articulações e cadeias. Em termos dos movimentos sociais, podese considerar que o FBES tem sido um espaço de articulação nacional no qual participam movimentos sociais, empreendimentos, entidades de assessoria e gestores. 1.2.2.3. No As instituições apoiadoras âmbito das instituições que vêm dando apoio tanto aos empreendimentos como também a outros segmentos que trabalham com a economia solidária, têm-se os trabalhos desenvolvidos pelas universidades e outras organizações sociais. Nos anos de 1990, após uma década de inflação e estagnação, a sociedade brasileira vivencia um cenário no qual milhões de pessoas estavam vivendo abaixo da linha da pobreza. Existia uma cobrança, por parte de vários segmentos da sociedade, no sentido de que as universidades estreitassem os laços com a comunidade e desempenhassem melhor o seu papel social de contribuir com o seu desenvolvimento, não só pela via da produção do conhecimento e da sua socialização, mas também na busca de estratégias de organização social em parceria com outros agentes presentes na sociedade. Algumas universidades já possuíam experiência em estudos, pesquisas e atividades de extensão no âmbito do cooperativismo, a exemplo da UNISINOS – Rio Grande do Sul – convidada pela Fundação Osvaldo Cruz para criar uma cooperativa popular na periferia do Rio de Janeiro, precisamente na favela de Manguinhos. Essa experiência inspirou outras iniciativas que surgiram posteriormente, chegando-se à criação da primeira Incubadora Tecnológica de 57 Cooperativas Populares vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ45. A Central Única dos Trabalhadores – CUT, mediante contatos estabelecidos com reitores e pesquisadores, convidara as universidades a estreitarem a relação universidade – sindicato. Essas discussões foram assumidas pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras – CRUB, sendo criada, em 1996, a Rede de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho – UNITRABALHO, com o propósito de desenvolver mecanismos de cooperação entre as universidades e as organizações sindicais e outras instituições sociais, no sentido de democratizar o conhecimento produzido e visando a articular, em escala nacional, a universidade e o mundo do trabalho, contribuindo, assim, para o resgate da dívida social que as universidades brasileiras têm para com os trabalhadores. Sua missão se concretiza por meio da parceria em projetos de estudos, pesquisas e capacitação, viabilizados por intermédio das várias universidades em todo Brasil, incluindo as federais, estaduais e comunitárias. Dessa forma, além de contribuir para o fortalecimento das organizações sociais relacionadas com o mundo do trabalho, a Unitrabalho busca o fortalecimento das instituições de ensino superior a ela agregadas. Em primeiro lugar, porque essas instituições têm um papel social a cumprir: o de buscar soluções para os problemas reais das comunidades nas quais estão inseridas e, num plano mais amplo, para os problemas nacionais. Em segundo lugar, porque somente instituições universitárias sólidas e que absorvam as questões do mundo do trabalho no seu 'pensar' e ‘fazer´ acadêmicos podem contribuir com mais propriedade, consistência e efetividade para a solução dos problemas sociais do 46 nosso país . Ainda em 1997, a UNITRABALHO criou um Grupo de Trabalho – GT de economia solidária que foi ao longo dos anos, construindo referências teóricas e metodológicas culminando, posteriormente, na criação do Programa Economia Solidária e Desenvolvimento Sustentável, hoje sendo executado em 36 Em 1997, foi lançado o Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas – PRONINC, no âmbito do COEP, em parceria com a FBB, BB, COPPE/UFRJ – quando outras incubadoras foram criadas na Universidade Federal do Ceará, na Universidade Estadual da Bahia, Universidade de São Paulo, Universidade Federal Rural de Pernambuco e Universidade Federal de Juiz de Fora. O propósito era desenvolver a metodologia de incubação de cooperativas populares e a difusão desta tecnologia social para outras universidades do país. 46 Cf. www.unitrabalho.org.br. 45 58 universidades. Além da UNITRABALHO, existe também a Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares – ITCP`s que agrega 16 universidades públicas e desenvolve assessoria em vários empreendimentos em todo Brasil. No caso da UNITRABALHO, existe, atualmente, o desenvolvimento de quatro grandes Programas: Economia Solidária e Desenvolvimento Sustentável, Trabalho e Educação, Emprego e Relações de Trabalho e Saúde do Trabalhador, que são concebidos para articular projetos que materializam sua missão no âmbito do ensino, pesquisa e extensão, estruturados de forma a atender projetos em diferentes áreas, respeitando as peculiaridades de cada região do país. O Programa Economia Solidária e Desenvolvimento Sustentável47 está constituído como um espaço plural de pesquisa e atividade prática de extensão consubstanciado na luta pela construção de novas relações de trabalho, que promovam o desenvolvimento sustentável e a autonomia dos trabalhadores por meio de empreendimentos econômicos solidários autogestionários - EES, com vistas à inovações tecnológicas e inserção no mercado, preferencialmente em cadeias produtivas48. Tem como objetivo promover a geração e consolidação de Empreendimentos de Economia Solidária, assegurando sua adequada inserção em cadeias produtivas ao lado de empreendimentos semelhantes, sob a forma de pequenas unidades de produção, cooperativas, empresas de autogestão e outras modalidades49. A UNITRABALHO nacional, por meio desse Programa e das universidades a ela agregadas, vem construindo referências metodológicas que orientam a incubação50, considerada como O Programa Economia Solidária e Desenvolvimento Sustentável da UNITRABALHO será aqui destacado, tendo em vista o campo desta pesquisa, ou seja, os empreendimentos e cooperados/associados, aqui pesquisados, estão vinculados a um Núcleo/Incubadora desta Rede. 48 Cf. www.unitrabalho.org.br. 49 Cf. folder da UNITRABALHO. 50 Todo material de referência metodológica, para a incubação dos empreendimentos econômicos solidários, encontra-se no sítio da Rede UNITRABALHO à disposição das universidades agregadas que, diante da sua realidade, fazem as modificações que consideram necessárias. Esse referencial tem sido importante na construção das etapas e processos de incubação, além de que, enquanto Rede, serve também para reforçar a sua identidade. Consultar: www.unitrabalho.org.br. 47 59 um processo prático educativo de organização e acompanhamento sistêmico a grupos de pessoas interessadas na formação de empreendimentos econômicos solidários, tendo em vista a necessidade de suporte técnico para a realização desses empreendimentos (CULTI, 2006, p.2). Trata-se de um processo educativo que exige um suporte teórico e técnico, interação constante do próprio grupo, entre outros grupos, com a equipe de assessores e instituições parceiras. O processo de incubação é revestido por momentos de troca, construção e reconstrução de saberes (acadêmico e popular), envolvendo profissionais de diferentes áreas do conhecimento. Nesse sentido, a incubação se desenvolve por meio de uma metodologia que tem como base o estabelecimento de uma relação dialógica, na qual “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1999, p.25). As etapas que envolvem a incubação vão sendo construídas, a partir da realidade dos empreendimentos e suas demandas. A experiência de incubação da UNITRABALHO tem levado algumas incubadoras, a ela vinculadas, a multiplicarem suas experiências, contribuindo na criação de novas incubadoras, socializando os conhecimentos produzidos, ampliando e oportunizando o desenvolvimento de ações de geração de trabalho e renda. Para tanto, contam com parcerias de órgãos públicos, privados, ONG’s. A UNITRABALHO, por sua vez, também estabelece parcerias e convênios com instituições nacionais e internacionais, visando conhecer novas experiências, socializar aquelas já acumuladas e conseguir financiamentos a serem repassados para as incubadoras vinculadas à Rede. Atualmente o Programa de Economia Solidária e Desenvolvimento Sustentável, desenvolvido por meio dos Núcleos/Incubadoras das universidades, tem sido uma das ações importantes para a visibilidade da UNITRABALHO, em nível nacional, tendo em vista a sua abrangência e as ações concretas desenvolvidas por meio da atividade de incubação, junto a mais de 179 empreendimentos econômicos solidários, atendendo a 10.986 beneficiários51. Além das universidades, outras organizações sociais têm desenvolvido um trabalho importante de pesquisa, construções teórico-metodológicas e na assessoria do processo de formação dos empreendimentos. É oportuno destacar: 51 Cf. documento lista geral das incubadoras UNITRABALHO, outubro de 2006, (mimeo). 60 a) o trabalho desenvolvido pela Cáritas Brasileira, nos diversos cantos do Brasil, auxiliando na criação e/ou consolidação de empreendimentos econômicos solidários e de experiência com os fundos solidários; b) a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), por meio do fortalecimento das redes sócio-produtivas; do incentivo ao comércio ético e solidário; da avaliação de programas e projetos de incubação; c) a Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão (ANTEAG), por intermédio da produção, difusão de conhecimento e informação sobre processos gerenciais para os trabalhadores em empresas autogeridas; d) a Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS), cuja missão é promover a constituição, fortalecimento e articulação de empreendimentos autogestionários, buscando a geração de trabalho e renda, via organização econômica, social e política dos trabalhadores, inserindo-os num processo de desenvolvimento sustentável e solidário; e) a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) que, por meio das lutas empreendidas e da formação continuada, tem contribuído para a melhoria da qualidade de vida e ampliação de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais assalariados, permanentes ou temporários; dos agricultores familiares, proprietários ou não, dos sem-terra e, ainda, daqueles que trabalham em atividades extrativistas; f) o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que agrega à luta pela reforma agrária e justiça social ações de geração de renda, por meio da organização de cooperativas para a produção e comercialização; g) o Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) vem se dedicando na elaboração de propostas de políticas e práticas redistributivas, realização de pesquisas, e, sobretudo, na construção de práticas de economia, tendo por base a cooperação, a solidariedade, a autogestão; h) o Instituto Brasileiro de Análises SócioEconômica (IBASE) realizando avaliações de programas governamentais de diferentes políticas públicas, entre elas, as de trabalho e renda, realização de pesquisa e inserção nos Fóruns que tratam da economia solidária; i) a União e Solidariedade das Cooperativas Empreendimentos e de Economia Social do Brasil (UNISOL Brasil) que tem aglutinado empreendimentos em todo país e desenvolvido processos de formação, reforçando os princípios da participação democrática e da autonomia e independência. 61 Todas essas ações, em suas diferentes dimensões, estão compondo um outro momento da economia solidária, no Brasil, virando o século XXI com várias mudanças no âmbito do trabalho, diante de um cenário de desemprego, de articulações dos movimentos sociais que passam a colocar em suas pautas a discussão e ações vinculadas a essa temática, da presença de universidades e outras organizações sociais que prestam assessoria aos empreendimentos e outros segmentos sociais envolvidos com a economia solidária. Somam-se também as políticas governamentais que trazem para o cenário governamental a discussão de uma política pública nessa área; e, principalmente, o (re)surgimento de iniciativas produtivas que têm procurado construir novas relações de produção e de trabalho, cuja lógica não seja a exploração do homem, mas que sejam pautadas em práticas democráticas e participativas, na solidariedade, cooperação e respeito, numa tentativa de retorno aos princípios e valores iniciais do movimento cooperativo revolucionário que foi ao longo da história sofrendo modificações. Esse processo de mudança foi exigindo também o entendimento não só do cenário em que estas se processavam, mas a construção de elementos teóricos que auxiliassem no entendimento dessa dinâmica da economia solidária na contemporaneidade, suas especificidades e diversidade. 62 Capítulo 2 Economia solidária e participação “Nesse grupo, aprendi a impor meus direitos. Antes, eu não tinha direitos. O direito era aquilo que o povo dizia o que eu tinha que fazer” (Carmélia - UNIGRUPO). 63 CAPÍTULO 2 – ECONOMIA SOLIDÁRIA E PARTICIPAÇÃO 2.1. Conceituando a economia solidária A economia solidária, apesar de, ao longo dos séculos, já está presente em várias iniciativas cooperativas e associativas, vem, nas últimas décadas, tomando outras dimensões não só enquanto possibilidade de gerar trabalho e renda, mas também nos sentidos e formas de pensá-la teoricamente. Na contemporaneidade, ela envolve diversos aspectos e conceituações nem sempre consensuais entre os seus interlocutores, além de uma diversidade de experiências que, por um lado, mostra a riqueza do debate, por outro, também traz dificuldades entre suas distinções. No caso do Brasil, atualmente, ao se falar em economia solidária, normalmente, faz-se referência a um conjunto maior de experiências diversas que envolvem não só setores do cooperativismo, hoje, denominado por alguns de cooperativismo popular, cooperativismo autogestionário para diferenciar do cooperativismo vinculado à Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB, mas também grupos de produção, empresas autogestionárias, associações de produtores, clubes de trocas, bancos populares, consumo ético e solidário, feiras solidárias, entre outros. Trata-se, na verdade, de conceitos e experiências em construção e que, como tal, também a sua compreensão e análise são passíveis de mudanças, acréscimos e reformulações. Lechat (2004), ao estudar alguns teóricos da economia solidária, mostra que essa economia é geralmente entendida, no Brasil, como constituída por associações de produtores de bens e serviços, associações de comercialização e associações de consumidores desde que dentro das características já nomeadas, ou seja, a produção de bens necessários à maioria da população, produzidos sem agredir a natureza, de forma autogestionária, solidária e com equidade (LECHAT, 2004, p.109). As idéias que levaram a denominação economia solidária variam de país para país. Na América Latina, por exemplo, ainda nos anos 1980, o sociólogo chileno Luiz Razeto já utilizava a denominação economia de solidariedade, 64 presente em sua obra intitulada “Economia de la solidariedade y mercado democrático”52. Na França, conforme França Filho e Laville (2004, p.109), o conceito de economia solidária foi sendo elaborado no início dos anos de 1990 “fruto sobretudo das pesquisas desenvolvidas no CRIDA (Centre de Recherches et d’ Information sur la Démocratie et l’Áutonomie), sob a coordenação de Jean Louis Laville”. Lá ao se referir às cooperativas, associações e mutualidades, usase o termo economia social. No Brasil, as recentes mudanças no mundo do trabalho e na reestruturação do capitalismo em nível mundial, desencadearam a expansão e surgimento de variadas iniciativas de produção coletiva, de caráter autogestionário, que, aos poucos, foram se tornando visíveis no cenário nacional. Até então a forma produtiva de maior visibilidade era a cooperativa. Isso não significa que outras formas de produção não existissem. Exemplo disso são as associações de produtores rurais, os grupos informais, mas que não assumiam uma dimensão central na geração de trabalho e renda, ficando, muitas vezes, com ações de caráter comunitário. Conforme Gaiger (2000), nos anos de 1980, essas iniciativas tinham pequena visibilidade (...) Aos poucos esse campo vai ganhando visibilidade social e, agora, se pode falar também em visibilidade política. É quando vai surgir o conceito de Economia Solidária, junto com outros conceitos que procuraram dar conta dessa realidade (...) Nos anos 80, não se falava em economia solidária, mas em projetos comunitários; não se falava nem em experiência de geração de renda. Esse é um termo dos anos de 1990 (GAIGER, 2000, p.168-169). Essa ampliação e a presença de diversas experiências suscitaram estudos e pesquisas. Era preciso entender esse fenômeno e a ele cunhar um nome que lhe desse uma identidade nacional, principalmente no sentido de torná-lo referência ao se nominar a diversidade que ele comporta. Nos estudos, pesquisas e debates, no caso do Brasil, para sua compreensão, têm sido usadas denominações como: economia solidária (Singer, Gaiger, Mance); economia popular (Tiriba); sócioeconomia solidária (Arruda, Lisboa); economia popular solidária (Gaiger, Cáritas); produção associada (Gutierrez e Gadotti, Tiriba); entre outros. Apesar disso, a expressão economia solidária, parece ser aquela que 52 Publicado o primeiro volume em 1984. A esse respeito, consultar Lechat (2004). 65 mais tem expressão nacional e que, inclusive, serviu para ser referência na criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES. A produção teórica sobre a economia solidária passa por entendimentos diferenciados. Há estudiosos que a compreendem como um novo modo de produção (SINGER, 2000; NUNEZ, 1997; TIRIBA, 2001); outros a vêem como uma expressão estritamente ideológica incompatível com a relação economia – solidariedade – mercado (VAINER,1999); ainda existem os que a compreendem como uma nova forma social de produção (GAIGER,1999a). Como diz Coraggio (2004, p. 10), “(...) hay múltiples nombres para eso (...) y además hay distintos puntos de partida, hay distintas realidades”53. No Brasil, a construção das referências teóricas sobre economia solidária, tem como base não somente os estudos europeu e latino-americano54, mas também toda a gama de experiências e concepções construídas pelos socialistas do século XIX. Tanto é que o primeiro autor brasileiro55, a usar essa denominação, refere-se às experiências dos socialistas, a exemplo de Owen, Fourier, Gide. Trata-se, entretanto, de uma outra realidade, sendo explícita, inclusive, nas primeiras análises feitas por Paul Singer, ao escrever, em 1996, um artigo intitulado: “Economia solidária contra o desemprego”. Neste artigo, Singer já fala da economia solidária, entendendo-a como uma forma de organização dos trabalhadores, importante para enfrentar o desemprego. Igualmente, esse mesmo autor utiliza a expressão economia solidária, no ano de 1998, ao analisar as experiências das empresas autogestionárias acompanhadas pela Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão – ANTEAG. Não só nos escritos de Singer, mas também em boa parte dos estudos que tratam da economia solidária, no Brasil e na América Latina, é comum não só a referência aos clássicos do cooperativismo, bem como a algumas das suas idéias que perpassam pela reafirmação de pensar uma economia não-capitalista, o reforço de seus princípios e valores, entre outros. Todavia, essas idéias vêm tomando outras dimensões, diante dos novos cenários contemporâneos. 53 Conferência proferida no Fórum Social das Américas, Quito, Equador, 25 a 30 de julho 2004. Importante destacar os estudos de Laville (França); Razeto (Chile) e Coraggio (Argentina). 55 É Paul Singer quem primeiro utiliza a expressão economia solidária nos escritos acadêmicos, no Brasil. 54 66 Esse debate, por exemplo, caminha para a demarcação de espaço e público atendido, refletindo, conseqüentemente, no tipo de concepção que vai sendo construída. A sua diversidade e o receio de ser confundida com a economia capitalista levam alguns autores a situá-la como uma economia popular, ou ainda como uma economia popular solidária. Bertucci e Silva (2003), por exemplo, utilizam a expressão economia popular solidária, indicando que o propósito é fortalecer os setores populares em busca de alternativas de sobrevivência e também na construção de um outro modelo de desenvolvimento. Por meio dos Projetos Comunitários Alternativos – PACS, a Cáritas, vem, desde os anos de 1980, realizando diversas ações direcionadas, para apoiar iniciativas comunitárias e encontrar formas de sobrevivência, diante da situação de pobreza das comunidades rurais e urbanas. Caracterizando-se, inicialmente, como uma ação essencialmente assistencialista56, nos anos de 1990, esse trabalho, após um processo de avaliação, tomou outra direção. Os projetos passaram a incluir, além da ênfase nos aspectos organizativos, a viabilidade econômica dos empreendimentos, tornando-os capazes de gerar renda e promover melhorias sociais para as comunidades atendidas, ou seja, esse segmento chamado de popular. “Aqui o conceito ‘popular’ destaca o processo de organização solidária com e a partir dos excluídos57, refletindo a opção político-pedagógica da Cáritas Brasileira” (Bertucci e Silva, 2003, p.39). Fica claro o propósito de ao nomear essa temática com o adjetivo popular, não só no sentido de demarcar o terreno em que se dá essa construção por meio do público a ser atendido, mas no sentido político e ideológico. “É preciso enfrentar o desafio da configuração da EPS58 em um bloco distinto da Economia Empresarial Capitalista e da Economia Estatal” (Bertucci e Silva, 2003, loc. cit.). 56 Até o final da década de 1980, eram repassados recursos, a fundo perdido, para pequenos projetos de ajuda mútua, exigindo-se apenas que as comunidades se organizassem. Posteriormente, foi revista essa sistemática e criou-se um fundo de apoio a miniprojetos, a partir da contribuição solidária que advinha dos projetos que recebiam financiamento o que possibilitou atender a outras comunidades, além de ter sido mudada também a sistemática da metodologia adotada. Passou a haver um acompanhamento mais sistemático dos projetos, planejamento e avaliação das ações e trocas de experiências (Bertuci e Silva, 2003). 57 Nos projetos, a população atendida, a maioria, é da área rural (agricultores familiares, arrendatários, meeiros, sem-terra, assentados etc.); na área urbana, (pessoas desempregadas ou subempregadas, biscateiros, sem-teto, moradores de área de risco, favelados etc.). 58 EPS – Economia Popular Solidária. 67 Assim, nessa concepção, a denominação apenas de economia solidária poderia estar se referindo a ações direcionadas para outras iniciativas, inclusive particulares que se denominem de solidárias, a exemplo das fundações privadas. Já Singer (2000) discorda dessa posição. Para ele, a denominação é economia solidária porque nela podem estar os pobres e segmentos de trabalhadores que, por várias circunstâncias, não conseguem se inserir no mercado formal de trabalho, ou desejam construir o seu próprio negócio. Segundo ele, a economia solidária vem sendo construída em virtude da luta dos trabalhadores contra o capitalismo e os seus princípios operam vários segmentos. Teríamos de um lado, cooperativas de produção industrial e de serviços dotadas de capital abundante, que empregam a melhor tecnologia e se mostram competitivas no mercado mundial ou em mercados nacionais. Viriam, em seguida, cooperativas dotadas de capital modesto, que empregam tecnologias herdadas de empresas antecessoras, e enfrentam grandes dificuldades para se manter em alguns mercados. E, finalmente, teríamos grande número de pequenas associações de trabalhadores marginalizados ou de despesas estigmatizadas – exdetentos, deficientes físicos, ex-dependentes de drogas, moradores de rua etc. – que procuram desenvolver alguma atividade produtiva mas que sobrevivem em grande medida graças ao trabalho voluntário de apoiadores externos. (...) devemos adicionar as cooperativas de trabalho que não têm outro capital a não ser a capacidade de trabalho de seus membros, (...) os clubes de troca, formados por pequenos produtores de mercadoria, que constroem para si um mercado protegido ao emitir uma moeda própria que viabiliza o intercâmbio entre os participantes. E diferentes cooperativas de consumidores, com destaque para as de crédito, de habitação, de saúde e escolares (SINGER, 2000, p. 22-23). Lisboa (2001), por exemplo, considera que, apesar da expressão que os segmentos populares vêm tendo na economia solidária, está evidente que ela não deve se restringir ao campo popular, uma vez que os elementos de solidariedade estão dispersos na sociedade em geral, inclusive em setores empresarias e estatais, e que nem tudo que é popular é solidário. Contudo, considera que são os segmentos populares quem mais desejam a mudança e têm colaborado na construção de um novo projeto societário. A socioeconomia solidária é uma proposta integradora que busca construir uma estratégia inclusiva, comprometendo todos os atores, não apenas do campo popular. Mas as alianças e articulações necessárias para a mudança social são estabelecidas com aqueles que buscam ser instrumentos de câmbio para um mundo novo, sendo possibilitados ao se ter clareza quanto ao projeto político que se está a construir (LISBOA, 2001, p.50). 68 Nessa discussão, o que tem sido considerado como economia popular normalmente está relacionado com as diferentes iniciativas e experiências advindas de setores marginalizados da sociedade. O chileno Razeto (2001) mostra que essas experiências, a depender do nível de envolvimento e desenvolvimento de seus membros, podem envolver algumas estratégias: a de sobrevivência, no caso de atividades emergenciais e transitórias, cujo propósito é apenas a satisfação das necessidades básicas (subnutrição, moradias precárias etc.); a de subsistência, cuja atividade pode ser mais duradoura, pois permite a satisfação das necessidades básicas, porém sem ações que levem a alguma forma de acumulação e crescimento; as estratégias de vida em que as pessoas apostam na possibilidade de construir iniciativas empreendedoras que vão além da mera subsistência (trabalhar por conta própria, valorização de espaços associativos e de autogestão etc.). Entretanto, Razeto (2001) chama a atenção para o fato de que nem toda economia popular é solidária, uma vez que nela nem sempre está presente um fator econômico fundamental que ele identifica como fator “C”: (cooperação, comunidade, colaboração, coordenação, coletividade). Da mesma forma, nem toda economia de solidariedade é economia popular, já que é possível encontrar elementos de solidariedade em outras atividades econômicas desenvolvidas por setores não populares. Com isso, Razeto se aproxima da posição assumida por Bertucci e Silva (2003) ao inserir na economia solidária a terminologia popular, na medida em que utiliza a expressão economia popular de solidariedade, considerando-a como um conjunto de experiências econômicas que aglutinariam elementos tanto da economia popular quanto da economia de solidariedade. Estas devem ser marcadas por alguns elementos: desenvolverem-se nos setores populares; serem criadas para enfrentar um conjunto de carências e necessidades concretas; envolverem a participação democrática, valores solidários e a autogestão, entre outros. O argentino Luís Coraggio (1997) também discute a economia popular. Para ele, deve ser considerada como mais um subsistema da economia, além dos setores formais e informais. Considera que os sistemas econômicos estão divididos em três subsistemas: economia empresarial (empresas e suas redes), 69 economia pública (organizações do Estado, partidos políticos, redes) e economia popular (unidades domésticas, suas redes e aparatos). Entende que todas as unidades domésticas, que não vivem da exploração do trabalho alheio, não podem viver da riqueza acumulada (incluídos investimentos em fundos de pensão, etc.) e seus membros devem continuar trabalhando para realizar expectativas médias de qualidade de vida, fazem parte da economia popular, mesmo que todos ou alguns de seus membros trabalhem nos outros subsistemas (CORAGGIO, 1997, p.36). Ainda, segundo o autor, é possível construir, a partir da economia popular, uma nova economia do trabalho. Essa possível economia alternativa, economia do trabalho, seria um subsistema que se desenvolveria a partir da economia dos setores populares, fortalecendo suas vinculações e capacidades, potencializando seus recursos, sua produtividade, sua qualidade, assumindo novas tarefas, incorporando e autogerindo os recursos das políticas sociais de modo a fortalecer os laços sociais entre seus membros, seus segmentos, suas microrregiões; uma economia que estruturalmente distribua com mais igualdade, que supere essas tendências à exploração ou à violência, que seja um setor da sociedade mais harmônico e integrado, com outros valores de solidariedade, com maiores recursos voltados para a cooperação (CORAGGIO, 2000, p.116). Para tanto, a economia do trabalho deve articular diversas formas de organização como: empreendimentos individuais, cooperativos, mercantil e nãomercantil, redes de troca e outras. Para o referido autor, seria um engano achar que existe uma única forma de empreendimento na economia popular, sendo necessário, entretanto, que a economia popular conte com um sistema de intercâmbio e cooperação, de forma que possa competir com as empresas capitalistas. É preciso que se desenvolvam mecanismos de informação, tecnologias e um processo de organização que facilitem a cooperação entre os empreendimentos e regule possíveis conflitos entre interesses particulares. Muitas dessas experiências produtivas nascem da iniciativa dos segmentos pauperizados, contribuindo para suscitar essas reflexões. Todavia, considerandose a diversidade que se acena, em nível nacional, ao que hoje vem se denominando economia solidária, a concepção de Singer estaria mais próxima de responder a esse debate, tendo em vista que a economia solidária tem envolvido 70 vários segmentos, não só aqueles considerados populares. Nesse sentido, considero que a sua definição não deve se restringir a demarcação do público atendido. O que deve defini-la é a presença de seus elementos fundamentais, ou seja, a existência de uma gestão coletiva e autogestionária do trabalho, de forma democrática e participativa, cujos resultados sejam partilhados por aqueles envolvidos no processo produtivo ou prestação de serviços. Mas, esse debate vai além da definição do universo que compõe a economia solidária, envolve também outras formulações e proposições teóricas que apontam para a construção de um outro tipo de economia e sociedade. Conforme Coraggio (2004), “outra economia (...) uma economia social”. Uma economia social diferente da que se tem hoje. Segundo ele, “toda economia es social, si “social” quiere decir que la economia construye a sociedad”. Ainda, para este autor, “esta economia que ahora tenemos, la dell llamado neoliberalismo, también construyó sociedad, pero construyó una sociedad injusta, polarizada, construyó uma sociedad que excluye, construyó una sociedad que no queremos”59. Por isso, Coraggio entende que, “otro mundo es posible, (...) outra economia es posible”. Uma economia social que contenha em sua essência a solidariedade. Diz ele: ‘cuando hablamos de economia social, lê agregamos y solidária, porque queremos construir una sociedad distinta que ésta que tenemos (CORAGGIO, 2004, p.7)60. Embora, para o referido autor, não há modelos, mas propostas de modelo. Concordo com Coraggio (2004), porque a diversidade que envolve a economia solidária dificultaria a construção de modelos. Nota-se que referências comuns como igualdade econômica, solidariedade, autogestão, entre outros, aparecem ao se denominar esse tipo de economia e as experiências que dela advêm. Pode-se perceber nos escritos de Singer (2000, p. 13), quando afirma que a economia solidária, ao contrário do que ocorre na produção capitalista, “casa o princípio da unidade entre posse e uso dos meios de produção e distribuição (da produção simples de mercadorias) com o princípio da socialização destes meios (do capitalismo)”. Portanto, a economia solidária significa a associação entre 59 60 Conferência proferida no Fórum Social das Américas, Quito, Equador, 25 a 30 de julho 2004. Ibidem. 71 iguais, em vez do contrato entre desiguais. Nas idéias de Arruda (2002)61, a sócioeconomia solidária, como chama, trata-se de “um conjunto de iniciativas populares marcadas pela autogestão e o espírito solidário que contribuem para a sobrevivência da população sobretudo dos excluídos do mercado capitalista”. Na grande maioria dos estudos, é comum entender a economia solidária como uma alternativa que se vislumbra frente ao desemprego que está, a cada dia, mais presente no cenário nacional. Para alguns, trata-se de uma economia que vem sendo construída dentro do próprio capitalismo e, ao mesmo tempo, gestada, internamente, de forma coletiva e democrática, diferenciando-se da lógica do capitalismo. Como afirma Gaiger (1999a), ela se desenvolve nos interstícios da economia de mercado, e em contraposição à sua lógica mercantilista, tratando-se de uma nova “forma social de produção”, cuja tendência é abrigar-se, contraditoriamente, sob o modo de produção capitalista. Ele tem uma posição diferente quanto se tem afirmado que a economia solidária representa um novo modo de produção. (...) O que está propriamente em tela, a julgar pelas atuais evidências, não é o lento aparecimento de um modo de produção, que se viria a cotejar historicamente com o capitalismo, mesmo se num futuro distante. O conceito de modo de produção refere-se, com efeito, ao princípio último organizador da vida social, assente nas condições materiais de existência a um dado tempo e espaço histórico. Um novo modo de produção é decorrência do avanço das forças produtivas e da constituição de um novo processo material que lhe corresponda e se incorpore, plenamente, por meio de novas relações entre os homens, no processo geral de apropriação da natureza (Godelier, 1981). Ora, as empresas de autogestão inovam, tão somente em seu âmbito interno e em seus vínculos mútuos, as relações que definem o processo social imediato de trabalho, o que significa que não estão destruindo ou ameaçando as relações oriundas e típicas do capitalismo, fundadas na divisão entre capital e trabalho e na extração da mais-valia. (...) o que os EES contêm e desenvolvem em seu seio é uma nova forma social de produção, que pode conviver, como tantas outras (a exemplo da produção parcelar camponesa), com a forma específica do modo de produção capitalista. (...) As relações que então se estabelecem com o capital, desse ponto de vista, adquirem não o sentido de superação deste último, mas a criação de possibilidade para o crescimento e consolidação de um novo campo de práticas econômicas (GAIGER,1999a, p.17). Para outros, como Singer (2000, p.13), a economia solidária significa m novo modo de produção, já que ela “(...) surge como modo de produção e 61 Cf. Carta ao Governo Lula, 2002. 72 distribuição alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar) marginalizados do mercado de trabalho”, mas, para isso, não é necessário isolar-se da economia capitalista, para desenvolver formas socialistas de distribuição e de produção. Para ele, é, por meio dessas experiências, possível exercitar a construção de um outro tipo de socialismo, diferente do socialismo real. Nessa nova versão, é possível conservar o mercado, pois, segundo o autor, o socialismo real comprovou que o progresso econômico e os direitos individuais não podem ser garantidos sem liberdade econômica e algum grau de competição no mercado (SINGER, 1998). Nuñez (1997) caminha também na direção de entender a economia solidária como uma alternativa para construção de um novo modo de produção e a maneira pela qual os produtores podem competir com o capitalismo, sem se converterem em capitalistas, assentados nos valores de cooperação e solidariedade, ou seja, uma proposta revolucionária gestada no capitalismo em direção ao socialismo, devendo acontecer gradativamente. A revolução socialista deve questionar a velha ordem econômica, social e política de diversas formas; incubar novas formas de produção; amadurecer a sua superioridade no seio da velha sociedade, até que a tomada do poder político seja um resultado que permita completar sua tarefa” (NUÑEZ, 1997, p.50). Para ele, o caminho da revolução envolve também os campos econômico e cultural, principalmente no que se concerne à construção de novas formas de propriedade e disseminação dos valores de cooperação e solidariedade. Assim, os sujeitos de uma nova economia terão de ser produtores que não explorem a força de trabalho e trabalhadores que não sejam explorados, por interesses externos. (...) Isso implica que estes produtores-trabalhadores têm que ter acesso à propriedade (...) e controlar segmentos de capital (NUÑEZ, 1997, p.53). Apesar de considerar que isso pode parecer contraditório, uma vez que a doutrina socialista marxista entende a propriedade como uma diferenciação social e o capital como sinônimo de alienação do trabalhador, Nuñez (1997) defende a tese de que a associatividade dos produtores – trabalhadores é uma estratégia de 73 resistência à lógica do capital “para superar a intermediação, ao mesmo tempo em que os excedentes são socializados cada vez mais e sem abandonar necessariamente o caráter individual da produção” (NUNEZ, 1997, p.53). Para ele, é possível, em um regime socialista, a existência de empresas que pertencem ao Estado como também o “controle setorial, produtivo, industrial e comercial, através de empresas cooperativas ou associativas” (NUÑEZ, 1997, p.54). Nesse sentido,Coraggio (2004)62 também aponta que não se trata de desenvolver um antiestado, mas sim, a democratização do Estado; uma democracia participativa e não uma democracia puramente representativa; uma democracia sem tecnocratas, mas com capacidade de mobilizar a força científica para colocá-la a serviço de todos os seus cidadãos, comunidades e dos seus projetos de empreendimentos (CORAGGIO, 2004, p.44). Ele ainda afirma que não estamos pensando que um possível sistema de economia do trabalho deva eliminar e substituir o sistema empresarial capitalista. Mas, ao contrário, que ele deve se desenvolver em interação contraditoriamente complementar com as instituições e poderes capitalistas (CORAGGIO, 2000, p.113). Santos e Rodríguez (2002), tendo como parâmetro a análise de diferentes experiências em várias partes do mundo que eles denominam de não-capitalistas, mostram que tais experiências representam possibilidades de construção de uma sociedade mais justa e que o predomínio do capitalismo não reduz a amplitude de possibilidades às referidas variações. Pelo contrario, essa amplitude de possibilidades inclui formas de conceber e organizar a vida econômica que implicam reformas radicais dentro do capitalismo, baseadas em princípios não capitalistas ou que aponta, inclusive uma transformação gradual na economia para formas de reprodução, intercâmbio e consumo não capitalistas (SANTOS E RODRÍGUEZ, 2002, p. 26). Acrescentam os autores que “(...) a viabilidade de tais alternativas, pelo menos a curto e médio prazos, dependem em boa medida da sua capacidade de sobreviver no contexto do domínio do capitalismo” (SANTOS E RODRÍGUEZ, 2002, p.25). Estas iniciativas produtivas têm em comum “o fato de, ainda que não 62 Conferência proferida no Fórum Social das Américas, Quito, Equador, 25 a 30 de julho 2004. 74 pretendam substituir o capitalismo de um só golpe, procurarem (com resultados díspares) tornar mais incômoda a sua reprodução e hegemonia” (SANTOS E RODRÍGUEZ, 2002, p. 29). As reflexões teóricas apontam para questões importantes. Mesmo não consensuais, elas indicam possibilidades para pensar a economia solidária no contexto contemporâneo. Enquanto idéias e experiências em construção, é um desafio oferecer respostas às inúmeras interregações ainda presentes no debate teórico sobre a economia solidária. Na atualidade, ela tem se apresentado muito mais como uma forma social de produção, cujas experiências e vivências exigem a construção de novas relações sociais, o exercício de relações democráticas, de cooperação e o exercício cotidiano da participação. Sem dúvida, por meio dela, é possível construir outra sociedade diferente da que vivemos hoje, mas essa construção é tarefa do dia-a-dia ”dos mesmos sujeitos que fazem germinar os EES e fortalecem no presente, na contra-corrente, o poder irradiador do princípio da reciprocidade” (GAIGER, 1999a, p.19), Nesse sentido, talvez Vainer (1999) tenha razão ao afirmar que estamos construindo momentos que ele chama de utopia experimental, ou seja, a vivência do que poderia ser o outro mundo, através da sensação de que os trabalhadores podem ser dignos, se encontrar coletivamente, gerir e autogerir o seu próprio trabalho, o sentir de que o trabalho pode não ser apenas um momento de entrega, mas pode ser um momento de encontro e de construção individual, esses são momentos de utopia experimental (VAINER, 1999, p.60). Isso sinaliza para a necessidade e importância de se considerar, além da economia, os aspectos políticos e culturais, na medida em que se faz necessária uma mudança cultural entre aqueles que se encontram envolvidos com a economia solidária, principalmente no sentido de compreender a vivência de valores e princípios importantes para o seu exercício cotidiano. Assim Nuñez (1997) considera importante analisar os aspectos culturais nesse processo de construção, tendo como referência a ética e os valores de cooperação e solidariedade, já que entende a economia solidária como um “intercâmbio de equivalência dentro de relações de cooperação e de solidariedade” (NUÑEZ, 1997, 49). Utilizando a instituição familiar como exemplo de um espaço em que grande parte das relações é regulada pelas regras de 75 cooperação e de solidariedade, resguardados todos os seus questionamentos sobre as relações de gênero, subordinação e exploração existentes no seu interior, ele afirma que seria desejável, então, no que uma economia solidária com intenções de funcionar além da família, garantisse o seu funcionamento e reprodução por meio de regras estritamente econômicas, como a distribuição de excedentes em uma cooperativa, mas que se imbuísse de regras morais que pudessem alcançar aos poucos, uma regularidade jurídica para impedir a exploração de uns pelos outros, até conseguir o status de um pacto social que não admita outro comportamento a não ser o da cooperação e o da solidariedade (NUÑEZ, 1997, p. 57). Esse pacto estaria baseado também, conforme Razeto (1997), na idéia de que a economia e solidariedade não são pólos opostos, mas sua relação deve ser entendida de forma diferente. Não se trata de uma solidariedade para atenuar os efeitos provocados pela economia sob a forma de ajuda para os necessitados, mas uma solidariedade que seja introduzida na própria economia e que esteja presente em todas as etapas do processo econômico, “(...) na produção, distribuição, consumo e acumulação” (RAZETO, 1997, p.95). Assim, a economia de solidariedade “(...) não consiste em um modo definido e único de organizar unidades econômicas. Trata-se de um processo multifacetado através do qual incorporamos solidariedade à economia” (RAZETO, 1997, p.95). Essa relação economia e solidariedade tem sido alvo de questionamentos por parte de outros estudiosos, a exemplo de Vainer (1999). Ele entende que essa denominação apresenta um caráter paradoxal, uma vez que economia, dentro da lógica do capital, e solidariedade não poderiam ser pólos de uma mesma significação. Para ele, a economia é o lugar da competição e da guerra. Os espaços de solidariedade são aqueles dominados por outros fins, por outros valores e por outras práticas. Daí a perplexidade frente à expressão “economia solidária. (...) Um projeto amplo, abrangente de solidariedade é inseparável da crítica da economia. Não é possível construir um projeto de solidariedade social, este é o meu ponto de vista, à margem de uma crítica teórica e prática da economia. Não é possível construir uma alternativa à economia, às leis da economia, nos marcos da economia (VAINER, 1999, p.47). 76 Da mesma forma, Barbosa (2005) também questiona essa relação. Segundo ela, por ser a solidariedade uma categoria profundamente questionável na sociedade capitalista [sociedade esta] que precisa desgarrar os indivíduos de valores substantivos de convivência e inserção social e aproximá-los em condições ou situações políticas principalmente formalistas e instrumentais para os fins de dominação que lhes são próprios (BARBOSA, 2005, p.2). Singer (1999) discorda da diferenciação feita por Vainer (1999) no que diz respeito ao seu entendimento sobre a economia. Para ele, considerar a economia apenas como uma guerra de todos contra todos é uma visão ideológica liberal. Entende que a economia solidária difere da capitalista, porque tem como princípio organizador a solidariedade no lugar da competição. Lechat (2004), ao se referir a essa aparente divergência entre os termos economia e solidariedade e tendo como referência Razeto (1997), mostra que, quando se entende a realidade econômica no sentido de concorrência acirrada, de guerra para conquistar, galgar os melhores espaços, ocupar um nicho novo, o que exige passar por cima dos outros, derrotálos, vencê-los, esmagá-los, temos tudo menos uma atitude de solidariedade (LECHAT, 2004, p.123). Concordo com Lechat (2004, p.123-124), pois o “sentido dado aqui é outro; trata-se de uma economia entendida como partilha social de riqueza, do poder e do saber”, cujos resultados sejam socializados por aqueles que a geraram e não fique apenas para servir e enriquecer poucos, ou seja, uma solidariedade que não tenha como objetivo a caridade, o assistencialismo, o clientelismo, mas que seja construída, a partir da idéia da produção de bens e serviços a serem partilhados por todos aqueles que estejam envolvidos. Nesse sentido, alguns autores trazem para discussão a necessidade de deixar clara a diferença entre a economia solidária e a capitalista. Nesta última, o objetivo primordial é a exploração e o lucro. Para Gaiger (1999a), o solidarismo e a cooperação no trabalho são elementos centrais na economia solidária, tendo em vista que ela propicia a vivência de uma experiência concreta de justiça e equidade. Para ele, a quebra da divisão social do trabalho e da apropriação unilateral do excedente, dado o regime de propriedade comum e de autogestão, 77 constituem a base diferencial dos empreendimentos solidários, na medida em que (Gaiger, 1999a, p16) “ao suprimirem a separação entre trabalhadores e os meios de produção, ao eliminarem a apropriação privada e desfazerem o antagonismo entre o capital e o trabalho, os EES ganham a possibilidade de superar o caráter alienante e descartável da atividade produtiva”. Razeto (1997) mostra que a economia atual não é solidária, pois existe uma predominância e centralidade do capital e do Estado, encontrando-se o trabalho numa posição de subordinação e as relações de cooperação e solidariedade num plano secundário. Ao fazer essa afirmação, Razeto (1997) destaca que isso tem ocorrido tanto no capitalismo quanto nas economias estatais. No caso do capitalismo, essa situação subalterna do trabalho (...) implica que a maioria dos seres humanos não tem acesso aos meios e recursos necessários para exercer a atividade de trabalho com esse sentido tão pleno, de maneira que possa empreender e desenvolver iniciativas que lhe permitam controlar suas condições de vida e desenvolver seus próprios projetos criativos (RAZETO, 1997, p. 92). Para Razeto (1997), (...) o estatismo também não ajuda a elevar o ser humano a sua condição humana, porque nele o trabalho humano também é colocado em uma condição subalterna. Ao ser colocado como um funcionário, um empregado do Estado, o trabalhador também carece dos meios necessários para empreender obras próprias de forma autônoma, nas quais possa expressar e desenvolver suas potencialidades criadoras. Quando o Estado cumpre funções empresariais excessivas e o âmbito das suas atribuições é grande demais, os seres humanos e as comunidades de trabalho têm muito poucas oportunidades para desenvolver-se dentro de um marco amplo de possibilidades que o trabalho proporciona (RAZETO, 1997, p.93). Portanto, na medida em que os seres humanos transferem para o empresário ou para o Estado a capacidade de empreender e o controle sobre a sua condição de vida, estarão empobrecendo a sua capacidade de organizar, gerir e tomar decisões, ficando, portanto, nas mãos de uma minoria essa tarefa. Para Razeto (1997), reverter esse processo significa avançar na recuperação e na integração da riqueza dos conteúdos do trabalho nas pessoas e nos grupos humanos reais. Mais concretamente, trata-se de que o 78 trabalhador volte a adquirir capacidades para a tomada de decisões, que desenvolva conhecimentos acerca do como fazer as coisas, que recupere o controle e a propriedade sobre os meios de trabalho. (...) O ser humano vai se fazendo novamente na sua capacidade de empreender, de criar, de trabalhar de maneira autônoma, de ter o controle sobre suas condições de existência (RAZETO, 1997, p.94-95). Nesse sentido, como diz Tiriba (2001), por meio da produção associada é possível se construir uma nova cultura do trabalho, de forma que não haja apenas uma preocupação com o grau de inserção das camadas populares na produção de bens e serviços, mas, principalmente, percebê-las como sujeitos da produção social da vida humana de forma que os seus empreendimentos consigam ser um espaço de criação e recriação de relações econômicas e sociais que auxiliem na sua sobrevivência. Nesse sentido, a produção associada “pressupõe que, além da propriedade dos meios de produção, os trabalhadores necessitem apropriar-se dos fundamentos científico-tecnológicos que dão sentido a seu trabalho, colocando os meios de produção a seu serviço” (TIRIBA, 2001, p.182). Para Salles Oliveira (2005), as práticas de economia solidária podem possibilitar a construção de uma cultura solidária, na medida em que as pessoas passam “a cultivar entre elas relações de reciprocidade, de respeito, de busca de entendimento, procurando conjugar igualdade de direitos e deveres às diferenças, aos traços peculiares de cada um” (SALLES OLIVEIRA, 2005, p.37). Já para Barbosa (2005), as idéias que hoje predominam no campo da economia solidária tendem a disseminar a cultura do auto-emprego, na medida em que há uma ressignificação do trabalho assalariado, via políticas públicas incentivadas pelo governo federal com a criação da SENAES, contando também com o apoio dos movimentos sociais que deixam de cobrar políticas mais efetivas no combate ao desemprego estrutural. Para ela, o governo federal tem incentivado a cultura do auto-emprego e deixado de lado a sua intervenção no campo do trabalho assalariado. Ainda destaca que essa ênfase dada pelas instâncias governamentais à economia solidária visa a atenuar tensões no mercado de trabalho e se baseia em dois eixos: (...) 1) Defesa do trabalho por conta própria como uma realidade concreta intangível e como mobilizadora das virtudes empreendedoras de ‘empresariamento de pequeno porte’; 2) Difusão da ´sociedade por conta própria’ como alternativa a diminuição da intervenção estatal na promoção do emprego assalariado e na garantia de direitos sociais 79 tenderiam a universalização. Esses dois eixos argumentos sustentam a cultura da estruturação e legitimação do autoemprego como uma das tendências de enfrentamento da crise social capitalista com significado também no segmento da economia solidária (BARBOSA, 2005, p.46). Sem dúvida que é preciso ter cautela quando se coloca sob as iniciativas produtivas, vinculadas ao campo da economia solidária, a tarefa de dar conta do desemprego. Embora a economia solidária se apresente como uma possibilidade de gerar trabalho e renda, faz-se necessário que outros postos de trabalho sejam criados para responder as demandas atuais existentes na nossa sociedade. Entretanto, a ênfase ao trabalho assalariado, diante das condições de exploração em que vivemos, também merece discussão. Na economia solidária, é possível construir relações diferenciadas daquelas que estão presentes na economia capitalista, principalmente no que se concerne ao desenvolvimento de práticas de não exploração e alienação do trabalho. Apesar da crítica de Barbosa (2005) sobre o que ela denomina de cultura do auto-emprego, considerando aí o descompromisso e a desresponsabilização do Estado para com o trabalho assalariado, a própria autora, tendo como referência a análise de algumas experiências autogeridas pelos trabalhadores, constata que “(...) não é de se perder de vista que possivelmente se estabelecem no plano imediato relações menos nocivas e danosas aos trabalhadores trazendo a tona práticas de valorização da subjetividade e interface entre trabalhadores no contexto do trabalho, ainda que limitadas” (BARBOSA, 2005, p.115). Portanto, é importante compreender a economia solidária não somente como uma forma de produção, frente às diferentes manifestações apresentadas pelo capitalismo na contemporaneidade, a exemplo do desemprego. É necessário ir além do âmbito das mudanças estruturais e conjunturais por se tratar de experiências que envolvem pessoas, enquanto seres sociais, que constroem e reconstroem valores e sentimentos. Nesse sentido, mesmo diante da crítica ao auto-emprego, Barbosa (2005), reconhece que a economia solidária vem expressando significados na subjetividade dos sujeitos envolvidos, indicando que (...) além da produção autogerida e por meio dela, enquanto processo vão se forjando os próprios sujeitos, marcando as subjetividades com a prática das reuniões, da explicitação de conflitos, de negociação, companheirismo, divergências e aprendizagens. Isso porque além da sustentação material a que estão envolvidos, a experiência de 80 autogestão abrange também essas dimensões não materiais em torno da liberdade e da autonomia (BARBOSA, 2005, p.115-116). Por meio das experiências no campo da economia solidária, vão sendo geradas novas relações no trabalho, exigindo não somente mudanças nas formas internas de gestão, mas também o estabelecimento de outras estratégias de enfrentamento no mundo capitalista, inclusive para a sobrevivência dos próprios empreendimentos e a sua sustentabilidade. Mas como não concorrer entre si se essa economia vive dentro de um mercado por si só já extremamente competitivo? No âmbito da economia solidária, uma das alternativas importantes que tem sido apresentada e utilizada diz respeito à inserção em redes e cadeias produtivas solidárias. Mance (2002) acredita que a economia solidária deve acontecer com base na rede de colaboração solidária. Esta significa (...) uma estratégia adequada para conectar empreendimentos solidários de produção, comercialização, financiamento, consumidores e outras organizações populares (associações sindicatos, ONG’s, etc.) em um movimento de realimentação e crescimento conjunto, autosustentável, antagônico ao capitalismo e que promove o bem-viver de todos que a ela se integram (MANCE, 2002, p 37). Para Mance (2002), as redes solidárias, enquanto alternativa póscapitalista à globalização em curso, exigem o desenvolvimento de práticas efetivas de colaboração solidária: produção comunitária, comércio solidário; financiamento solidário; clubes de trocas; autogestão de empresas pelos trabalhadores, etc. Nas últimas décadas, em nível mundial, tem-se observado a proliferação de iniciativas econômicas solidárias nas quais se articulam empreendimentos, mediante cadeias complexas que envolvem financiamento, produção, comércio e consumo. No Brasil, algumas experiências já são visualizadas, a exemplo dos bancos comunitários63, central de cooperativas, redes solidárias e moedas sociais de 63 circulação local, a exemplo da Palmares em Fortaleza. A Rede Atualmente já existem funcionando 13 Bancos Comunitários, assim distribuídos: 07 no Ceará, 02 na Bahia, 01 no Mato Grosso do Sul, 02 no Espírito Santo, 01 na Paraíba. Conforme informações de MAGALHÃES, Sandra. E-mail enviado em 21/05/2007. O Banco Palmas tem sido uma experiência de referência importante. A esse respeito, consultar Melo Neto Segundo e Magalhães, 2003. 81 UNITRABALHO, por exemplo, tem procurado, junto com as universidades, estimular a inserção dos empreendimentos em cadeias produtivas solidárias. Atualmente, estão em processo de implantação cadeias produtivas nas áreas da confecção, mel, frutas e resíduos sólidos64, e que envolvem empreendimentos assessorados pela UNITRABALHO, em várias regiões do país. Mance (2002) ainda entende que essas redes, se bem estruturadas, auxiliam os empreendimentos solidários, uma vez que os produtores recebem mais pelo que produzem, os consumidores pagam menos, reduzindo-se, assim, os custos de insumos e produtos, evitando-se os atravessadores. Para o referido autor, com a economia solidária, desenvolve-se o labor solidário, pois além da autogestão e co-responsabilidade social dos trabalhadores, o excedente produzido deve ser reinvestido solidariamente em outros empreendimentos. Essa articulação em redes solidárias se associa às preocupações de Santos e Rodríguez (2002), quando apontam a importância de se construir um tipo de desenvolvimento que tenha como foco ações de caracteres local, nacional e global que ajudem na construção de um outro paradigma contrário ao capitalista. Eles defendem um “ecossocialismo cosmopolita” que privilegie a democracia, a ecologia socialista, o antiprodutivismo e a diversidade cultural, ou seja, (...) um ‘localismo cosmopolita e plural, em que as estratégias antidesenvolvimentistas, de desenvolvimento alternativo, de cooperativismo e de socialismo, entre outras, criem espaços não capitalistas que apontem para uma transformação gradual da produção e da sociabilidade para formas igualitárias, solidárias e sustentáveis (SANTOS E RODRÍGUEZ, 2002, p.57). Os autores citados, tal como Mance (2002), indicam que o “êxito das alternativas de produção depende da sua inserção em redes de colaboração solidárias e de apoio mútuo” (SANTOS E RODRIGUEZ, 2002, p.66). Essa articulação em rede possibilita às essas iniciativas produtivas maiores condições de viabilidade econômica, tendo em vista serem, em sua maioria, empreendidas por segmentos sociais que não dispõem de capital. Aliado a isso, Santos e 64 Na sede UNITRABALHO, existe um Centro de Referência em Geração de Renda e Gestão de Resíduos que, entre os seus objetivos, visa implementar um conjunto de procedimentos tecnológicos e administrativos que possibilitem fornecer aos empreendimentos uma base técnica indispensável à sua viabilidade econômica. 82 Rodríguez (2002) destacam a importância da articulação dos movimentos sociais, que podem contribuir não somente nos aspectos relacionados à produção, mas também no sentido de cobrar ações do Estado para o fortalecimento dessas iniciativas, preservando a sua autonomia. Nesse sentido, os autores chamam a atenção para a forma como deve se estabelecer essa relação entre o Estado e essas iniciativas produtivas, para que não seja gerada uma dependência em relação ao Estado, mas ao mesmo tempo, não deixem de exigir e mobilizar recursos que venham a fortalecê-las. Dizem eles: (...) acreditamos que as alternativas não podem ser a escolha entre lutar dentro ou fora do Estado. Devem lutar dentro e fora do estado. A primeira, para não ceder o terreno político ao poder econômico hegemônico e mobilizar os recursos do Estado a favor dos setores populares. A segunda, para manter a sua integridade, não depender das flutuações do ciclo político e continuar a formular alternativas ao status quo (SANTOS E RODRIGUEZ, 2002, p.68). Vê-se, portanto, por meio do diálogo com alguns autores, que a construção das idéias sobre economia solidária perpassa por diversas questões, algumas vezes polêmicas, contraditórias, divergentes, semelhantes ou complementares. Variadas discussões vêm sendo travadas em âmbito acadêmico, nos movimentos sociais e entre os empreendimentos. A compreensão da economia solidária abrange as diferentes esferas da sociedade, dentre elas a economia, a política e valores que se (re)constroem. Envolve projetos políticos e visões de mundo que vão influenciando e explicando a sua composição, firmando-se na construção de algo novo que possa se distinguir do que se conhece, historicamente, no Brasil, como a grande maioria do cooperativismo agropecuário, que se transformou em empresas capitalistas. Os diversos conceitos caminham no sentido de demarcar essa diferença conceitual e criar a própria identidade da economia solidária que vem, ao longo da última década do século XX, construindo uma ou várias matriz(es) de pensamento, seja como forma de reflexão, seja como resposta às diversas mudanças que estão se processando na produção capitalista. 83 2.2. Refletindo sobre a Participação Atualmente, o termo participação tem se tornado uma expressão que muita gente evita utilizar em suas análises teóricas, tendo em vista a sua apropriação, sentidos e significados diferenciados. Há o que poderia se chamar de uma generalização dos discursos participativos por parte de diferentes segmentos da sociedade. A temática da participação aparece nas falas dos políticos, sejam da esquerda ou da direita, entre os empresários e nas teorias modernas da administração, nos movimentos sociais, nas políticas sociais, entre outros. É um termo utilizado tanto por aqueles que defendem e desejam expressar uma sociedade igualitária, de direitos e deveres, quanto por parte daqueles que reforçam a existência de uma sociedade dividida por interesses antagônicos, mas utilizam o discurso da participação para legitimar ações de reprodução do capitalismo. Como diz Paz (2002), é um tema que está presente na pauta nacional e intrinsecamente relacionado aos contextos social, econômico e político do país. O conceito de participação possui uma larga tradição histórica no pensamento social e uma variedade, conforme o tempo e o lugar. No caso do Brasil, os espaços de participação vão sofrendo modificações diante de cada conjuntura e da necessidade de atender demandas muitas vezes advindas não só da população, mas também do poder público. Conforme Gohn (1999) nas últimas três décadas o conceito de participação passou por significações diferenciadas que vão, desde a participação comunitária dos anos de 1970 ao termo participação popular, nos anos de 1980, e a participação social nos anos de 1990. Hoje, outras denominações também aparecem agregadas a esse termo, principalmente entre os escritos, a partir dos anos de 1990, qualificando-a com outros adjetivos, a exemplo da participação cidadã. Ammann (1978), em seu livro “Ideologia do Desenvolvimento de Comunidade”, mostra como, a partir dos anos de 1950, o discurso da participação foi sendo introduzido por meio dos programas governamentais, cujo propósito era a organização comunitária visando à efetivação da política desenvolvimentista do Estado, em consonância com toda orientação advinda de organizações internacionais, cujo interesse era expandir o capitalismo e promover a 84 modernização do meio rural. Esse discurso tinha como base a importância da organização comunitária e o desenvolvimento de um processo educativo, sobretudo no campo, tendo em vista que a educação de adultos aparecia como um entrave para o alcance dos propósitos desenvolvimentistas. O desenvolvimento da comunidade era estimulado em nível local, sem qualquer discussão e vinculação com os problemas estruturais. Tinha-se, assim, o estímulo à participação e o reconhecimento da sua importância, no entanto não eram acompanhados de qualquer possibilidade de crítica às estruturas. Ao contrário, o propósito era a manutenção da ordem social. Os estudos e escritos que tratavam sobre o sentido e importância da participação comunitária também reforçavam essa visão. A partir dos anos de 1960, e mais, especificamente, nos governos de Jânio Quadros e de João Goulart, ampliam-se os espaços de participação, e o discurso participativo passa a envolver não apenas mudanças em nível local, mas, principalmente, reformas estruturais. Os estudos sobre desenvolvimento de comunidade e dentro dele a discussão sobre participação têm, nesse período, três enfoques: um primeiro grupo de intelectuais que ainda reforça e estimula a população a participar da resolução de problemas em nível local; o segundo que extrapola a visão localista e compreende a participação dentro de um contexto macro, sendo ela concebida como “a contribuição de ‘todo povo brasileiro’ às mudanças estruturais” (AMMANN, 1978 p.98). Um terceiro que segue as idéias do segundo grupo, porém defendia uma participação para a libertação das classes subalternas e via a comunidade como uma realidade permeada de contradições e por relações de dominação65. Para esse grupo, participação social significava “luta pela hegemonia das classes, a qual, por sua vez, é determinada, em última instância, ao nível das relações sociais de produção” (AMMANN, 1978, p.99). A partir do regime militar e mais precisamente nos anos 1970, como diz Gohn (1999), a participação comunitária é ainda mais estimulada e acompanhada por vários mecanismos de controle social, a exemplo dos centros comunitários que prestam serviços assistenciais à população. Além disso, o discurso da participação deixa os reclamos pelas reformas estruturais e adentra um novo 65 Conforme Ammann (1978), os intelectuais do segundo e terceiro grupos fizeram parte da primeira e segunda fases do Movimento de Educação de Base – MEB. 85 patamar: a perspectiva do envolvimento da população nos projetos de integração nacional, visando à harmonia social. Era necessário o comprometimento da população na execução e participação dos planos de desenvolvimento do governo, nos níveis nacional, regional e local. Nos anos de 1980, diante do processo de redemocratização, o discurso da participação popular passa a ser invocado como elemento importante no processo de revitalização da sociedade civil. Conforme Gohn (1999), passa-se a falar em participação popular, tendo em vista a organização e mobilização dos setores populares que reivindicavam melhores condições de vida, e, junto com outros movimentos sociais, lutavam por uma sociedade democrática e pelo fim da ditadura. Novas produções teóricas passam a circular e tornam-se referências nas discussões sobre participação. Nos escritos de Ammann (1997), por exemplo, esta temática aparece como possibilidade de organização social, agregando-se outros elementos fundamentais como: produção, gestão e usufruto dos bens da sociedade, além do associativismo. Para a autora, a participação é “o processo mediante o qual as diversas camadas sociais tomam parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens de uma sociedade historicamente determinada” (AMMANN, 1978, p.61). Nos anos de 1990, o princípio da democracia participativa, exercido por meio de várias instâncias consultivas e deliberativas criadas, a partir da Constituição Federal de 1988, fez emergir a criação de uma série de estruturas participativas (conselhos, fóruns, comitês, conferências, etc.). Ampliam-se, pois, os espaços de participação, principalmente na relação estado e sociedade civil, por meio da formulação das políticas sociais. Como diz Paz (2002), no contexto dos anos 90, a participação social passa a ser vista não só como o estímulo à organização e dinamização da sociedade civil, mas com ênfase na formulação e implementação de políticas públicas, particularmente no âmbito local, inserida no contexto da democracia direta e representativa. Temos assim, uma nova compreensão da participação social, a partir dos marcos das novas estruturas de representação, em especial os conselhos de gestão, espaços de negociação entre as diferentes forças sociais (PAZ, 2002, p.24). Nesse momento, ao conceito de participação popular vão sendo agregadas outras denominações. Conforme Gohn (1999), aparece em alguns escritos a expressão participação social e em autores como Teixeira (2002) e Pontual 86 (2000) a utilização do termo participação cidadã. Para Teixeira (2002), o conceito de participação cidadã vai além do sentido da participação social, comunitária e popular. Ele agrega o exercício da cidadania ativa, expressa na possibilidade de se fazer e tomar parte da vida social e política. Afirma ele: na perspectiva que adotamos, a participação cidadã diferencia-se da chamada ‘participação social e comunitária’, desde que não objetiva a mera prestação de serviços à comunidade ou à sua organização isolada. (...) Não se confunde também com a expressão ‘participação popular’, muito utilizada para designar a ação desenvolvida pelos movimentos – em grande parte de caráter reivindicativo. (...) o âmbito da participação cidadã é mais amplo que a sua relação com o Estado, procurando-se fazer com que se estenda ao mercado (TEIXEIRA, 2002, p.31). Portanto, para Teixeira (2002), a participação que ele denomina de cidadã é um processo complexo e contraditório que ocorre numa relação entre sociedade civil, Estado e mercado, sendo fortalecida a depender dos níveis de atuação e organização da sociedade civil, não cabendo a esta substituir tais estruturas, mas influir nas decisões e políticas. O exercício da participação, portanto, vai sendo construído não só, a partir das relações que são estabelecidas na trama social, diante dos interesses subjacentes em cada conjuntura, mas também por meio de lutas, conquistas e recuos. O direito à participação está relacionado com o aperfeiçoamento do regime democrático, seja pela via da democracia representativa, seja influindo diretamente nas decisões por intermédio da democracia direta. Por isso, a sua discussão envolve também a vinculação com o conceito de democracia. A participação sempre foi um tema que esteve presente entre os estudiosos que tratam da democracia ou de questões a ela relacionadas. Se considerarmos, por exemplo, autores clássicos como Jean Jacques Rousseau (1978), vemos que a participação já aparece como elemento essencial para o exercício da democracia. Para ele, é fundamental, na tomada de decisão, o envolvimento direto do povo, por meio da democracia direta, uma vez que, só dessa forma, é possível existir liberdade, igualdade e o respeito à vontade geral. Ele fazia restrições à democracia representativa, porque o representante do povo nunca conseguiria de fato representar a vontade da maioria, mas o seu próprio interesse. 87 Já, segundo Bobbio (1987), é muito difícil nas sociedades modernas industriais se viver com a democracia direta “assembléia de cidadãos”, como a pensada por Rousseau ou de referendum. A democracia representativa é ainda uma forma de se governar, sendo fundamental o papel da sociedade civil e sua efetiva participação. Nesse sentido, o autor considera que a democracia representativa não significa apenas a representação parlamentar. Para ele, a democracia representativa significa que “as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade” (BOBBIO, 1987 p.44). Bobbio (1987) considera ser incorreto achar que entre um tipo de democracia e outro existe um divisor de águas. Para ele, os significados históricos de democracia representativa e de democracia direta são tantos e de tal ordem que não se pode pôr os problemas em termos de ou-ou, de escolha forçada entre duas alternativas excludentes, como se existisse apenas uma única democracia representativa possível e apenas uma única democracia direta possível; o problema da passagem de uma a outra somente pode ser posto através de um continuum no qual é difícil dizer onde termina a primeira e onde começa a segunda (...) democracia representativa e democracia direta não são dois sistemas alternativos (no sentido de que onde existe uma não pode existir a outra), mas são dois sistemas alternativos que se podem integrar reciprocamente (BOBBIO, 1987, p.52). Da mesma forma, Benevides (2002) coloca que considerar importante a presença da democracia direta não significa descartar a democracia representativa, fundamental nas democracias contemporâneas. Diz ela: a oposição tradicional entre democracia direta e democracia representativa está hoje francamente superada e falseia a realidade. As formas de democracia direta podem servir de corretivos aos vícios e deturpações da democracia representativa, tão bem conhecidos entre nós, mas não substituem as eleições para cargos executivos e cargos legislativos. Além do mais, é evidente que a soberania popular não significa a participação integral do povo na vida pública (BENEVIDES, 2002, p.1-2). Como afirma Demo (1996a, p.47), “para que haja democracia representativa autêntica, o representante precisa literalmente ser perseguido pelo representado, de tal sorte que o compromisso de sua delegação se torne o sentido primeiro e último de sua atuação política”. 88 Já, conforme Viera (1992), uma sociedade democrática é aquela na qual ocorre real participação de todos os indivíduos nos mecanismos de controle das decisões, havendo, portanto, participação real deles nos rendimentos da produção. Participar dos rendimentos da produção envolve não só mecanismos de distribuição de renda, mas sobretudo níveis crescentes de coletivização das decisões principalmente nas diversas formas de produção (...) fora isso, a participação é formal, ou até mesmo passiva ou imaginária, o que é mais desastroso (VIEIRA, 1992, p.13). Para ele não é o fato da existência das sociedades industrial e de massas que faz nascer a sociedade democrática, mas a participação efetiva no controle das decisões e também nos rendimentos da produção. Para Vieira (1992, p.73), a participação tem um papel relevante na democracia liberal e “a cidadania compreende vigoroso chamado à participação na vida social e no Estado, (...) constitui um principio de igualdade, realizado na igualdade jurídica e materializado numa sucessão de direitos”. Portanto, ao mesmo tempo em que ela vai se expandindo, vai também proporcionando condições de desenvolvimento da própria democracia liberal. Mesmo considerando os limites da participação na sociedade democrática, foi sem dúvida, conforme Vieira (1992, p.72), no século XVIII, que a cidadania passou a ter maior sentido. Foi-se, a partir de então, conquistando direitos e “se compondo um leque de prerrogativas dos cidadãos para atuar na sociedade e no Estado”. Os direitos políticos, civis e sociais começam a ter uma maior clareza quanto ao âmbito de abrangência de cada um66, mesmo com a permanência das desigualdades sociais. O direito à participação foi sendo conquistado, gradativamente, e com muita luta, perpassando a ampliação de direitos políticos, civis e sociais; com a aprovação de constituições que garantem a igualdade de direitos e o sufrágio universal de votos; conquista de direitos pelos assalariados por meio do movimento operário, entre outros. Telles (2004) mostra como a partir da própria trama social, vão se estabelecendo, “pela trama representativa,” mesmo que, de modo desigual, lutas e movimentos que vão construindo a “consciência do direito 66 Direitos políticos – direito de participar na qualidade de eleitor, de movimentos sociais, de associações políticas, etc. Direitos civis – liberdade de locomoção, de pensamento e de crença, de imprensa, de ter propriedade etc. Direitos sociais – serviços como saúde, educação, habitação etc. 89 a ter direitos”. É um processo acompanhado por lutas, conquistas e recuos que vão ocorrendo, a partir da atuação dos movimentos sociais, populares, feministas, ecológicos, em uma sociedade, no caso da brasileira, cujas raízes se assentam na família patriarcal e no trabalho servil, na tradição autoritária, nas relações de subordinação, no clientelismo, paternalismo, compadrio e favor. Como diz Paoli (2000), com o triunfo da democracia liberal, a partir de meados dos anos de 1980, o mundo ocidental viu-se diante de uma “transição democrática” em contraposição aos regimes totalitários e as ditaduras, numa passagem que operava a “ressemantização da palavra democracia”, vista como um “porto seguro” e cujo sentido está vinculado ao mundo contemporâneo e administrações eficazes, ao controle das tensões e divergências e supressão de conflitos. Ao mesmo tempo, a “democracia e a sociabilidade políticas aparecem como funcionalidades atadas às disposições de um mercado sem limites e sem fronteiras sociais (...) indiferente às violências e exclusões sociais” (PAOLI, 2000, p.9). Nesse sentido, afirma Paoli (2000) o desafio está em buscar alternativas para que se recuperem os direitos de cidadania, de forma que se possam reinventar novos caminhos da construção democrática. Conforme Bordenave (1995), a democracia é um estado de participação. Ela acompanha as formas históricas da vida social, sendo uma necessidade fundamental do ser humano. A participação é o caminho natural para o homem exprimir sua tendência inata de realizar, fazer coisas, afirmar-se a si mesmo e dominar a natureza e o mundo. Além disso, sua prática envolve a satisfação de outras necessidades não menos básicas, tais como a interação com os demais homens, a auto-expressão, o desenvolvimento do pensamento reflexivo, o prazer de criar e recriar coisas, e, ainda, a valorização de si mesmo pelos outros (BORDENAVE, 1995, p.8). Nesse sentido, o pensamento de Souza (2004, p.79) é relevante, ao afirmar a participação como “processo existencial concreto, que se produz na dinâmica da sociedade e se expressa na própria realidade cotidiana dos diversos segmentos da população”. Assim, a participação “é o próprio processo de criação do homem ao pensar e agir sobre a natureza e sobre os desafios sociais, nos quais ele próprio está situado” (SOUZA, 2004, p.81). Portanto, segundo esta autora, mesmo o homem nascendo em um ambiente em que já estão definidas 90 regras e nele já existam variadas instituições, é o próprio cotidiano, as próprias contradições que suscitam ao ser humano tomar consciência da sua realidade social e buscar alternativas para enfrentá-la. Por isso, a participação supõe a criação do homem para o enfrentamento dos desafios sociais. Esse processo de criação e enfrentamento resulta em dada realidade de consumo ou usufruto de bens, assim como numa dada realidade de funções e decisões que caracterizam fins sociais a serem alcançados. Essa realidade pode ser de denúncia da situação da maioria populacional cujas condições básicas de participação não chegam sequer ao usufruto de condições básicas de reprodução da existência (SOUZA, 2004, p.82). Dallari (1984), ao falar da participação política, coloca que todos os indivíduos têm o dever de participar da vida social, procurando exercer influência sobre as decisões de interesse comum. Esse dever tem, sobretudo, dois fundamentos: em primeiro lugar, a vida social, necessidade básica dos seres humanos, é uma constante troca de bens e de serviços, não havendo uma só pessoa que não receba alguma coisa de outras; em segundo lugar, se muitos ficarem em atitude passiva, deixando as decisões para os outros, um pequeno grupo, mais atuante ou mais audacioso, acabará dominando, sem resistência e limitações (DALLARI, 1984, p.33). Para Demo (1996a), a ausência de organização da sociedade civil é o traço mais profundo da pobreza política67 de um povo. A organização política é o primeiro canal de participação, seja ao nível da aglutinação de interesses (grupos de interesse), seja ao nível da composição localizada (comunidades). Algumas formas de organização já são clássicas na democracia, como partidos, sindicatos, cooperativas e outras expressões associativas, dentro e fora do espaço econômico. É claro que a falta de qualidade da democracia depende decisivamente dessas organizações, ou, dito pelo contrário: a falta de qualidade em tais organizações espelha a falta de qualidade democrática da própria sociedade (DEMO, 1996a, p.25). Chauí (2000) mostra, no caso do Brasil, as dificuldades na construção de uma sociedade democrática, tendo em vista os seguintes traços que desenham o perfil da sociedade brasileira: relações sociais hierárquicas ou verticais, com a 67 Aqui entendida por Demo (1996a) como não ter e não ser. Povo pobre politicamente é aquele que não conquistou ainda o seu espaço, que vive na dependência; que é debilmente organizada e serve como massa de manobra; que não reivindica direitos; que aceita favorecimentos no lugar do exercício efetivo de cidadania. É a convivência em um estado de impunidade, de exceção, privilégios, no lugar de um Estado de direitos. É o contrário da cidadania organizada. 91 presença de subordinados e mandantes, sem que se opere o princípio da igualdade formal-jurídica, nem social real; relações sociais e políticas fundadas no favor, clientelismo, tutela, imperando poderes oligárquicos, dificultando a participação das pessoas; prevalência de situações de carência e privilégios no lugar da instituição dos direitos, tornado difíceis as condições para existência da democracia e da cidadania. Todas essas condições, segundo Chauí (2004), dificultam a efetivação da democracia, no Brasil, uma vez que, ”a democracia funda-se na criação, reconhecimento, garantia e consolidação de direitos. O autoritarismo social e a divisão econômica, sob a forma de carências e do privilégio, bloqueiam a emergência de uma sociedade democrática” (CHAUÍ, 2005, p.28). Dagnino (2002) mostra, com base em pesquisas realizadas, como o processo de construção da sociedade democrática e a participação da sociedade brasileira não acontecem de forma linear, mas contraditória e fragmentada, além de observar também o peso das matrizes culturais no processo de construção da democracia no Brasil. Esta autora mostra que o exercício da participação exige dois elementos importantes: as qualificações técnica e política, principalmente se consideradas as exigências em termos da presença da sociedade civil em espaços participativos, a partir dos anos de 1990. A ocupação de espaços em conselhos, fóruns, comitês, na formulação de políticas sociais, traz a necessidade das qualificações técnica e política com vistas a uma presença mais efetiva da sociedade. Nesse sentido, a questão da representatividade é muito importante e, a depender de como ela ocorre, maiores são as chances de negociação com o poder público. Isso tem sido facilitado pelas articulações que se processam no âmbito da sociedade civil em que as organizações procuram assegurar uma maior representatividade por meio da constituição de redes, fóruns temáticos, entre outros. Apesar de se apresentar de forma variada (manifestações de massa, protestos, número significativo de participantes), é preciso cautela quanto ao formato dado a essa representatividade para que não ocorram deslocamentos e confusão de papéis das instâncias representativas e oportunizem a participação daqueles que estão tendo ou não acesso aos serviços públicos. Entretanto, 92 mesmo com esses deslocamentos, algumas pesquisas apontam68 os avanços que vêm ocorrendo no processo de construção de uma cultura mais democrática, por meio da ampliação dos espaços de participação em diversas instâncias da vida social e o reconhecimento de direitos, ou seja, tem havido progressos nas dimensões constitutivas da democracia e da cidadania. Sem dúvida, que esses avanços se diferenciam caso a caso e de acordo com o nível de mobilização de cada grupo, de cada movimento social, da correlação de forças que se estabelece na trama social. Dagnino (2004a) também chama a atenção para o fato de que vivemos em uma sociedade em que é comum o autoritarismo social, enraizado na cultura brasileira e revelado na organização hierárquica e desigual das relações sociais, nos lugares que as pessoas ocupam na sociedade, nos critérios de classe, gênero, raça. A eliminação desse tipo de cultura autoritária de exclusão é fundamental para que se efetive a democratização da sociedade. Nesse sentido, a autora indica a necessidade de ampliação e concepção da democracia de forma que seja incluído ao conjunto de práticas sociais e culturais, (...) que transcende o nível institucional formal e se debruça sobre o conjunto das relações sociais permeadas pelo autoritarismo social e não apenas pela exclusão política no sentido estrito. (...) é mais do que um regime político democrático, uma sociedade democrática (DAGNINO, 2004a, p.105). Portanto, o exercício da participação da sociedade, de forma específica dos segmentos populares, é fundamental para a construção de uma sociedade democrática. Como afirma Oliveira (2005, p. 15), “a democracia, tal como a conhecemos, foi praticamente reinventada pela luta de classe em sua forma política”. No caso do Brasil todo esforço de democratização, de criação de uma esfera pública, de fazer política, (...) decorreu quase por inteiro, da ação das classes dominadas. Política no sentido (...) da reivindicação da parcela dos que não têm parcela, a da reivindicação da fala, que é, portanto, desentendimento em relação a como se reparte o todo, entre os que têm parcelas ou partes de todo e os que nada têm (OLIVEIRA, 2000, p.60-61). 68 Dagnino (2002) tem como base várias pesquisas que retratam a relação entre sociedade civil e espaços públicos (conselhos de direitos, programas de orçamento participativo, fóruns). 93 Oliveira (2005) faz ainda uma síntese importante de todo o processo que ameaça hoje as formas de participação na sociedade brasileira e a sua democracia. A ameaça à democracia no Brasil não vem da falta de institucionalização, da permanente tutela das Forças Armadas (...) agora ela provém do núcleo mais duro do capitalismo globalizado com sua incoercível tendência a avassalar o Estado, a dilapidar as relações entre as classes, a tornar intransponível a desigualdade, retirando terreno comum de interesses e aspirações capaz de constituir a comunicação e o consenso pelo dissenso; no passado, muitas das crises e das impossibilidades da democracia no Brasil deveu-se à disputa de sentido e da hegemonia sobre o projeto nacional. Agora, as burguesias abandonaram a utopia de uma nação e, portanto, já não disputam nada com as classes dominadas: apenas deixam a incapacidade do Estado exercer o último de seus atributos, o poder de polícia, mesmo este fortemente abalado pela crise financeira do Estado, entre Rocinhas e Casas de Custódia. Parte importante das classes dominadas, sobretudo o operariado assalariado, devastado pelo desemprego e pela reestruturação produtiva, deixou apagar-se o fogo que roubou nas décadas da ditadura. Agora contenta-se com diretorias de estatais e de fundos de pensão; o imenso exército ‘informal’ não contesta as classes dominantes: trabalha na aparência de que seus adversários são os consumidores (OLIVEIRA, 2005, p.20-21). Assim, à proporção que são alargados os espaços de participação e da democracia direta ou representativa, novas configurações vão acontecendo, diante das mudanças que vêm se processando no capitalismo em nível mundial e com reflexos nos países, em todos os âmbitos da vida econômica, política e ideológica. A economia solidária vem se apresentando como uma forma de organizar a produção, os serviços e a comercialização, por meio de uma lógica, cuja base se edifica na superação da estrutura de subordinação do trabalhador em seu ambiente de trabalho; na igualdade frente aos meios de produção; na gestão coletiva das atividades e alocação dos resultados; na solidariedade, autogestão, democracia e participação. Assim, a participação é um elemento fundamental nas iniciativas produtivas vinculadas à economia solidária, tendo em vista que a vivencia nessas experiências exige o estabelecimento de vínculos entre as dimensões econômicas e sociais, um aprendizado constante na contraditória relação entre o autoritarismo que sempre foi a base de constituição dos sujeitos na sociedade brasileira, para vivências sociais em que é necessário compartilhar o poder. Não um participacionismo simbólico, conforme Tragtenberg (1989), mas uma participação efetiva que leve a autogestão dos trabalhadores. 94 A necessidade de gerar trabalho e renda se alia ao desenvolvimento de princípios que exigem o estabelecimento do espírito democrático pela via da participação em todas as etapas do processo de trabalho, da socialização das informações, um aprendizado que possa extrapolar, inclusive, o cotidiano do trabalho coletivo autogerido e que sirva para ampliar a participação nas demais instâncias da vida social. Por isso, não é possível pensar a participação apenas, a partir do locus do empreendimento, mas devem ser levadas em consideração as interfaces entre as vivências anteriores e as experiências no empreendimento, por parte daqueles que neles estão inseridos. Da mesma forma, não se pode pensar a participação somente na esfera político-institucional, das reivindicações sociais mais amplas. Nesse sentido, o que diz Wanderley (2000) é esclarecedor sobre a importância de ampliar o olhar sobre os processos democráticos e nos ajudar a entender melhor essas especificidades que ocorrem na economia solidária. Para ele, é imperativo ir além da visão reducionista da democracia apenas centrada na esfera político-institucional e lutar e apresentar alternativas para a implantação de uma democracia econômica (que permita a participação de todos nas decisões econômicas, que amplie a distribuição dos bens produzidos, que potencialize a distribuição de renda, que estimule e fortaleça a economia solidária) e de uma democracia social (que efetive os direitos sociais, amplie a vida comunitária, reconstrua os laços e relações solidárias hoje negados pelo individualismo exacerbado que resulta do neoliberalismo) (WANDERLEY, 2000, p.160). A economia solidária, por suas características e princípios, entre eles a participação, pode contribuir para a ampliação dos processos democráticos vivenciados pelos sujeitos sociais em seus diversos espaços societários. É claro que não se pode exigir somente dela essa tarefa. São grandes os desafios que envolvem a constituição de empreendimentos econômicos solidários, cujas bases se diferenciam da lógica tradicional do trabalho na empresa capitalista. Significa a construção de um processo social de coletivização das decisões, uma gestão democrática e autogestionária. Desafios esses que passam pelo significado de uma organização autogovernada, que, como afirma Carvalho (1983, p.23), envolve “uma filiação voluntária, livremente associada com o objetivo da 95 organização, e limitada pela solidariedade entre companheiros” e na qual “o aprendizado e a autoridade, a participação e o controle são a mesma coisa”. Ainda a autora afirma que são organizações regidas pelo princípio de que as pessoas que pertencem a uma organização têm o direito de decidir sobre todos os assuntos principais relacionados com a organização. A fim de compartilhar a tomada de decisão, devem participar da posse dos recursos materiais do grupo, não no sentido individual, mas como membros da organização (CARVALHO, 1983, loc. cit.). Significa, portanto, no caso dos empreendimentos econômicos solidários, gestar uma outra cultura do trabalho, uma cultura participativa e solidária, autogestionária69, na qual a democracia aconteça em todos os espaços do cotidiano do trabalho, favorecendo, por meio da gestão coletiva e autogestionária, o crescimento e desenvolvimento dos cooperados/associados, não só nos aspectos econômicos, mas também, enquanto sujeito de direitos. Como diz Gutiérrez (2001, p.28) ao se referir à “educação socialmente produtiva”, “(...) o homem é visto como gestor do processo apenas se trabalhar associativamente”. Para ele, o crescimento e a produtividade devem gerar formas organizativas que conduzam ao desenvolvimento sócio-econômico e a solidariedade. Nesse sentido, a participação é algo fundamental, visto que ela (...) educa, porquanto propicia níveis cada vez mais elevados de consciência e organicidade. Na medida em que se produz essa participação consciente e orgânica do grupo comunitário, dar-se-ão ações concretas de transformação social e, dessa maneira, conseguese influir, direta ou indiretamente, na transformação da realidade. A participação nos grupos produtivos comunitários conduz à gestão pelos próprios associados tanto dos processos de produção como dos de organização. Em sua lógica externa, a participação suporia a autogestão e autodeterminação, como princípios reitores da dinâmica do grupo comunitário produtivo (Gutiérrez, 2001, p.27). São desafios importantes que se põem para a economia solidária e para o exercício da participação, daí a importância da formação continuada. Não uma educação para o trabalho como mera profissionalização. Esta também tem a sua importância, mas a formação vista como um processo que acontece por meio das 69 Não estou me referindo aqui a autogestão ampliada, no espaço do governo, como coloca Carvalho (1983), mas no espaço da organização coletiva do trabalho autogerido, o que não significa que, como ela mesma diz, não possa ser uma modalidade para esse processo maior do autogoverno. 96 diversas vivências e experiências acumuladas por aqueles que participam dos EES. Uma formação que se dá em vários espaços da vida social, mas também na própria produção, no cotidiano do trabalho; que considere o saber acumulado pelos trabalhadores, a sua história, sua cultura, seus valores e que contribua no sentido de que não sejam reforçadas as relações de dominação, disciplinamento e subserviência, presentes na formação sócio-histórica da sociedade brasileira. As formas e processos educativos, na sociedade capitalista, têm a intenção de legitimar o poder dominante. Entretanto, ao mesmo tempo, podem se transformar em um campo de luta entre várias concepções político – ideológicas. No caso da economia solidária, tem sido freqüente a presença de agentes externos participando do processo de formação dos cooperados/associados. Por isso, a importância de uma formação que não reproduza a história de novas elites intelectuais que detêm o status de um único saber válido e, conseqüentemente, o poder. Ela deve ser continuada, envolvendo diferentes formas e procedimentos metodológicos que possibilitem a participação dos que dela fazem parte. Uma participação aqui compreendida em todas as suas dimensões: social, política, comunitária, cidadã, isto é um processo que vai ganhando amplitude diante da própria capacidade do ser social de reagir e interagir com as diversas situações cotidianas. Como se pode observar, o debate sobre a economia solidária e participação envolve diferentes aspectos, variadas interpretações, significando que se trata de temas em construção permanente. São temáticas que se entrelaçam no exercício cotidiano do trabalho dos cooperados/associados, vivenciadas na gestão democrática, estabelecendo, pois, um diferencial em relação à economia capitalista e às práticas cooperativas que foram se desenvolvendo, no Brasil, ao longo dos anos. 97 Capítulo 3 Sergipe: dos caminhos do cooperativismo a outras iniciativas produtivas solidárias “A gente precisa crescer e gerar renda, mas precisa tomar cuidado para não se transformar em uma empresa capitalista. Economia solidária, na minha maneira de entender, é você gerar uma economia que dê resultado financeiro, mas que não saia daquela coisa boa, gostosa de se viver num grupo, de ter ali os colegas de trabalho e amigos solidários para qualquer ocasião. É preciso lutar para que isso não se transforme em uma empresa fria, capitalista de empregados (Renata – UNIGRUPO). e patrões” 98 CAPÍTULO 3 – SERGIPE: DOS CAMINHOS DO COOPERATIVISMO A OUTRAS INICIATIVAS PRODUTIVAS SOLIDÁRIAS 3.1. O cooperativismo e a lógica desenvolvimentista do Estado de Sergipe O Estado de Sergipe, integrante da região Nordeste, ocupa 1,41% da área dessa região e 0,2% da área total do Brasil. Como boa parte dos estados nordestinos, Sergipe possuía, até os anos de 1960, uma economia predominantemente agrícola. Este tipo de prática econômica sempre esteve muito presente e forte em sua história, desde o início do seu processo de colonização, cuja ênfase das atividades econômicas estiveram ligadas à cultura da cana-deaçúcar e do algodão70. “A pecuária, junto com as culturas de subsistência, também ocupava espaço relevante, principalmente no agreste e no sertão” (DANTAS, 2004, p.46-47). É apenas no início do século XX que começa a se esboçar, em Sergipe, indícios de um processo de industrialização que, inicialmente, vai contar com as atividades vinculadas à agro-exportação e às atividades do setor têxtil. A monocultura, predominante na época do império, foi, gradativamente, sendo acrescida de outras atividades econômicas e, de certa forma, também aumentou o perfil das pessoas ocupadas. Como diz Dantas (2004), embora na primeira década republicana as opções de trabalho estivessem concentradas no campo, nos engenhos ou nas fazendas, paulatinamente as indústrias e os serviços, inclusive as casas comerciais foram se proliferando no meio urbano e com elas aumentando o contingente de empregados (DANTAS, 2004, p.53-54). A atividade industrial foi se expandindo lentamente, chegando ao ano de 1930 com 11 indústrias na área têxtil71. Em 1950, Sergipe contava “com 290 estabelecimentos industriais, predominando as usinas de açúcar, em número de 70 De acordo com Dantas (2004), durante a Primeira República, Sergipe tinha como principal produto exportado o açúcar, destinado para Nova York, Liverpol e Hamburgo, mas principalmente para o mercado nacional do Sul e Sudeste. 71 Cf. Censo de 1920. 99 46, contra 12 fábricas de tecidos”72. O Estado contava também com a indústria alimentícia de pequeno porte (beneficiamento da farinha de mandioca, arroz, e fábricas de laticínios). No período de 1930 a 1945, o açúcar continuou sendo o principal produto exportado, apesar de ter havido a diminuição do número de indústrias açucareiras. Além disso, outras atividades vinculadas à área rural também contribuíam para a economia sergipana, a exemplo da produção do algodão, arroz, mandioca, milho, coco e a criação de gado. Houve, nesse período, um crescimento das atividades do comércio e, no setor industrial, prevaleceu a presença da indústria têxtil73. Entretanto, a agricultura continuava com forte presença na economia sergipana. Conforme Lacerda (2004), “Sergipe caracterizava-se ao final da década de 50 por apresentar uma estrutura pouco diversificada, com predomínio, no setor rural, da cana-de-açúcar, algodão e pecuária, complementadas pela cultura de subsistência”. Em 1960, a agricultura participava com 42,8% da composição da renda interna do Estado, enquanto que a indústria participava com 10,8% e o setor terciário com 46,4%74. O setor agrícola, em Sergipe, historicamente, foi constituído por uma estrutura fundiária com características centradas na presença do latifúndio improdutivo, na predominância dos minifúndios, além de significativa presença de arrendatários e parceiros. Essas características refletem bem a estrutura fundiária do Brasil como um todo e do Nordeste, em particular, que vem, desde a sua colonização, marcada pela presença de grandes extensões de terra pertencentes a um número reduzido de proprietários, enquanto que, por outro lado, há um grande número de trabalhadores com quantidades pequenas ou mesmo sem terra. Conforme documento elaborado pela Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural de Sergipe – ANCARSE, a estrutura fundiária de Sergipe apresentava distorções, tendo em vista o “elevado número de minifúndio ao lado 72 Conforme Memória da Indústria de Sergipe. Instituto Euvaldo Lodi, Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI, Rio de Janeiro, 1986. 73 A esse respeito ver Dantas (2004, p.98-100). 74 Cf. documento: Sergipe Sócio-Econômico. CONDESE, agosto de 1970. Segundo Censo Industrial de 1960, as indústrias existentes desenvolviam atividades ligadas principalmente à canade-açúcar, têxteis e alimentícia de pequeno porte (fábrica de açúcar, farinha de mandioca e beneficiamento de arroz). 100 de grandes propriedades (latifúndios por exploração) agravado ainda mais pela grande quantidade de agricultores sem terra”75. O cooperativismo, em Sergipe, originou-se e se desenvolveu dentro dessa estrutura fundiária, tendo como ênfase o cooperativismo agropecuário. Em 1938, foi criada a primeira cooperativa sergipana – a Cooperativa Sergipense de Laticínios – CSL. Até então não existia, dentro dos órgãos governamentais, um setor que cuidasse das questões do cooperativismo, sendo esta cooperativa registrada no Serviço de Economia Rural do Estado. Naquele mesmo ano, foi criada a Diretoria de Cooperativismo – DEC, subordinada à Secretaria de Justiça e Negócios do Interior. Competia a essa diretoria dinamizar o cooperativismo no Estado, baseado na Legislação Federal sobre a matéria e incentivar, orientar, controlar e fiscalizar a organização e o funcionamento das cooperativas em geral, prestando assistência técnica educacional e doutrinária e auxiliando-as para que alcançassem os seus objetivos”76. No período de 1940 a 1960, surgiram algumas cooperativas no Estado de Sergipe, principalmente as de consumo e de produção, mas poucas alcançaram êxito77. Nos anos de 1960, o surgimento da Cooperativa dos Agricultores do Treze deu um novo impulso ao cooperativismo em Sergipe, tanto é que a tradição econômica deste Estado, ligada ao setor agropecuário, levou ao surgimento de diversas cooperativas, neste ramo de atividade. Foi também nos anos de 1960, com o regime militar, que houve uma ação mais direta do Estado no processo de modernização da agricultura, em sua base técnica, 75 como também ocorreram diversas ações de contenção das Programa de Assistência Técnica a Cooperativas Rurais do Estado de Sergipe. Elaborado pela ANCARSE em conjunto com a SUDAP para ser entregue a SUDENE como forma de montar um trabalho conjunto entre ANCARSE e SUDAP evitando o paralelismo de ações – Convênio SUDENE/ANCARSE/SUDAP. Setembro de 1971, p. 4. 76 Diretrizes Preliminares para as Cooperativas Agrícolas de Sergipe (1973). Organizado pela Comissão Estadual de Planejamento Agrícola – CEPA-SE. 77 Cf. documento Análise Sócio-Econômica das Cooperativas do Estado de Sergipe, (1980), até o final dos anos 70, das cooperativas surgidas entre os anos 1940 e 1960, continuavam funcionado: a Cooperativa Mista dos Agricultores do Treze LTDA; a Cooperativa Agrícola Mista de Estância; a Cooperativa dos Produtores de Coco do Estado de Sergipe LTDA; a Cooperativa de Consumo dos Funcionários do Banco do Brasil de Sergipe LTDA. Já de acordo com o Documento Formas de Organização da Produção, das cooperativas agrícolas criadas até 1960 somente duas sobreviveram: a Cooperativa Sergipense de Laticínios – CSL e a Cooperativa dos Plantadores de Cana-de-Açúcar. 101 manifestações de luta pela reforma agrária, entre as quais a colonização dirigida ou oficial que aparece como uma das suas estratégias. Nesse momento, era importante conter o crescimento da pobreza no campo e possíveis movimentos sociais, a exemplo das ligas camponesas, que viessem a abalar os planos de modernização pensados para o país e, de forma especial, para a região Nordeste, considerada atrasada em relação ao Centro-Sul do Brasil. No início da década de 1960, o setor industrial, localizado na região Sudeste, já era destaque enquanto que, no Nordeste, de forma específica, o Estado de Sergipe, continuava com a sua economia baseada no perfil agroexportador. O governo federal, por meio da SUDENE e outros órgãos governamentais, estimulou a modernização no campo e incentivou o setor industrial, mediante uma política de incentivos fiscais e criação de uma infraestrutura local de forma que atraísse algumas indústrias e conseguisse dinamizar as já existentes. No caso de Sergipe, esses investimentos foram importantes para o crescimento do setor industrial, uma vez que permitiu a diversificação de alguns setores da sua economia, ocorrendo uma certa renovação no seu parque industrial e a geração de novos postos de trabalho. Essas medidas, entretanto, no caso de Sergipe, não significaram mudanças no nível de concentração da renda. Elas favoreceram, na verdade, grupos agroindustriais que obtiveram créditos com subsídios, assistência técnica e uma política de preços mínimos, ocasionando a concentração, ainda maior, de terras. Acentuou-se, pois, a pauperização dos pequenos agricultores. Em 1970, os 10% mais ricos respondiam por 41,37% da renda do Estado; já em 1980, esse percentual sobe para 46,48% (SANTANA, 1992). Também, a partir de 1960, outro aspecto importante para o desenvolvimento econômico do Estado de Sergipe foi a instalação das Indústrias de Extração de Minerais e Química, inicialmente com a Petrobrás, ainda na década de 1960, e, posteriormente, nos anos de 1970 e 1980, com a chegada da Nitrofértil, produção de amônia e uréia, e da Petromisa, produção de cloreto de potássio. Com a chegada da Petrobrás, a economia sergipana passou a ter uma nova dinâmica. Foram criados empregos diretos, além de novos empregos indiretos gerados, face ao surgimento de outras empresas prestadoras de 102 serviços. Houve a expansão das atividades do comércio; do mercado imobiliário, inclusive com a concessão de moradias para os petroleiros em dois conjuntos habitacionais que estavam sendo construídos; crescimento na arrecadação de impostos, via ICMS78 e os royalties; expansão das atividades do comércio, entre outros. Em termos de crescimento do número de trabalhadores que se encontravam empregados na área petrolífera, por exemplo, em 1973, existiam empregados nesse segmento 1.793 trabalhadores, e, em 1984, esse número passa para 5.52579. Constata-se que, em vários aspectos, a exploração de petróleo deu outra dinâmica à economia sergipana. Convém destacar, também, a implantação do Distrito Industrial de Sergipe que abrangia os municípios de Aracaju, Estância e Própria, como fatores importantes para dinamizar a economia do Estado. Conforme Lacerda (2004), a economia de Sergipe cresceu 164%, na década de 1970. A partir de 1970, ocorreu um crescimento do setor de serviços, apesar de o setor primário continuar sendo o maior responsável pela ocupação da mão-deobra do campo. Esse último, por sua vez, continuou com vários problemas, entre os quais a concentração fundiária. O Censo Agropecuário de 1970 mostrou que era justamente os estabelecimentos com menos de 10 hectares que absorviam a maior parte da mão-de-obra do campo, ou seja, aproximadamente, 70%. Em 1980, eram 66,6% das pessoas ocupadas no setor rural. O processo de modernização da agricultura favoreceu ainda mais o processo de concentração fundiária, uma vez que os subsídios e juros baixos ajudaram a valorizá-la, enquanto que há uma pauperização ainda maior do pequeno proprietário rural. O crédito foi destinado para o grande produtor, cabendo ao pequeno proprietário enfrentar as dificuldades impostas pela burocracia bancária e garantias exigidas. No ano de 1975, por exemplo, apenas 12,3 % dos agricultores que possuíam menos de 10 hectares tiveram acesso ao crédito80. Nesse aspecto, o cooperativismo em Sergipe vai servir como um importante aliado no sentido de permanecer intacta a questão fundiária. O governo de Sergipe procurou estimular o surgimento de cooperativas, seja no 78 Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços. Conforme documento Diagnóstico do Setor Industrial em Sergipe, 1994, SEPLAN. 80 Cf. Censo Agropecuário de 1975. 79 103 sentido de aumentar o crédito agrícola para os seus associados, seja para estimular e orientar o surgimento destas por meio dos órgãos públicos, cujo intuito era segurar o homem no campo e fazer uma pequena distribuição de terra, principalmente via colonização oficial, o que reforçou, ainda mais, o binômio minifúndio – latifúndio. O desenvolvimento do cooperativismo, no Nordeste e também em Sergipe, estava em consonância com a política de desenvolvimento da região, tanto é que boa parte dos recursos destinados para a execução de programas, nesta área, eram oriundos da SUDENE, BNB e Banco do Brasil. Em 1969, com a criação da Secretaria da Agricultura e Produção – SUDAP, foi criado o Departamento de Assistência ao Cooperativismo – DAC, que substituiu a Diretoria de Cooperativismo, criada em 1938, que tinha dentre as suas finalidades desenvolver o cooperativismo em todas as suas modalidades e acompanhar todas as ações nessa área, em conformidade com a política cooperativista para o Estado81. Seu papel era motivar e incentivar a criação de cooperativas, obedecendo às determinações do governo federal. Para tanto, os técnicos faziam reuniões, davam palestras com o propósito de divulgar o cooperativismo e seus princípios. Para essa divulgação havia os boletins informativos, folhetos, programas de rádio e jornais. Os recursos para o funcionamento do Departamento de Assistência ao Cooperativismo – DAC eram oriundos do governo do Estado, INCRA e SUDENE e, como eles eram atendidas as cooperativas localizadas na Colônia Treze, Estância, Simão Dias, Nossa senhora da Glória e Aracaju. Em 1968, por iniciativa do DAC, em estreita ligação com a Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural de Sergipe – ANCARSE, foi iniciado um trabalho de motivação para formação de novas cooperativas82. 81 Conforme documento: Diretrizes preliminares para as cooperativas agrícolas de Sergipe - 1973. Organizado pela Comissão Estadual de Planejamento Agrícola – CEPA-SE. 82 Os resultados foram logo evidenciados: de 1968 a 1969 foram fundadas as cooperativas de Simão Dias, Glória e Itabaiana. Seguindo, daí em diante, a Cooperativa Mista de Camurupim e a do Baixo São Francisco – ambas em Propriá. 104 3.2. Ação governamental por meio da colonização cooperativa Como mencionado anteriormente, a modernização da base técnica da agricultura e a integração intersetorial passaram a ser a marca da intervenção do Estado brasileiro, a partir dos anos de 1960. Dentro desse processo, foi importante a implantação de programas e políticas que envolveram a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR, programas de colonização e compras de terra, a exemplo do Programa de Integração Nacional – PIN e de Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste – PROTERRA, cujos objetivos eram colonizar a Amazônia e implantar projetos de colonização na região Nordeste. Além desses programas, no Nordeste, foram implantados o POLONORDESTE, 1974, e o Projeto Sertanejo, 197683. Nesse processo, às cooperativas era atribuído o papel de promover mudanças na estrutura agrária do Nordeste e contribuir para a modernização da região. Coube a elas, além de suas atribuições específicas, a compra de terras e a distribuição de lotes para os cooperados por meio, muitas vezes, da formação de colônias agrícolas. Em Sergipe, com a extinção da Secretaria da Agricultura, em 1969, foi criada a Secretaria da Agricultura e Produção – SUDAP84. O Departamento de Assistência ao Cooperativismo – DAC foi substituído pela Divisão de Organização Agrária – DOAG, e vinculado a esta o setor de cooperativismo ao qual competia: a) estudar e aplicar as normas e legislação específica, no sentido de incrementar e fortalecer o sistema de cooperativas e o seu conseqüente desenvolvimento; b) traçar as diretrizes básicas para a execução da política cooperativista do Estado; c) elaborar programas e projetos de assistência financeira às cooperativas; 83 O POLONORDESTE tinha entre as suas finalidades criar condições de infra-estrutura, crédito, assistência e de pesquisa para a modernização da agropecuária. Já o Projeto Sertanejo, tinha como foco apoiar os setores da região semi-árida que mais sofreriam com a seca. 84 A SUDAP foi criada pelo Decreto número 251, de 30 de dezembro de 1969. 105 d) participar e colaborar nos programas e projetos, de órgãos federais, visando à assistência e desenvolvimento de cooperativas, que atuam ou venham a atuar na região85. Sob a coordenação da SUDAP, foi elaborado, no início dos anos de 1970, o Plano Integrado para o Desenvolvimento Agropecuário, no qual continha o Programa de Cooperativismo. No referido plano, consta um diagnóstico do setor cooperativo em Sergipe indicando as dificuldades que enfrentava e os graves problemas relacionados, principalmente, a pouca preparação dos associados e à falta de uma sustentação econômica. “As cooperativas de Sergipe, na sua maioria, foram criadas para atender a interesses políticos, sem a preocupação fundamental de motivar e conscientizar o elemento humano, único responsável pelo êxito e fortalecimento dessas sociedades”86. O Programa de Cooperativismo estava pautado em ações que visavam desenvolver um processo educativo junto aos cooperados, além da concessão de créditos e assistência técnica, redefinição da estrutura fundiária e incentivos para a comercialização. Coube ao Estado, portanto, dinamizar esse segmento, dandolhe as condições necessárias para o seu desenvolvimento. Nos anos de 1970, o número de cooperativas agrícolas aumenta. Em 1974, existiam quinze cooperativas, sendo doze ligadas ao setor agropecuário (incluindo aí a CSL e a do Colégio Agrícola), duas de consumo e uma artesanal, além da central de cooperativas87. Exceto as de consumo, as demais estavam situadas na área rural. Tal crescimento se deu, principalmente, por meio das ações de colonização e do apoio do governo estadual, mediante programas e projetos executados pelos órgãos governamentais. Esse apoio passou pelo crédito agrícola, extensão rural, educação rural, comercialização e pelas tentativas de recompor a estrutura fundiária do Estado, seja por meio da colonização oficial ou particular. É notório, nesse momento, o papel das cooperativas no processo de 85 Cf. Diretrizes preliminares para as cooperativas agrícolas de Sergipe - 1973. Organizado pela Comissão Estadual de Planejamento Agrícola – CEPA-SE. 86 Ibidem. 87 Cf. o documento: Cooperativismo como instrumento de fortalecimento do setor primário. Conferência proferida por Etélio de Carvalho Prado em 30 de setembro de 1974, no 3º. “Ciclo de Estudos sobre Segurança Nacional e Desenvolvimento”. 106 colonização particular88. Portanto, a colonização, em Sergipe, contou com a intervenção do governo, de iniciativas particulares, das cooperativas e da Igreja. Nesse sentido, uma experiência importante e que marcou não só o processo de colonização, mas também o cooperativismo agropecuário, em Sergipe, foi a fundação da Colônia Treze89. Esta surgiu graças à iniciativa de um particular, Antônio Martins, que dividiu suas terras em módulos de 10 tarefas (3 hectares) e doou 149 lotes a trabalhadores sem-terra do município de Lagarto, além de ter procedido a sua venda a outros produtores rurais que utilizaram o Banco do Brasil como agente financeiro, sendo o próprio fundador o avalista. Quatro anos depois, em 1962, diante de diversas dificuldades, ocasionadas, principalmente devido as fortes chuvas ocorridas na região, houve a destruição do que fora plantado, “menos de 100 famílias permaneceram na área, tendo as demais migrado para São Paulo, deixando para trás as dívidas com o Banco do Brasil, tendo Antônio Martins, como avalista dos colonos, que saldá-las” (MENEZES, 1985, p.58). Diante dessa realidade, o Banco do Brasil, preocupado em recuperar os recursos que tinha investido, criou, juntamente com outros órgãos, um grupo de trabalho visando sanar a situação. Esse grupo concluiu que a criação de uma cooperativa poderia ser a solução para acabar com a crise que havia se instalado na colônia e corrigir as distorções fundiárias da região. Nasceu, então, a Cooperativa Mista dos Agricultores do Treze – COOPERTREZE, tendo o Banco do Brasil como o seu principal aliado, e também os Bancos do Nordeste do Brasil e do Estado de Sergipe. A COOPERTREZE, “no período compreendido entre 1963 e 1979 instalou sete núcleos coloniais em 5.989 ha. nos quais assentou 1.213 famílias” (SILVA, 1996, p.30). A experiência da Colônia Treze serviu de referência para o processo de colonização cooperativa que se desenvolveu em Sergipe. Além dessa, convém destacar também a experiência desenvolvida nas cooperativas localizadas nos municípios de Itabaiana (COOPERGRESTE)90, Estância (COOPAME) e Japaratuba (COOJARDIM). A Cooperativa Agropecuária A colonização particular diz respeito as terras adquiridas pelas cooperativas, mediante o aproveitamento de recurso e apoio do governo na colonização de terras não exploráveis. 89 Sobre a COOPERTREZE, consultar: Menezes (1985); Lisboa (1999); Santos Lopes (2002); Souza (1999); Martins (1988); Santana (1982). 90 Sobre a COOPERGRESTE, consultar: Lima (2002). 88 107 Mista e de Colonização do Agreste – COOPERGRESTE, por exemplo, adquiriu a fazenda Santo Izidoro e, com a ajuda do governo do Estado conseguiu assentar 44 agricultores que não possuíam terras. Já a Cooperativa Agrícola Mista de Estância – COOPAME, fundada em 1968, adquiriu, em 1972, a fazenda Sucupira, localizada no município de Arauá onde foram assentadas 65 famílias. Essa cooperativa também adquiriu as colônias Guararema (Umbaúba) e Limoeiro (Arauá), onde foram assentadas 09 e 13 famílias, respectivamente. A Cooperativa Agropecuária Mista e de Colonização Jardim - COOJARDIM adquiriu, com a ajuda da paróquia de Japaratuba, as Colônias Jardim e Alagamar. Esta última localizada no município de Pirambu. Ambas assentaram mais de 100 famílias. Nesse mesmo período, também foi adquirida a fazenda Santo Antônio. Também como parte do apoio governamental ao setor do cooperativismo e como forma de viabilizar também o processo de colonização, foi criada, em 1971, a Central de Cooperativas de Sergipe LTDA91. Com o crescimento das atividades da COOPERTREZE, houve um aumento do cooperativismo em Sergipe. Esta cooperativa acabou servindo de referência para outras vinculadas à produção agrícola, que a procuravam para orientações financeiras, administrativas etc. No entanto, a mesma não estava conseguindo atender a demanda. Por isso, surgiu a idéia de criar uma Central de Cooperativas com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico e social das cooperativas filiadas, por meio de ajuda mútua, operando, basicamente, na venda em comum da produção que lhe for entregue, na compra de gêneros e artigos para abastecimento de suas filiadas pelos delegados das 92 cooperativas filiadas . É oportuno destacar que a Central de Cooperativas teve atuação até o ano de 1983, e, durante o período em que funcionou, conseguiu viabilizar financiamentos oriundos de instituições governamentais e do Banco Nacional de Crédito Cooperativo – BNCC, cuja aplicação esteve sempre vinculada à comercialização, aquisição de insumos, capital de giro e investimentos que eram 91 A Central de Cooperativas teve seu registro aprovado pelo INCRA em 21 de fevereiro de 1972. Inscrita na junta comercial em junho de 1972, sob o número 72/568. 92 Cf. Diretrizes preliminares para as cooperativas agrícolas de Sergipe. Organizado pela Comissão Estadual de Planejamento Agrícola – CEPA-SE, 1973, p.11-12. No início, eram 07 cooperativas filiadas. 108 repassados para suas filiadas, sendo que um pequeno aporte de recursos ficava na Central para capital de giro. Durante todo esse processo, além da atuação das cooperativas e do apoio do governo do Estado, convém ressaltar o trabalho desenvolvido pela Igreja Católica por intermédio da PRHOCASE que implantou, em seus vinte anos de existência (1968 a 1988), cinco fazendas comunitárias nos municípios do Vale do Cotinguiba, sendo assentadas 261 famílias93. Com relação ao tipo de colonização estimulado pela igreja, Lopes (2000) afirma que seu objetivo era evitar que a agudização dos problemas sociais decorrentes da atividade canavieira na região do Cotinguiba pudesse ser transformada em um movimento reivindicatório, ameaçando o poder dos “coronéis” que historicamente dominavam aquela região, como senhor de vida e da morte de milhares de trabalhadores rurais que deles dependiam para sobreviver (LOPES, 2000, p.104). Acrescenta o mesmo autor que o desenvolvimento da colonização tanto por meio da igreja quanto das cooperativas, a exceção da COOJARDIM que teve como objetivo livrar os pequenos agricultores da exploração dos canavieiros, as demais “se integram à estratégia de um governo controlado pelas oligarquias rurais, visando manter sua tradicional política clientelista, encobrindo, assim, a gravidade do problema agrário no Estado e dificultando uma possível organização dos trabalhadores rurais na luta pela reforma agrária” (Lopes, 2000, p.103). Relatórios elaborados pela Superintendência da Agricultura e Produção – SUDAP94, no ano de 1972, já indicam a ação do governo na área do cooperativismo e colonização. O fortalecimento do cooperativismo e da colonização era um programa desenvolvido pela SUDAP em parceria com vários órgãos95 e tinha como objetivo dar apoio às atividades de colonização, principalmente àquelas desenvolvidas pelas cooperativas agrícolas, vistas como uma opção para elevar a produtividade no campo e a renda dos agricultores. 93 As fazendas foram implantadas nos municípios de Maruim, Santa Rosa de Lima, General Maynard, Santo Amaro e Divina Pastora. 94 Cf. Relatório anual das atividades desenvolvidas pela DOA – Divisão de Organização Agrária, SUDAP, dezembro de 1972. 95 SUDENE, INCRA, ANCARSE, MEB, PRHOCASE, Banco do Brasil, SUVALE, Banco do Estado de Sergipe, Banco do Nordeste do Brasil, DEMA, DNOCS E CONDESE. 109 Uma das principais razões da ação junto aos pequenos produtores é que eles têm sido os responsáveis por grande parte da produção agrícola estadual, principalmente, de alimentos, o que os vincula com a problemática de abastecimento urbano. Não menos importante é a constatação de que os mesmos não têm conseguido elevar satisfatoriamente seus níveis de renda, o que se deve, em boa parte e de forma incontestável, à situação dispersa, isolada e dependente em que se encontram. Somente com o funcionamento de um mecanismo de concentração ou de representação capaz de realizar a comercialização dos produtos e o abastecimento de insumos que seria viável a perspectiva de conduzir-lhes a efetuar alguma poupança. A Cooperativa 96 é uma opção . Coube à SUDAP prestar assistência técnica às cooperativas rurais; fazer treinamentos na área de educação, alimentação, saúde, juventude rural; estimular a participação do agricultor na vida associativa e cooperativa; e fornecer o apoio administrativo – contábil com a manutenção de gerentes técnicos pagos pela SUDAP, mas sem vínculo empregatício com este órgão. Além disso, o DOAG/SUDAP também mantinha, via Rádio Cultura, programas radiofônicos com a finalidade de orientar e divulgar o cooperativismo em todo o Estado. A colonização particular, que já vinha se processando, por intermédio das cooperativas, ganhou reforço com a lei 5.764/1971. Esta passou a regulamentar o cooperativismo no Brasil. Foi possível acrescentar ao estatuto das cooperativas a atividade básica de aquisição de terras agricultáveis, para o seu aproveitamento econômico-social, mediante exploração agrícola, pecuária e agro-industrial, em lotes e parcelas, para vendê-los aos associados, sem intuito de lucro, dentro de um plano de colonização 97 elaborado pelos órgãos responsáveis no assunto . Convém pontuar, conforme no relatório anual da SUDAP/1972, que o programa de fortalecimento do cooperativismo e de colonização se identifica com a grande estratégia de integração nacional, particularmente, e integração das populações marginalizadas, com a eliminação da agricultura de subsistência, melhorando a distribuição de renda98. Coincide, portanto, com os grandes programas nacionais, especialmente, com os objetivos do PROTERRA que objetivava a criação de uma classe média rural, promovendo a racionalização da estrutura agrária, aliada à introdução de inovações tecnológicas. 96 Relatório SUDAP, 1972, p.2. Relatório anual das atividades – DOAG, dezembro/1972, p.19. 98 Ibidem, p.17. 97 110 Em 1975, foi elaborado pela Comissão Estadual de Planejamento – CEPA99 o Plano Integrado de Desenvolvimento das Cooperativas – PIDCOOP. Este plano tinha os seguintes objetivos: a) fortalecer o cooperativismo em Sergipe; b) estruturar, administrativamente, as cooperativas existentes, no sentido de que elas tivessem condições ideais para executar os programas de colonização; c) instrumentalizar as cooperativas, mediante uma efetiva assistência técnico-agronômica; d) capacitar os associados dos diversos níveis para que assumissem tarefas específicas exigidas pelas cooperativas; e) divulgar o sistema cooperativista e transformar as cooperativas num instrumento atuante para o desenvolvimento das comunidades, com a formação de uma mentalidade empresarial. Várias entidades faziam parte da execução desse plano, cada uma com as suas atribuições100. Essas ações tinham como objetivo orientar o produtor rural em todas as etapas do processo produtivo e divulgar os princípios básicos do associativismo, incentivando a compra de insumos e a venda da produção, quando realizadas em quantidades maiores, via cooperativa. Visava, dessa forma, sanar alguns problemas. Entre eles, o da comercialização da produção, momento de dificuldade dos produtores, que, quando colhiam sua produção, não recebiam um pagamento justo. A integração das diversas instituições facilitou o desenvolvimento do cooperativismo em Sergipe. Essa estratégia foi reforçada por ocasião da implantação do Programa Nacional de Cooperativismo – PRONOCOOP, que 99 Criada no início dos anos de 1970 foi substituída, em 1976, pelo Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste – POLONORDESTE, que vigorou até 1984. A CEPA tinha como objetivo auxiliar no planejamento da área rural do Estado de Sergipe e realizou diversos estudos e projetos que contribuíram para uma melhor otimização de recursos. 100 A ANCARSE cabia a assistência técnico-agronômica, elaboração e acompanhamento dos projetos de financiamento; SUDAP – coordenação em nível estadual e assessoramento às diretorias das cooperativas; participação no custeio das despesas do Plano; Banco do Brasil – recursos financeiros para financiamento da produção; EMBRATER (Ministério da Agricultura) – participação no custeio das despesas do Plano; SUDENE – participação no custeio das despesas do Plano e colaboração no treinamento dos técnicos; EMBRAPA – colaboração no treinamento dos técnicos e participação na definição dos pacotes tecnológicos para culturas e criações; INCRA – assessoramento em aspectos relacionados à legislação cooperativista; Central das Cooperativas – assessoramento às diretorias das cooperativas e orientação na comercialização da produção. De acordo com o documento “As cooperativas agrícolas do Estado de Sergipe, julho de 1979, p. 52-53. 111 exigiu novos ajustes nos papéis a serem desempenhados pelas instituições que desenvolviam ações no âmbito do cooperativismo no Estado101. A partir de 1977, ocorrem mudanças na forma de como o processo de colonização vinha se estabelecendo. O governo estadual passou a definir as metas prioritárias para aquisição de propriedades com recursos do Estado e do POLONORDESTE, para ressarcimento aos colonos. Foi criado o Fundo de Desenvolvimento Cooperativo – FDC102, dando-se início ao Projeto de Colonização, desenvolvido pelo governo de Sergipe, por intermédio da SUDAP103. Nessa época, foram adquiridos 42 imóveis, abrangendo 13 municípios. A aplicação dos recursos, nas cooperativas, deveria ser na infra-estrutura para comercialização, no sistema de irrigação, na elaboração de projetos de colonização, no beneficiamento de produtos, na compra de terras para colonização, no empréstimo para comercialização e no fortalecimento do capital de giro. Além disso, foi desenvolvido o Projeto “Mãos para Terra” que visava a dar acesso a terra aos trabalhadores rurais que sobrevivem da venda de sua força de trabalho, de forma que pudessem cultivar os alimentos básicos à sua subsistência. Essas ações eram pensadas, face a deficiente estrutura agrária que acarretava a existência de minifúndios, que, dadas suas dimensões e pulverização espacial, são imponentes para assegurar uma remuneração satisfatória do produtor, pelo seu esforço produtivo. Deste modo, os produtores comercializam mal a produção (entregando-a a baixos preços aos 101 Definidas as ações, coube a cada uma das instituições integradas: INCRA - fiscalização, treinamento, educação cooperativista, assistência e apoio financeiro. SUDAP - coordenação do Programa de Cooperativismo em âmbito estadual, repasse de recursos e apoio técnico. EMATERSE - assistência técnico-agronômica, técnico-administrativa e social; Banco do Brasil, Banco Nacional de Crédito Cooperativo e Banco do Estado de Sergipe – financiamento e assistência financeira; OCESE - representatividade legal; CODEVASF - apoio técnico e financeiro às cooperativas atuantes na área do Baixo São Francisco. Conforme documento, “Abordagem do cooperativismo agropecuário estadual” SUDAP, março de 1978, p.12. 102 Antes, existia o Fundo da Terra que foi incorporado ao FDC. 103 Durante o período em que a atividade de colonização esteve ao encargo da SUDAP, foram implantados os seguintes projetos: fazenda Sergipe (Indiaroba), Sapé (Itaporanga), Ladeirinhas (Japoatã), Itapicuru (Malhador), Vertente (Estância), Cristinapólis (Cristinapólis), Tajubeba (Itaporanga), Estancinha (Salgado, Estância), Entre Rios (Estância), Bela Vista (Estância), Santa Rita (Canindé), Quebradas IV E V (Salgado), Gavião (Malhador), Eugênia (Umbaúba e Arauá), Tombo (Salgado), Canoas (Salgado) e Riachinho (Salgado), localizados em 11 municípios do Estado, assentando-se 812 famílias. Segundo Documento, “Atividades desenvolvidas pela SUDAP no segmento colonização até março/85”, SUDAP, Aracaju, 1985. 112 intermediários), em função do pequeno poder de barganha de que nessas condições são possuidores104. Essas pequenas unidades de produção (minifúndios), em nível estadual, eram as responsáveis pelo pouco de alimentos e matéria-prima industrial que se produziam em Sergipe (exceção da cana-de-açúcar) e por quase 100% da produção de milho, feijão, arroz, batatinha, mandioca, hortaliças, fumo e algodão e parte significativa da produção de laranja, maracujá e coco. As cooperativas agrícolas do Estado concentravam parte desses produtores (minifúndios) e organizavam a produção mediante repasse de crédito, prestação de serviços mecanizados e revenda de insumos, organizando também a comercialização. Neste caso, eles prestavam diretamente um duplo serviço aos cooperados e ao governo. Aos cooperados, pela concentração da produção, aumento do poder de barganha e conseqüente alcance de melhores preços no mercado. Ao governo, pelo aumento da arrecadação dos impostos. Além disso, as cooperativas desenvolviam atividades de colonização, com resultados da alta relevância e grandes benefícios sociais, sem provocar nenhuma tensão política. Agregavam-se também as ações, no campo social, em colaboração com o poder público. Entre as ações podem ser citadas: a) instalações próprias de unidades de saúde; b) organização de caixa de pecúlios para aquisição de medicamentos; c) a construção de escolas e o pagamento de professores em caráter de colaboração. No período de 1983 a 1986, foi pensado outro projeto de colonização para o Estado de Sergipe, via SUDAP. Pretendia-se ampliar o sistema de colonização que vinha sendo desenvolvido no Estado, por meio das cooperativas. Desta feita, oportunizando a outros grupos de agricultores que não estivessem envolvidos com o cooperativismo. Sergipe já possuía uma área para colonização de 16.045 hectares, com previsão para assentar 1.355 famílias. Esse projeto envolveu ações para o período 1983 a 1986, entretanto, na sua execução, não se logrou o êxito desejado, tendo em vista a lentidão no assentamento das famílias, as dificuldades encontradas nas cooperativas, irregularidade do acesso ao crédito, entre 104 Cf. documento, “As cooperativas agrícolas do Estado de Sergipe”, julho de 1979. Não consta o responsável pela elaboração. 113 outras105. Via-se, mais uma vez, nas cooperativas, a possibilidade de aglutinação dos produtores rurais. Até 1984, as atividades fundiárias do governo de Sergipe eram desenvolvidas pela SUDAP. A partir de então, passaram a ser executadas pela Fundação de Assuntos Fundiários do Estado de Sergipe – FUNDASE, em 1984. Com a criação desta e diante de alguns problemas que enfrentavam as cooperativas na década de 1980, estas instituições deixaram de atuar no processo de colonização de novas áreas, ficando para a FUNDASE106 tal tarefa. Mesmo com ações desenvolvidas no âmbito da colonização, a estrutura fundiária continuou sendo extremamente elevada107. Entretanto, não se pode negar os resultados desse processo de colonização, via cooperativas, para o desenvolvimento e expansão das culturas da laranja e fumo, na região centro-sul e dos hortifrutigranjeiros, no agreste, gerando trabalho e renda. O certo é que, a partir dos anos de 1970, o cooperativismo passou a ser visto pelo governo estadual como uma possibilidade para a melhoria da estrutura agrária, já que vários órgãos se envolveram nesse processo, além de ter crescido o volume de recursos para a área, numa ação integrada de diversos órgãos públicos. Vários documentos mostram como o apoio do governo do Estado de Sergipe foi fundamental para a criação e desenvolvimento das cooperativas. Essa ajuda era constante, apesar da variação no tipo de assistência. Segundo documento “Apoio ao cooperativismo”, na década de setenta, havia maior preocupação na área de motivação e conscientização cooperativista, via um trabalho educativo, de caráter pré-cooperativo, em diversas comunidades. Havia maior preocupação com o assessoramento contábil e gerencial. Já nos anos de 1980, a ênfase maior se deu em termos da assistência técnica na agricultura e nas áreas de nutrição e saúde, bem como ajuda às 105 Cf. documento elaborado pela Comissão de Cooperativismo e Reforma Agrária, em 1985. A FUNDASE foi extinta em 1990 e a Companhia de Recursos Hídricos – COHIDRO passou, a partir de então, a assumir essa tarefa. 107 Em Sergipe, conforme Censo Agropecuário de 1986, o índice de GINI foi de 0,84, indicando uma elevada concentração fundiária. O Índice de Gini é usado para medir o grau de desigualdade na distribuição de indivíduos, segundo a renda domiciliar per-capita. Seu valor varia de 0 quando não há desigualdade a 1 quando a desigualdade é máxima. 106 114 famílias dos associados, ficando o apoio administrativo restrito ao pagamento parcial do gerente geral da cooperativa. A partir da década de 1980, segundo o documento Cooperativismo e Colonização – Análises e Propostas108, as cooperativas agrícolas não apresentavam uma boa situação financeira. Os pequenos produtores não possuíam capital e tinham dificuldade para constituir empreendimentos sólidos. Além disso, o perfil dos cooperados também influenciava no desenvolvimento do cooperativismo, no Estado. Tratava-se de pequenos produtores dependentes dos fatores terra, capital e tecnologia. Por falta de capital para investimento, a maioria deles dispunha apenas do seu trabalho. Constatavam-se insuficiência ou inexistência de um nível de escolaridade, falta de capacitação e motivação associativista dos cooperados e a pouca participação nas assembléias. Destaquese que 64% eram proprietários, no entanto a grande maioria era posseiro, não tinha o título da terra. Estes, adquiriram suas glebas, por meio das cooperativas, pelo sistema de subscrição de quotas-partes, sendo que a maioria explorava áreas com menos de 10 hectares. Além desses, outros fatores, também são identificados: a) as condições climáticas; b) o crédito e a assistência técnica que não agiam como elementos dinamizadores do desenvolvimento sócio-econômico das cooperativas; c) a falta de terra para produzir; d) área de abrangência excessiva em relação ao número e tamanho das cooperativas, levando, muitas vezes, os associados à dispersão e com dificuldade para entender a área de atuação da cooperativa; e) a existência de algumas cooperativas com superposição de área; g) a existência de áreas importantes e carentes de cooperativas – região norte e nordeste do Estado. Apesar do governo do Estado continuar apoiando o cooperativismo, ao longo da década de 1980, por meio de programas e projetos, houve, neste período, uma diminuição, no número de cooperativas, no meio rural. Elas começam a aparecer com maior força no meio urbano, apesar de esse crescimento se acentuar muito mais nos anos de 1990. 108 Cf. Cooperativismo e colonização – análises e propostas. Secretaria de Estado da Agricultura. Aracaju, 1983, p.65. 115 Conforme documento elaborado pela Comissão de Cooperativismo e Reforma Agrária, em meados dos anos de 1980109, o cooperativismo agropecuário, em Sergipe, passava por problemas, principalmente porque mantinha algumas características como: exploração de pequenas áreas, pois 66,11% dos agricultores produziam em áreas com menos de 10 hectares e carência de capital de investimento e de operação. A realidade, citada no referido documento, é que os cooperados tinham uma dependência excessiva de crédito, bem como todos os outros pequenos produtores; a mão-de-obra era, fundamentalmente, familiar; havia pouco interesse, por parte dos pequenos agricultores, em associarem-se às cooperativas; evidenciava-se a ausência de uma identidade dos associados em relação às cooperativas, manifestada mediante a pouca participação nas reuniões e assembléias; faltava o desenvolvimento de uma formação cooperativa permanente; comprovava-se a ineficiência dos serviços prestados pelas cooperativas aos associados; a existência de estruturas operacionais complexas inadequadas às reais condições econômicas, sociais e culturais, bem como a capacidade de entendimento dos associados; além das dificuldades de se encontrar, no mercado de trabalho do Estado, pessoal administrativo com qualidade e treinado, para trabalhar com cooperativas de pequenos produtores. Há uma redução dos investimentos do governo estadual no processo de colonização. É diante desse cenário que o cooperativismo em Sergipe vai, nos anos de 1990, trazendo consigo não só mudanças no papel do Estado, mas também na composição do emprego como um todo, incluindo os setores rural e urbano. 109 No documento não consta o ano. Suponho que foi elaborado entre 1985 e 1987, porque os dados utilizados em uma tabela são de 1983 e 1984. A data de registro na biblioteca da SUDAP é de 26 de março de 1987. 116 3.3. Declínio do cooperativismo agropecuário e o surgimento de outras iniciativas produtivas solidárias A partir de meados da década de 1980, começou a se observar uma desaceleração na economia sergipana. O setor agrícola, que já não respondia pela linha de frente do desenvolvimento do Estado, continuou com poucos investimentos. O setor industrial sergipano também começou a enfrentar alguns problemas, apesar de sua principal atividade continuar sendo a extração do petróleo. A indústria têxtil, por exemplo, passou a enfrentar uma grande concorrência das indústrias internacionais, face à abertura comercial estimulada, de forma mais acentuada, na década de 1990, mesmo com a tentativa, em alguns casos, de se modernizar seus maquinários, para enfrentar o mercado internacional. Há uma redefinição nos investimentos das empresas estatais, face ao agravamento da crise fiscal e financeira do Estado brasileiro, no final dos anos de 1980, promovendo uma mudança no seu papel, frente ao processo de desenvolvimento. Com a diminuição dos investimentos públicos e privados, constatam-se dificuldades para a implantação, ampliação ou diversificação de novos complexos produtivos. Os anos de 1990 trazem mudanças significativas na economia sergipana. Conforme Tirone (2000), em 1985, a indústria contribuía com 49,95% para a composição do PIB, o setor agropecuário com 13,6% e o setor de serviços com 36,8%. Treze anos depois, em 1998, a indústria participava com 31,2% do PIB, o setor agropecuário, em queda, com 9,7% e o setor de serviços com 58,4%. Essa queda em alguns setores da economia é refletida também na geração de novos postos de trabalho. “Em Sergipe, entre 1992 e 1997, foram fechados postos de trabalho, tanto no setor primário quanto no secundário. O nível de emprego não caiu para a economia como um todo, por conta da expansão do setor terciário” (LACERDA, 2000, p.37). Mesmo significando uma expansão das ocupações neste setor da economia, é importante frisar que os novos postos de trabalho vêm acompanhados de outras formas de inserção no mercado de trabalho, tendo a terceirização, a informalidade e a precariedade das relações de trabalho o foco norteador dos novos contratos de trabalho e baixos salários. Na análise feita por 117 Nascimento (2004), ao comparar os setores secundário e terciário, fica evidenciado que, em Sergipe, no período de 1994-2002, é o setor terciário que paga os menores níveis salariais. Na década de 1990, um novo momento passa a ser vivenciado pelo cooperativismo sergipano e, de forma específica, o agropecuário que, no início, se depara com uma série de problemas relacionados com: a falta de capital de giro, altos juros bancários, o não pagamento dos empréstimos por parte dos cooperados e dificuldades nos processos de gestão. Cessa-se também, de certa forma, o papel das cooperativas no processo de colonização e, com isso, a diminuição dos recursos nessa área. Por conta desses fatores algumas cooperativas precisaram enxugar totalmente o seu quadro funcional e, especificamente, a COOPERTREZE, em crise, renegociou suas dívidas e liberou seus associados para venderem os produtos aos intermediários, o que vem ocorrendo até hoje, estando esta cooperativa praticamente na inatividade. Foi uma década difícil para o cooperativismo agropecuário em Sergipe. Se por um lado, nos anos de 1990, observam-se problemas neste segmento do cooperativismo, por outro, vê-se o surgimento de diferentes empreendimentos econômicos solidários (associações de produtores, grupos de produção e cooperativas) que se expandem em segmentos e atividades de caráter urbano, bem como, no caso das associações de produtores, no meio rural. Emergem e se multiplicam formas de produção num momento de sérias mudanças no mundo do trabalho e no capitalismo mundial. Grande parte dessas iniciativas produtivas tem surgido de segmentos pauperizados que, muitas vezes, nunca tiveram acesso ao mercado de trabalho formal, a exemplo de pessoas desempregadas ou em eminência de perder os seus postos de trabalho, como forma de resgatar e preservar a cultura, entre outros. Para alguns, tal alternativa tem representado a única fonte de sobrevivência e, para outros, uma forma complementar de renda. 118 Conforme pesquisa desenvolvida pelo Núcleo Local da UNITRABALHO, na década de 1990, em Sergipe110, a maioria das cooperativas constituídas, ou seja, 62,5% estavam localizadas na capital e 42,3% no interior do Estado. Os dados revelam uma concentração das cooperativas de trabalho (37,8%), seguidas por aquelas vinculadas às áreas de saúde e agropecuária que aparecem com o mesmo percentual (21,2%). Segundo 78% dos entrevistados, a principal razão do aumento do número desses empreendimentos está relacionada à necessidade de ter uma ocupação e de gerar renda. Outros fatores que também contribuíram para esta ampliação foram: oportunidade do mercado de trabalho (24,3%), incentivos do governo (24,3%), disponibilidade de matéria-prima e existência de crédito com o percentual de 13,5% cada. Nos anos de 1990, em Sergipe, há um crescimento das cooperativas em vários ramos de atividades. Na área do trabalho, observou-se uma diversificação quanto ao tipo de cooperativa passando pela prestação de serviços de limpeza e manutenção, serviços múltiplos, profissionais de diversas áreas, informática, telemática, aquaviários, música, construção civil. Estudo realizado em três cooperativas de trabalho111, localizadas na capital sergipana, indica que a criação destas está relacionada diretamente com a dificuldade de (re)inserção dos trabalhadores no mercado formal de trabalho, diante do desemprego, dos processos de demissões voluntárias ou perda dos postos de trabalho, em função da privatização de empresas estatais, ou ainda devido à necessidade de complementar a renda familiar, uma vez que, mesmo sendo todos eles servidores públicos, os salários não eram suficientes para o sustento de suas famílias. Além disso, foi identificada também a presença, em todas as cooperativas pesquisadas, de pessoas aposentadas que procuravam uma alternativa para complementar sua renda. No segmento do transporte, por exemplo, em 1980, registrada na OCESE, só existia a Cooperativa de Táxi do Aeroporto de Aracaju – COMTAJU. A partir de meados da década de 1990, várias cooperativas foram criadas, principalmente como forma de regularizar o transporte considerado clandestino, desenvolvido por 110 Essa pesquisa, realizada em 2002, teve como objetivo fazer um diagnóstico do cooperativismo em Sergipe, tendo como referência aquelas registradas na OCESE. O universo da pesquisa foi 66 cooperativas. 111 Cf. Barreto; Ferreira; Santos (2002). 119 particulares, mediante utilização de caminhões ou mercedinhas (um tipo menor de caminhão), utilitários ou carros de passeio. A criação de cooperativas, nessa área, vislumbrou a possibilidade de se criar um serviço de transporte alternativo para a população que, até então, dependia de um pequeno grupo de empresários que monopolizava o serviço de transporte estadual e interestadual. Exemplo disso foi a criação, em março de 1996, da Cooperativa de Transporte Alternativo de Sergipe – COOPERTALSE112, após muita luta, mobilizações e resistências de um grupo que já fazia o transporte considerado clandestino pelos órgãos públicos. Depois da criação da COOPERTALSE, ou seja, a partir de 1999, foram criadas 23 cooperativas de transporte113. Já na área da saúde, houve um crescimento significativo das cooperativas, sendo comum a criação destas de acordo com as áreas médicas (anestesia, urgência e terapia intensiva, cardiologia, cirurgia, pediatria), além de cooperativas de enfermeiros e odontólogos. No segmento da produção, já se observa o crescimento de cooperativas vinculadas ao ramo têxtil/confecção, principalmente pela presença de cooperativas e grupos de produção. No segmento do artesanato, uma atividade produtiva presente na maioria dos municípios sergipanos, tem sido comum o surgimento de empreendimentos solidários do tipo associações ou grupos de produção. A forma associativa tem auxiliado no enfrentamento das dificuldades114 relacionadas, principalmente com a falta de capital de giro e comercialização, por meio da compra coletiva de matéria-prima, acesso ao mercado consumidor e escoamento da produção, falta de divulgação do artesanato, orientações quanto ao planejamento do negócio, entre outros. Por isso, a criação de empreendimentos econômicos solidários tem sido uma das saídas. A falência de algumas empresas, além de gerar um alto índice de desemprego, tem ocasionado o surgimento de novas experiências, pois alguns 112 Sobre essa cooperativa, consultar o trabalho de Abreu; Souza; (2000). Localizadas nos municípios de Itabaiana, Nossa Senhora da Glória, Lagarto, Estância, Neopólis, Carira, Nossa Senhora do Socorro, Nossa Senhora das Dores, Indiaroba, Poço Verde, Barra dos Coqueiros, Aracaju e São Cristóvão. 114 Matos (2004) fez um estudo sobre o artesanato de cerâmica no município de Santana do São Francisco em que mostra as dificuldades enfrentadas pelos artesãos, principalmente quando se observa a ausência do envolvimento deles em associações ou cooperativas. 113 120 trabalhadores estão assumindo a “massa falida”. Em Sergipe, destaca-se a experiência da Cooperativa dos Trabalhadores de Confecções de Sergipe – COOPERVEST, criada em 1994, em virtude de um processo falimentar da empresa Vila Romana115. Na ocasião da sua criação, permaneceram cerca de 600 funcionários, sendo que, nos últimos anos, o número de cooperados tem oscilado entre 500 a 600. Destes, há uma predominância do sexo feminino (90%) e que atuam, sobretudo, no setor de produção. Os cooperados têm uma retirada média mensal de um salário mínimo. A COOPERVEST contou com o apoio do sindicato116 e da Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão – ANTEAG. Esta contribuiu com o processo de formação dos trabalhadores, no entendimento do que é uma cooperativa, sua forma de gestão, entre outros. Tudo era muito novo para os trabalhadores, as decisões deveriam ser tomadas em caráter de urgência e pouco tempo se teve para discutir o processo de mudança de empresa para a cooperativa. Foram muitas as dificuldades, mas, apesar disso, a cooperativa se apresentava como uma possibilidade para preservarem os seus postos de trabalho e garantir uma renda para sobrevivência. No meio rural, foi comum, durante a década de 1990, o surgimento de diversas associações de produtores. Um estudo117 realizado sobre alguns empreendimentos localizados nos municípios de Poço Verde, Simão Dias e Tobias Barreto mostra que as principais razões para a sua formação estão relacionadas com a busca de alternativas diante do desemprego, necessidade de gerar renda, a importância e a possibilidade de se obter maiores ganhos por meio do trabalho associativo, além de ser uma condição exigida para ter acesso a financiamentos e apoios externos. Neste estudo, foram identificados 60 empreendimentos solidários, sendo boa parte deles de associações de produtores118. Com exceção do município de Tobias Barreto que conta com 25% dos empreendimentos atuando na área 115 Na época da falência, existiam, na fábrica, 1.200 trabalhadores. Sobre a COOPERVEST, consultar Santos (1999); Souza (2004). 117 Ribeiro (2004). 118 Em Simão Dias e Tobias Barreto, por exemplo, foram localizadas 12 associações em cada localidade, seguidas de 02 e 07 grupos informais, respectivamente. Somente em Poço Verde foi identificada uma cooperativa, sendo a predominância maior de grupos informais, 15 no total, seguido da existência de 10 associações de produtores. 116 121 urbana, devido, principalmente à atividade econômica vinculada ao pólo de confecções, nos demais municípios, há uma predominância da atuação no meio rural. É importante destacar as dificuldades apresentadas por esses empreendimentos no que diz respeito ao nível de produtividade e acesso ao crédito. Os resultados da produção não têm significado bons ganhos econômicos, uma vez que a maioria dos empreendimentos não conseguiu sequer pagar suas despesas correntes e não obteve sobra líquida. O acesso ao crédito também dificultou essa produção, tendo em vista a ausência de capital de giro e mesmo as barreiras enfrentadas no momento de conseguir empréstimos junto aos agentes financeiros que perpassam pela burocracia, taxas de juros elevadas, necessidade de avalistas e os prazos de carência limitados. Filho (2004) mostra que, a partir dos anos de 1990, há o surgimento de um maior número de associações, na área rural, em Sergipe, face ao estímulo de programas governamentais, em virtude da Lei 8.171/91 que dispõe sobre a política agrícola. Existia uma tendência para estimular a participação das comunidades em vários desses programas governamentais, a exemplo do Programa de Apoio Comunitário – PAC, com o objetivo de organizar as comunidades e as associações comunitárias. Daí a importância de se estimular o associativismo. Além disso, havia também, por parte das agências financiadoras internacionais, novas exigências quanto aos resultados econômicos dos projetos. Nesse sentido, surge o estímulo aos produtores rurais a se organizarem em associações e cooperativas. Esse fato é constatado por Filho (2004), na medida em que sua pesquisa verifica que 93,3% das associações foram criadas no inicio dos anos de 1990, cujo propósito era auferir benefícios dos programas governamentais, ocorrendo, muitas vezes, a formação de associação, a partir da notícia de que poderiam conseguir alguns benefícios, a exemplo de financiamentos bancários. Um desses programas que teve e ainda tem relevância no meio rural e que vem contribuído para o associativismo do campo é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, implantado em 1996. Por meio dele e de seus recursos, tem sido possível amenizar a crise de algumas cooperativas no seu papel de intermediária quanto ao crédito, bem como na criação, reativação e funcionando de variadas associações de produtores. 122 Outra questão importante apresentada no estudo feito por Filho (2004) diz respeito à comercialização dos produtos que ocorre, predominantemente, via atravessadores, já que poucos agricultores utilizavam a venda direta ou por meio de cooperativas ou associações. Nesse caso, a pesquisa também revelou que, apesar das dificuldades no exercício da prática de compras e vendas de forma coletiva, quando ela existe, tem trazido benefícios para os associados, a exemplo de um valor maior no momento da comercialização do produto e um melhor preço. Essas dificuldades passam também pelo processo de capacitação, freqüentemente identificado em vários empreendimentos solidários como um dos seus entraves, face ao desconhecimento, tanto das direções quanto dos associados. Filho (2004) constata, em sua pesquisa que, 76% dos dirigentes das associações não possuem formação em associativismo e em cerca de 40% das associações pesquisadas não se constatou ações de capacitação, sendo que em 56,7% delas foi verificada a ocorrência de apenas um curso ao ano, além da descontinuidade do processo de capacitação e a falta de integração dos órgãos que trabalham com a qualificação no âmbito rural. Mesmo com alguns entraves e dificuldades na forma de gestão e do acesso ao crédito, é notório o crescimento do número de empreendimentos, tanto na década de 1990 como também no início do século XXI, fato este comprovado pelo mapeamento que vem sendo realizado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, tendo sido identificados, no estado de Sergipe, 367 empreendimentos econômicas solidários, incluindo-se grupos informais, associações, cooperativas e outros. Os dados119 revelam que houve uma proliferação de criação de empreendimentos, a partir de 1990. No período de 1991 a 2000, foram criados 113 empreendimentos, enquanto que de 2001 a 2005 foram criados 177. Do total pesquisado (367), 191 apontaram que a principal e primeira razão para criação do empreendimento está relacionada com uma alternativa ao desemprego, seguida pela indicação de ser uma fonte complementar de renda para os associados (46). Verificou-se uma predominância 119 Dados retirados do relatório final do mapeamento em Sergipe – Disponível em: www.mte.gov.br. 123 da presença das mulheres; dificuldades de acesso ao crédito principalmente devido aos juros altos e exigências burocráticas das agências de fomento. Além do aumento no número de empreendimentos, convém destacar o papel que vem desempenhando o Fórum de Economia Solidária de Sergipe, enquanto articulador dos três segmentos que o compõe (empreendimentos, gestores e assessorias), além de outros movimentos sociais que se mobilizam para desencadear ações de geração de trabalho e renda. Este Fórum tem se constituído em um espaço permanente de articulação, formação, discussão, fomento e proposição de políticas públicas no campo da economia solidária120. Possui representantes estaduais que participam das discussões e definições tomadas em nível nacional por meio das reuniões e encontros promovidos pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES, além de articular e mobilizar representantes dos seus três segmentos e parceiros locais na definição de estratégias para o fomento, visibilidade, viabilidade e fortalecimento da economia solidária no Estado de Sergipe. Observa-se nesse panorama que, de início, o cooperativismo, em Sergipe, teve como centralidade as cooperativas agropecuárias que se constituíram e proliferaram sob a tutela do Estado, não só no sentido de lhes conceder benefícios (créditos, assistência técnica, apoio na comercialização), mas também de criar as condições para que elas adquirissem terras e repassassem aos associados, propagando-se a idéia de que diminuiria a grande concentração de terras existentes no Estado. Inserido nos programas desenvolvidos pelo governo estadual, o cooperativismo agropecuário, até meados dos anos de 1980, foi visto como um importante aliado no processo de modernização econômica do Estado, na medida em que, por um lado, no âmbito rural, os pequenos produtores rurais, por meio da sua produção, deram sustentação ao crescimento do setor industrial e, por outro, este cooperativismo contribuía para amortecer possíveis conflitos por terra, uma vez que a colonização parecia ser a alternativa para promover, de certa forma, uma reorganização fundiária, fixar o homem no campo e integrar-se ao desenvolvimento sócio-econômico do Estado. A partir da década de 1990, essa centralidade do cooperativismo agropecuário, em Sergipe, começa a dar lugar a outras formas de produção 120 Cf. Regimento Interno do Fórum de Economia Solidária de Sergipe. 124 associada que, apesar de já existirem, a exemplo das associações e grupos produtivos, ampliam-se diante do cenário de desemprego vivenciado no Brasil e também em Sergipe. Os estudos121 e pesquisas realizados até agora, em Sergipe, têm mostrado que, atualmente, há uma diversidade, não só nos tipos de empreendimentos, mas também nos motivos e formas como eles foram e estão sendo criados. Além disso, a proliferação dessas iniciativas produtivas tem como preocupação o resgate e exercício de um cotidiano que possua como base a construção de relações de trabalho democráticas e participativas, preservando-se os valores e princípios originais da economia solidária. O seu surgimento tem ocorrido por diversas razões: seja por exigência de situações objetivas que envolvem a necessidade de regulamentar uma atividade profissional, ou porque as pessoas ficaram desempregadas; para facilitar a aquisição de empréstimos, muitas vezes, exigências dos agentes financeiros; como uma forma de complementar a renda de pessoas que estão inseridas no mercado de trabalho formal ou aposentadas, uma vez que os baixos salários recebidos não permitem auferir rendimentos que permitam o sustento de suas famílias; há também aqueles que surgem impulsionados pela possibilidade de dispor de assessorias sejam das universidades, de movimentos sociais ou ONG´s; para garantir melhores condições de trabalho; e ainda os que são criados como uma forma de preservar os aspectos culturais por meio de atividades artesanais, entre outros. 121 Além dos já citados, foram localizados os seguintes estudos: ROCHA, Cristina Alves. Arranjo produtivo em economia solidária: o caso do artesanato bordado de Cedro de São João – SE. Monografia (Graduação em Ciências Econômicas). Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/SE, 2005. SILVA, Helma Monteiro Viana. Economia solidária e desenvolvimento local: uma análise da cooperativa das bordadeiras de Sítios Novos "Um Sonho a Mais" Poço Redondo – SE. Monografia (Graduação em Ciências Econômicas). Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/SE, 2005. VASCONCELOS, Daniel de Santana. Microcrédito e desenvolvimento local: evolução dos programas públicos de microfinanças em Sergipe e no município de Aracaju. Monografia (Especialização em Desenvolvimento Econômico Local) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/SE, 2004. SANTOS, Alda Carla. O artesanato de cerâmica do município de Santana do São Francisco-SE. Monografia (Graduação em Ciências Econômicas). Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/SE, 2005. FONTES, André Carlos Souza. Análise socioeconômica das cooperativas agrícolas de Sergipe. Monografia (Especialização em Ciências Sociais). Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/SE, 1988. SANTOS JÚNIOR, José W. O processo social do cooperativismo sergipano de meados da década de 90 a início do século XXI. Monografia (Graduação em Serviço Social). Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/SE, 2003. 125 Capítulo 4 Contexto e caracterização dos empreendimentos econômicos solidários e seus cooperados/associados “Para mim, uma associação é as pessoas solidárias uma com a outra. Do mesmo jeito, a cooperativa” (Angélica – Associação das Mulheres do Camarão). 126 CAPÍTULO 4 – CONTEXTO E CARACTERIZAÇÃO DOS EMPREENDIMENTOS ECONÔMICOS SOLIDÁRIOS E SEUS COOPERADOS/ASSOCIADOS 4.1. Configurando os Empreendimentos Econômicos Solidários O surgimento dos EES, nos últimos tempos, segundo Gaiger (2003), tem ocorrido devido a cinco circunstâncias: a) presença nos meios populares, de práticas e tradição associativa, comunitária ou de classe, propiciando um sentimento de vínculo a um passado comum de reconhecimento mútuo (...); b) a existência de organizações populares e de mobilizações coletivas (...); c) a redução das modalidades convencionais de subsistência, seja devido à regressão ou maior seletividade do mercado de trabalho, seja à ineficiência das políticas públicas (...); d) a mediação de organismos representativos ou de apoio (...); e) a formação de um cenário político e ideológico que reconheça como relevante essas demandas sociais e as alternativas que apontam, as quais passam a penetrar em amplas frações dos movimentos sociais e na institucionalidade política (GAIGER, 2003, p.137). Os EES, que compõem o campo desta pesquisa, inserem-se nessas circunstâncias e foram constituídos, porque os seus cooperados/associados perderam seus postos de trabalho ou a eles nunca tiveram acesso, bem como pela necessidade de melhoria das condições de vida e de trabalho. Assim, compõem o campo desta pesquisa: a Cooperativa de Reciclagem dos Agentes Autônomos de Aracaju (CARE), o Grupo de Confecção UNIGRUPO e a Associação das Mulheres do Camarão. 127 4.1.1. Cooperativa de Reciclagem dos Agentes Autônomos de Aracaju – CARE 4.1.1.1. Localização e antecedentes: A Cooperativa dos Agentes Autônomos de Reciclagem de Aracaju – CARE está localizada no bairro Santa Maria, antigo povoado Terra Dura, área periférica do Sudoeste de Aracaju, distante 17 km do centro da capital sergipana. No referido bairro, funciona a lixeira da Terra Dura que tem sido objeto de debate de órgãos públicos e da sociedade civil, no sentido de se criar alternativas para mudar as condições de disposição dos resíduos sólidos naquele vazadouro e do descarte aleatório dos mesmos. A deposição dos resíduos sólidos, em Aracaju, sempre foi um dos problemas enfrentados pela população. Funcionando com lixões a céu aberto, seu destino já percorreu diferentes localizações. Conforme lembra Manoel, um dos entrevistados da CARE, ali atrás da Norcon tinha um morro e por trás tinha um lixão. Dali saiu foi pro fundo do cemitério, era uma capineira se jogou lixo ali. De lá foi pro morro do urubu, onde hoje é o parque da cidade. Lá passou um bom tempo. De lá puseram na Soledade e depois na Várzea do Poço, na Terra Dura (Manoel – Care). Até 1985, os resíduos sólidos de Aracaju eram depositados na lixeira da Soledade, bairro periférico de Aracaju. Como estava localizada próximo ao rio do Sal, era comum a poluição deste, além da proliferação de doenças, afetando os que habitam em seu entorno. A área estava se tornando pequena para absorver a quantidade de lixo, diariamente, ali depositada. Além disso, a instalação da lixeira, naquele lugar, estava trazendo um desconforto à população que residia em suas proximidades, provocando um movimento dos moradores para a retirada da lixeira do local. As negociações levaram à efetivação de um convênio entre as Prefeituras de Aracaju e São Cristóvão, quando, entre outras medidas, foi definido e alugado um outro local para transferência e funcionamento da lixeira. Desta feita, foi instalada no povoado Terra Dura pertencente, naquele momento, ao município de 128 São Cristóvão, bem próximo a Aracaju, que, em virtude da proximidade dos limites territoriais, posteriormente, passou a pertencer à capital sergipana. Aracaju, conforme Censo do IBGE de 2000, possui uma população de 461.534 habitantes122, concentrando, pois, boa parte da população do Estado de Sergipe, ou seja, cerca de 26%. Esta capital vem, ao longo das três últimas décadas do século XX, desenvolvendo um processo acelerado de urbanização, face ao processo migratório campo-cidade, levando muitas dessas pessoas a residirem na periferia da capital, em ocupações irregulares. Como afirma França (1999, p.72), essa “metropolização que ocorre em Aracaju e sua periferia é um fenômeno perverso. A baixa renda e a pobreza são empurradas para os assentamentos periféricos, enquanto o núcleo central paulatinamente se elitiza”. Diante dessa realidade surge o bairro Santa Maria. Seu povoamento se deu, inicialmente, por meio de uma das ações governamentais para acomodar pessoas oriundas não só de municípios sergipanos, mas também de Estados vizinhos. Em 1988, conforme França (1999), o Governo do Estado, através do Decreto número 9.640, declarou de utilidade pública 245,7 hectares de terra localizados nas imediações do povoado Terra Dura, nos limites de Aracaju e São Cristóvão, para a implantação de projetos urbanísticos e residenciais, com a intenção de construir 7.052 casas residenciais (FRANÇA, 1999, p. 116-117). Além disso, havia também a intenção de ampliar o Aeroporto de Aracaju, na medida em que o material a ser utilizado nas obras de terraplanagem sairia do Morro da Piçarreira, localizado nas proximidades do povoado Terra Dura, na cabeceira do Aeroporto. Assim, seria possível ampliar a pista em mais 500 metros. No bairro Santa Maria, foram construídos três conjuntos habitacionais (Maria do Carmo Alves, Padre Pedro, Antonio Carlos Valadares)123 destinados, principalmente para a moradia de famílias transferidas de áreas de ocupações irregulares. Existem, no referido bairro, 07 unidades educacionais públicas 122 A população da cidade de Aracaju, estimada pelo DATASUS/ano em 2006 é de aproximadamente 506.288 habitantes. 123 Atualmente, fazem parte do bairro Santa Maria: Conjunto Valadares, Conjunto Padre Marcelo Rossi, Cajueiro, Marivam, Arrozal, Morro do Avião, Ponta da Asa, Loteamento Canal Santa Maria, Loteamento Santa Maria, Conjunto Prainha, Jardim Recreio, Avenida Amarela, Conjunto Padre Pedro, Paraíso do Sul, Areia. 129 (municipais e estaduais) e três postos de saúde. É um local que apresenta alto índice de violência, conforme pesquisa realizada pela Secretaria Municipal de Saúde na qual se constatou que o maior índice de óbitos ocorrido, no período de 2003 a 2005 (17%), estava relacionado com homicídios, elevando-se esse percentual em 2006 (22,2%). Sua população é formada por pessoas pobres que, em sua maioria, conta com uma renda mensal inferior a um salário mínimo. As precárias condições de vida dos moradores do bairro Santa Maria estão evidenciadas em algumas pesquisas. Conforme cadastramento realizado pelo SEBRAE, ano (2006), lá vivem entre 45.000 e 50.000 pessoas, em moradias que, apesar de serem construídas, em sua maioria em blocos cerâmica, ainda é possível localizar casas de taipa, de papelão, principalmente aquelas situadas no Morro do Avião, localidade de extrema pobreza. São residências que, em sua maioria, possuem dois cômodos, comportando uma média de quatro pessoas por família, evidenciando-se, pois, uma superlotação. Levantamento feito pelo DATASUS/SMS, em 2001, mostra que, no bairro Santa Maria somente 30,01% dos domicílios estão ligados ao sistema de esgotos; 50,37% das casas destinam seus esgotos às fossas e 19,62% a céu aberto. Ainda, conforme dados do SEBRAE (2006), a maior parte dos chefes de família do bairro pertence ao sexo feminino (52,3%), ficando os homens com um percentual de 46,3%, mostrando, dessa forma, uma maior participação da mulher no sustento da casa. 48,22% dos chefes de família encontram-se trabalhando, entretanto, verificou-se também que grande parte encontra-se desempregada (22,19%) ou exerce a função de dona-de-casa (21,10%). Os que se encontram trabalhando desenvolvem atividades como autônomo (16,38%), funcionário público (11,86%), doméstica (11,30%), vigilante (8,47%), vendedor e pedreiro (7,91%) e operário (5,08%), ou seja, eles ocupam postos de trabalho, em sua maioria precários, o que resulta em rendas temporárias para 46% das famílias. Destas, 36,4% sobrevivem com menos de um salário mínimo e 32,6% ganham um salário mínimo. Outras pessoas conseguem auferir algum tipo de renda por meio de negócios de médio e pequeno porte, a exemplo de mercearias, lanchonetes, armarinhos, cabeleireiros, bodegas, botecos, bares e material de construção. Apesar de ter esse pequeno comércio, a atividade principal que tem 130 gerado trabalho e renda para a maioria da população residente no bairro é a catação do lixo, seja diretamente nas ruas ou no aterro semicontrolado. Conforme dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, no Brasil, mais de 40 mil pessoas vivem diretamente da catação em lixões e mais de 30 mil vivem da catação nas ruas, sendo significativa a presença de crianças e adolescentes desenvolvendo essa atividade, em alguns casos, a representar 50% (como em Olinda) dos catadores124. No caso da lixeira da Terra Dura, era comum a presença de crianças vivendo e trabalhando lá. Várias famílias com os seus filhos residiam dentro da área de descarte do lixo, em contato com todo tipo de resíduo como: doméstico, industrial, inclusive material proveniente de unidades de saúde. “Eram 43 barracos construídos e ´mobiliados´ precariamente com material recolhido no lixão” 125. Essa situação chamou a atenção do Ministério Público do Estado de Sergipe que constituiu, em 1998, um Grupo de Estudos de Direito Ambiental, com o propósito de encontrar alternativas para a destinação dos resíduos sólidos do Estado. Uma dessas ações estaria vinculada à lixeira da Terra Dura, passando a fazer parte do Programa de Defesa Comunitária126 que já vinha sendo desenvolvido pelo Ministério Público, desde 1997. Percebeu-se, entretanto, que qualquer atividade a ser desenvolvida naquela localidade exigiria uma ação ampla, envolvendo diversas instituições das diferentes esferas de governo, além do envolvimento dos municípios que fazem parte da grande Aracaju, especificamente, São Cristóvão e Nossa Senhora do Socorro. Com o lançamento do Projeto Lixo e Cidadania, realizado pelo UNICEF, em agosto de 1998, viu-se, então, a possibilidade de uma intervenção naquela localidade. Os objetivos do referido Projeto eram erradicar da catação do lixo crianças e adolescentes, bem como mudar a situação do destino final do lixo, no Brasil. A preocupação com o trabalho das crianças foi o foco inicial das atividades. No caso de Sergipe, além da presença das crianças, no lixão, uma outra situação preocupante se apresentava: o local onde está instalada a lixeira 124 Brasil. Ministério do Meio Ambiente – MMA. Agenda 21 Brasileira – Bases para Discussão, MMA/PNUD, Brasília, 2000. 125 Cf. Relatório Final do Projeto Lixo e Cidadania. 126 Seus objetivos se relacionavam ao atendimento dos direitos sociais, civis e políticos da população pobre residente no Município de Aracaju. 131 fica próximo ao Aeroporto de Aracaju, distante apenas 4,4 km, quando a distância mínima exigida pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA é de 20 km. Destaque-se que era constante a presença de urubus circulando nas proximidades do aeroporto, podendo ser sugados pelas turbinas das aeronaves. Este fato já havia acontecido duas vezes e provocado pequenos incidentes que poderiam se tornar extremamente graves. A Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária – INFRAERO cobrava medidas urgentes para resolução do problema. Para sanar tais dificuldades, juntaram-se os seguintes órgãos públicos: Universidade Federal de Sergipe – UFS, Companhia de Desenvolvimento Industrial de Sergipe – CODISE, Empresa Municipal de Serviços Urbanos – EMSURB, Secretaria Estadual do Meio Ambiente – SEMA, Administração Estadual do Meio Ambiente – ADEMA, a própria INFRAERO, bem como o Ministério Público. Inicialmente, foram realizados estudos pela UFS e ADEMA demonstrando a necessidade de serem tomadas medidas urgentes como: construção de um aterro sanitário; coleta seletiva do lixo; necessidade de se implantar um consórcio entre os municípios que compunham a região metropolitana de Aracaju, principalmente São Cristóvão e Nossa Senhora do Socorro e a adoção de medidas de preservação ambiental. Algumas dessas medidas já haviam sido pensadas há mais de 10 anos por ocasião da assinatura do convênio entre os municípios de Aracaju e São Cristóvão, cujo prazo de validade havia vencido em 1995, resultando no cumprimento de apenas um dos seus itens, ou seja, a definição do local onde funcionaria a lixeira. As demais cláusulas continuaram só no papel. No lugar do aterro sanitário, surgiu um grande lixão a céu aberto. As discussões que já vinham ocorrendo sobre o destino dos resíduos sólidos de Aracaju, São Cristóvão e Nossa Senhora do Socorro foram agregadas ao Projeto Lixo e Cidadania. Esse projeto foi lançado em nível nacional em março de 1999, mas, em Sergipe, ele só começou a funcionar em maio de 1999 e tinha como objetivo encontrar alternativas para a solução dos problemas sociais e ambientais gerados pela disposição inadequada dos resíduos sólidos urbanos, principalmente na Região da Grande Aracaju, envolvendo 132 inicialmente os municípios de Aracaju, Nossa Senhora do Socorro e São Cristóvão127. Destaque-se que as metas iniciais do projeto eram as seguintes: eliminar o trabalho de crianças e adolescentes nos lixões e inseri-los na escola; melhorar as condições de trabalho e renda da população que sobrevivia da economia de reciclagem do lixo; reduzir a mortalidade infantil; eliminar as moradias instaladas dentro do lixão; envolvimento dos catadores na coleta seletiva e erradicação dos lixões; impulsionar ações governamentais no sentido de erradicar a lixeira que existia a céu aberto e implantação do aterro sanitário. Para a implantação destas metas, optou-se pela execução de dois subprojetos denominados: “Criança fora do lixo e dentro da escola” e “Aterro sanitário e preservação ambiental”128. Para execução de tais metas, foram definidas as seguintes estratégias: realização do cadastro das famílias que viviam no e do lixão; estudo sócioeconômico da população catadora de lixo, com foco nas condições em que viviam as crianças e adolescentes; realização de estudos ambientais, com o propósito de identificar outras áreas para a construção do aterro sanitário; além do conhecimento de outras experiências em nível nacional e da inclusão de outros segmentos da sociedade na operacionalização do projeto129. O Projeto Lixo e Cidadania, em âmbito nacional, era coordenado pelo UNICEF. Já em Sergipe, ficou sob a coordenação do Ministério Público que articulou outros parceiros para a sua execução. Uma das primeiras ações desenvolvidas foi a realização de um diagnóstico sobre a situação das pessoas que viviam na lixeira. A Universidade Federal de Sergipe, por meio da PróReitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, coordenou essa atividade, cujos resultados apontaram para a existência de 310 famílias sobrevivendo do lixo, totalizando 1.080 pessoas provenientes em sua maioria (69,5%), do interior do Estado de Sergipe. As famílias viviam e trabalhavam sob condições degradantes, pois eram submetidas à chuva, à lama, ao sol, à inalação de gases tóxicos e à violência. As pessoas conviviam sob o risco constante de acidentes, ocasionados pelos caminhões compactadores, pelos furões (material pontiagudo utilizado para furar 127 Cf. Relatório Final do Projeto Lixo e Cidadania, p.7. Cf. Relatório Final do Projeto Lixo e Cidadania, p.8. 129 Ibidem, p.8-9. 128 133 os sacos de lixo), disputavam restos de comida com urubus e outros animais. Dos adultos que trabalhavam exclusivamente na atividade de catação (84,8%), 70% tinham um rendimento inferior a 01 salário mínimo, apenas 14,2% obtinham, mensalmente, mais de um ou dois salários mínimos. Esse baixo rendimento levava os demais membros da família a entrarem, precocemente, no mercado de trabalho, ou seja, crianças e adolescentes eram obrigadas a trabalhar no lixão ou em outras atividades. As crianças e adolescentes somavam 509 pessoas. Deste total, 17,7% eram catadores habituais. Eram 90 crianças participando diretamente da atividade de catação do lixo, sendo que 58,8% delas estavam na faixa etária entre 07 e 18 anos, apesar de ter sido constatado, na pesquisa, que 05 crianças até seis anos também ajudavam aos pais. Dos 509 adolescentes e crianças, 39% estavam fora da escola e, entre os catadores habituais, 78,7% não tinham acesso ao ensino formal. Entre os motivos que fizeram essas famílias migrarem para Aracaju, destacou-se a falta de emprego. As pessoas que residiam, na área rural, vislumbravam a vinda para a cidade como uma possibilidade de melhoria da qualidade de vida, por meio do trabalho. Muitas dessas famílias, que também almejavam conseguir sua casa própria, foram residir no bairro Santa Maria e de lá, face à dificuldade de conseguir um emprego, foram trabalhar na lixeira. No âmbito do subprojeto “Criança fora do lixo e dentro da escola”, algumas ações foram desenvolvidas, no período de 1999 a 2002. Conseguiu-se, por exemplo, cercar toda área da lixeira e dotá-la de um serviço de vigilância, de forma que houvesse um controle do trabalho infantil naquela área e de catadores não cadastrados. As crianças foram encaminhadas para cursar a pré-escola e o ensino fundamental em unidades de ensino público localizadas no bairro em que residiam e várias delas inseridas no Programa de Erradicação do Trabalho 130 Infantil – PETI ; foram construídos 42 barracos de madeirite em um local um pouco mais afastado da área de descarte do lixo, e desmontados os que ficavam dentro da lixeira; foi construída uma igreja que também servia para as reuniões e instalada uma caixa d’água de uso coletivo para as pessoas que foram morar nos barracos. 130 Cf. Relatório Final Projeto Lixo e Cidadania, 2002, do total de 250 crianças atendidas pelo PETI no Bairro Santa Maria, 163 pertenciam às famílias que viviam no lixão e que foram cadastradas em 1999. 134 Após o cadastramento, as famílias que residiam no lixão e que não possuíam moradias foram inseridas no programa habitacional desenvolvido pelo governo do Estado de Sergipe. Conseguiram suas casas (43 famílias), no conjunto Padre Pedro, localizado no bairro Santa Maria. Foram disponibilizadas pelo município de Aracaju vagas em creches,131 além do desenvolvimento do projeto RECRIARTE,132 reforço escolar para as crianças de 07 a 14 anos e também a realização de cursos para os maiores de 14 anos,133 bem como o desenvolvimento de oficinas de artes e atividades esportivas. No que diz respeito ao subprojeto “Aterro sanitário e preservação ambiental”, as ações caminhavam mais lentamente. Foram feitos pelo Ministério Público termos de ajustamentos, no sentido de comprometer os diversos órgãos envolvidos na questão dos resíduos sólidos e preservação ambiental, além de estudos sobre os impactos ambientais no caso da implantação do aterro sanitário. Os resultados dos estudos indicavam a necessidade de interdição da lixeira da Terra Dura. Várias reuniões foram realizadas com o propósito de definir um local para construção deste aterro, mas sem sucesso. Além das mudanças nas administrações municipais, exigindo, muitas vezes a retomada das negociações, havia uma resistência explícita dos municípios envolvidos no sentido de destinar uma área para a construção do aterro. A lixeira continua na mesma localidade, porém, hoje, existe um maior controle na entrada e saída dos caminhões. Também é proibido o acesso de pessoas para fazer a catação do lixo, sendo os resíduos aterrados. A Empresa Municipal de Serviços Urbanos – EMSURB vem fazendo a cobertura dos resíduos, para diminuir o número de urubus na área, até que se tenha uma definição sobre a destinação e descarte do lixo. Mesmo assim, isso não tem impedido que alguns catadores consigam driblar a segurança por ocasião da chegada dos caminhões e, mesmo 131 Foram oferecidas 70 vagas em uma creche para as crianças na faixa etária entre 0 e 3 anos, mas apenas 40 foram matriculadas, e freqüentaram efetivamente 33. As mães alegavam, entre outros problemas, a falta de condições financeiras para pagar as despesas com o transporte até a creche. 132 O RECRIARTE atende aos filhos dos cooperados, mas, existindo vagas, outras crianças e adolescentes do bairro podem participar. 133 Por meio do Programa Capacitação Solidária, foram treinados jovens na atividade de reciclagem de papel. A INFRAERO ofereceu um curso de informática básica. Outros cursos foram realizados: cerâmica, pintura em gesso e arte em mosaico e música. 135 com dificuldade, tenham acesso ao local. Está sendo feita também a coleta seletiva em alguns bairros de Aracaju. Concomitantemente, a retirada das crianças e de suas famílias do lixão e os encaminhamentos sobre o destino dos resíduos sólidos de Aracaju, São Cristóvão e Nossa Senhora do Socorro, foi sendo discutida, junto aos catadores, a possibilidade de formar a cooperativa, conscientizando-os de sua importância. 4.1.1.2. A CARE e os seus cooperados À medida que algumas ações do Projeto Lixo e Cidadania iam se desenvolvendo, verificou-se que era insuficiente retirar as crianças do lixão. Era importante que os seus pais também deixassem a atividade de catação do lixo, já que a proposta era acabar com a lixeira a céu aberto. Assim, foi pensada pelos técnicos que acompanhavam o projeto a idéia de criar uma cooperativa. A formação da cooperativa contou, inicialmente, com a resistência dos catadores, justificada, segundo relatórios do Ministério Público, pelo descrédito manifestado por essa população em relação ao poder público e pela desconfiança com os políticos e/ou particulares que se aproximavam deles, faziam promessas, mas nada era cumprido. Isso foi reforçado na fala de um dos cooperados entrevistados ao informar sobre o processo de formação da cooperativa. Segundo Margarete, o povo dizia as coisas a gente que ia acontecer, mas a gente não acreditava, desafiava eles. Que nada! Vocês não vão ter como tirar essas famílias todinha aqui do lixão pra dar trabalho, por isso que a gente não acreditava na história deles. E aqueles que acreditou é que hoje tá trabalhando aqui (Margarete – Care). Entretanto, outros entrevistados alegam outras razões, dentre as quais podem ser destacadas: o desconhecimento do que era a cooperativa, o que gerava desconfiança quanto aos seus resultados, e também o receio de perderem a liberdade quando do exercício do trabalho, uma vez que teriam que ter horário de entrada e saída e obedecer a regras e normas que não estavam presentes em seu cotidiano. 136 A resistência na formação da cooperativa já tinha sido evidenciada em outras tentativas de organização coletiva. Ainda quando moravam na lixeira, existiu a idéia de se formar uma associação entre os catadores que trabalhavam lá, mas essa proposta não logrou êxito porque a idéia não foi aceita por eles. Segundo Manoel, um dos entrevistados desta pesquisa, essa iniciativa partiu de um engenheiro da Prefeitura de Aracaju que o chamou, juntamente com responsável pelo acompanhamento das atividades no lixão, para conversar sobre a possibilidade de se montar uma associação e o orientou como deveria proceder. Ao colocar a idéia para o conjunto dos catadores, a grande maioria não aceitou. Diz ele: quando cheguei no lixão e falei com o pessoal eles disseram que ninguém aceitava, porque esse negócio de associação não dava certo porque isso e aquilo e eu queria era dinheiro, essas coisas (Manoel – Care). Posteriormente, houve também uma tentativa da Universidade Tiradentes em formar uma cooperativa, foi construído um galpão, mas o projeto não avançou. Apesar das resistências, várias reuniões foram feitas com alguns deles num processo de mobilização e sensibilização para formar a cooperativa. O Ministério Público conseguiu, junto ao governo do Estado134, um terreno onde foi instalada a sede da cooperativa. Lá foram iniciados os trabalhos de reciclagem, ainda bastante incipientes em seus primeiros meses. Um grupo de catadores passou a participar de oficinas, cursos e palestras. No ano 2000, foi realizado um ciclo semanal de palestras, tendo sido abordados os seguintes temas: cooperativismo, saúde, meio ambiente, direitos sociais e políticos, direitos da mulher, coleta seletiva, Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, cidadania, como também o SEBRAE patrocinou um curso sobre cooperativismo, do qual participaram 17 catadores. A Cooperativa dos Agentes Autônomos de Reciclagem de Aracaju – CARE foi criada em 24 de dezembro de 1999. É uma entidade sem fins lucrativos, fundada para congregar os catadores que atuavam no “Lixão da Terra Dura,” com o objetivo de beneficiar e comercializar materiais recicláveis. A cooperativa tem como finalidade “prestar serviços a seus associados, com fundamento na 134 2 Terreno cedido pela Companhia de Habitação de Sergipe – COHAB com 3.000 m . 137 participação, cooperação e ajuda mútua dos mesmos, visando à estabilidade econômica e o bem estar de todos seus integrantes”135. Para o seu funcionamento, foram necessárias várias parcerias que resultaram na aquisição de máquinas; construção do galpão, convênios com organizações públicas e privadas para aquisição de material reciclável; envolvimento da EMSURB que iniciou um processo de coleta seletiva em alguns bairros da capital136. Entretanto, esta coleta ainda não está sendo compreendida pelo governo municipal como uma política pública. Atualmente não existe um contrato que exija da empresa responsável pelo recolhimento do lixo, a realização da coleta seletiva. O que existe é uma “cortesia” desta empresa que vem cedendo dois caminhões com seus respectivos motoristas, mas a coleta seletiva tem sido feita por dois cooperados da CARE. Falta uma definição política nesse campo e também uma maior mobilização e sensibilização da população para a coleta seletiva. A CARE conta também com um caminhão137 que tem recolhido o material reciclável em empresas, órgãos públicos e privados e condomínios habitacionais, mediante convênios firmados com a intermediação do Ministério Público de Sergipe. A CARE trabalha com 20 toneladas/mês de material coletado, utilizando-se do processo de prensagem e enfardamento, sendo a produção comercializada diretamente com fábricas e empresas de reaproveitamento. A unidade produtiva foi implantada em 2001, a partir da aprovação do projeto pela MAXITEL/TIM que financiou a construção da sede e ofereceu os equipamentos necessários para o seu funcionamento. Também, nesse ano, foi instituído o Conselho de Fiscalização e Desenvolvimento da CARE do qual fazem parte empresas como a MAXITEL/TIM, MULTSERV, Companhia do Desenvolvimento Industrial de Sergipe (CODISE) e SEBRAE/SE, bem como instituições públicas, a exemplo da Administração Estadual do Meio Ambiente (ADEMA), Empresa Municipal de Serviços Urbanos (EMSURB), Universidade Federal de Sergipe, Banco do Nordeste, INFRAERO, Companhia de Habitação de Sergipe (COHAB), Defesa Civil e a Fundação Municipal do Trabalho. 135 Cf. Estatuto da CARE. Inicialmente foi definido um projeto piloto no conjunto Inácio Barbosa, sendo, posteriormente, ampliado para mais 11 bairros da capital sergipana. 137 Adquirido com recursos da Fundação Banco do Brasil, por meio de um projeto elaborado pela equipe da Incubadora/UFS. 136 138 Tem-se como critério para a entrada na cooperativa a experiência laborativa na atividade de catação do lixo. Existe, na CARE, um cadastro de pessoas que trabalhavam no lixão, sendo esse instrumento utilizado no momento de necessidade de ampliação do quadro de cooperados. O número de cooperados da CARE sofre uma variedade constante, oscilando, geralmente, entre 27 a 35 cooperados. No momento de realização desta pesquisa138, faziam parte da CARE 27 cooperados. Dos 27 cooperados, 55,5% são do sexo masculino e 44,4% do sexo feminino. Apesar de ser uma atividade que, na execução de algumas de suas tarefas, exige esforço físico (descarregar o caminhão, levantar os sacos de lixo, após separados, carregar os fardos até o elevador de cargas) é comum a presença das mulheres, inclusive essa é uma característica que vem desde o lixão, segundo os cooperados. Na CARE, aos homens cabem as atividades que exigem um maior esforço físico, apesar de as mulheres, quando necessário, também descarregam os caminhões e conduzem os sacos de lixo já reciclados para outros locais. É comum também as mulheres serem os chefes de família e no dizer de algumas delas “é preciso trabalhar para sustentar os filhos,” já que a composição da estrutura familiar, entre os entrevistados, mostra que os cooperados possuem um número de filhos que varia entre dois a seis, sem contar, muitas vezes, os netos que também passam a habitar o mesmo espaço físico. Desses, a maioria não trabalha (51,8%). Dos filhos e netos que exercem algum tipo de atividade laborativa, alguns são recepcionistas, vendedores de pão, empregadas domésticas ou trabalham na própria cooperativa. A renda familiar da grande maioria (92,5%) varia entre um e meio a dois salários mínimos, enquanto que a renda mensal adquirida pelo trabalho na cooperativa gira em torno de um salário mínimo ou um pouco mais para aqueles que também trabalham aos sábados. As retiradas são calculadas pela média da produção, normalmente, após abater as despesas com água, luz, telefone, fundo de reserva, etc. Chegase a um valor de R$ 15,00/dia para o pagamento do cooperado que é realizado ao final de cada semana. Há um esforço no sentido de que aqueles que trabalham o mês inteiro não recebam menos do que um salário mínimo. Já para 138 Os dados têm como referência o levantamento realizado pela UNITRABALHO – Sergipe em meados de 2005. Foram utilizados os percentuais mais relevantes para a caracterização dos cooperados/associados. 139 os cooperados faltosos, a retirada mensal varia entre meio a um salário mínimo. Aqueles que trabalham também aos sábados, pela manhã, recebem a mais R$15,00139. Dos cooperados, 89% não estudam atualmente. Os que continuam estudando (11%) cursam o supletivo para concluir o ensino fundamental ou participam de programas de alfabetização. Entre os cooperados, 88,9% se dizem alfabetizados, enquanto 11,1% se declaram analfabetos. Dos que estudaram, o máximo que conseguiram cursar foi até a 5ª série do ensino fundamental, sendo que a maioria estudou somente até a segunda série. Do total de cooperados, 44,4% recebem benefício do governo, enquanto que 51,9% não recebem. Os principais benefícios recebidos são: Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI (11,1%), Bolsa Família (33,3%) ou aposentadoria (3,7%). 4.1.1.3. CARE: cotidiano e rotina dos processos de trabalho A reciclagem tem se apresentado como uma alternativa importante para a redução do lixo e tem sido utilizada como uma fonte de geração de trabalho e renda. É isso que os cooperados da CARE têm feito em seus processos de produção, na medida em que os plásticos, papéis, papelões, embalagens de PET, latinhas de cerveja, são separados, processados e vendidos. A CARE conta, atualmente, com alguns equipamentos importantes para o desenvolvimento das atividades de triagem como: prensa, trituramento e enfardamento do material a ser reciclado. Existem duas prensas, sendo uma para metal e outra para papel; um triturador de vidro; uma picotadora de papel; um elevador de cargas e uma balança. No ano de 2006, por meio da aprovação de um projeto financiado pelo CNPq140, edital voltado para tecnologias sociais, foram adquiridos outros equipamentos (prensa, picotadeira, balança), dando melhores condições de trabalho aos cooperados. 139 Depende do salário mínimo da época. Nesse momento da pesquisa o salário mínimo era de R$ 320,00. 140 Projeto elaborado pelo professor Daltro, da UFS, com o apoio da equipe da UNITRABALHO – Sergipe. 140 Está sendo implantada, na cooperativa, uma unidade de reciclagem de plásticos oriundos da utilização dos vasos de refrigerantes, mais conhecidos como PET. Esta unidade é fruto de uma parceria estabelecida entre a CARE, UNITRABALHO e Fundação Banco do Brasil141. Os processos de trabalho exigem o desenvolvimento de diferentes atividades individuais e coletivas que obedecem a uma seqüência e ordenação. Os cooperados chegam à cooperativa, geralmente, às 7h30min. Tomam café da manhã, preparado por uma cooperada, (pão com manteiga, café e leite) que é custeado com recursos de outros materiais vendidos na cooperativa, a exemplo do ferro e madeira. Iniciam os trabalhos às 8h e são divididos nas atividades de coleta, triagem, picotagem e prensa do material reciclável. As atividades são distribuídas, diariamente, pela presidente da cooperativa, a depender da quantidade de cooperados que vai trabalhar. Normalmente, eles são divididos em dupla. Os processos de trabalho são desenvolvidos manualmente, apesar de eles contarem com duas prensas e uma picotadeira. Quando chega o caminhão, todo material é colocado nas baias142, ou então é depositado em um espaço que fica logo na entrada da cooperativa. Daí são retirados os bags (sacos plásticos) cheios de lixo que vão para as mesas de madeira, onde acontece a primeira etapa do trabalho: a triagem. Na triagem, os cooperados são divididos em duplas e distribuídos em três mesas de madeira onde os sacos de lixo são abertos um a um. O lixo, quando aberto, exala um gás com odor, que, segundo os cooperados, ocasiona algumas doenças143. Foi comum verificar cooperados que não usavam máscaras ou luvas. O lixo é separado de acordo com a sua característica. São separados de um lado os plásticos grossos, latas de cerveja e refrigerante e, de outro lado, os papéis grossos e finos. Os plásticos são separados por cor e de acordo com as 141 Em 2004, foi elaborado um projeto pela equipe do Núcleo Local da UNITRABALHO e Incubadora da Universidade Federal de Sergipe com a participação dos cooperados, no qual foram solicitados pela UNITRABALHO sede nacional à Fundação Banco do Brasil recursos para instalação de uma unidade de processamento do PET. A Fundação Banco do Brasil aprovou o Projeto e doou os recursos para aquisição das máquinas e parte da infra-estrutura. 142 No galpão, existem 03 baias. Elas são os espaços onde são colocados os sacos plásticos cheios de lixo. 143 As doenças mais comuns estão relacionadas com problemas de pele (micoses). 141 especificações (grossos e finos)144. Essa é uma primeira separação, ainda grosseira. Só depois, é que é feita a separação dos plásticos grossos, das latas de refrigerante e de cerveja para serem encaminhados à prensa. Os plásticos de cor branca são vendidos por um preço bem mais elevado do que o plástico colorido. É oportuno destacar que, ao lado de cada cooperado, ficam quatro sacos para serem colocados os plásticos finos, papéis coloridos, papéis brancos e o rejeito. Da mesma forma que acontece com o plástico, o papel branco tem maior valor comercial do que o colorido. O lixo que não serve para reciclar é chamado de rejeito e é levado pelo caminhão da EMSURB para o aterro semicontrolado145. O lixo que chega tanto da coleta seletiva, como também das doações, após separado, é pesado e identificado (coleta seletiva ou doação). Isso permite que a cooperativa tenha o controle da entrada e saída de material. Atualmente, a maior parte da matéria-prima vem das doações. Após o material ser separado, um dos cooperados faz uma breve inspeção para verificar se a triagem foi feita corretamente. Esse trabalho é feito por qualquer um dos cooperados designados pela presidente ou pelo tesoureiro da cooperativa. Não existe uma pessoa prédefinida para fazer essa atividade. Uma segunda etapa dos processos de trabalho acontece quando é feito o uso da picotadeira de papel. Parte do papel fino, que foi triado, vai para uma máquina para ser picotado. O seu manuseio exige concentração e cuidado, porque pode provocar acidentes de trabalho. Os papéis são colocados manualmente e aos poucos, na máquina, para picotar e se transformam em filetos que são espalhados pelo chão. A terceira etapa consiste na prensagem do papel, plásticos e latinhas de cerveja e de refrigerantes. Existem duas máquinas de prensa: uma que prensa papel e papelão e outra que amassa as latinhas. Na prensa, os plásticos ou papelões são colocados também de forma manual e todo o comando da máquina é assumido por um cooperado. Para prensar o papel e o papelão, o processo obedece as seguintes etapas: a máquina é aberta e é colocado um papelão 144 São considerados plásticos grossos: garrafas de PET, bacias, baldes, garrafas de água sanitária, vasos de margarina, detergente e amaciante. Os plásticos finos são: bolsas de supermercado ou de outra procedência. 145 No rejeito, estão material de PVC (copinhos de água e café), material orgânico que ainda vem junto com a coleta etc. Esse tipo de material não é utilizado pela CARE. 142 grosso embaixo para servir de base. Em seguida, a máquina é fechada e começa a colocar os filetos de papel que foram picados, os papéis e papelões grossos. O objetivo dessa mistura é para que o papel mais grosso sirva de recheio para o fino, facilitando a compactação. Quando o fardo já está no tamanho adequado, coloca-se outro papelão por cima, tira-se o fardo de dentro da máquina e amarra com cordas ou cordões grossos. Está pronto o fardo de papel para ser comercializado. O mesmo processo acontece com a prensagem dos plásticos grossos e também das latinhas de cerveja e refrigerante, mas com uma diferença, pois, nesse caso, não precisa de recheio para facilitar sua compactação. As latinhas de cerveja e de refrigerante são prensadas em outra máquina diferente da que prensa o papel. Só não são prensados os galões de ferro e os vidros, que são vendidos da forma que chegam à cooperativa. Por último, os fardos já prontos são levados, manualmente, pelos cooperados até o caminhão e são transportados para uma indústria de papel. Não existe dificuldade para fazer a venda, uma vez que a CARE já tem definido os compradores para os seus produtos, com possibilidade de ampliar as vendas se aumentar a produção. Apesar de serem processos bem simples, são necessários conhecimento e experiência. Os cooperados não sentiram dificuldades, porque já tinham, principalmente na parte da triagem, experiência adquirida com o trabalho no lixão. É importante ressaltar que a grande maioria dos cooperados possui conhecimento de todos os processos de trabalho, mesmo que não estejam envolvidos em todos eles e sabem explicar os detalhes e as especificidades do material utilizado na reciclagem (por que separar por cor, qual o material mais caro e o mais barato). Os processos de trabalho obedecem a uma seqüência e uma ordenação em todas as atividades desenvolvidas. Mesmo que não se caracterize como uma linha de montagem, uma etapa depende da outra para que o produto final (os fardos) tenha o formato desejado para a comercialização. 143 IMAGENS DA CARE 144 4.1.2. O UNIGRUPO 4.1.2.1. Localização e antecedentes O grupo de Confecção UNIGRUPO está localizado no bairro Rosa Elze, no limite entre Aracaju e São Cristóvão. Apesar de sua localização geográfica pertencer a este último município, o bairro fica a 10 km da capital sergipana. São Cristóvão fica distante 18 km de Aracaju, utilizado-se o percurso da rodovia João Bebe Água, e 25 km se utilizado o trajeto da BR 101. Conforme Censo de 2000, São Cristóvão possui uma população de 64.647 habitantes, sendo que 97,6% residem na área urbana e 2,37% no setor rural. É a quarta cidade mais antiga do Brasil, possuindo algumas edificações de estilo barroco que datam do século XVII, favorecendo o seu tombamento pelo Patrimônio Histórico Nacional, desde 1939. Já foi considerada uma cidade operária, em função do seu desenvolvimento industrial que aconteceu ainda no início do século XX. A instalação da linha férrea, em 1913, ligando São Cristóvão a Aracaju e a Salvador, auxiliou no desenvolvimento industrial do município. Algumas fábricas se instalaram e houve o crescimento da população. Em 1919, foi instalada a fábrica têxtil Sam Christovam Indústria S.A. e, posteriormente, em 1945, a Companhia Industrial São Gonçalo S.A. Com isso, a cidade se constituiu num ponto de atração de muitas famílias que se viam motivadas pela instalação do parque industrial e a possibilidade de conseguir empregos nas fábricas. Além dos empregos, a indústria oferecia creche, escola, moradia e assistência médico-odontológica. Durante quase 30 anos, o setor industrial respondeu pela ocupação e renda da população de São Cristóvão. Essa fase próspera da cidade foi sendo gradativamente abalada com a falência e fechamento das fábricas, a partir, principalmente, do final de 1960. Muitos trabalhadores abandonaram as vilas operárias ou receberam como indenização as moradias onde residiam. A atividade turística que poderia ser uma fonte de geração de trabalho e renda não tem dado os resultados desejados. O município não possui uma atividade econômica de destaque que lhe possibilite uma concentração de investimentos e arrecadação num setor específico, estando a economia dispersa nos setores primário, secundário e, principalmente, no terciário. 145 Com a maior parte da sua população vivendo no meio urbano e sem ter condições de gerar novos empregos, São Cristóvão vem servindo muito mais como cidade dormitório, tendo em vista que boa parte das pessoas que lá residem, atualmente, trabalham em Aracaju. Essa proximidade com a capital provocou um processo de ocupação acelerado e desordenado do solo urbano municipal, gerando áreas de ocupações irregulares e a constituição de alguns bairros sem nenhuma infra-estrutura. A precariedade das condições de moradia é agravada pela contaminação dos mananciais, esgotos e fossas a céu aberto, erosão das encostas, coleta irregular do lixo e falta de instalações sanitárias nas residências. Do total de domicílios particulares permanentes, o abastecimento de água de 16,8% é feito através de poço, nascente ou outros meios. 11,05% das residências não têm banheiro ou sanitário e 46,5% do lixo não é coletado, formando lixeiras e concorrendo com outros fatores para a degradação ambiental (IBGE, 2000)146. Dentre essas áreas de povoamento e expansão do município de São Cristóvão, está a região do Rosa Elze, mais conhecida como a grande Rosa Elze, localidade onde funciona o UNIGRUPO. É uma região periférica ocupada por uma população de baixa renda e que congrega alguns conjuntos habitacionais (Rosa Maria, Rosa Elze, Rodrigues Alves e Eduardo Gomes) que compõem áreas do entorno da UFS. Trata-se de uma área de grande abrangência territorial, mas também que agrega um contingente habitacional importante. A grande Rosa Elze e todos os seus conjuntos e bairros ficam localizados nas proximidades da UFS, sendo alvo prioritário e permanente de seus projetos de extensão universitária. As ações desenvolvidas compõem o Programa Campus Aproximado Grande Rosa Elze que, para seu desenvolvimento, envolve os diversos Departamentos Acadêmicos da UFS. São ações de caráter sócioeducativas que perpassam as várias áreas do conhecimento e da produção científica. 146 Cf. Estudo Preliminar sobre o Povoado Rita Cacete, Perfil do Empreendimento e sua Contextualização. Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários/Núcleo Local da UNITRABALHO. Elaborado pela Assistente Social Daisy Maria dos Santos, 2005. 146 A presença da UFS, na Grande Rosa Elze, tem suscitado a chegada de demandas, as mais variadas. Nos últimos tempos, algumas delas estão relacionadas com as solicitações de assessorias para projetos de geração de trabalho e renda, sejam advindas diretamente dos moradores da localidade, seja via Associações de Moradores, ou por intermédio do poder público municipal. A constituição do UNIGRUPO tem uma vinculação direta com a Universidade, seu entorno e também com o atendimento das demandas dessa área geográfica. Ainda em 1999, foi iniciado o Projeto “Cooperativas populares: um processo em construção”, executado pela Pró-Reitoria de Extensão, UNITRABALHO e Departamento de Serviço Social, em atendimento a uma demanda da Associação de Moradores do bairro Rosa Elze. A referida Associação manifestou interesse em constituir um grupo de produção, com o propósito de gerar trabalho e renda para algumas pessoas que tinham participado de um curso de qualificação em corte e costura, promovido com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. Esse grupo foi constituído com a denominação de GPU – Grupo de Produção União que, durante quatro anos, foi acompanhado, de forma sistemática, pela equipe da Universidade que, além do processo de formação em cooperativismo, associativismo e outras temáticas, elaborou alguns projetos com o objetivo de aquisição de equipamentos. Ao final dos quatros anos, o grupo se encontrava com uma boa infra-estrutura, pois já tinha definido o tipo de atividade a ser desenvolvida no ramo da confecção, entretanto, não conseguia desenvolver o sentimento de grupo produtivo. Mostrava-se inseguro com relação a algumas decisões importantes a serem tomadas, não conseguia ultrapassar a idéia de grupo de convivência social. Após várias reuniões e análises, foi decidido que o grupo não mais continuaria com as suas atividades147. Diante da realidade, como já existia uma infra-estrutura, a equipe da Incubadora da UFS considerou que os equipamentos poderiam ser aproveitados por outras pessoas, tendo em vista ser um bairro onde existem vários desempregados. Foi feita uma maior divulgação das atividades da Incubadora, dando início a um processo de mobilização de pessoas da comunidade que 147 Esse grupo já vinha com várias indefinições. Via-se muito mais como um grupo de socialização do que de produção. 147 possuíssem experiência na área de confecção e desejassem fazer um curso de costura industrial. Algumas pessoas se inscreveram e, após o término do curso, a sua maioria definiu pela formação de um grupo de produção. O UNIGRUPO, portanto, foi formado, a partir da realização desse curso de qualificação. 4.1.2.2. O UNIGRUPO e as suas componentes As mulheres que inicialmente constituíram o UNIGRUPO já possuíam experiência em corte e costura e visualizaram, no curso oferecido pela Universidade/Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Econômicos Solidários, a oportunidade de especializar os seus conhecimentos, um desejo de muitas que não se concretizava, porque não tinham condições financeiras, conforme depoimento de uma das entrevistadas. Eu não tinha dinheiro para pagar um curso. Ganhei uma máquina do meu marido, mas quase não usava. Eu queria costurar coisas diferentes, mas não sabia. Queria fazer um curso, mas não tinha dinheiro (Carmélia-UNIGRUPO). Para algumas fazerem o curso foi um desafio: eu nunca peguei em uma máquina industrial, mas queria tanto fazer o curso que disse que sabia mexer. No início achava muito rápida e não sabia controlar, depois fui me acostumando (Regina – UNIGRUPO). Com o curso e as discussões que iam acontecendo entre elas e também com a professora que o ministrou, foi sendo vislumbrada a possibilidade de formar um grupo de produção. Conforme relata outra entrevistada: comecei a olhar as máquinas e alguma coisa me despertou. Essas máquinas é pra quê? E comecei a dizer as meninas, percebam, abram os olhos, vejam isso aqui pode ser mais do que um curso (Renata – UNIGRUPO). Gradativamente, a maioria das mulheres foi percebendo e descobrindo a capacidade de produção e a possibilidade de gerar renda. Atualmente, tem-se como critério, para a entrada no grupo, que a pessoa possua experiência com 148 confecção, ou no dizer delas “que saiba pelo menos costurar”, podendo, posteriormente, participar de cursos de qualificação, ampliando os conhecimentos. É um grupo constituído por 21 mulheres148 que residem na grande Rosa Elze, ou seja, 100% dos componentes são do sexo feminino. Boa parte nasceu em Aracaju (38,1 %); outra parte é natural de variados municípios sergipanos (Propriá, Estância, Ilha das Flores, Salgado, Simão Dias, Campo do Brito). Apenas uma delas é natural de São Cristóvão. Há ainda aquelas que são naturais dos Estados de Alagoas e São Paulo. A grande maioria é casada (61,9%) ou viúva (9,5%). Elas têm, em média, de cinco a oito filhos (71,4%). Esses, em sua grande maioria, estudam (92%). Dos filhos, 38% exercem alguma atividade remunerada como: balconista, policial, empregada doméstica, vigilante, eletricista, operador de micro e estagiário. Em média, trabalham de uma a três pessoas por família o que tem garantido para 71,4% delas, uma renda familiar que varia entre um e três salários mínimos. Para a maioria das mulheres do UNIGRUPO, a principal fonte de renda da família advém dos vencimentos do cônjuge (33%) ou das pensões (23,8%) por ele deixadas. Apenas 14,3% têm como única fonte de renda da família o que ganham com a produção do grupo. A grande maioria dos membros do UNIGRUPO possui casa própria (85,7%), apenas 14,3% pagam aluguel. São casas que, em média, possuem de três a seis cômodos e 100% têm serviços de água tratada e energia elétrica. No que se refere ao serviço de esgoto, a grande maioria (90%) conta com esgotamento sanitário e 95,2% das moradias são atendidas pela coleta pública do lixo. 4.1.2.3. UNIGRUPO: cotidiano e rotina dos processos de trabalho O produto principal do UNIGRUPO é a confecção em malhas. O grupo iniciou sua produção, a partir de uma encomenda de camisas em malha o que estimulou os seus componentes no sentido de direcionar o negócio para esse tipo de atividade. Por isso, a produção tem sido canalizada para a confecção de 148 Os dados têm como referência o levantamento realizado pela UNITRABALHO – Sergipe, em meados de 2005. 149 malha, em geral, incluindo moda íntima, moda praia, poliesportiva, camisas e fardamentos. Entretanto, o foco principal da produção está relacionado com a confecção de peças para a moda íntima e moda praia (calcinhas, cuecas, sutiãs, camisolas, pijamas, maiôs e biquínis). Os demais produtos também são importantes, uma vez que são usados como estratégia para enfrentar períodos de sazonalidade e possível capacidade produtiva ociosa. Normalmente, os processos de trabalho, mesmo sendo canalizados para peças diferentes, passam por quatro etapas. A primeira etapa se inicia com o corte do tecido; a segunda processa a costura das peças; uma terceira cuida do acabamento; a quarta etapa cuida da embalagem do produto. Todo o processo de trabalho acontece, a partir da divisão das tarefas, de acordo com as etapas já citadas e que, necessariamente, não obedecem a uma regra rígida, pois dependem da dinâmica da produção e das demandas recebidas pelo grupo. Atualmente, o grupo recebe encomendas de indústrias caseiras, participa de feiras, eventos e também produz para vender em feiras livres. No próprio local, onde funciona o grupo, existe um espaço para a exposição de peças, servindo para divulgar os produtos e também comercializá-los. Por se localizar em um bairro, cuja população não tem um alto poder aquisitivo, a maior saída são as peças mais baratas, principalmente calcinhas e sutiãs. No processo de produção, o grupo tem passado por algumas dificuldades, principalmente em função da necessidade constante de reparos nas máquinas, a inadequação de algumas delas para o tipo de produção que estão desenvolvendo e a necessidade de aquisição de novos equipamentos. Além disso, o grupo não tem conseguido um capital de giro que aumente a produção, dificultando, pois, o atendimento a algumas demandas de produção e, conseqüentemente, há a perda de espaço em um mercado de grande concorrência, não só local, mas também nacional e mundial. Em função disso, as retiradas ainda são instáveis. Quando o grupo consegue atender uma a demanda grande, cada componente chega a fazer retirada de um ou mais salário mínimo e, em época de baixa produção, menos de um salário mínimo. 150 IMAGENS DO UNIGRUPO 151 4.1.3. A Associação das Mulheres do Camarão 4.1.3.1. Localização e antecedentes A Associação de Mulheres do Camarão fica localizada no povoado São José da Caatinga, município de Japaratuba/SE, pertencente à microrregião do vale do Cotinguiba, zona canavieira do Estado. Conforme DATASUS/SMS 2004, existem em Japaratuba, 16.188 habitantes, sendo que 8.021 pertencem ao sexo masculino e 8.167 ao sexo feminino O citado município está localizado na porção norte do Estado de Sergipe, próximo ao litoral, distante 54 km da capital Aracaju. É uma região que, além de estar próxima ao litoral, é banhada pelos rios Japaratuba e Poxim (navegáveis por pequenas embarcações) e o rio Japaratuba–mirin (não navegável), favorecendo, pois, o desenvolvimento de atividades vinculadas à pesca, apesar de a agricultura e a pecuária serem atividades fundamentais da sua economia. O município de Japaratuba já teve uma fase áurea de desenvolvimento, em virtude da produção açucareira, chegando a ocupar um lugar de destaque entre os produtores de açúcar do Estado de Sergipe. A extração de petróleo, gás natural, salgema e calcário, além de atividades ligadas ao extrativismo vegetal e animal, têm contribuído para o desenvolvimento econômico do município. O Povoado São José da Caatinga, onde funciona a Associação das Mulheres do Camarão, situa-se a 10 km do município de Japaratuba, na zona rural, e possui cerca de 2.500 habitantes. As atividades econômicas desenvolvidas estão relacionadas à agricultura de subsistência (cultivo da mandioca, feijão, milho etc.) e ao desenvolvimento de culturas para a comercialização (banana, coco, algodão). Convém destacar, também na atividade agrícola, a presença da Cooperativa Agrícola Mista e de Colonização Jardim Ltda. – COOJARDIM149 que, por meio da distribuição de terras, tem proporcionado aos cooperados a possibilidade de cultivo não só para a sobrevivência, mas também para a comercialização. Ainda existem atividades vinculadas ao comércio destinado à venda a varejo, a exemplo de médios e pequenos negócios como: 149 Esta cooperativa, já citada anteriormente, inclui-se no processo de colonização desenvolvido no Estado de Sergipe, sendo esta colonização de caráter particular via igreja católica e, de forma mais específica, uma iniciativa de Padre Gerardo ao chegar à cidade de Japaratuba/SE. 152 material de construção, supermercados, padarias, distribuidora de bebidas, vários bares, bodegas e armazéns. Destaca-se, ainda, a existência de pontos de extração de petróleo. A atividade da pesca tem sido de fundamental importância para a sobrevivência de boa parte das famílias residentes no povoado, que, além de pescar nos rios da região, compram os mariscos, pescados e crustáceos, principalmente no município de Pirambu e vendem nas feiras livres distribuídas pelos municípios do Estado. Na atividade pecuária, verifica-se a presença de bovinos e ovinos. O mercado de trabalho formal é extremamente restrito, sendo o poder público, sobretudo o municipal, o principal empregador. Dentre os povoados que constituem o município de Japaratuba, São José da Caatinga é o mais desenvolvido, tanto em termos habitacionais como em termos de equipamentos comunitários (posto do correio, telefonia pública fixa e celular, energia elétrica, água encanada, posto de saúde 24 horas, equipe do Programa de Saúde da Família, creche etc.). Conforme levantamento do DATASUS, 2004, a grande maioria das moradias utiliza o serviço público de abastecimento de água (84,1%). Apenas 9,8% utilizam águas oriundas de poços ou nascentes e 5,9% de outras fontes. Já no que se refere ao destino do lixo, 55,3% das moradias são beneficiadas pelo serviço de coleta pública; 30,8% procedem a queima ou aterramento dos resíduos, enquanto que 13,9% jogam o lixo a céu aberto. No povoado, existem 02 escolas públicas responsáveis pelo ensino fundamental e uma creche que atende a crianças de zero a seis anos de idade. As áreas de lazer mais usuais são: campo de futebol, quadra esportiva e o Centro Social. O povoado é rico em tradições folclóricas, também algo forte no município de Japaratuba. Dentre as atividades e grupos folclóricos, destacam-se o São João na Roça, Guerreiro, Samba de Coco, Quadrilhas e a Banda de Pífanos. No mês de março, dia 19, é festejado o dia do Padroeiro, São José, e, ao mesmo tempo, acontece o Festival de Arte (Cantigart), oportunidade importante para que os moradores mostrem a sua cultura e história. O povoado possui também um posto policial. A atividade relacionada à pesca e comercialização de mariscos, especialmente o camarão, é desenvolvida por boa parte dos moradores do povoado São José. Isso acabou se transformando em um aprendizado, passado de geração a geração, uma vez que é comum, nas famílias, pais, filhos, maridos e 153 esposas desenvolverem essa atividade, sendo que aos homens, geralmente, cabe a pesca e às mulheres o beneficiamento e a venda do camarão que tem ocorrido, principalmente, nos últimos tempos, nas feiras livres. Antigamente, além da venda nas feiras, era utilizado também o “porta a porta”, ou seja, a venda dos mariscos era feita diretamente nas residências, conforme relata uma entrevistada: a gente saía de rua em rua, com uma bacia na cabeça, oferecendo o camarão ao povo (Vânia – Associação das Mulheres do Camarão). Com o aumento do número de feiras em vários bairros da capital e, conseqüentemente, ocorrendo uma oferta maior dos mariscos, essa prática de venda foi sendo, gradativamente, eliminada. A melhor alternativa, apesar das oscilações constantes, passou a ser a feira livre. O desenvolvimento dessa atividade exigiu, desde o seu início, a superação de alguns desafios, a começar pelo deslocamento do povoado São José até o município de Pirambu, distante 12 km. É em Pirambu que se efetiva a compra dos mariscos que chegam do alto mar em barcos pesqueiros. A pesca é uma atividade importante nesse município, pois desenvolve uma intensa movimentação de outros tipos de comércio, sinalizando para a existência de uma cadeia produtiva, envolvendo o fornecimento do óleo para abastecer os barcos; a fabricação de redes, cestos e gelo; os carregadores; os barqueiros; os pescadores; o frete pago aos donos de veículos, que transportam as pessoas e os pescados para as cidades e povoados; a refrigeração dos mariscos; as pessoas que preparam o camarão para ser comercializado e, finalmente, a venda dos mariscos nas feiras. Antes, conforme relata uma das entrevistadas, a ida para Pirambu era ainda mais difícil. Não havia transporte e elas pegavam carona ou iam a pé. Quando a maré era cedo nós saia daqui duas, duas e meia da manhã, uma e meia e ia a pé. Muitas vezes não chegava o barco e nós volta a pé novamente. Quando a maré era meio dia a gente às vezes conseguia carona (Angélica - Associação das Mulheres do Camarão). Da mesma forma, era feito o deslocamento do povoado São José para as feiras, um dos principais problemas enfrentados pelas pessoas que desenvolviam essa atividade, uma vez que não dispunham de transporte certo. Eram os 154 caminhões que conduziam todos os feirantes. O depoimento, abaixo, retrata bem essa situação: Primeiro começou com o finado Vavá. No sábado nós ia no caminhão, chegava no trevo, entrada de Aracaju, e quem quisesse ir para outra feira, saltava lá duas e meia, três horas da manhã para pegar outro carro. Depois entrou Evandro na linha, foi ótimo pra gente. Foi uma maravilha. Sexta, sábado e domingo. Depois de Evandro, seu Raimundo comprou um caminhão. Evandro era ônibus. Aí ficou Evandro e seu Raimundo. Um fazia Maribondo e o outro São José. Quer dizer que o lucro era muito pouco. Um tinha que ceder. Aí Evandro cedeu, deixou pra seu Raimundo, agora pense no sufoco! Era caminhão, um aperto imenso. Era muita gente que andava. Depois saiu seu Raimundo e ficou Jaquinho. E foi aí que Jaquinho era aquele Deus nos acuda só o caminhão, a gente andava pulando, saltando porque quando chegava lá na pista sempre tinha aqueles carro da federal pra parar. Pense as caminhadas que a gente já deu a pé, quando via um carro saltava aos pulos, o caminhão ia se embora e a gente ia atrás, foi um sofrimento. Depois de muito tempo com Jaquinho, ele comprou o ônibus. Só que o ônibus, não era pra andar as fedorentas. Olhe, porque o ônibus dele era de passeio. Uma vez o caminhão quebrou e ele botou o ônibus pra gente andar. Ele disse não é pra comer aqui pra não sujar de farinha. Aí eu disse: me dê a vassoura que eu varro. Ele aí chegou e me deu a vassoura e eu varri o ônibus dele que não podia sujar. Mas sempre era o caminhão. Chegava no inverno a capota pingava mais do que se tivesse aí fora. A gente tinha que se molhar. A gente dizia Jaquinho por que você não bota o ônibus. Ele dizia porque o ônibus é de passeio (Angélica - Associação das Mulheres do Camarão). E ainda: a gente vivia sofrendo por causa do transporte. Era ruim demais. A gente viajava em um caminhão pau-de-arara 02 horas da manha, sem capota, correndo risco, até em caminhão cheio de bujão teve delas que andou, para poder ir para Aracaju vender (Vânia – Associação das Mulheres do Camarão). Essa situação concreta levou algumas pessoas a se reunirem e tentar uma solução. Contaram com o apoio da professora Conceição Vieira, da Prefeitura Municipal de Japaratuba e da Visão Mundial150, no sentido de que algumas ações, de caráter social, fossem desenvolvidas no povoado. Foi construída uma escola para as crianças que moravam nas suas proximidades e também criada a Organização Não-Governamental intitulada “Sociedade de Educação e Desenvolvimento Integral Um Lugar ao Sol – AEDIULS”. Por meio das atividades desenvolvidas na escola, a professora se aproximou mais das mulheres que 150 A Visão Mundial é uma Organização Não-Governamental Cristã Humanitária e de Desenvolvimento criada em 1950 e presente em aproximadamente 100 países. 155 vendiam camarão, conversava, perguntava como elas faziam para se deslocar para as feiras, entre outros. Observou que, naquele momento, a principal dificuldade enfrentada por elas estava relacionada à utilização do transporte que as conduzia às feiras livres. Começaram, então, as primeiras conversas em torno da necessidade de se organizarem para lutar pela melhoria das condições de trabalho, especificamente, naquele momento, pelo transporte. Um grupo de mulheres, que vendia camarão, começou a participar das reuniões. Foi elaborado pela referida professora um projeto que foi encaminhado à Visão Mundial, no qual constava a solicitação de um ônibus. Após negociações e reuniões, o projeto foi aprovado pela instituição. Com a chegada do veículo, foi ampliado o número de participantes do grupo, sendo que alguns passaram a chamar de cooperativa, outros, de associação, apesar de, na época, não serem formalizadas como tal. 4.1.3.2. A associação das mulheres do camarão e seus associados A luta pela melhoria das condições de trabalho foi o grande estímulo para que as mulheres do camarão se reunissem e formassem a associação. Contando com a assessoria da AEDIULS, essa necessidade concreta mobilizou as pessoas que desenvolviam essa atividade de forma individual para se organizarem em grupo que foi se constituindo, lentamente, por meio de várias reuniões e conversas, culminando em sua fundação, em outubro de 2001. As primeiras reuniões aconteciam na sede da COOJARDIM, com uma média de dez mulheres, conforme relata uma das entrevistadas. Chamávamos assim, umas dez que acreditava. A gente fazia reunião na COOJARDIM. Foi muita reunião até o projeto ser aprovado. No início era muita conversa, conversa e nada. Mas aquelas que acreditava continuaram (Vânia – Associação das Mulheres do Camarão). O processo de constituição da Associação foi se dando, de forma gradativa, à medida que os primeiros resultados concretos iam aparecendo. Conseguido o ônibus, novas pessoas se agregaram e outras lutas começaram a ser empreendidas. “No dia que o ônibus chegou aqui foi uma grande festa, a gente não acreditava” (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). 156 De fato, essa foi uma grande conquista, pois significava a melhoria das condições de trabalho daqueles que trabalhavam com os mariscos. O grupo começou um processo de organização interna, elegendo as seguintes coordenações: administrativa, comercial e responsável pela organização da “caixinha” financeira. Esta última ficou 151 , uma espécie de fundo que pudesse cobrir as necessidades imediatas. Verificou-se também que era necessário um local onde todos pudessem fazer o beneficiamento do camarão, uma vez que vinha sendo feito em suas residências, o que causava uma série de reclamações dos vizinhos. Por mais que se tomassem os cuidados necessários, no processo de beneficiamento, era muito forte o cheiro do marisco. Mais uma luta foi travada. Desta feita, além do apoio da AEDIULS, contouse com o suporte da Prefeitura Municipal de Japaratuba. Foi construído, em um local um pouco mais afastado das residências, um galpão onde, atualmente, é feito o tratamento e cozimento do camarão. Mesmo ainda apresentando alguns problemas, principalmente no que se concerne ao processo do cozimento dos mariscos, a conquista desse espaço foi extremamente importante para o desenvolvimento da atividade e um reforço ao processo de grupalização dos membros da associação. À medida que o grupo foi crescendo, outras regras foram sendo definidas. Pode participar da associação qualquer marisqueira, que trabalhe com o beneficiamento do camarão no povoado, sendo este, portanto, o critério básico para a entrada no empreendimento. No que se refere à utilização do ônibus, foi definido que este pode ser utilizado tanto pelas associadas como também por outras marisqueiras. Entretanto, as associadas são beneficiadas com um preço menor da passagem, além disso, aqueles, que se associarem, têm uma carência de seis meses para adquirir os benefícios. O recurso conseguido permitiu a aquisição de um ônibus, embora, com o tempo, foram surgindo vários problemas, principalmente pela necessidade de sua manutenção constante. Viu-se, então, que não estava compensando o gasto com a manutenção do ônibus, sendo logo vendido. Porém, com a associação já em funcionamento, foi possível garantir a utilização de outro veículo, desta feita por meio de um convênio com a AEDIULS. 151 A contribuição é mensal e cada associado contribui com R$ 4,00. 157 No primeiro momento de constituição da associação, existia a presença de poucos homens, mas que foram, gradativamente, se afastando. Segundo Camila, uma das entrevistadas desta pesquisa, a razão desse afastamento deu-se, em alguns casos, “porque eles não concordavam com a forma de conduzir a associação por parte da sua diretoria”. Atualmente, a associação é composta por 27 mulheres, ou seja, 100% das associadas são do sexo feminino152. A grande maioria de seus componentes (88%) é natural de Japaratuba, do povoado São José ou povoados e municípios vizinhos. A maioria das mulheres é casada (60,0%), mas é significativo também o número de solteiras e separadas, que, juntas, atingem um percentual de 40,0%. Essas mulheres sejam casadas, solteiras ou separadas assumem sozinhas ou com a ajuda dos companheiros o sustento dos filhos, cujo número de pessoas, por família, da grande maioria (68%), fica entre dois a cinco filhos. Destes, a maioria estuda, e aqueles que não estão estudando é porque já concluíram o ensino médio. Em média, cada família tem de um a dois filhos estudando. Das associadas, 67% têm até onze anos que trabalham com mariscos, enquanto que 23% estão desenvolvendo a atividade há mais de 15 anos. Para 50% delas, essa atividade representa a única fonte de renda, já, para a outra metade, tem significado uma fonte de renda complementar. Para 69,2% das associadas, o rendimento auferido com a atividade do marisco fica a menos de um salário mínimo, enquanto 15,4% informaram que recebem um salário mínimo e 15,4% recebem dois salários mínimos. A renda e as condições econômicas das associadas são diferenciadas. Algumas contam, para o complemento da renda familiar, com os rendimentos dos maridos e filhos; outras sobrevivem com a renda auferida com a venda dos mariscos e ainda com o trabalho da agricultura. Entre as associadas, 36% contam com uma pessoa em sua casa que trabalha e 64% com duas a quatro pessoas. Das remunerações adquiridas por essas pessoas, 92% são inclusas no orçamento familiar. Outras fontes de renda vêm do trabalho realizado na agricultura por meio da COOJARDIM (40%); da atividade da pesca (28%); de aposentadorias (12%) e do rendimento do cônjuge (20%). 152 Os dados têm como referência o levantamento realizado pela UNITRABALHO – Sergipe, em meados de 2005. 158 Os filhos também contribuem com a composição da renda familiar. Entre as associadas, 36% dos filhos trabalham, em média um por família. Eles desenvolvem atividades relacionadas ao trabalho doméstico, serviços gerais, vigilância, enfermagem, professor, secretária e decoração de eventos. Dentre estas tarefas, o maior número de pessoas ocupadas se encontra no trabalho doméstico (12%). Quando são inclusos os rendimentos dos filhos, a tendência é haver um aumento da renda das famílias. Entretanto, a grande maioria delas (76%) têm uma renda familiar que se enquadra na faixa entre meio e um salário mínimo, enquanto que 16% se encontram na faixa entre um a dois salários mínimos e 8% com uma renda familiar, entre dois e três salários mínimos. Além do trabalho desenvolvido com o beneficiamento e venda do camarão, 56% das associadas exercem outras atividades, cujo propósito é complementar a renda familiar. A atividade agrícola aparece como a mais importante nesse complemento, com o percentual de 92,3%. Boa parte das associadas planta suas lavouras nas terras que foram cedidas pela COOJARDIM. Com a venda dos produtos, adquirem rendimentos para o sustento da família, além de usufruírem, diretamente, com a colheita dos produtos para a sua alimentação. Já 7,7% desenvolvem atividades de auxiliar de cozinha. Mesmo assim, o tempo que dedicam ao trabalho com os mariscos é, em média, de 12 a 40 horas semanais, ou até mais. Esse fluxo aumenta ou diminui, a depender da chegada dos mariscos, tempo de defeso153, entre outros. Uma outra forma também de complemento da renda se dá por meio do recebimento de benefícios sociais, sendo que 35,3% das associadas recebem regularmente. As condições de moradia das associadas se revelam boas. 100% possuem casa própria, significando um ponto positivo nas despesas familiares. São casas de alvenaria (96% delas), com uma quantidade de cômodos, em sua maioria (76% das moradias), de quatro a seis ou mais compartimentos; 92% possuem 153 O defeso é um período em que não é permitida a pesca do camarão, tendo em vista a fase de reprodução. As mulheres, se desejarem continuar comercializando, precisam fazer estoque da mercadoria em freezer e declararem a quantidade estocada ao IBAMA. Também algumas delas comercializam os camarões que são criados em viveiros, cuja venda não fica proibida. Normalmente, são dois períodos de defeso, de 45 dias cada. Um começa em primeiro de abril e vai até quinze de maio e outro se inicia em primeiro de dezembro e vai até quinze de janeiro. Esse ano, por exemplo, já ocorreu o primeiro período do defeso. As mulheres cadastradas na colônia dos pescadores têm direito a receber o seguro desemprego, no período em que fica proibida a pesca do marisco. 159 serviços de água tratada e energia elétrica. Já no que diz respeito ao serviço de tratamento de esgotos, a grande maioria, ou seja, 76% não possuem esse serviço o que se evidencia uma ausência do poder público na realização de serviços de infra-estrutura básica para a população. As moradias de 88% das associadas são atendidas com a coleta pública do lixo. A grande maioria das associadas, atualmente, não estuda, mas já estudou. 52% cursaram parte do ensino fundamental e 40% o concluíram. No que diz respeito a outras experiências profissionais, 29,4% das associadas já desenvolveram outras atividades, enquanto que 23,5% trabalharam somente com o beneficiamento do camarão. Daquelas que já desempenharam outras atividades, as mais comuns estão relacionadas com as profissões de cabeleireira, vendedora, costureira, balconista e telefonista. 4.1.3.3. A associação das mulheres do camarão: cotidiano e rotina dos processos de trabalho A associação atua no ramo de pescados, mariscos e crustáceos. O principal produto é o camarão que é beneficiado, dando origem a uma diversidade de subprodutos. Este pode ser comercializado in natura ou beneficiado com algumas opções para comercialização: camarão inteiro, sem casca (filé), com casca, mas sem a cabeça. Além disso, são vários os tipos de camarão: camarão pistola (camarões grandes); camarão espigão (barba comprida) e o camarão escolha (de cor rosa, sendo considerado, para elas, o verdadeiro camarão e o mais saboroso). Todos esses tipos são oriundos da pesca no mar. O camarão de água doce, pescado nos rios localizados na região, tem pouca expressividade no volume de vendas entre os componentes da associação. Serve muito mais como um produto complementar, até porque tem sido, cada vez mais, difícil a pesca desse tipo de marisco em grande quantidade. A degradação ambiental e a poluição dos rios têm auxiliado para a escassez do produto, sendo mais vendido no período de defeso. A produção do camarão em viveiros é pouco utilizada. É importante destacar que algumas cooperadas recorrem a esse tipo de marisco 160 por ocasião do defeso. O grande volume de camarão comercializado é oriundo do alto mar. Desde o seu início que o grupo, em suas ações, traz algumas peculiaridades: funciona em um sistema híbrido, ou seja, em momentos coletivos e outros individuais. As etapas subseqüentes ilustram bem essa especificidade. A primeira etapa dos processos de trabalho acontece com a compra dos mariscos. As mulheres se deslocam do povoado São José até o município de Pirambu. Nessa etapa, elas não utilizam o ônibus, deslocam-se em transportes de terceiros ou táxi154. Lá, compram os mariscos dos barcos que chegam do alto mar. Neste momento, o processo de trabalho ainda acontece de forma individual, apesar de haver uma tendência natural de uma ajudar a outra, quando se faz necessário. Nas últimas discussões feitas nas reuniões, entre as associadas, tem sido vislumbrada a possibilidade de que a compra do camarão aconteça de forma coletiva, bem como têm sido feitas reflexões sobre as suas vantagens e desvantagens, mas são questões ainda em processo de amadurecimento. Quando da formação da associação, a compra individual do produto já era uma rotina. Após a compra, as associadas retornam para o povoado e vão para o galpão fazer o beneficiamento do camarão. Começa aqui a segunda etapa do processo de trabalho. No galpão, o uso do espaço ocorre de forma coletiva e os equipamentos também são socializados, além da limpeza do local. Há uma tendência das marisqueiras se ajudarem mutuamente, ao término da tarefa, se uma ou outra ainda não concluiu o trabalho. Entretanto, cada uma é responsável pelo beneficiamento do camarão que comprou. O uso do espaço e dos equipamentos se dá de forma coletiva. É o camarão o principal produto da associação. O seu beneficiamento passa por algumas etapas: inicialmente, procede-se a limpeza do marisco e a sua 154 É possível a utilização de veículos pequenos porque a quantidade de camarão comprado por cada uma das mulheres comporta nas malas desses veículos. Normalmente varia entre 100 a 200 quilos por semana. Algumas compram, inclusive, uma quantidade menor 50 kilos, outras uma quantidade maior. Depende muito da quantidade de feiras que freqüentam durante a semana, se possuem clientes além daqueles que compram na feira, se tem encomendas na semana, entre outros. Além disso, algumas não têm capital de giro suficiente para uma compra em maior quantidade. 161 seleção, a depender do tipo de beneficiamento que irá ser processado: camarão fresco/in natura e o camarão cozido. Camarão fresco / in natura – depois de separado, passa pelo processo de higienização. Para sua conservação, é armazenado em frezzers ou recipientes com gelo até o momento da comercialização. Dependendo do tipo do produto que será oferecido à população, pode passar por etapas diferentes: o camarão fresco pode ser separado e vendido com a cabeça; pode ser vendido com ou sem a cabeça e ainda pode ser descascado e vendido como filé. Camarão cozido – após se proceder a higienização, o camarão é levado ao fogo para o cozimento. Nessa etapa, o uso adequado do fogo e do sal são, conforme informações das marisquieras, fundamentais para um bom resultado do produto. Além disso, existe toda uma técnica desenvolvida por elas que deixa o camarão com um aspecto e formato diferentes de outros que são comercializados nas feiras ou preparados nas residências. Segundo as associadas, a forma de misturar o produto, o tempo certo de cozimento, a quantidade de sal são fundamentais para dar um diferencial ao sabor, à textura e ao visual do camarão. Após cozido, ele pode ser comercializado nas seguintes modalidades/formas: Camarão cozido inteiro – após o cozimento, passa pelo processo de separação por tamanho, sendo, em seguida, embalados antes ou no local de vendas; Camarão cozido sem a cabeça – esta forma de comercialização é obtida retirando a cabeça ou aproveitando os camarões que ficaram sem a cabeça durante o cozimento do produto, para ser vendido apenas o corpo do marisco; Camarão cozido descascado – esta é forma mais refinada de beneficiamento do camarão, uma vez que o produto passou por todos os processos anteriores. Retira-se a cabeça e descasca todo o marisco já cozido. É conhecido como filé cozido. Com o produto já beneficiado, procede-se a comercialização, terceira etapa do processo de trabalho. Para tanto, mais uma vez, as marisqueiras se encontram coletivamente. Desta feita, para o uso do transporte que vai conduzilas até as feiras livres, forma mais utilizada para a venda do produto. Esse transporte, o impulsionador inicial para a formação do grupo, continua sendo uma das formas de encontro coletivo. A sua administração e manutenção ocorrem sob a responsabilidade das associadas. Para isso, contribuem mensalmente, não só 162 com o pagamento das passagens mas também para o fundo de reserva da associação que serve, quando necessário, para a manutenção do veículo. A venda do camarão também se processa de forma individual. Além das feiras, o produto também é vendido sob a forma de encomendas feitas por clientes. A ida à feira exige todo um preparo do produto: embalagem, acondicionamento em recipientes com gelo, ou mesmo sua acomodação em vasilhas grandes para a venda. Isso resulta numa quantidade razoável de peso que exige esforço físico e a ajuda das companheiras na hora de arrumar o produto no ônibus. A saída para as feiras ocorre ainda na madrugada, entre duas e três horas da manhã. As marisqueiras chegam por volta das quatro ou cinco horas, arrumam os produtos nas bancas e dão início às vendas. Normalmente, retornam para suas residências, a partir das 14 horas, recomeçando, no dia seguinte, todo o processo de beneficiamento do produto. No ônibus, quando todas estão reunidas, há um cuidado no sentido de pensarem um preço equivalente para a venda do produto, principalmente para não haver concorrência entre aquelas que participam das mesmas feiras. É interessante ressaltar que, mesmo sem utilizar qualquer cálculo estatístico, pela suas experiências, as mulheres do camarão sabem com tranqüilidade, chegar ao que elas chamam de um preço justo, de forma que não explorem o cliente, nem também sofram prejuízos. Esse preço depende muito de como se encontra o valor do marisco cobrado pelos donos dos barcos. Essas etapas do trabalho que ainda acontecem de forma individual vêm sendo constantemente discutidas no grupo. Elas mesmas têm se manifestado sobre a possibilidade de experimentarem todos os momentos de forma coletiva. conforme relatos das associadas, há uma tendência de que as compras, beneficiamento e a venda aconteçam coletivamente. As últimas discussões caminham nesse sentido, com idéias de comercialização que vão além das feiras. O objetivo é ampliar a produção e vender o marisco diretamente a restaurantes, supermercados e outros. Além disso, têm sido feitos estudos pela UFS no sentido de agregar mais valor ao produto e um melhor aproveitamento das partes do marisco que, hoje, não são utilizadas. Destaque-se que poucas associadas vendem também peixe. Neste caso, o processo é mais simples e exige apenas a conservação e acondicionamento 163 adequado dele em gelo ou frezzer. São vendidos com ou sem tratamento, mas as escamas só são retiradas no momento em que é realizada a compra pelo cliente e se, assim, ele desejar. Outros momentos também têm significado um encontro coletivo das marisqueiras. São feitas reuniões periódicas, participam de cursos de capacitação, e, ainda, usufruem de um fundo rotativo existente na associação em que são feitos empréstimos, em casos de maior dificuldade financeira para a compra do marisco. 164 IMAGENS DA ASSOCIAÇÃO DAS MULHERES DO CAMARÃO 165 4.2. Os empreendimentos no processo de incubação O processo de incubação desenvolvido na Incubadora Tecnológica de Empreendimentos Econômicos Solidários/UNITRABALHO/UFS envolve o acompanhamento sistemático a grupos que desejam constituir e organizar seus EES. Trata-se de um processo educativo que tem como propósito não só a disseminação de conhecimentos teóricos e técnicos, produzidos no âmbito da universidade, mas também a experiência e os conhecimentos daqueles que estão inseridos ou desejam iniciar seus EES. É, portanto, um processo que envolve troca, construção e reconstrução de saberes, sempre numa relação dialógica e de interação entre a equipe da incubadora, os cooperados/associados e parceiros. Essa construção acontece mediante uma ação educativa que compartilha e troca saberes e experiências, respeitando-se a cultura e história dos cooperados/associados, o saber fazer, o saber acumulado dos trabalhadores envolvidos no trabalho coletivo autogestionário. Assim, não se tem a intenção de “transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 1999, p.25), tendo em vista que se trata de “um processo pedagógico educativo, que deve ser criativo, de ação coletiva e modificador da realidade” (CULTI, 2006, p.4). As equipes dos núcleos/incubadoras orientam na constituição e organização dos empreendimentos, abrangendo os aspectos administrativos, de gestão, jurídicos, contábeis, elaboração de planos de negócio, entre outros. A formação, como diz Eid (s/d) “deve ser continuada e integrada nas dimensões administrativa, técnica e política (...) deve ocorrer fundamentalmente através de oficinas com aprendizagem teórica e prática, articulando-se conhecimentos técnicos sobre a atividade fim do empreendimento”. Portanto, a incubação envolve algumas etapas metodológicas155 que, apesar de não lineares, auxiliam na organização dos trabalhos da incubadora 155 Essas etapas apesar, de não lineares, dependem do estágio em que se encontra o EES e da dinâmica do mesmo, envolvem, entre outros: 1) contatos iniciais com os grupos que demandam incubação; 2) levantamento/mapeamento da trajetória ocupacional e pessoal dos interessados, bem como os objetivos e motivos de cada interessado para a formação do empreendimento; 3) formação do grupo beneficiário; 4) discussão sobre o cooperativismo e associativismo e suas modalidades em relação à empresa privada; 5) avaliação de alternativas e decisão sobre a atividade-fim do empreendimento, tais como: pesquisa de mercado, concorrentes, pré-projeto 166 respeitado o estágio em que se encontra os grupos, sua história e cultura. A metodologia de incubação deve ter a clareza da necessidade de superar a fragmentação do conhecimento por intermédio de um processo interativo entre os agentes externos, cooperados/associados. Conforme Eid (s/d), as incubadoras universitárias têm como objetivos: incentivar a formação de empreendimentos de economia solidária (...), produzir, disseminar e transferir conhecimentos sobre Economia Solidária, de forma transdisciplinar, tornando-o acessível à sociedade; capacitar multiplicadores para a difusão e desenvolvimento de conhecimentos produzidos na universidade visando à criação de assessoria aos empreendimentos solidários; introduzir nos programas institucionais da universidade, de forma indissociada, em nível de pesquisa, ensino e extensão, os princípios e objetivos da Economia Solidária; assessorar técnica, administrativa e politicamente, de forma integrada e continuada, grupos sociais interessados na criação e fortalecimento de empreendimentos solidários visando sua autonomia; incentivar a formação de Redes de Cooperação voltadas para o fortalecimento da Economia Solidária; contribuir para a formação de incubadoras universitárias com a difusão dos princípios da Economia Solidária (EID, s/d). A Incubadora/UFS vem desenvolvendo em sua atividade de incubação três momentos: primeiro, o trabalho de acompanhamento sistemático com a formação continuada desenvolvida junto aos empreendimentos; segundo, a formação de formadores cujo propósito é capacitar técnicos de diversas instituições públicas que desenvolvem ações na área de geração de renda, representantes dos movimentos sociais, associações, ONG`s; e o terceiro referente à formação periódica da equipe da Incubadora. Os empreendimentos desta pesquisa estão sendo acompanhados pela equipe da Incubadora/UNITRABALHO/UFS e adentraram o processo de incubação em estágios diferenciados. A CARE iniciou os contatos com a equipe econômico-financeiro; 6) avaliação sobre as possibilidades de parceria; 7) avaliação das possibilidades de inserção em cadeia produtiva assim como em planos/políticas de desenvolvimento local ou regional e elaboração de Planos de Negócios; 8) capacitação técnica; 9) capacitação administrativa; 10) elaboração do estatuto e regimento Interno do empreendimento; 9) legalização do empreendimento; 11) acompanhamento sistemático ou assessoria pontual para inserção e manutenção do empreendimento no mercado e conquista da autonomia; 12) avaliação do grau de autonomia do grupo; 13) final do processo de incubação. Cf. Culti (2006, p.64-65) e Eid (s/d). 167 da incubadora no final de 2004, quando já era um empreendimento formalizado e em funcionamento. Inicialmente foi dada uma assessoria na elaboração de um projeto para implantação de uma unidade de processamento do PET, resultando, posteriormente, em uma ação mais sistemática, principalmente diante da necessidade de se trabalhar as relações interpessoais e a gestão cooperativa. Por isso, a ação de incubação, inicialmente, foi direcionada para esses aspectos. O UNIGRUPO contou com a presença da equipe da Incubadora, desde o início da sua constituição, em 2003, tendo em vista a realização pelo Núcleo/Incubadora/UFS do curso de corte e costura industrial e a decisão de suas participantes em formar um grupo de produção. A Associação das Mulheres do Camarão também passou a ter a assessoria da Incubadora, depois da sua constituição. Já contava com o acompanhamento de um técnico da AEDIULS. Este convidou a equipe da incubadora para discutir o processo de legalização do grupo. Entretanto, na medida em que iam se dando as primeiras aproximações, verificou-se a necessidade de um acompanhamento mais sistemático do grupo e que envolvia, além da realização de reuniões, um processo de formação, tendo em vista algumas demandas apresentadas pelo grupo e observadas pela equipe da Incubadora. Os três empreendimentos, a partir do momento de adesão ao processo de incubação, foram inseridos no plano de formação156 elaborado pela equipe da incubadora, diante das demandas oriundas da realidade dos mesmos, tendo-se como parâmetro o estágio de conhecimento dos cooperados/associados. Apesar de os grupos adentrarem o processo de incubação em estágios diferenciados, percebeu-se que era necessário pensar um plano de formação no qual eles pudessem ser envolvidos, ressaltando-se as demandas específicas de cada um, principalmente aquelas relativas à qualificação técnica. Nesse sentido, um plano geral de formação foi discutido entre a equipe da incubadora e os grupos, tendo sido definido que todos eles passariam por momentos que demandassem qualificação nos aspectos gerais pertinentes à formação política, Em novembro de 2004, foi aprovado o Projeto “ITCP: um caminho para a cidadania” financiado pela FINEP/PRONINC II que contribuiu para a execução do plano de formação envolvendo a participação de seis empreendimentos que estavam sendo acompanhados pela equipe da incubadora, incluindo os três empreendimentos aqui pesquisados. 156 168 economia solidária, trabalho em grupo, envolvendo a participação em seminários, palestras, cursos e oficinas temáticas, organizadas com base em alguns conteúdos: 1) formação social e política – análise de conjuntura, mudanças no mundo do trabalho, economia solidária e empreendimentos econômicos solidários, desenvolvimento local e integração grupal; 2) qualificação para empreendimentos – princípios de gerenciamento, legalização do empreendimento, orientação contábil e jurídica e elaboração de um plano de negócios, sendo que este último foi construído no próprio empreendimento com a participação direta dos cooperados/associados; 3) habilidades técnicas por empreendimentos – demandas específicas de cada grupo157; 4) atividade de campo – desenvolvimento de algumas vivências em feiras, a exemplo da feira de negócios em artes visuais e as I e II feiras de economia solidária de Sergipe. A formação, além dos cursos, oficinas e seminários, aconteceu de forma processual e continuada por meio das reuniões periódicas realizadas pelos técnicos, docentes e estagiários que compõem a equipe da incubadora, normalmente um encontro a cada semana. Nas reuniões são repassados conteúdos já abordados, são aplicadas dinâmicas de grupo para reforçar aspecto do trabalho coletivo e autogerido, além do exercício prático necessário ao cotidiano da organização e administração coletiva do empreendimento. Esse aprendizado diário é fundamental no processo de incubação tendo em vista que, por meio dele, é possível não somente a assimilação de conhecimentos técnicos e teóricos, mas também o exercício de valores e princípios, bem como o estabelecimento de uma rede de relações que refletem na vida das pessoas envolvidas nos empreendimentos. A troca de experiências, as vivências pessoais e profissionais, somam-se ao processo de incubação como elementos importantes na formação que se dá não apenas nos seminários, palestras, reuniões, mas, principalmente, no cotidiano do trabalho. No UNIGRUPO, por exemplo, no aspecto da qualificação técnica, foram realizadas três oficinas de qualificação: modelagem, desenho, corte e costura de calcinhas, sutiãs e cuecas – que aconteceu de forma gradativa durante todo o ano de 2005. Na CARE, por exemplo, a formação técnica aconteceu no sentido de orientar quanto ao uso do espaço para o acondicionamento do lixo; a utilização adequada dos equipamentos de proteção individual; etc. Na Associação das Mulheres do Camarão, a formação deu-se muito mais no sentido da comercialização do produto: acondicionamento, embalagem etc. 157 169 Assim, durante os anos de 2005 e 2006, a CARE, a Associação das Mulheres do Camarão e também o UNIGRUPO estiveram envolvidos em um processo de formação que teve como propósito contribuir para a ampliação dos conhecimentos dos cooperados/associados, a partir da realidade e estágios em que se encontravam, numa relação pedagógica de troca e construção de saberes entre aqueles que estão nos empreendimentos e a equipe da incubadora. Portanto, o processo de formação permeia todas as etapas da incubação e, como tal, também não acontece de forma linear, tendo em vista as demandas e estágios em que se encontra o grupo. Compreende diferentes momentos, cuja preocupação é envolver elementos e conteúdos que auxiliem na qualificação técnica e política dos envolvidos com ou no processo de incubação, tendo-se como perspectiva a autogestão. 170 Capítulo 5 Economia Solidária: trajetórias, vivências e aprendizados “Você ter a alegria de aprender e também de passar o que você sabe para o outro, eu acho que esse é o melhor rendimento” (Marta – UNIGRUPO). 171 CAPÍTULO 5 – ECONOMIA SOLIDÁRIA: TRAJETÓRIAS, VIVÊNCIAS E APRENDIZADOS A partir dos relatos, trajetórias e vivências dos sujeitos entrevistados para esta pesquisa foram definidos dois eixos analíticos: o primeiro diz respeito ao trabalho, desemprego e a experiência de ser cooperado/associado, no qual são discutidas questões relacionadas com o trabalho infanto-juvenil, migração, desemprego e o trabalho coletivo nos empreendimentos; e o segundo eixo que faz a análise de algumas dimensões e experiências da participação dos cooperados/associados na vida pessoal, social e nos empreendimentos, relacionando também os processos de formação técnica, política e pessoal. 5.1. Trabalho, desemprego e a experiência de ser cooperado/associado O trabalho aparece com recorrência nos relatos dos entrevistados, desde a infância até a vida adulta, como o fio condutor da maneira de viver e do sentido que as pessoas dão as suas vidas. Durante as trajetórias dos entrevistados, o trabalho vem se expressando sob as formas infanto-juvenil, em atividades de baixa remuneração, temporárias, precárias, instáveis, com uma freqüente rotatividade, refletindo, portanto, as condições em que o trabalho vem sendo utilizado na sociedade capitalista. Esta realidade vivida pelos cooperados/associados foi tendo rebatimentos não somente na luta pela sobrevivência material, mas também nos sentimentos de perda e referências de proteção, mediante as formas precárias de inserção no mundo do trabalho. 172 5.1.1. O Trabalho infanto-juvenil e a migração Embora as trajetórias das pessoas entrevistadas e que fazem parte dos empreendimentos revelem algumas diferenças de percursos, em muitos aspectos se assemelham. A grande maioria deixou a cidade de origem e veio residir na capital sergipana. São migrantes não só do interior de Sergipe, mas também de Estados vizinhos que deixaram suas famílias, ou junto com elas, foram em busca de melhores condições de vida, conforme depoimentos: nasci em Arapiraca, Alagoas. Sou filha de uma pernambucana e de um alagoano. Logo cedo precisei sair da minha terra, porque lá não tinha em que trabalhar. Saí de lá com 12 anos e mais três irmãos, viemos pra cá só com a ‘roupa do coro’, com as malas e as roupas. Vendemos o que tínhamos para comprar a passagem e viemos embora porque aqui a gente tinha um tio da minha mãe (Renata – UNIGRUPO). eu nasci e me criei em um município de Nossa Senhora. das Dores. Vim embora pra aqui já depois de mãe de família porque lá não tinha emprego (Rita – CARE). eu era de Pernambuco aí fui pra Arapiraca porque minha cunhada morava lá e arranjou emprego pra mim de empregada doméstica. Depois, arrumei um rapaz que tinha uma irmã que morava em Aracaju e aí nós viemos pra qui (Margarete – CARE). Esse processo migratório vivenciado por Renata, Rita e Margarete sofreu variação na experiência dos entrevistados. Se a grande maioria dos sujeitos desta pesquisa passou por um processo de migração que definiu, de forma permanente, um novo local de moradia na capital sergipana, isso se diferencia da vivência do grupo das marisqueiras que experenciaram migrações temporárias, ocasionando, posteriormente, o retorno a sua cidade de origem. O objetivo dessas migrações, vividas pelas marisqueiras, foi conseguir um emprego que pudesse ajudar os seus familiares que permaneciam no interior, conforme relatam as entrevistadas: passei oito anos em Salvador, fui pra lá trabalhar, depois voltei (Angélica – Associação das Mulheres do Camarão). fui pra Aracaju, passei uns três anos lá, trabalhei em pensionato, mas depois voltei, me casei e estou aqui até hoje (Margarida – Associação das Mulheres do Camarão). 173 Mesmo sendo temporários esses deslocamentos, também trazem reflexos para a vida das pessoas, que deixam suas famílias, rompem seus laços e passam a viver em outro mundo diferente do seu, sofrendo mudanças também no seu processo de socialização, sempre em razão do trabalho (MARTINS, 2003). A falta de emprego foi uma das principais razões que levou as pessoas entrevistadas a migrarem dos seus locais de origem para Aracaju, mesmo temporariamente. Como coloca Martins (2003), é principalmente com a modernização da agricultura que se observam dificuldades de absorção e realocação da mão-de-obra. Com isso, as pessoas vão sendo expulsas do campo, procuram as cidades e passam a engrossar as fileiras do número de excluídos do acesso a bens e serviços. Alia-se a essa realidade, a grande concentração fundiária que, no caso de Sergipe, trata-se de um problema de longa data, sem solução. A condição de pobreza material impulsiona o processo migratório que passa a ser vislumbrado, em alguns casos, como a possibilidade de encontrar melhores alternativas de vida, como condição “para subir na vida” (MARTINS, 2003 p.148). A referência de algum familiar, residente na capital, também auxiliou na definição da ida para a cidade. No relato dos entrevistados era comum, quando crianças, o desenvolvimento de atividades laborativas, principalmente aquelas relacionadas à agricultura. A grande maioria não estudou ou mesmo passou pouco tempo na escola. Pertencentes a famílias pobres, foram conduzidas logo cedo ao trabalho, cuja renda auferida tinha como objetivo contribuir para o sustento do lar. É importante destacar que o trabalho precoce atinge todas as faixas etárias dos entrevistados, desde aqueles mais velhos (com faixa etária de 45 a 50/60 anos) até os mais jovens. O depoimento abaixo ilustra bem essa situação. Com 10 anos, eu comecei a comprar camarão. Com doze anos, eu comecei a vender. A minha mãe me levava pra feira junto com ela me ensinando a começar a vida (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Imersos em um sistema em que o pequeno produtor rural pouca chance possui de sobrevivência, a tendência é uma “inserção precoce do imaturo na lógica inexorável da reprodução do capital” (MARTINS, 1993, p.11). O trabalho 174 infanto-juvenil, a diversidade das atividades laborativas e as dificuldades econômicas marcam as trajetórias de vida das pessoas entrevistadas, conforme depoimentos: fui criada na roça, trabalhei muito na adolescência, de enxada, de fazer farinha, criar bicho, porco, galinha. Trabalhava como se fosse um homem (Carmélia – UNIGRUPO). nasci em uma família pobre que trabalhava na roça, plantando mandioca, eu comecei a trabalhar plantando mandioca, milho e feijão para ajudar a família (Regina – UNIGRUPO). me criei trabalhando, fazendo farinhada, plantei arroz, plantei cana, cortei cana, pescava, plantava café, trabalhei muito. Depois, com 15 anos, trabalhei por 03 anos em um pensionato em Aracaju. Depois de um tempo, voltei pra cá, casei e até hoje vendo camarão (Margarida – Associação das Mulheres do Camarão). O “trabalho na roça” tinha como finalidade a ajuda à família, sem remuneração direta, mas que contribuía para a renda familiar, tendo em vista os resultados auferidos, a partir da utilização do trabalho de crianças e adolescentes e da não-contratação de adultos para desenvolver as tarefas. Tratava-se do desenvolvimento de atividades que envolviam o cuidado com a lavoura e com animais, geralmente em pequenas propriedades da própria família. Essas atividades garantiam, quando não enfrentavam períodos de seca, a sobrevivência das pessoas com uma alimentação mínima, ficando, pois, outras necessidades básicas sem atendimento. Muitas vezes a opção pela migração aparecia como uma possibilidade de melhoria dessas condições. A migração e o trabalho na infância e na adolescência estão fortemente presentes na vida das pessoas entrevistadas. A infância e adolescência tiveram sabor de vida adulta, ou no dizer de Martins (1993) o tempo de ser criança foi sendo ocupado amplamente pelo tempo do adulto. As brincadeiras de criança foram substituídas pelo trabalho, pelo sentimento de responsabilidade face à necessidade de realizar as atividades domésticas, o trabalho na roça e de contribuir financeiramente para o sustento da família. São crianças sem infância, conforme relata Rosa: 175 eu não tive infância, eu não brinquei, desde pequena que eu trabalho. Com dez anos tomava conta da casa, vendia camarão, geladinho, pastel. Com quatorze, casei, não tive nem adolescência (Rosa – Associação das Mulheres do Camarão). Como diz Martins (1993, p. 14), “a supressão da infância suprime ao mesmo tempo processos sociais vitais, pois submete as novas gerações a relações sociais e a uma socialização enferma que já não estão mais sob o domínio do homem e sim da coisa”. O processo de socialização dessa etapa da vida não é visto como momento de esperança e de sonho, mas de um período em que a responsabilidade e o cumprimento do dever de adulto aparecem como uma marca fundamental: “com 15 anos, comecei a trabalhar no comércio, em pé, vendendo tecido, sapato, bolsa, depois trabalhei no Supermercado GBarbosa um tempo, fiz de tudo um pouco na vida” (Renata – UNIGRUPO). Se na área rural as atividades desenvolvidas na infância e na adolescência não eram remuneradas, no meio urbano elas tinham como referência algum tipo de remuneração que auxiliava no sustento da família. Entretanto, em ambos os casos, são situações inseridas dentro de um sistema de produção e reprodução perverso, uma vez que se suprime ”a infância, em nome dos interesses e da lógica de uma opção política de desenvolvimento econômico, que mutila no berço aqueles que poderiam um dia construir a sociedade nova” (MARTINS, 1993, p.12). Essa supressão não é temporária, “ela se insere no complicado e perigoso processo de ampliação forçada do chamado exército industrial de reserva, que torna descartável e sem esperança parcelas amplas da humanidade” (MARTINS, 1993, p.15). Nesse sentido, a cidade aparece como a esperança de melhoria das condições de vida, mas que logo é visualizada pelo migrante como uma possibilidade remota, na medida em que vai enfrentar um cenário completamente adverso, um mercado de trabalho que vai exigir habilidades técnicas, escolarização e qualificação, que não são comuns entre aqueles que viviam no campo. Como conseqüência disso, tem-se a ocupação, quando possível, de postos de trabalho que exigem a força física, em serviços domésticos, ou trabalhos temporários, “bicos” e atividades por conta própria. 176 É oportuno enfatizar que as dificuldades da vida urbana são enfrentadas de forma diferenciada pelos entrevistados e que a maioria deles ainda permanece no centro urbano. Todavia, foi possível encontrar, nos relatos, aqueles que retornaram à cidade de origem. Esta situação se revelou predominantemente na experiência das mulheres da Associação do Camarão. Quando eu vim [de Salvador para o Povoado São José] já grávida foi que eu comecei a vender camarão. Por que grávida pra onde vai? Casa de família ninguém quer, né? (...). Aí comecei a vender camarão! (Angélica – Associação das Mulheres do Camarão). Desde os 10 anos, que eu trabalho com o camarão (...) Parei um tempo, uma ano mais ou menos, fui trabalhar em Aracaju, em casa de família, mas não dava certo não (...) Em casa de família, é uma pessoa só dentro de casa e o camarão não, distrai a gente, é cansativo, mas é bom (Camila- Associação das Mulheres do Camarão). A minha tia trabalhava em Aracaju, arranjou um trabalho pra mim aí eu fui. Eu trabalhei 03 anos, aí depois que eu sempre vinha pra cá de 15 em 15, de mês em mês, me apaixonei de meu marido, aí nós casou e até hoje tá vivendo. Eu trabalho com camarão desde que eu me casei com ele, porque ele pescava e todo dia eu tinha meu camarão pra cuidar (Margarida- Associação das Mulheres do Camarão). A pesca, além de ser uma atividade comum no município onde residem as entrevistadas, juntamente com a agricultura, foi se caracterizando, com o passar do tempo, como uma possibilidade de gerar renda entre as gerações, apresentando-se como alternativa ao desemprego, para os que continuaram em seu município ou a ele retornaram, após passarem por outras experiências laborativas na cidade. Aqueles que migraram e fixaram residência na capital sergipana, no caso dos entrevistados da CARE e do UNIGRUPO, foram enfrentando um mercado de trabalho difícil e com pouca chance para a melhoria das condições de vida. O trabalho e a responsabilidade precoces ainda na infância e na adolescência, trouxeram rebatimentos para os entrevistados que vão se tornando adultos herdeiros das formas de desigualdades sociais, visualizadas nas dificuldades de sobrevivência e nas formas de inserção no mundo do trabalho. 177 5.1.2. Desemprego, buscas de geração de renda e os motivos de participar dos empreendimentos As trajetórias dos entrevistados revelam uma diversidade de experiências laborativas antes de entrarem no empreendimento. As atividades no campo, por exemplo, predominantes na infância e parte da adolescência da grande maioria, vão sofrendo alterações quando adultos. Aparecem as modalidades de pedreiro, carpinteiro, vendedores ambulantes, balconista, comerciária, catador de lixo, operário e costureiras. Estas ocupações também revelam como foi se dando a inserção dessas pessoas no mundo do trabalho, tendo a maior parte delas enfrentado ocupações de baixa remuneração e, na maioria das vezes, encontrando-se na informalidade ou mesmo desempregados, conforme mostra o depoimento abaixo: minha irmã, eu já sofri tanto quando cheguei de lá [referindo-se ao local onde nasceu]. Fiquei desempregada (...) Espalhei currículo, fiz um bocado de ficha pela prefeitura, pela ótica Santana, pela Diniz, pelos prédios, Mar azul, pra ver se conseguia emprego. Depois do carnaval, você. venha apareça, vai chegar o chamado na sua casa, até hoje, nunca chegou. E o dinheiro que eu fiquei foi uma mixaria (...) Aí tinha uma vizinha chamada d. Hélia que ela disse assim, mulher vamo pra lixeira e eu disse meu Deus eu nunca trabalhei de lixeiro eu não sei nem o que é lixeira. Aí eu fui mais ela. Oh! Minha irmã eu sofri tanto, tanto, tanto, pra me acostumar, dentro daqueles urubuzadas, aquela bagunça. Olhe eu passei mais de cinco mês sem comer nada, fiquei dessa grossura (Rita – CARE). As trajetórias dos entrevistados da pesquisa revelam similaridades entre as formas de inserção no mundo do trabalho. Na maioria das vezes, evidenciaramse trabalhos precários, informais, temporários e o desemprego. A vida na cidade foi mostrando a necessidade de enfrentar um mercado de trabalho adverso. A experiência de Rita (CARE), descrita acima, de Renata (UNIGRUPO) e Angélica (Associação das Mulheres do Camarão) indica bem essa situação: quando cheguei aqui trabalhei em um restaurante e saí, porque simplesmente não tem condição de trabalhar num trabalho escravo daquele. Doze horas em pé num lugar apertado, três fornos ligados ao mesmo tempo sem parar, terrível (Renata – UNIGRUPO). trabalhei em casa de família mais de oito anos, mas não tinha carteira assinada (Angélica – Associação das Mulheres do Camarão). 178 A exploração do trabalho, jornadas excessivas, as difíceis condições do seu exercício cotidiano, o não cumprimento dos direitos sociais e trabalhistas, baixos salários e desvalorização do trabalho feminino marcam as trajetórias da inserção de algumas entrevistadas no mercado de trabalho. Além disso, a rotatividade na ocupação dos postos de trabalho, seja no emprego formal ou em atividades informais, também aparece como um indicativo importante de como foi se dando essas formas de inserção. A instabilidade, a insegurança no trabalho resultante de uma sobre-oferta de trabalhadores e do aumento das desigualdades frente ao desemprego (MATTOSO, 1995), acompanharam o cotidiano dessas pessoas, conforme expressam os depoimentos a seguir: trabalhei em supermercados, panificadora, farmácia e outras coisas. Mudava muito e ficava um tempo desempregada (Virgínia – UNIGRUPO). já vendi muita coisa, vendia pirulito pra sobreviver, meus pais muito pobres, trabalhei em olaria um tempo, e na fábrica de tecidos Sergipe Industrial (Manoel – CARE). O desemprego, a informalidade e a instabilidade são elementos presentes nas trajetórias dos entrevistados, desde muito cedo. Virgínia (UNIGRUPO) e Manoel (CARE), por exemplo, são entrevistados que estão na faixa etária entre 50 e 60 anos e que começaram a trabalhar em atividades urbanas ainda nas décadas de 1960 e 1970. Portanto, viveram as questões do desemprego, da rotatividade e informalidade, mesmo em períodos em que ocorreu o crescimento da economia com o chamado “milagre econômico”. Os postos de trabalho gerados, na indústria, já exigiam um mínimo de qualificação e escolarização, atributos que não correspondiam à realidade dos migrantes que tiveram como formação o trabalho precoce no campo, não freqüentaram a escola, faltando-lhes oportunidades para o exercício da cidadania. A vida na cidade foi mostrando outras facetas e desafios, sendo assimilados, na medida em que se esbarravam nas dificuldades de sobrevivência. As trajetórias mostram que não foi fácil a inserção dos entrevistados no mercado de trabalho. No caso dos cooperados da CARE, o desemprego e o trabalho sem carteira assinada eram comuns. As atividades remuneradas eram desenvolvidas por meio de empregos domésticos, vendedores ambulantes e 179 feirantes. Somente duas pessoas entrevistadas tiveram a oportunidade de trabalhar com seus direitos trabalhistas assegurados. Mesmo assim, a rotatividade e o tempo em que ficavam sem trabalhar eram freqüentes, conforme relatos abaixo: comecei a trabalhar com doze anos em uma empresa. Saí e fui fazer um curso de cabeleireira, mas não deu certo. Fiz um curso de auxiliar de enfermagem e trabalhei em uma clínica um tempo. Depois fui ajudar meu pai na farmácia, também não deu certo, ele faliu. Depois fui pro lixão para tirar o meu pai de lá e acabei ficando (Selma – CARE) trabalhei em olaria, na fábrica de tecidos, como carpinteiro, carregando caminhão. Ficava desempregado e começava tudo de novo. Em uns com carteira assinada, em outros não (Manoel – CARE). As mulheres do camarão tiveram como referência, desde a infância, experiências laborativas vinculadas, principalmente, à venda e beneficiamento do camarão ou de outros produtos, tendo em vista a própria tradição das famílias e a vocação do município. Mesmo assim, em alguns depoimentos, foi mencionado o interesse em terem outro tipo de trabalho, conforme relata Angélica: “já tentei outra coisa, mas aqui não tem emprego, a gente não tem muita opção em termos de trabalho, aí trabalha muita gente cuidando de camarão”. As atividades fora desse âmbito que ocasionaram a ida para outros Estados ou mesmo para a capital estão relacionadas à prestação de serviços domésticos, sem carteira assinada. Já boa parte das mulheres do UNIGRUPO vivenciou atividades laborativas com vínculo empregatício (supermercados, panificação, fábrica de tecidos, farmácias). Nessas experiências, passaram por períodos de desemprego e também por uma constante rotatividade das atividades. Para boa parte dessas mulheres, o trabalho, fora de casa, só foi possível até a chegada dos filhos, a partir daí, dedicaram-se exclusivamente aos afazeres domésticos. Mesmo com caminhadas e percursos aparentemente diferenciados, as trajetórias revelam que foram comuns as dificuldades de inserção no mercado formal de trabalho, tanto para aqueles mais velhos quanto para os de menos idade. Essa situação foi sendo agravada com os níveis de exigência em termos de escolaridade e qualificação, bem como da diminuição, cada vez maior, dos postos de trabalho e suas novas formas de organização e gestão. Muitos deles, 180 nos anos de 1990, ou estavam desempregados como é o caso da grande maioria das mulheres que participam, hoje, do UNIGRUPO, ou desenvolviam atividades informais, viviam fazendo “bicos,” ou trabalhando já no lixão, no caso dos cooperados da CARE, ou ainda como as entrevistadas da Associação das Mulheres do Camarão que viviam da venda dos mariscos. Essas formas de inserção ou não no mundo do trabalho aliadas às condições materiais de existência foram impulsionando os entrevistados a percorrerem diversos caminhos, culminando, nesse processo, com a sua inserção em atividades, que mais tarde, oportunizaram a sua entrada nos empreendimentos econômicos solidários, como é o caso dos cooperados da CARE: “quando vim pra Aracaju, procurei emprego por um bom tempo. Não achei, fui pro lixão” (Rita – CARE). O desemprego, as dificuldades de entrada no mercado formal de trabalho, os trabalhos precários e temporários, a insegurança, estiveram sempre presentes na vida das pessoas entrevistadas. Estes e outros fatores contribuíram para a inserção delas nos EES. Para algumas significou uma forma de resolver problemas imediatos e a melhoria das condições de trabalho, no caso da Associação das Mulheres do Camarão. Para outros, além disso, a possibilidade de terem outras condições de vida e de sobrevivência, indo além da realização de uma atividade produtiva, mas que envolveu também a melhoria das condições de moradia, a possibilidade de serem vistos de outra forma pela sociedade, diante do estigma que sofriam, a exemplo dos catadores de lixo que viviam do e no lixão. Já para as mulheres do UNIGRUPO, significou a possibilidade de sair do mundo privado, que, para algumas, passou a representar a finalidade de suas vidas após o casamento, sendo que, para outras, significava retomar o sentido de serem donas de suas vidas, fortalecer o papel de mulher, muitas vezes, destruído pelo sentimento de inoperância, de inutilidade e de subserviência aos seus cônjuges. Para as mulheres participantes do UNIGRUPO, dois motivos se destacam e reforçam a necessidade e importância de fazerem parte do empreendimento. O primeiro deles diz respeito à própria geração de renda, ao fato de estarem desempregadas e, por meio do grupo, desenvolverem uma atividade na qual pudessem adquirir algum tipo de rendimento, de ganharem o seu próprio dinheiro 181 e não ficarem na dependência completa dos seus conjugues, conforme depoimento a seguir: o que me motivou a participar do grupo foi a necessidade de trabalho (...) necessidade de ter uma renda, de uma profissão e de ser útil, de fazer alguma coisa (...) é muito humilhante com 45 anos depender de marido (Renata - UNIGRUPO). Da mesma forma, diz Regina: eu costurava algumas coisas em casa, mas não dar para se manter, dependo do meu marido para muitas coisas. Aqui posso ter uma renda (Regina - UNIGRUPO). Essa necessidade de gerar renda esbarrava diante da realidade atual do mercado de trabalho. A atividade laborativa, no empreendimento, passou a ser vislumbrada como a possibilidade de ter novamente a chance de fazer parte do mundo do trabalho, conforme depoimentos: você fica afastada do mercado de trabalho chega a uma certa idade, não consegue mais entrar porque a competição é grande (...) 45 anos não tem como mais, o mercado de trabalho não vai se abrir, até porque é preciso estar altamente qualificado para alguma coisa (Renata – UNIGRUPO). eu falei com as meninas a gente só tem uma saída, ou a gente se junta, luta junto pra construir alguma coisa, ou então a gente se dispersa e cada um vive a sua vida (Renata – UNIGRUPO). O segundo motivo que também aparece muito forte entre as entrevistadas do UNIGRUPO, diz respeito à necessidade de crescimento pessoal e de se sentirem valorizadas. A vivência apenas no mundo privado, cuidando da casa, filhos, maridos e o tipo de criação recebida na infância e na adolescência deixaram marcas significativas em seu papel de mulher, na relação de dependência estabelecida com os seus cônjuges, na ausência de ânimo para enfrentar e construir uma outra realidade, conforme o seguinte relato: fui criada naquele sistema rígido do interior, de que o homem dá as ordem e a mulher tem que obedecer (Carmélia – UNIGRUPO). 182 A inserção no empreendimento ajudou a melhorar a sua condição de mulher, valorizou o seu papel na sociedade, as potencialidades adormecidas e uma outra sociabilidade: sempre fui pela vontade dos outros. Agora é que estou indo pela minha vontade. Eu nunca tive vontade própria. Eu tô com 41 anos e nunca tive aquela vontade própria, eu vou fazer isso e pronto. Era sempre assim: você pode até aqui, daqui você não pode. Eu achava isso muito ruim (Carmélia – UNIGRUPO). Essa dimensão entre o mundo familiar e o da produção, cuja família foi sempre a referência em suas vidas, começa a ser questionada. Sempre coube ao homem o papel de produtor e a mulher de reprodutora. Isso vem mesmo desde antes do capitalismo, mas que toma um vigor maior nesse modo de produção, tendo em vista a divisão sexual do trabalho158. Paradoxalmente, é também no capitalismo e diante das suas contradições que as mulheres foram conquistando diversos espaços por meio de muita luta e resistência. Para algumas componentes do UNIGRUPO, essa possibilidade de demarcar o seu espaço, enquanto mulheres está sendo construída de forma gradativa num aprendizado que tem se dado no cotidiano do trabalho, na troca de experiências, entre elas, e no processo de formação. No caso da Associação das Mulheres do Camarão, o principal motivo apontado pelas entrevistadas, para inserção no empreendimento, está relacionado com a luta pela melhoria das condições de trabalho, a partir da aquisição de um ônibus. O desenvolvimento das atividades das marisqueiras exige o deslocamento do seu município para a capital sergipana e para outras cidades. O meio de transporte mais utilizado era o caminhão. A formação do grupo se deu, a partir desse objetivo e necessidade comuns, conforme já informado na caracterização dos EES: quando eu fui em uma reunião que eu ouvi falar do projeto do ônibus que Conceição Vieira ia encaminhar para Visão Mundial eu me interessei (Angélica – Associação das Mulheres do Camarão). 158 Sobre a divisão sexual do trabalho, consultar, entre outros: Le Doaré (1986), Hirata (20012002), Ammann (1997). Sobre gênero e economia solidária, consultar: Nobre (2004) e Culti (2004). 183 Até então, cada marisqueira tentava resolver os problemas relacionados com o transporte, de forma individual. No início, poucas participavam das reuniões, não existia, ainda, credibilidade para que o projeto159 do ônibus fosse aprovado, conforme relato abaixo: nas primeiras reunião tinham poucas pessoas, umas acreditava, outras não. O projeto foi aprovado e nós conseguiu o ônibus. No começou só tinha umas dez e depois do ônibus outras pessoa começou a entrar para a Associação (Vânia – Associação das Mulheres do Camarão). Mesmo sem muita certeza de que o projeto para a aquisição do veículo que as transportaria para a feira, de forma mais confortável, poderia ser concretizado, a esperança e a luta de algumas delas foram decisivas para mostrar as demais que era possível acreditar na sua execução. ”As que acreditou, ficou e viu o resultado (Vânia – Associação das Mulheres do Camarão). É interessante observar que, de início, apesar da resistência de algumas pessoas em participarem do grupo, foi a convivência nele e a aquisição do ônibus que despertaram a necessidade e o interesse em continuarem no empreendimento, além de perceberem que, por meio do trabalho em grupo, teriam perspectivas de melhores condições de trabalho, conforme depoimento: no começo eu não queria participar do grupo porque eu andava em outro carro, mas meu irmão me chamou. Participando do grupo, eu fui conhecendo melhorias e vi que no grupo é melhor que só (CamilaAssociação das Mulheres do Camarão). A idéia de que, coletivamente, teriam mais condição de enfrentar os problemas do cotidiano foi sendo reforçada, na medida em que outras conquistas foram efetivadas, a exemplo da construção do galpão, onde é feito o beneficiamento do marisco. Entretanto, a constituição do grupo e também a compra do ônibus não aconteceram de forma espontânea e por iniciativa das próprias componentes da Associação. Foi necessária, além da aquisição do ônibus, a intervenção de uma pessoa externa ao grupo, a professora Conceição Vieira, e que, posteriormente, continuou com sua presença na ampliação de novas conquistas, a exemplo do 159 Esse projeto, como já dito no capítulo IV, foi elaborado pela professora Conceição Vieira e enviado para a Visão Mundial, por meio da AEDIULS. 184 espaço de beneficiamento do camarão, conseguido junto à Prefeitura Municipal de Japaratuba. As demandas são identificadas pelo grupo que possui clareza quanto as suas necessidades e prioridades, mas o encaminhamento destas, para negociação, tem sido viabilizado, em grande parte, pela AEDIULS. Para os cooperados da CARE, os motivos que os levaram a participar do empreendimento estão, em primeiro momento, relacionados diretamente com o desenvolvimento do projeto lixo e cidadania, executado pelo UNICEF em parceria com diversas instituições, entre elas o Ministério Público de Sergipe. Esse projeto tinha como propósito, inicialmente, a retirada das crianças que trabalhavam ajudando os pais na lixeira e a discussão da destinação dos resíduos sólidos do município de Aracaju, foi expandindo seu leque de atuação, chegando-se à criação de um empreendimento em que os cooperados pudessem ter trabalho e renda, tendo em vista a perspectiva de fechamento do lixão e também o não retorno das crianças para a lixeira. Além desses motivos, importantes na definição e criação do empreendimento, outras alternativas foram apresentadas como definidoras para a inserção dos cooperados, entre elas, a aquisição da casa própria. Essa possibilidade de terem a sua própria moradia e deixarem o lixão aparece como fator fundamental para a participação na cooperativa. Doutora Izabel disse que nós ia ter casa, que ia darem as casa a gente. Então o sonho da minha vida era ter um teto, porque meu teto era o barraco dentro do lixão. Então as pessoas me cativaram ficar, porque nos ia ganhar casa e foi por isso que eu fiquei (Margarete – CARE). Teve um cadastramento no lixão para as pessoa ganharem casa, eu disse: que nada, isso é conversa. No dia 02 de janeiro chegou os caminhão pra tirar a gente de lá. Ficou todo mundo parado sem acreditar pensando que ia ser mentira que a gente não ia ganhar a casa. Aí nesse momento foi o momento mais feliz de minha vida de ter ganhado uma casa. Eu pensei que ia viver a vida toda lá dentro da lixeira (Joana – CARE). Inicialmente, a grande maioria dos catadores não tinha idéia do que seria trabalhar de forma coletiva e autogestionária. Foi e tem sido um longo aprendizado, que, até hoje, ainda apresenta dificuldades em sua assimilação e no seu exercício. Podia-se, num primeiro momento, compreender que o trabalho seria desenvolvido em um outro ambiente, melhor do que aquele que eles 185 enfrentavam no seu dia-a-dia, mas o sentido e significado desse tipo de trabalho não estavam presentes entre os catadores, tanto é que um dos depoimentos indica que um dos motivos era “ter um serviço certinho”, ou então porque ficar “na cooperativa era melhor, pelo menos não fica na lama e no sol” (Margarete – CARE). Antes, a prática cotidiana dos catadores era completamente diversa. Trabalhava-se de forma individual, havia uma concorrência acirrada entre os catadores, o ambiente em que funcionava o lixão era violento e desgastante. A aquisição de um outro local para moradia, além da possibilidade de melhores condições de trabalho, e o fato de passarem a conviver em um ambiente em que não houvesse tanta violência, como ocorria no lixão, foram aspectos fundamentais para a entrada e permanência dos entrevistados na cooperativa. O relato abaixo evidencia bem essa situação: vivia amedrontada com medo das morte que tava acontecendo ali dentro. Quando pensava a polícia chegava. Aqui é melhor, não tem violência (Rita – CARE). No caso da CARE, a inserção no empreendimento pode, no inicio, não ter indicado a possibilidade de uma vida melhor, entretanto, à medida que o empreendimento foi sendo estruturado e os primeiros resultados financeiros aparecendo, bem como o fato de trabalharem em outro ambiente, ficou mais claro para os cooperados que essa foi a melhor opção que fizeram, conforme depoimentos: no inicio muita gente quis, mas depois caiu fora. No lixão ganhava mais. Quando começou a gente trabalhava só um dia na semana na cooperativa, o restante era no lixão, até chegar outros bairros com a coleta seletiva. Quando a gente começou a ter uma diária de 5,00 reais, aí a gente não foi mais para o lixão (Selma - CARE). Quando disse que ia formar uma cooperativa muita gente do lixão não quis, mas eu disse eu quero. Não me arrependi (Rita – CARE). Aqui é totalmente diferente de lá. Trabalha todo mundo limpo, não trabalha dentro do lixo e dá pra viver, com uma vida digna. Não trabalha no meio do tempo, no sol quente, nem no meio do lixo, nem dentro da lama (Joana – CARE). 186 Os relatos apontam vários motivos que levaram os cooperados/associados a se inserirem nos empreendimentos econômicos solidários. A necessidade de gerar trabalho e renda, de buscar outras alternativas, diante do desemprego, de lutar por melhores condições de vida e de trabalho definiram as razões para a inserção e permanência das pessoas nos empreendimentos, ou seja, a experiência de trabalho coletivo autogestionário, antes nunca vivenciada pelos entrevistados, passa a fazer parte da trajetória destes mediante à necessidade de gerar renda mas que também se agregam a possibilidade de ter a casa própria, cooperados da CARE; na melhoria das condições de trabalho, tanto na CARE, quanto na Associação das Mulheres do Camarão; a possibilidade de construir uma nova condição social para além do mundo privado, como é o caso das mulheres do UNIGRUPO. 5.1.3. O trabalho coletivo nos empreendimentos Para a grande maioria dos entrevistados foi e tem sido um grande desafio trabalhar em um empreendimento, cujas características têm como base a organização coletiva na perspectiva autogestionária do trabalho. Com experiências diversificadas no que diz respeito à inserção ou não no mundo do trabalho, o mais comum era ter como referência a presença de um patrão, ou, muitas vezes, eles mesmos sendo o próprio patrão nas atividades informais, nas quais, definia sozinho o destino de todo processo de trabalho e os seus resultados. Num empreendimento econômico solidário, o processo de trabalho e as relações estabelecidas no seu cotidiano exigem o exercício de outras formas de convivência. Como diz Gaiger (s/d), as relações de produção desenvolvidas nos EES são distintas da forma assalariada. “As práticas de autogestão e cooperação dão a esses empreendimentos uma natureza singular, pois modificam o princípio e a finalidade da extração do trabalho excedente”160. Ainda de acordo com este autor, essa singularidade está presente na propriedade social dos meios de 160 “A economia solidária diante do modo de produção capitalista”. Disponível em: www.ecosol.com.br. Acesso em setembro de 2004. 187 produção; no controle e poder de decisão exercido pelos trabalhadores em regime de paridade de direitos; na gestão e organização coletiva do trabalho, cujos resultados econômicos devem ser revertidos entre aqueles que produzem, prestam serviços e comercializam os frutos do seu trabalho. Trata-se, portanto, de uma experiência que requer um aprendizado constante, assimilação e exercício cotidiano de práticas que, geralmente, não são muito comuns entre aqueles que estão participando dos empreendimentos. Entretanto, na medida em que começam a vivenciar esse tipo de experiência laborativa, além de se defrontarem com essas singularidades apontadas por Gaiger (s/d)161, passam a experimentar outros sentidos e significados que vão além da geração de renda e dos processos coletivos e autogeridos. À medida que os entrevistados foram se inserindo nos empreendimentos, outros sentidos foram sendo construídos. Um deles diz respeito ao enfrentamento de novas rotinas, ao estabelecimento de novas relações, ao exercício de um aprendizado de convivência grupal que foi sendo desenvolvido, a partir do cotidiano no empreendimento. Para os cooperados da CARE, por exemplo, vai haver uma mudança substancial nas suas rotinas, nos procedimentos de trabalho, existindo, pois, um estranhamento com a lógica que envolve o trabalho coletivo autogestionário, porque sempre foram acostumados a trabalhar sozinhos. Lá, no lixão era bom assim, porque a gente trabalhava por conta da gente, o que a gente fazia era da gente, ninguém mandava, a gente fazia o tanto que queria, se a gente quisesse trabalhar hoje trabalhava se não trabalhava amanhã (Rita – CARE). No lixão, a gente trabalha a hora que quer. Não é mandado, não tem hora certa. Você trabalha do jeito que você quer. Quer arranjar mais dinheiro trabalhava pelo dia e pela noite (Margarete – CARE). Antes, no lixão os entrevistados, de forma individual, definiam as regras e estabeleciam os dias e horários que iriam trabalhar, sua rotina e processo de trabalho. Já na CARE, eles vivenciam outro cotidiano, ou seja, passam a gerir um negócio em que as normas, rotinas e decisões são tomadas por todos que dele participam. Mesmo sendo eles próprios os gestores do empreendimento, é 161 Ibidem. 188 preciso estabelecer rotinas, regras, eleger pessoas que possam auxiliar na gestão, na coordenação das tarefas e no desenvolvimento do trabalho como um todo, sem esquecer de socializar constantemente as informações. Passa-se a viver uma outra lógica na gestão do trabalho e muitas vezes é difícil, de início, a assimilação do seu real sentido. Para os participantes do UNIGRUPO, a experiência de trabalhar, de forma coletiva e autogestionária, tem significado a oportunidade não só de servir para o processo de socialização e de integração das pessoas no ambiente e convívio social, mas também como um exercício cotidiano de partilha e socialização dos resultados do trabalho, havendo uma melhor assimilação no sentido do trabalho coletivo autogestionário. Aprendi a trabalhar em grupo que era muito difícil pra mim, porque eu não gostava de cortar uma roupa na frente de ninguém e hoje pra mim é uma beleza. Você trabalhar pra você e saber que aquele dinheiro vai vim todo pra você é uma coisa e você trabalhar num grupo e saber que ali vai ser tudo dividido é outro. Para você se acostumar é duro e eu me acostumei e acho maravilhoso (Marta – UNIGRUPO). O trabalho coletivo em um empreendimento econômico solidário autogestionário pode parecer, num primeiro momento, algo estranho, uma vez que ele exige o estabelecimento de relações de confiança, solidariedade, partilha e companheirismo. Por isso, é permeado por constantes desafios e de um longo aprendizado construído a cada dia, por meio do estabelecimento de relações de conflito e de solidariedade. Como diz Nascimento (s/d)162, a autogestão é algo que se constrói todo dia. Os depoimentos das componentes do UNIGRUPO mostram como a gestão coletiva do trabalho, nos EES, exige maturidade de todos os envolvidos. Trabalhar em conjunto não é fácil. É um aprendizado (...). Cada um tem uma vida, uma história, uma personalidade, um jeito diferente, então você tem que conviver com todo mundo e não é fácil não, é difícil, é complicado, não agrada a todos e principalmente quando você quer zelar pelo correto pelo certo, não é fácil, é complicado, mas a gente consegue, conversando, procurando compreender o outro, sabendo entender as diferenças, convivendo com as diferenças (...). Nós somos iguais porque estamos lutando pela mesma causa, embora ele tenha personalidade diferente da minha, mas a gente tem que conviver, que fazer de tudo para ter harmonia (Renata – UNIGRUPO). 162 www.mte.gov.br. 189 Eu acho que é não é fácil trabalhar em grupo, porque cada um pensa de um jeito, as pessoas nunca é igual tem pensamentos diferente e cada um tem um temperamento. Só que a gente tem que aprender a se controlar pra viver com todo mundo, né? (Regina – UNIGRUPO). O cotidiano dos empreendimentos revela, muitas vezes, que a convivência em grupo, para alguns, pode não significar sinal de união e solidariedade. Nas entrevistas com os cooperados da CARE, por exemplo, foi freqüente os entrevistados afirmarem que não existe união ente eles, há muitos conflitos, cada um só pensa em si. Entretanto, alguns relatos também demonstram que a convivência no empreendimento, apesar de não ser algo fácil, consegue trazer mudanças substanciais nas relações entre as pessoas. Criam-se relações de afeto, de amizade, mesmo que não tão visíveis no cotidiano, mas que se apresentam em gestos e reações diante de algum acontecimento. Um relato importante que mostra essa situação de forma específica na CARE. No lixão, quando dava os crimes ninguém ligava, ninguém sentia nada. Lá o pessoal matava até perto da gente e ninguém sentia nada. Na morte de finado Denílson, que trabalhava aqui na cooperativa há três anos, foi aquele impacto (...) Ninguém trabalhou ficou aquela coisa, aquele levantamento, o que aconteceu? Eles não sabiam se choravam, se iam pra casa, se iam visitar o defunto. Depois do enterro, aí houve o comentário, por que isso aconteceu? Eu disse vocês estão vendo como é a união da gente, o que significa cooperativa? A morte de Denílson fez com que vocês parassem. A gente parou pra que todo mundo fosse pro enterro, eu pensei que ninguém ia aparecer lá e quando cheguei lá a casa tava cheia e assim o sentimento foi muito grande, eu achei muito bonito. Foi como se tivesse morrido alguém da família, a união da gente tá trabalhando num lugar fechado (Selma – CARE). O depoimento acima mostra que, mesmo diante de um cotidiano complexo, as vivências nos EES revelam surpresas e sentimentos por meio de pequenos gestos. As relações interpessoais na CARE, conforme revela os próprios entrevistados, não acontecem de forma tranqüila. Existe, até hoje, muita resistência na convivência grupal, nas relações de solidariedade e no próprio sentimento de pertencimento ao grupo. Entretanto, mesmo diante dessas dificuldades, acontecem momentos em que se revela outra face da relação. Não só no episódio do funeral, mas também nas festividades promovidas na cooperativa (São João, Natal, etc.), no grupo de dança em que participam os cooperados, percebe-se que há uma quebra dessa resistência e as relações 190 fluem com mais facilidade. Muitas vezes, no cotidiano de trabalho, as fisionomias fechadas, ríspidas ou entristecidas passam a ter outros contornos de alegria, emoção, satisfação naquilo que estão desenvolvendo. Esse tipo de relação afetiva não se evidenciava no lixão. A convivência na cooperativa permite alicerçar relações pessoais e de trabalho, ou ainda, como diz Salles Oliveira (2005, p. 37), permite a construção de manifestações de uma cultura solidária na qual as interações sociais “se fundam numa base comum, em que os participantes se voltam um para o outro, constituindo um campo mutuamente compartilhado”. Este é um processo que tem exigido um aprendizado sem fim, uma longa e difícil jornada (SALLES OLIVEIRA, 2005), diante da cultura individualista que sempre marcou as trajetórias de vida daqueles que hoje fazem parte dos empreendimentos. Mesmo enfrentando uma série de dificuldades e desafios nesse tipo de atividade, foi comum, entre os entrevistados, a afirmação de que é melhor trabalhar dessa forma do que como empregado em uma empresa privada. A vivência no empreendimento tem revelado as diferenças entre trabalhar sob as ordens de um patrão e dirigir o seu próprio negócio. Os depoimentos mostram se por um lado é melhor trabalhar de forma coletiva e autogestionária, por outro o nível de responsabilidade e de exigência aumenta. Ah! É diferente. Lá é você trabalhando e o encarregado no seu pé. Se você fizer um defeitozinho mínimo no pano, você paga quase a peça toda. Aqui é diferente. Aqui nós somos o patrão. Nós é que corrigimos nós mesmos. Se eu tô errada eu falo tô errada, então tenho que corrigir eu mesma. Tenho que me aperfeiçoar mais, tenho que aprender mais, olhar os defeitos para não sair uma peça defeituosa. Lá pode ser mais fácil nesse ponto de que o patrão vem, dá as ordens e você. não pode dizer nada. E aqui não você pode discutir, se você não gostar de um jeito você diz olhe não gostei, vamos fazer desse jeito. E lá não, lá quem manda é o dono. E aqui é diferente. Aqui você chama as colegas, se reúne e diz olhe uma gostou desse jeito, outra daquele, aí várias opiniões para se chegar a um acordo. Quando ganha divide com todos (Carmélia – UNIGRUPO). Aqui é bem melhor, porque você é você mesmo. Lá eu era funcionária. Claro que a mesma responsabilidade que eu tinha lá eu tenho aqui, ou talvez mais (Virgínia – UNIGRUPO). É a possibilidade, é o gostinho de você colocar a mão naquilo que é seu, sem patrão, sem aquela coisa do escravismo, de estar em cima de você. (...) Você tá numa empresa há anos eu trabalhei 15 anos no comércio e lutar tanto e nunca sai daquele mesmo patamar. Pra 191 conseguir um aumento de um percentual de 10%, 5% de aumento em seu salário, você tem que esperar para quando o governo dá. É muito diferente disso aqui. Aqui é trabalho, é muito trabalhoso é, mas é diferente no sentido de que você luta, vai atrás dos clientes, mas quando vier os rendimentos, você divide em igualdade de condições entre todos (...) é diferente de quando você tem carteira assinada, porque você trabalhar e buscar o que você quiser, mas não passa daquele salário, diferente dessa possibilidade que quanto mais você buscar quanto mais trabalhar, mais vai aumentar e quanto maior o resultado, quando for dividir, maior a parte para cada um (Renata – UNIGRUPO). Os depoimentos indicam que já existem uma compreensão e uma relação entre o trabalho desenvolvido no empreendimento econômico solidário e as experiências laborativas vivenciadas antes da inserção neste. Essa passagem e percepção foram possíveis por meio da vivência do trabalho coletivo autogerido, na medida em que foi sendo entendida a possibilidade de repensar, inclusive, as experiências que vivenciaram de forma individual. Evidencia-se, portanto, que os EES têm se configurado como espaço de construção de novas relações de trabalho que se diferenciam daquelas desenvolvidas na empresa capitalista. Nesta última, a exploração do trabalhador, as relações de mando e de subordinação, o usufruto do que foi produzido para poucos, dão o tom das relações de trabalho. Já nos EES, busca-se construir uma outra forma de convivência na qual as pessoas sejam valorizadas enquanto trabalhadoras, que trabalhem e usufruam de forma coletiva e democrática, dos resultados do seu trabalho. Nos EES, todos se juntam em função do mesmo objetivo: gerar trabalho e renda em um ambiente cuja gestão seja coletiva e democrática, as informações socializadas, e no qual a solidariedade, a união e a participação sejam eixos norteadores da convivência grupal. Essa passagem do trabalho individual para o coletivo e autogerido está acontecendo, paulatinamente, por parte dos entrevistados. É possível verificar que essa assimilação tem acontecido, principalmente entre os componentes do UNIGRUPO, mas que é necessário percorrer um longo caminho entre os cooperados da CARE, pois esse significado ainda é pouco assimilado. No caso da Associação das Mulheres do Camarão, verifica-se um avanço importante no sentido de transformar uma atividade, inicialmente, desenvolvida de forma individual para uma experiência que mescla momentos individuais e coletivos. Hoje as próprias entrevistadas têm uma melhor compreensão sobre o trabalho 192 coletivo autogerido, já vislumbram a possibilidade de desenvolver coletivamente todas as etapas do processo de trabalho, apesar de ser essa uma discussão ainda embrionária no interior do grupo. Com relação ao UNIGRUPO, alguns fatores podem contribuir para uma maior compreensão do trabalho desenvolvido no EES como por exemplo: o fato da composição do grupo ter ocorrido por iniciativa das próprias participantes; desde o início da criação do empreendimento, as suas componentes passarem por um processo de formação, cujos conteúdos reforçaram aspectos da relação grupal, da economia solidária, seus princípios e valores; além de ser um grupo pequeno, cuja atividade desenvolvida exige cotidianamente o estabelecimento de relações e decisões que envolvem todos que dele fazem parte. Os depoimentos também apontam a idéia de que o trabalho coletivo autogerido, além de propiciar a construção de novas relações de trabalho, é uma das possibilidades encontradas pelos cooperados/associados, para gerar trabalho e renda, tendo em vista que sozinhos e sem recursos financeiros, ficaria mais difícil montar o seu negócio. Isto está presente nos relatos seguintes: já tentei várias vezes abrir um negócio sozinha e não deu certo. Sozinha eu não consegui. Aí começou um caminho, uma oportunidade porque não é uma pessoa só, são várias pessoas, muita gente trabalhando junto, aí eu vi a possibilidade (Renata – UNIGRUPO). se eu andar só eu não vou conseguir nada. Só na feira livre. Na feira livre hoje eu trabalho nela o que ganho é pra ajudar na minha casa. E no grupo não, no grupo a gente pode crescer, a gente pode mais na frente exportar camarão, vender a grandes mercados e um só? Se fosse eu só? Nunca eu poderei fazer isso (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Além disso, o trabalho coletivo nos EES, no sentido de proporcionar a geração de renda, é a esperança daqueles que estão nele envolvidos. Mesmo que os resultados financeiros ainda não sejam o desejado, em virtude das dificuldades enfrentadas pelos empreendimentos no sentido de construir a viabilidade econômica, ou seja, a questão do crédito, do capital de giro, do acesso a fontes de financiamento, entre outros, os depoimentos revelam a idéia de que, no futuro, essa geração de renda se torne uma realidade e que todos possam ter melhores condições de vida, especificamente o UNIGRUPO, pois os seus 193 componentes ainda não estão tendo um retorno financeiro desejável. Esse retorno tem sido maior na Associação das Mulheres do Camarão e na CARE. Quando a gente pega no arado, para arar a terra, você ara a terra coloca a semente e você fica rezando pedindo a Deus que chova aí quando chove, graças a Deus choveu e vai brotar. Então é isso que a gente faz aqui. Primeiro a gente começou a arar a terra e aí a gente tá esperando vim uma grande chuva que a gente vai pegar ela e quando começar a brotar a gente só vai colher os frutos (Renata – UNIGRUPO). Eu fiquei pra pegar no dinheiro, porque não tem emprego nenhum. (Virgínia – UNIGRUPO). Daqui, eu consigo tirar o sustento de minha família (Margarete – CARE). Vivo do que ganho na feira. É pouco, mas tem dado para mim e minhas filhas (Angélica - Associação das Mulheres do Camarão). Outros significados do trabalho coletivo aparecem nas falas dos entrevistados. Para as mulheres do camarão, o trabalho em grupo ou mesmo individual tem significado momentos de prazer, satisfação, de conseguir fazer novos amigos, de estender a rede de relações sociais: gosto demais de vender na feira. São muitas amizades que eu tenho lá, muito freguês querido. Quando eu chego de manhã, eu tenho um freguês que ele chega na banca e diz: diga minha linda! Eu acho isso um amor, eu digo diga meu anjo! Vai levar hoje o quê? (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). no galpão é bom. A gente conversa, ajuda, brinca, divide o que vai comer e cuida do camarão. No ônibus é uma maravilha, a viagem é boa. (Margarida – Associação das Mulheres do Camarão). se um freguês chega e eu tiver assim vamos dizer séria, aí vão logo perguntando: tá com raiva? Tá triste? Aí eu digo não. E por que tá triste? Aí vem logo procurar saber por que estou triste porque lá eles só me encontram rindo, conversando com um e com outro, e de repente passa a manhã. É esse tipo de coisa que eu adoro e não posso perder (Angélica- Associação das Mulheres do Camarão). às vezes, quando eu tô muito alegre, nove, dez horas eu compro uma cerveja pra tomar. Aí quando eu compro a cerveja, a banca fecha de freguesa aí começa a festa. Eu digo tô trabalhando e me divertindo ao mesmo tempo, eu brinco e trabalho. Eu tenho muito prazer de vender na feira. Prazer é pouco. Se eu passar um sábado, uma sexta, sem vender eu acho que eu fico doente (Camila- Associação das Mulheres do Camarão). 194 Percebe-se nos depoimentos que o local de trabalho é uma extensão da vida pessoal. A convivência com os fregueses extrapola a relação profissional. O tipo de atividade desenvolvida pelas mulheres do camarão exige que a alegria e o tratamento especial ao freguês sejam referências importantes no trabalho. Isso cria vínculos de amizade e uma relação de afetividade, além de permitir que traços pessoais sejam facilmente identificados, na medida em que os fregueses percebem sinais de tristeza e/ou de alegria, quando conversam com elas, durante a compra do camarão. O trabalho, na feira, tem um significado particular para as mulheres do camarão, porque vai muito além de uma estratégia de trabalho e de gerar renda, significa sentido para suas vidas, o estabelecimento de vínculos de amizade, de companheirismo. Nas experiências das mulheres do camarão, trabalho, lazer e prazer se identificam. Neste caso, como diz Salles Oliveira (2006, p. 97), “pouco importa se estejam ou não atoladas no serviço. A brincadeira, a distensão, a busca de um reequilíbrio físico e mental são vitais para que se sintam gente, e não objetos”. Já para as mulheres do UNIGRUPO, por exemplo, o trabalho coletivo tem significado a extensão da vida privada, na medida em que os vínculos estabelecidos têm resultado em momentos de companheirismo e amizade. Partilham-se as dificuldades que ocorrem não apenas no empreendimento, mas na vida pessoal de cada uma. (...) é bom conviver com elas hoje eu digo com toda a certeza não saberia mais viver sem tá a gente tudo junto. Se a gente tivesse que se separar hoje eu sei que ia sentir muita falta (...) é muito bom. É como se fosse muitos amigos, irmãos até. A gente conversa da vida da gente. (...) é como se fosse uma grande família. Quando tem algum problema a gente logo percebe (Renata – UNIGRUPO). Aqui eu me sinto acolhida, porque a gente é como irmão. Combina, tem comunhão. Uma está doente a outra vai saber o que aconteceu, se está precisando de alguma coisa. Pra mim aqui é uma família (Carmélia – UNIGRUPO). Em primeiro lugar estão minhas filhas e em segundo isso aqui. Eu gosto daqui, me sinto bem (Helena - UNIGRUPO). Pra mim aqui significa uma família, uma união. E significa muito pra mim porque eu gosto muito de estar junto com outras pessoas me ajudando e eu também poder ajudar (Marta – UNIGRUPO). 195 Como se constata, para as mulheres do UNIGRUPO, trabalho, companheirismo, solidariedade e união dão o tom e significado ao trabalho coletivo autogestionário. Há um sentimento forte de pertencimento ao grupo, de vínculos estabelecidos com o propósito de reforçar princípios e valores importantes para o desenvolvimento do trabalho nos empreendimentos econômicos solidários. Na CARE, estar no empreendimento tem exigido um aprendizado constante do significado do trabalho coletivo autogestionário, possibilitando restaurar condições de sociabilidade e o reconhecimento do sentido de pertencimento social. O trabalho coletivo e autogerido vem revelando uma experiência de grande aprendizado para os cooperados/associados, que extrapola a dimensão do exercício de uma atividade laborativa que gera renda. Ele tem possibilitado o estabelecimento e ampliação de vínculos, laços de amizade, novas relações sociais, dentro e fora do empreendimento, e, principalmente, a construção do sentimento do coletivo, quebrando-se, gradativamente, o individualismo próprio da nossa cultura secularmente construída. 5.2. Dimensões e expressões da participação As pessoas que participam dos empreendimentos econômicos solidários, enquanto seres sociais, vivenciam experiências e espaços de participação que foram e são construídos, de forma constante, nas relações estabelecidas na família, na escola, no trabalho, nas experiências de participação comunitária, nos movimentos sociais, entre outros. Como diz Paz (2002, p.36), “a categoria participação refere-se diretamente à base cultural, à densidade social, construída historicamente nas experiências cotidianas dos diversos sujeitos sociais”. Nos empreendimentos econômicos solidários, vivenciam-se espaços de participação, no âmbito da produção, no exercício coletivo da gestão e organização do trabalho, na socialização das informações, na partilha do poder. 196 5.2.1. Experiências de participação Como diz Paz (2002, p. 43), “a experiência pessoal de participação é algo que marca e transforma o sujeito, no modo de ver e de se relacionar com o mundo”. Nesse sentido, “as relações afetivas, familiares, de trabalho, de gênero, são diretamente impactadas pela inserção em processos participativos e pelas experiências de enfrentamento, negociação e proposição” (PAZ, 2002, p.43). As primeiras referências de participação, apontadas pelos entrevistados desta pesquisa remetem ao período escolar, durante as festividades do calendário escolar (dias das mães, dos pais, São João, Natal) e no desfile cívico de Sete de Setembro, conforme relatos a seguir: na escola, eu participava de tudo: do desfile, fui baliza, nos teatros representava, cantava, era difícil ficar fora (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). participava do desfile, de jogos de queimado. Não participava de outras coisas porque minha mãe não deixava (Marta – UNIGRUPO). Na época em que estudaram, não era comum, aos entrevistados, a participação em grêmios estudantis. Sabe-se também que não está presente no sistema regular de ensino, o incentivo à participação nos grêmios estudantis, pois a presença destes, muitas vezes, foi vista como algo subversivo dos quais os alunos deveriam se afastar. Parte dos entrevistados, em suas infâncias e adolescências, viveu na época do regime militar, sendo educados dentro de um sistema que combatia as formas de manifestação e expressão, ou seja, proibia-se a fala que fosse contrária aos preceitos deste regime. Anulava-se a possibilidade de reivindicação da parcela dos que não têm parcela, como diz Oliveira (2000). Essas vivências foram marcando as trajetórias pessoais de cada um e influenciando nos sentidos e significados que a participação vai tendo em suas vidas. Já na adolescência, a participação em outras instâncias sociais ocorreu por meio do envolvimento em grupos de jovens vinculados a atividades religiosas, a exemplo de Rosa: “participei do grupo de jovens, do coral, a gente ensaiava os cânticos e organizava a missa” (Rosa – Associação das Mulheres do Camarão). 197 Entretanto, a grande maioria das pessoas entrevistadas não participou de outros espaços societários, exceto o da convivência familiar e no trabalho, cuja principal razão apontada está relacionada ao fato de que foram conduzidos logo cedo para o mercado de trabalho: comecei a trabalhar muito cedo, não tinha tempo de participar de nada (Manoel – CARE). logo cedo trabalhei na roça e em casa de família. Não tinha como participar de nada. Na escola só brincava, só aprendi o ABC (Margarete – CARE). Os que participaram de alguma atividade no ambiente escolar, em grupos de jovens e/ou outros, quando adultos, não participaram de outras instâncias da sociedade. Na vida adulta, a sociabilidade tem sido estabelecida muito mais por meio das relações com a vizinhança e grupo de amigos do que com a participação em atividades comunitárias, sociais e culturais. Mesmo assim, em algumas situações, a exemplo dos cooperados da CARE, tais relações não acontecem com freqüência e, quando acontecem, são poucos os vínculos de proximidade estabelecidos, conforme apontam os depoimentos abaixo: quando chego em casa, tranco tudo com não sei quantos cadeados. Sou medrosa. Aos meus vizinhos dou bom dia, boa tarde, boa noite e é só. Se precisarem de mim ajudo, mas não gosto de ficar na casa de ninguém. Aproveito meu final de semana para descansar (Selma – CARE). quase não vejo meus vizinho. Fico dentro de casa cuidando das coisas, quando vejo o tempo já passou, não sou muito de amizade. Só tem uma moça que vem de vez em quando passar um domingo aqui em casa, mas ela mora longe. Quando termino as coisa em casa vou assistir televisão (Margarete – CARE). me dou bem com todos os meu vizinho, mas quando tô em casa vou ajeitar uma coisa, ajeitar outra, fazer um serviço na casa de um filho, é assim (Manoel – CARE). As mulheres do UNIGRUPO demonstraram que a sociabilidade tem sido fortalecida, tanto pelas relações entre os vizinhos, como também por meio da participação em atividades religiosas: 198 quando eu morava aqui [se referindo ao bairro onde funciona o grupo] tinha muitos amigos, mas agora estou longe e não conheço ninguém. Continuo participando da igreja aqui. Tenho muitos amigos da igreja (Marta – UNIGRUPO). durante a semana, fico aqui no grupo e a noite aproveito para resolver as coisas em casa. Conheço muita gente aqui no bairro, tenho muitos amigos. No final de semana me divido entre ir visitar minha mãe e ir à igreja com minha filha (Renata – UNIGRUPO). Já na Associação das Mulheres do Camarão, as relações sociais têm sido mescladas entre os contatos mantidos com os vizinhos, como também nos momentos das festas realizadas no povoado e manifestações culturais. Por se tratar de um local cuja tradição cultural é significativa, a sociabilidade e participação também têm ocorrido por meio de festas religiosas, encontros culturais e outros eventos. Aqui todo mundo se conhece. Povoado pequeno você sabe, né? Tenho muitos conhecidos (Rosa - Associação das Mulheres do Camarão). Aqui sempre tem festa. O povo daqui é muito animado e gosta muito de festa. Eu nem sempre vou, mas minhas filhas gostam e vão (Margarida – Associação das Mulheres do Camarão). Como diz Paz (2002), os vínculos sociais influenciam no tipo de participação que as pessoas vão desenvolvendo na vida cotidiana. Nesse sentido, à medida que os indivíduos estabelecem vínculos sociais primários e secundários que favorecem e estimulam a participação, torna-se mais fácil a sua inserção em organizações e ações coletivas. Dessa forma, as experiências de participação em outros espaços societários variam muito de grupo para grupo, de indivíduo para indivíduo e também tem vinculação direta com a rede de relações vivenciadas durante suas trajetórias de vida. Entre os entrevistados da CARE, por exemplo, foi comum a afirmação de ausência da participação em outras instâncias da vida social. Os relatos mostram as difíceis condições de sobrevivência, a luta constante pela inserção no mercado de trabalho, as limitações na constituição de uma rede de relações que permitisse uma sociabilidade que os despertassem para outras formas de luta e instâncias participativas, como afirma Manoel: “nunca tive tempo 199 para participar dessas coisas”; ou ainda Margarete “eu nunca participei de nada disso, tinha que trabalhar para sobreviver”. Já na Associação das Mulheres do Camarão, metade das entrevistadas teve ou tem algum tipo de experiência de participação em outros espaços societários, a exemplo do clube de mães e associação de moradores. A moradia em um local em que todos se conhecem, a preservação de uma identidade cultural, a atividade laborativa desenvolvida que exige facilidade de comunicação e expressão, são fatores que auxiliam na possibilidade de inserção em organizações sociais que imprimam outras dimensões da participação, não restritas ao ambiente familiar ou do trabalho. Sem dúvida, isso se diferencia entre as próprias entrevistadas que justificavam, conforme depoimento de Margarida, a sua não participação em outros espaços societários: “não tenho mais idade para participar (...) eu participava do clube de mães, mas saí com raiva porque meu marido é muito enjoado”. No caso das mulheres do UNIGRUPO, somente uma entrevistada informou sua participação na associação de moradores. As demais afirmaram a participação em atividades religiosas, sendo, inclusive, uma oportunidade de lazer para boa parte delas, conforme depoimentos: eu participo da associação de moradores já tem um tempo. Gosto e acho importante (Renata – UNIGRUPO). participo da igreja desde jovem. Atualmente, participo de um grupo de mulheres. As mulheres fazem pintura, crochê, bordado, e tem um dia de domingo que fazem visitas aos asilos, orfanatos (Carmélia – UNIGRUPO). participo só da igreja, grupo da carismática (Regina – UNIGRUPO). na igreja eu participo do grupo de louvor, de passeios, de gincana, de tudo isso (Marta – UNIGRUPO). O vínculo estabelecido, por meio da participação nas atividades religiosas, aparece forte nos depoimentos das mulheres do UNIGRUPO, sendo um fator de aglutinação entre elas no cotidiano do empreendimento, auxiliando-as na resolução de possíveis conflitos, já que em vários depoimentos foi comum a 200 importância da convivência no grupo como algo relacionado à extensão do próprio convívio familiar. Ao serem indagados sobre as razões da não participação em outras instâncias da vida comunitária, a exemplo de associação de moradores, alguns informaram o seguinte: não participo da Associação de Moradores porque antes era só política. Hoje ela até que tá funcionando, mas no passado era só politicagem (Rosa – Associação das Mulheres do Camarão). a associação daqui você só paga o dinheiro [mensalidade] e mais nada porque eu não vejo eles resolver nada (Camila- – Associação das Mulheres do Camarão). Outras justificativas também aparecem e estão vinculadas ao estabelecimento de relações pessoais com as lideranças políticas locais, mediadas e alimentadas pela dependência, subserviência e paternalismo. Assim, a participação, na vida política partidária, está diretamente relacionada à proximidade e afinidade com líderes políticos, refletindo a perpetuação de uma cultura clientelista, própria da formação social brasileira. Os relatos, a seguir, expressam bem essa relação: aqui tem uma Associação de Moradores, mas eu não gosto de participar porque tem um negócio assim contra o Prefeito, coisa assim que prejudique, fale mal dele eu não gosto (Margarida - Associação das Mulheres do Camarão). a associação de moradores daqui é política pura (Rosa - Associação das Mulheres do Camarão). É interessante destacar que, apesar de as entrevistadas afirmarem que a intervenção da política partidária não deve influenciar o andamento das atividades e as relações pessoais no interior do empreendimento, este tem sido freqüentemente atingido pela interferência desta política, quando por ocasião dos pleitos eleitorais. O grupo normalmente se divide entre os partidos da situação e de oposição, principalmente nas eleições para prefeito, dificultando, pois, as relações interpessoais e o surgimento de conflitos. Os reflexos dessa situação foram logo visíveis pelo próprio grupo. 201 Antes da política, era muito bom. No galpão, não cabia quase o povo. Era uma festa. Na última eleição para prefeito mesmo muita gente deixou de ir pro galpão (Margarida – Associação das Mulheres do Camarão). Eu digo enquanto existe política no meio, não existe nada bom, atrapalha muito o grupo (Vânia – Associação das Mulheres do Camarão) Para aqueles que tiveram e têm tido a oportunidade de conhecer outros espaços de participação, a forma de compreender o seu papel na sociedade e a sua possível contribuição para transformar a realidade em que vivem passam a ter um outro significado e sentido. Quando eu comecei a me relacionar com o povo assim, com a Associação de Moradores, aí comecei a abrir minha cabeça e comecei a entender que eu podia fazer alguma coisa (...) tudo aquilo foi fomentando assim minha vontade de lutar (Renata – UNIGRUPO). Percebi que quando a gente se junta e participa tanto a saúde como a educação vai melhorar, porque se exige uma saúde, uma educação melhor (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). As experiências de participação em outros espaços societários vão mostrando, para alguns, a importância de lutar por seus direitos. Como diz Herbet de Souza (s/d)163, a única forma de transformarmos os nossos direitos em realidade é por meio da participação, por isso não deve ser restrita a alguns, mas uma oportunidade efetiva e acessível a todas as pessoas. Nesse sentido, à medida que o indivíduo participa da vida social e política do país ele passa a entender melhor o que acontece ao seu redor, a ser sujeito de direitos. Mesmo que o exercício da participação em outras instâncias sociais ainda não seja uma realidade na vida de boa parte dos entrevistados, já se percebem, nos seus relatos, indicativos da importância de participar, sendo algo que vai acontecendo e sendo conquistado no cotidiano, nas experiências que são vivenciadas: 163 SOUZA, Hebert de. Participação Artigo disponível em: http://www.mre.gov.br/CDBRASIL/ITAMARATY/WEB/port/polsoc/partic/apresent/apresent.htm. Acesso em maio de 2007. 202 eu acho importante, tudo que aparecer de grupo é importante a gente participar (Margarida – Associação das Mulheres do Camarão). acho bom, porque aqui a gente não sabia de nada, hoje já sei um pouco, já entendo um pouquinho as coisas, conhece lá fora (Margarete – CARE). eu acho importantíssimo. Você vai conhecendo outras pessoas e vai aprendendo a conviver (Marta – UNIGRUPO). A idéia de participação aparece nos relatos vinculados à experiência que os entrevistados estão vivenciado no empreendimento. Isso reforça a afirmação de Paz (2002), quando diz que por meio da convivência e participação em grupos, associações, sindicatos, as pessoas vão, aos poucos, aprendendo a agir coletivamente. Se considerarmos as trajetórias de vida dos entrevistados desta pesquisa, apesar de suas especificidades, foram comuns as verbalizações de situações que durante suas vidas não facilitaram o exercício da participação. Como já mencionado, desde muito cedo eles foram conduzidos ao mercado de trabalho, assumiram responsabilidades que influenciaram em sua sociabilidade, desde a infância até a vida adulta. Quando adultos, além da luta pela sobrevivência que foi acontecendo mediante o enfrentamento de um mercado de trabalho concorrente e adverso, a rede de relações, muitas vezes restritas ao ambiente familiar ou ao trabalho, os afazeres domésticos, no caso das mulheres, entre outros, vão impondo limites ao exercício da participação. Assim, são experiências que se distinguem e que se situam em diferentes níveis e espaços de participação, implicando em diferentes formas participativas nos empreendimentos econômicos solidários. 5.2.2. A participação no empreendimento: significados e exercício de práticas democráticas A participação é um elemento indispensável para ampliar as formas de democracia em qualquer instância da sociedade. Nesse sentido, conforme Dagnino (2004a) e Wanderley (2000) é necessário ampliar a concepção de 203 democracia, incluindo outros aspectos que vão além da esfera políticoinstitucional. A idéia de democracia não deve se restringir ao regime político, mas compreendida como algo constitutivo da sociedade, por isso importante nas formas de sociabilidade e organização do trabalho, fundamental como modo de vida. A partir do trabalho, podem ser geradas práticas participativas e democráticas que sirvam para o exercício ampliado da democracia, nos espaços públicos. No caso dos empreendimentos econômicos solidários, por meio da participação, vai se exercitando a democracia direta em todo o cotidiano do trabalho que requer a socialização das informações, a partilha do poder, a decisão coletiva e o usufruto coletivo dos resultados da produção. Os entrevistados sentem-se partícipes de todo cotidiano do empreendimento, seja no sentido da sua presença física e da sua contribuição no processo de trabalho, seja dando sua opinião e compartilhando das decisões. Todavia, as formas de participação, no empreendimento e o exercício democrático se diferenciam. No UNIGRUPO, por exemplo, foram comuns as afirmações de que todos participam não só do processo de trabalho, mas também da gestão do empreendimento. Aqui todo mundo participa de tudo. Fazemos reuniões e conversamos sobre o que vamos fazer (Marta – UNIGRUPO). Aqui todo mundo participa de todas as etapas, desde a cor do tecido que vai comprar até o que foi conseguido com o resultado das vendas. (Renata – UNIGRUPO). Participo de tudo. Quando cheguei no grupo era muito calada. O que os outros dizia eu aceitava. Com o passar do tempo fui vendo que era importante participar. Hoje eu sei o que tá errado e o que tá certo e dou minha opinião (Carmélia – UNIGRUPO). Assim, a participação é exercitada nos momentos das reuniões, na definição da compra da matéria-prima e do produto a ser confeccionado, na socialização das informações e na distribuição dos seus resultados. Mostra a construção de um cotidiano de trabalho que vem permitindo o exercício de práticas democráticas que se revelam na tomada coletiva das decisões, na 204 possibilidade de expressar o que pensa e sente, na partilha do poder e no usufruto coletivo dos resultados do que produzem. Entretanto, nesse caso e em outros depoimentos, o sentido da participação está relacionado com a presença e envolvimento das pessoas no cotidiano do empreendimento, ainda não indica a possibilidade de inserção em outras lutas que possam ir além do ambiente de trabalho. Participar, pra mim, é se envolver é envolvimento. É você trabalhar se envolver com tudo o que tá ali naquele lugar (Marta – UNIGRUPO). É tá junto, é conversar, é dialogar, é saber o que tá acontecendo no grupo, é isso. Se você não participa você não sabe o que acontece. Então se a gente é um grupo a gente tem que aprender a participar, a conversar, a dialogar, se tem um problema tentar resolver. Eu acho que a gente tem que participar dessa forma (Rosa – Associação das Mulheres do Camarão). É se envolver no grupo, participar das decisões porque se você não participar das decisões você fica por fora. É se envolver (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Eu acho que é o dia-a-dia. O que adianta a gente ir para um aniversário, comer o doce da festa se você não bater os parabéns? Eu acho que participar é isso, é ver a vontade de todos e aí fulano o que aconteceu? A novela de ontem teve isso. Então isso é participar é tomar café junto aqui no dia-a-dia, é o fazer o almoço e chamar dois três deles e almoçar com eles. É o reclamar, é o acertar, é o conversar, é o tentar resolver, é tudo isso (Selma – CARE) No caso da Associação das Mulheres do Camarão, diante da peculiaridade de sua forma de atuação, a participação no empreendimento acontece principalmente nos seguintes momentos: nas reuniões, nos eventos, na utilização do galpão e do transporte que as conduz para as feiras. Segundo as entrevistadas, é no momento das reuniões, que se expressam, de forma mais clara, as manifestações de participação, demonstrando, assim, o exercício democrático, pois conforme aponta Gaiger (1999b), a tomada de decisão pelo conjunto dos associados, via instâncias diretivas livremente formadas e eleitas, garante a transparência das ações da direção e órgãos de fiscalização. Pra mim, é na reunião que eu mais participo, porque é lá que se discute tudo do grupo. O que vai ser feito, como usar o transporte, o dinheiro da 205 caixinha e outros. Lá eu digo o que sinto, escuto o que quero e não quero ouvir (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Sempre participo das reuniões. Se a gente quer saber alguma coisa tem que tá participando (Rosa – Associação das Mulheres do Camarão). Eu participo de tudo. Das reuniões, viagens, das decisões, dos trabalhos do galpão (Margarida – Associação das Mulheres do Camarão). Para Gaiger (1999b), a participação é também garantida pela regularidade e freqüência às reuniões, assembléias e consultas, com elevado grau de comparecimento e mobilização. No caso das mulheres do Camarão são essas instâncias os momentos mais expressivos da participação e do exercício democrático. A freqüência às reuniões e em eventos tem trazido, para algumas associadas, o entendimento da participação como a possibilidade de adquirir novos conhecimentos, quer interno ao grupo ou mediante convivência com outras pessoas, não pertencentes ao empreendimento. Portanto, para alguns, participar significa freqüentar mais as reuniões, porque a pessoa que freqüentar as reuniões aprende mais (Vânia – Associação das Mulheres do Camarão). eu não sei assim explicar não porque não tenho muito estudo, mas acho que participar é muito bom porque nas reuniões nós aprende com as colegas e com pessoas diferentes (Margarida – Associação das Mulheres do Camarão). Alguns cooperados da CARE, ao serem questionados sobre as formas de participação no empreendimento, relataram o seguinte: aqui eu participo de tudo, quando tem reunião, qualquer evento, eu não perco nada, nunca perdi. É difícil eu perder um dia de trabalho, venho doente para não perder. Tenho poucas faltas. Se tiver alguma falta é porque tava doente demais e não deu pra vim trabalhar (Manoel – CARE). participo, eu nunca falto. Participo sempre das reuniões. Fico ouvindo não falo, mas participo (Joana – CARE). 206 Nestes casos, a participação se relaciona à idéia da presença física em reuniões, eventos e em realizar as tarefas diárias. Ainda não significa tomar parte ativamente nas decisões e do planejamento das ações. Observa-se, que, em algumas verbalizações, entre os cooperados da CARE o exercício da participação e de práticas democráticas precisam quebrar a relação de dependência e subserviência, pois a política do mando e a subalternidade ainda estão presentes no cotidiano do trabalho: faço qualquer coisa que me manda (Rita – CARE). nós chega e pergunta o que a gente vai fazer (Manoel – CARE). Convém ressaltar que no caso dos cooperados da CARE, tanto as suas trajetórias de vida como também a própria forma como foi criado o empreendimento, por iniciativa muito mais de instituições externas do que mesmo dos próprios trabalhadores do lixão, tem trazido diversos reflexos ao cotidiano do trabalho, principalmente no que diz respeito ao entendimento do significado do trabalho coletivo autogestionário e nas dificuldades de internalização do sentimento de pertencimento ao grupo, conforme depoimentos: não sei bem o que é uma cooperativa (Rita – CARE). quando dá cinco horas todo mundo sai correndo, como se isso aqui não fosse deles (Manoel – CARE ). Todas essas circunstancias refletem diretamente no exercício da participação e de práticas democráticas no empreendimento. Conforme Pontual (2000, p.43), sem participação “a democracia vai-se esvaziando de conteúdo para amplos setores da população, sobretudo para os ´sem voz´ cuja carência de recursos materiais e culturais, na ausência de processos participativos, os condena a serem deserdados”. Para os cooperados da CARE, a participação é algo que está sendo exercitada ainda de forma embrionária, apesar de algumas verbalizações já apontarem para avanços nesse sentido. 207 Antes, quando eu dizia vai ter uma reunião em tal lugar, ninguém queria ir. Vai ter uma viagem para tal lugar todo mundo ficava com medo. Hoje não, eles fazem questão de ir (Selma – CARE). Antes eu não abria a boca, tinha vergonha de falar. Hoje, ainda falo pouco, mas eu já consigo dizer alguma coisa que penso (Margarete – CARE). Mesmo ainda se constituindo um grande desafio o exercício de práticas democráticas internas ao empreendimento, a inserção neste tem significado a possibilidade de participar de outros espaços da vida social, a chance de conviver com pessoas de diferentes camadas sociais. Essa idéia está sempre presente entre as respostas dadas pelas pessoas entrevistadas na CARE, ou seja, é significativa a importância que os cooperados dão hoje à mudança do ambiente de trabalho, à convivência com outras pessoas e à participação em eventos e reuniões, indicando um sentido de reconhecimento, enquanto cidadão. Quando entrei na cooperativa mudou muita coisa. Aqui, na cooperativa a gente tem mais conhecimento com as pessoa que vem lá de fora e lá no lixão não tinha. Vai pra reunião, tem reunião aqui, então eu acho assim que é uma mudança pra mim, que a gente não tinha esses contatos, não recebia visitas, e aqui nós temos (Margarete – CARE). A participação na cooperativa, no grupo e na associação, tem promovido, além da geração de renda, novos sentidos para as vidas das pessoas, neles inseridas. O exercício dos princípios e valores da economia solidária, ou seja, do trabalho coletivo autogestionário, tem contribuído para despertar a importância de participar de outros espaços societários, a exemplo das ações desenvolvidas pelas mulheres do UNIGRUPO e da Associação das Mulheres do Camarão: aqui, no grupo, eu aprendi que é importante participar de reuniões de outras áreas. Agora mesmo estou participando de reunião no Centro de Referência da Mulher que antes eu não ia (Carmélia – UNIGRUPO). eu sou da associação dos moradores, tem uns dois anos. Eu sempre gostei de participar, porque gosto muito de conversar, de falar, mas só comecei a participar da associação depois que eu já tava no grupo. Foi aí que eu achei que era importante participar das reuniões (Angélica – Associação das Mulheres do Camarão). A participação no empreendimento foi mostrando outras possibilidades no exercício da cidadania, de ser sujeito de direitos, de ser partícipe da sociedade. 208 Percebem-se algumas iniciativas e indícios no sentido de extrapolar o espaço de participação no locus do empreendimento. O depoimento, a seguir, já indica a idéia de que, pela participação, há a possibilidade de construção de uma sociedade diferente, a partir da luta cotidiana em diversas instâncias sociais: participar é saber que você tem um espaço na sociedade e que você tem que ocupar aquele lugar e, partindo dali, contribuir para mudar algo. Eu acho que participar é participar mesmo. É dá a sua contribuição não importa de que maneira seja. Não importa que seja na associação de moradores, fazendo alguma coisa, ou mesmo emendando lençol, mas você tem que fazer algo, você tem que participar na sociedade fazendo alguma coisa. Porque se viver dentro de uma comunidade vendo as coisas que estão acontecendo, vendo os problemas, se trancando na sua própria casa sem fazer nada e depois ter a ousadia de dizer que é cidadão, só porque vota? A gente tem que passar a nossa vida com o intuito de fazer algo, não importa o que seja, mas deixar o seu nome gravado em alguma coisa concreta que você fez para mudar, pra contribuir (Renata – UNIGRUPO). Outro significado importante que a vivência no empreendimento vem trazendo para a vida dos cooperados/associados está relacionado com as mudanças que estão ocorrendo entre as mulheres do UNIGRUPO. O depoimento abaixo mostra como algumas delas, que tinham como horizonte apenas o mundo privado, a casa, marido, filhos, começam a despertar para a vida social, dando-lhe outro sentido. Ressignificam o sentido de viver, a vontade de construir outro mundo diferente daquele vivido até então. Muitas dessas mulheres constroem uma nova identidade e, como diz Wanderley (2000, p.102), que “irrompe de práticas em que elas se descobrem como pessoas e cidadãs”. A minha vida era cuidar dos filhos da casa, do marido. Não tinha mais ânimo e alegria para fazer as coisas como tenho agora. Agora é diferente. Agora eu sinto alegria, tô vivendo, porque eu me sentia como se tivesse morta. Agora não, agora eu tô vivendo. Aqui a minha vida mudou. Eu quero ver outras coisas (Carmélia – UNIGRUPO). Voltei a estudar, não comecei antes porque meu marido é um pouco machista. Ele dizia: pra que estudar, vá tomar conta dos filhos, essas coisas. Ele não queria, mas eu fui. Perdi muito tempo e o povo dizia não aprende mais por causa da idade. Aí descobrir que em qualquer idade a pessoa aprende, é só querer (Regina – UNIGRUPO). Os outros depoimentos mostram o significado do grupo no sentido de contribuir para estimular mudanças importantes na convivência coletiva, para a socialização das pessoas. Essa situação foi bastante evidenciada nos relatos dos 209 cooperados da CARE. Para estes, participar do empreendimento tem suscitado a construção de outros sentidos em suas vidas, representando uma forma de se valorizarem como sujeitos, como cidadãos e a oportunidade de serem reconhecidos socialmente: quem poderia imaginar que um catador de lixo da Terra Dura pudesse chegar em Brasília! Foram cinco, ficamos em hotel cinco estrelas, com direito a tour turístico e almoçamos no melhor restaurante que tinha em Brasília (Selma – CARE). a gente nunca passou na televisão, filmagem, e tudo isso hoje a gente tem, passeios e outras coisas (Margarete – CARE). Esse sentimento de valorização pessoal, do reconhecimento por parte da sociedade do seu papel como trabalhador, é também acompanhado por marcas do preconceito que sofriam por ocasião do trabalho desenvolvido no lixão, expresso na própria fala de Selma: quando a gente tava no lixão, a gente comprava no mercadinho e o pessoal torcia a cara, eles tinham nojo de pegar no dinheiro da gente, porque vinha do lixo, vinha com mau cheiro (Selma – CARE). Um dos desafios da participação é a construção de um sentimento de pertencimento que possibilite homens e mulheres se reconhecerem como cidadãos. Como diz Telles (1994, p. 46) “é impossível fazer dos direitos referências que estruturem identidades cidadãs numa sociedade que destitui por todos os lados cada um e todos de um lugar de reconhecimento”. Nesse sentido, a participação em todas as suas dimensões e expressões, constitui-se como uma estratégia importante no caminho para uma cultura cidadã, passando por um processo contínuo e permanente de aprendizados, de superação de desafios e o estabelecimento de estratégias, com vistas a mudanças nas formas de percepção e de visão de mundo. No caso dos cooperados/associados, o reconhecimento da importância da participação e a sua ampliação para outros âmbitos da vida social, estão sendo construídos ao longo das suas trajetórias de vida. A vivência do trabalho coletivo, nos empreendimentos, está despertando, de maneira diferenciada, a necessidade de envolvimento dos cooperados/associados não somente no cotidiano do 210 trabalho, mas também em outras instâncias societárias. Essa diferenciação é visível nos diversos sentidos e significados apontados pelos entrevistados, que vão desde a compreensão de que participar é estar presente fisicamente, não perdendo uma reunião, mesmo que não manifeste a sua opinião, ao envolvimento direto no cotidiano do trabalho, na tomada de decisões, até a compreensão da participação como possibilidade de luta na conquista de direitos. O que se percebe de comum para todos eles, apesar de se enfrentar alguns desafios, principalmente no exercício cotidiano dos valores e princípios que servem de referência para a economia solidária, é que a participação na cooperativa, grupo ou associação tem trazido significados importantes para a vida dos cooperados/associados. A vivência no empreendimento tem dado novos sentidos às suas vidas, mesmo que muitas vezes, como é o caso dos cooperados da CARE, ainda não se tenha a clareza necessária de que as mudanças por eles apontadas signifiquem pequenos indícios de exercício da cidadania. Trata-se de um processo gradual de mudanças, tendo em vista, conforme Dagnino (2004a) e Chauí (2000), o perfil da sociedade brasileira centrado em relações sociais autoritárias, hierárquicas e verticais que têm como base o favor, o clientelismo e a tutela. Conforme Pontual (2000), a criação de novas formas de participação popular enfrenta uma arraigada cultura política elitista e autoritária que não se transforma da noite para o dia. Há uma lógica, historicamente predominante, na relação da população com o Estado, impregnada da apatia, clientelismo, submissão, populismo, cooptação e outros tantos efeitos perversos desta herança cultural (PONTUAL, 2000, p. 56). Essa situação se reflete nos níveis de percepção da participação dos entrevistados que nasceram e vivem na realidade de uma formação social com essas características. Reflete também a história dessas pessoas, suas trajetórias, formas de inserção na vida social, no trabalho, na rede de relações que estabelecem. A ampliação desses níveis de percepção e o exercício da participação vão exigir, entre outros, conforme aponta Dagnino (2002), o desenvolvimento de um processo de qualificação técnica e política, tendo em vista uma participação efetiva na sociedade. Dessa forma, 211 a abertura de novas formas e canais de participação requer uma prática pedagógica explicita capaz de orientar o necessário processo de mudança de atitudes, valores, mentalidades, comportamentos, procedimentos, tanto de parte da população como daqueles que estão no interior do aparelho de estatal (PONTUAL, 2000, p. 56). A inserção no empreendimento, a participação em seu cotidiano e o enfrentamento de seus desafios foram despertando os cooperados/associados no sentido de ampliar os níveis de participação na vida social, criar novas formas de sociabilidade, não somente por meio do trabalho, mas também tendo no processo de formação um aliado importante. 5.2.3. Participação e a formação técnica, política e pessoal A formação entendida como um processo educativo, desenvolvido por meio da atividade de incubação, tem como propósito contribuir no sentido de estimular os cooperados/associados para o exercício de práticas participativas, seja no interior do empreendimento, seja em outras instâncias da vida social em direção à luta, conquista e à garantia de direitos. Por meio da participação é possível como nos diz Paz (2002), a formação do ser humano, tanto do ponto de vista pessoal, como social, cívico e democrático. 5.2.3.1. A participação e o aprendizado na dimensão técnica A atividade de incubação, dentro da sua função educativa, envolve a formação técnica dos cooperados/associados, o que possibilita a aquisição, aperfeiçoamento e troca de conhecimentos necessários ao desenvolvimento dos processos de trabalho, gestão e administração do empreendimento. No que diz respeito à qualificação técnica, os entrevistados indicaram que esta tem sido fundamental para o aprimoramento de conhecimentos, no manuseio de equipamentos, antes desconhecidos. Tal qualificação tem sido fundamental para 212 o desenvolvimento da produção e na superação de dificuldades e desafios que se apresentavam no cotidiano do trabalho, conforme depoimentos a seguir: eu não sabia costurar calcinha e quando fui para o grupo aprendi a fazer blusa, vestido, tudo em malha, então cresci. Aprendi muita coisa. Como comercializar que eu não sabia, como saber o preço dos produtos, como vender (Marta – UNIGRUPO). aqui eu aprendi muito. Na parte das máquinas. Eu nunca tinha pegado em uma máquina industrial. Eu tinha até medo de pegar nas máquinas, tinha hora que eu tremia de nervoso. E hoje não tenho nenhum. Já tenho intimidade com a máquina, já domino ela (Regina – UNIGRUPO). A participação nos cursos tem contribuído para um aprendizado de processos produtivos, até então não vivenciados, refletindo na assimilação não só de novas formas de produzir, mas também de enfrentamento de situações que, de início, pareciam difíceis de serem superadas. É o “aprender fazendo”, na troca de experiências, no cotidiano do trabalho. Esse aprendizado passa também pela importância de cuidar do ambiente e da segurança no trabalho, pela melhoria da qualidade do produto e atendimento ao cliente, conforme depoimentos: aprendi sobre o uso dos equipamentos de proteção, a importância de conservar limpo o ambiente de trabalho, a prevenção de incêndio (Manoel – CARE). com os cursos eu aprendi que a costura tem que ser bem feita (Carmélia – CARE). nos cursos, eu vi como é importante atender bem o freguês (Rosa – Associação das Mulheres do Camarão). A formação também envolveu o aprendizado de processos administrativos e gerenciais, importantes para o funcionamento do empreendimento: aprendi o que é uma cooperativa, como funciona, que eu não sabia, não tinha idéia (Regina – UNIGRUPO). aprendi o que é cooperativismo, como fazer um estatuto, a usar mais o estatuto nas decisões, como fazer uma reunião, direitos e deveres dos cooperados (Selma – CARE). 213 O desafio de compreender o significado do trabalho coletivo autogerido, as suas peculiaridades, as formas em que ele se apresenta, os instrumentos gerenciais que lhe dão centralidade, passam a fazer parte de rotinas, de um outro mundo diferente do que estavam acostumados a vivenciar. Aprendi a importância da união, o que é cooperar, cooperação, ter compromisso, trabalhar em grupo, porque cooperativismo não é uma pessoa só, é um grupo, é a gente está unido, em comum acordo com todo mundo (Carmélia – UNIGRUPO). Aprendi nos cursos que é muito importante a união no grupo, que o grupo tem que ter união, tem que ter estrutura, porque sem isso o grupo desestabiliza (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Teve uma vez em um curso, lá na universidade, que a professora aplicou uma dinâmica da ilha e que várias pessoas diante das dificuldades iam desistindo. É como se formar um grupo, uma cooperativa, uma associação, um tem que ajudar uns aos outros, aí se um for saindo vai acabar (Angélica – Associação das Mulheres do Camarão). União, cooperação, trabalho em grupo e o sentimento de pertencimento são elementos presentes nos depoimentos e que retratam a absorção de aspectos importantes do trabalho coletivo autogerido. Isso não se dar de forma comum entre os entrevistados, pois ainda necessita percorrer um longo caminho, tendo em vista, principalmente, a vivência de uma cultura individualista e os desafios e dificuldades no sentido de trabalhar sob uma nova forma que exige a partilha, a socialização de informações, a repartição coletiva dos bens e serviços produzidos. Entretanto, vê-se, claramente, que a formação está contribuindo no sentido de despertar, junto aos cooperados/associados, que a qualificação técnica exige o aprendizado de aspectos do processo produtivo, mas, ao mesmo tempo, elementos organizacionais que vão marcar o diferencial da gestão do empreendimento. 214 5.2.3.2. A participação e o aprendizado na dimensão político-social Os entrevistados, em seus depoimentos, revelam que o processo de formação, desenvolvido por meio da atividade de incubação, tem contribuído para ampliar, mesmo em alguns casos ainda de maneira embrionária, como pode ser observado junto aos cooperados da CARE, a compreensão do movimento da sociedade, a observar mais o que ocorre ao seu redor, a entender o seu lugar social, ampliar a visão de mundo e lutar pela conquista de seus direitos. Com os cursos, aprendi a entender melhor os meus direitos. Hoje se eu entrar em qualquer associação, eu sei quais os meus direitos, sei conversar, eu sei correr atrás. Então eu acho que isso foi muito importante (Angélica – Associação das Mulheres do Camarão). Aprendi muita coisa aqui. (...) Aprendi convivendo com as meninas, com as assistentes sociais que me ajudaram muito, a brigar por aquilo, eu já brigava mas de uma outra forma, elas me mostraram outros caminhos que podia seguir. Porque antigamente eu brigava, mas brigava de uma forma errada. Hoje em dia eu sei brigar de uma maneira diferente. Isso elas me ajudaram. Brigar dentro dos meus direitos, brigar dizendo para aqueles que acham que eu vou procurar, que eu acho que tem um pouquinho mais de conhecimento que eu, fazer eles entender que apesar da minha pequenez, apesar de eu ser de outra faixa da sociedade, ele tem que me respeitar pelo que eu sou, porque aquele é o meu direito, eu não tô fazendo nada mais do que reivindicar uma coisa que é minha, que é direito meu adquirido (...) Antigamente eu brigava, mas me exasperava, hoje não, hoje é dentro mais de uma linha de direitos (Renata – UNIGRUPO). Hoje vejo as coisas diferentes. Antes mesmo, pra mim jornal era uma coisa sem importância, só gostava de novela. Hoje faço questão de assistir jornal para ficar informada (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Com os cursos você aprende a ficar alerta (Manoel – CARE). Os depoimentos revelam, lembrando Gutiérrez (2001), que a participação quando acontece, é necessariamente educativa, na medida em que propicia a ampliação da visão do mundo e ações concretas que transformem a realidade em que se vive. Amplia-se, assim, a consciência “do direito a ter direito” Telles (2004), Dagnino (2002/2004). Direitos estes que se tornam melhor conhecidos pelos entrevistados com o processo de formação, possibilitando-lhes expressar suas opiniões e, conseqüentemente, desencadear ações efetivas na conquista de objetivos e ampliar a participação social e política. 215 Os conteúdos abordados no processo de formação e assimilados pelos cooperados/asssociados, expressos em suas falas, indicam que, por meio da atividade de incubação, tem sido possível contribuir para mudanças de atitudes e comportamentos importantes, para o aprendizado e exercício de práticas participativas, possibilitando-lhes saírem do anonimato e expressarem suas posições. Conforme Dagnino (2002) à medida que novos sujeitos se constituem, criam-se novas sociabilidades, um desenho mais igualitário das relações sociais. Os depoimentos abaixo revelem bem essa afirmação. Os cursos me ajudaram a dizer o que penso, o que eu quero (Marta – UNIGRUPO). Eu aprendi que a gente tem que falar o que a gente sente, o que a gente acha, a gente nunca pode deixar pra depois o que pode ser agora, porque a gente se arrepende (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Participando dos cursos, me ajudou a falar mais, a não ter vergonha de perguntar (Margarete – CARE). A partir do momento que a professora Daisy começou a se reunir com a gente, o grupo começou a falar mais, porque ela pedia para todo mundo expor sua opinião. Tinha gente que entrava e saia da reunião calada e hoje não, todo mundo fala (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Falar, expressar opiniões, “dizer o que pensa” é avançar em direção à participação social e política, na medida em que se compõem novas sociabilidades não só no interior do empreendimento, mas também em outras dimensões sociais vividas cotidianamente pelos entrevistados. Um dia fui no posto de saúde marcar um exame. Não tinha vaga. Voltei mais três vez e a resposta era a mesma. Uma vez quando saí de lá encontrei um vereador e disse a ele: olhe eu não sei pra que tem esse posto de saúde aqui se não serve pra nada. Veja isso, porque se não vou ligar pra rádio e denunciar. Imagine se eu nunca tive coragem de dizer isso! E hoje eu tenho, e foi depois que eu entrei no grupo (Carmélia – UNIGRUPO). Esse é um processo de conquista (DEMO, 1996b) que vai se desenhando no cotidiano, não somente por meio da ocupação de novos espaços de 216 participação, mas pela formação de sujeitos sociais que participem efetivamente deles demarcando sua presença na vida social e política, na efetividade da sua condição de cidadão. Como diz Paz, a função educativa e formadora da participação é fundamental no processo de constituição de uma cultura política. Práticas educativas de participação são um espaço para a emergência, difusão, aquisição e consolidação de novos valores, posturas éticas e democráticas, que mexem profundamente com a tradição política brasileira antidemocrática, autoritária e individualista (PAZ, 2002, p. 46). Nesse sentido, a vivência da participação em grupos, os movimentos sociais, cooperativas, associações, sindicatos, possibilitam aos indivíduos o agir coletivo, muitas vezes, inicialmente, movidos pelos interesses individuais, mas que vão, aos poucos, na interação com outros sujeitos, aprendendo a compartilhar o sentido coletivo e a identificar posições, defender suas idéias, propor soluções que envolvem não somente os seus problemas imediatos, mas também os interesses da coletividade. Apesar de acontecer de várias formas e em diferentes níveis, a participação no cotidiano do empreendimento, aliada ao processo de formação por meio das atividades desenvolvidas pela equipe da incubadora/UFS, vem possibilitando aos cooperados/associados, enquanto sujeitos, extrapolar a dimensão do trabalho, visualizando que outras dimensões da vida social são espaços fundamentais a serem ocupados, de forma a construir uma cultura solidária, participativa e cidadã. 5.2.3.3. A participação e o aprendizado na dimensão pessoal O processo de formação tem contribuído para mudanças substantivas na maneira de ser e agir das pessoas entrevistadas, indo além do seu sentido técnico e político, pois envolve aspectos relacionados com a sua valorização enquanto ser humano. Os depoimentos, abaixo são reveladores do significado que tem sido o processo de formação, por meio da atividade de incubação, para as vidas de alguns cooperados/associados. 217 Eu vou dizer o que eu senti naquele seminário. O que eu senti eu vou definir no que uma colega minha me disse. Ela olhou pra mim e me disse: puxa vida, eu estou aqui mesmo? No meio dessa gente toda. Pra uma de nós é esse sentido que tem. A gente nunca imaginava que a gente ia poder um dia, mulheres, nessa faixa de idade, desempregada, semi-analfabeta, sem nenhuma possibilidade de crescer na vida, que pudesse ter tanta oportunidade, às vezes é tão estranho isso que a gente chega a se sentir é como se tivesse fora da realidade pra gente. (...) A gente tá ali e pensa será que é isso mesmo? Ou é um sonho? É bem o que ela diz eu achei muito engraçado o que ela disse: será que estou aqui mesmo? No meio dessa gente toda? Isso é real? Aí eu disse, é real, é muito real. Eu nem acredito (Renata – UNIGRUPO). Esse tempo que vivo nesse grupo, esse aprendizado, me ensinou muita coisa. Me ensinou como eu conviver no meio de um grupo e viver numa vida pessoal (Camila – Associação das Mulheres do Camarão). Para essas pessoas que não tiveram a oportunidade de participar de cursos, seminários e reuniões, a vivência, nesses espaços, chega a significar algo irrealizável, inalcançável, um sonho. Viver essa experiência tem trazido significados para as suas vidas que extrapolam a geração de renda. Além desse sentimento de valorização pessoal, o depoimento a seguir mostra quanto a convivência no empreendimento tem sido importante para quebrar barreiras, incentivar a tomada de decisões e o enfrentamento de situações jamais imaginadas. No cotidiano de trabalho, tendo em vista a necessidade de partilhar as tarefas, vai se delineando a necessidade de outros aprendizados que vão contribuir para o crescimento pessoal. Aprendi a me expressar, a não ficar com medo Quando entrei aqui, as meninas disseram que eu ia ser a tesoureira. Meu Deus, o que eu faço? Eu nunca entrei em um banco sozinha, quando entrava no banco tinha pavor, ficava gelada. No dia que era para depositar o aluguel da cooperativa, a minha colega disse: você vai e eu disse não. Como ela não estava eu tive que ir. Quando entrei no banco, fiquei gelada, eu tava me tremendo. Agora não, eu entro no banco, pago as contas sem medo (Carmélia – UNIGRUPO). A participação no processo de formação e a troca de experiências no cotidiano do trabalho foram revelando, para algumas entrevistadas, a possibilidade de superar e ultrapassar a rotina doméstica, bem como foi indicando sinais de que era possível construir outras possibilidades de crescimento, a busca da liberdade, até então, tolhida pela vivência no mundo privado. Esses 218 aprendizados são caminhos importantes para ampliação da participação social e política. Hoje depois que eu entrei no grupo é que vi que é diferente. Tenho me sentido livre. Tirei as algemas das minhas mãos. No grupo e nos cursos eu conheci muita gente. Um dia eu saí de casa para fazer um curso e disse pra minha filha: já pensou eu o dia todo fora de casa fazendo um curso? Pra mim eu tava liberta. Hoje me sinto realizada. A vida que eu tinha como doméstica era muito pequena. O grupo me fez crescer. Me tirou da rotina (Carmélia – UNIGRUPO). A formação tem proporcionado um aprendizado, pelo menos, nas dimensões técnica, político-social e pessoal e que se inter-relacionam todo o tempo. À medida que os entrevistados têm acesso ao conhecimento técnico, já vão sendo despertados para a ampliação da sua visão de mundo, como também é gerado um sentimento de valorização pessoal, tendo em vista a inserção no empreendimento e a oportunidade de experimentarem outros momentos, não apenas aqueles relacionados ao seu mundo privado ou ao cotidiano do trabalho. Dos relatos dos cooperados/associados participantes desta pesquisa, é possível afirmar que, por meio da economia solidária, novas vivências, experiências e trajetórias vêm sendo traçadas nas vidas daqueles que fazem parte dos empreendimentos. Apesar de ser, para a maioria, uma experiência nova que requer o aprendizado e/ou o reforço de valores e princípios diferentes do que normalmente vivenciavam em suas vidas pessoais e nas atividades laborativas antes da inserção no empreendimento, a vivência do trabalho coletivo autogerido tem trazido uma gama de significados importantes para as suas vidas. A inserção nos empreendimentos vem revelando particularidades e desafios, diante da necessidade de enfrentar a cultura individualista, em detrimento à construção de uma cultura solidária e participativa; do exercício cotidiano de um trabalho que requer partilha, cooperação, a vivência em grupo; de uma realidade que se descortina em cada gesto e decisão. Ao mesmo tempo, significa a oportunidade de crescimento pessoal e a ampliação da visão de mundo, mesmo que, em alguns casos, ainda incipiente, no sentido de compreender a importância de envolvimento em outras instâncias participativas na busca e construção de uma sociedade democrática e justa. 219 Nesse sentido, a economia solidária vai além da possibilidade de gerar renda. Envolve uma gama de questões que estão presentes nas mudanças de atitudes e comportamentos, sentimentos e significados revelados nos depoimentos dos cooperados/associados. É notório um processo de constituição de sujeitos coletivos que passam a se apropriar de novos conhecimentos, passam a estabelecer um processo de troca diária com outras pessoas, despertando suas potencialidades. Os relatos mostram que, por meio do trabalho coletivo autogerido, é possível a ampliação de espaços participativos em diferentes dimensões da vida social, mas também ficou evidenciado que essa possibilidade tem relação direta com as trajetórias de vida dessas pessoas, com as formas de inserção na vida social, com o tipo de sociabilidade estabelecida, antes e durante a inserção na cooperativa/associação/grupo. Portanto, é essa trilogia, ou seja, as vivências pessoais e laborativas anteriores dos cooperados/associados, as vivências do trabalho coletivo nos empreendimentos econômicos solidários e a formação continuada, que permitem afirmar que, por intermédio da economia solidária, é possível o exercício de processos empreendimento ou em outras instâncias da vida social. participativos, seja no 220 CONSIDERAÇÕES FINAIS “O ser humano pode mudar o curso da história, que pode ser diferente daquela que ele começou. Eu não vou parar de lutar e de sonhar. (...) eu não acredito que seja proibido sonhar, nem proibido querer mudar de vida. Quando a gente desiste de um sonho, a gente morre junto com ele” (Renata – UNIGRUPO). É notório o processo de mudanças ocorrido no mundo do trabalho, com reflexos diretos na base produtiva e organizativa das empresas, na divisão internacional do trabalho, nos elevados índices de desemprego, na ocupação de postos de trabalho precários e temporários, na insegurança no trabalho, entre outros. Esse cenário tem levado muitos trabalhadores a buscarem outras formas de sobrevivência e de trabalho, propiciando a proliferação e (re)surgimento de iniciativas produtivas, dentre elas a economia solidária, como forma de garantir a geração de trabalho e renda. Esta investigação teve como preocupação analisar a economia solidária não só enquanto uma possibilidade de gerar trabalho e renda, mas também de exercício da participação, tendo-se como referência as vivências pessoais e profissionais anteriores dos cooperados/associados, as vivências do trabalho coletivo nos empreendimentos econômicos solidários, incluindo-se também a formação continuada. Um primeiro ponto a ser considerado é que o desenvolvimento de atividades produtivas vinculadas à economia solidária tem propiciado a geração de trabalho e renda para os grupos pesquisados, apesar de que os resultados financeiros ainda têm sido limitados e variam de acordo com o tipo de atividade desenvolvida e o tempo de existência do empreendimento. A CARE, por exemplo, tem conseguido assegurar uma retirada equivalente a pelo menos um salário 221 mínimo por mês aos seus cooperados, enquanto que o UNIGRUPO e a Associação das Mulheres do Camarão dependem, ainda, das demandas apresentadas pelo mercado consumidor e neste último caso da sazonalidade do produto em períodos de defeso do camarão. Nestes empreendimentos, a renda auferida varia entre meio a um salário mínimo. Apesar de ainda insuficiente peso econômico destes empreendimentos na geração de renda dos cooperados/associados, diante da realidade em que se encontram, os rendimentos auferidos têm auxiliado na sobrevivência dessas famílias, além do que, segundo os próprios entrevistados, individualmente teriam mais dificuldade para montar seu próprio negócio, conseguir crédito, adquirir equipamentos e agregar um maior valor a sua produção. Conforme aponta Gaiger é preciso, no caso dos empreendimentos econômicos solidários, que a questão da sustentabilidade e eficácia seja pensada de forma diferente da empresa capitalista. Nesta, o trabalho serve como um instrumento para gerar lucro para poucos, enquanto que na economia solidária a idéia de viabilidade e eficácia deve trazer resultados econômicos que beneficie a todos, já que os trabalhadores são os sujeitos dos empreendimentos, devendo ter em seu cerne a preocupação com o meio ambiente. Dessa forma, sem desconsiderar a importância da viabilidade e sustentabilidade dos empreendimentos, fundamental para aqueles que neles estão envolvidos, é preciso observar, como revela o próprio cotidiano e os relatos dos entrevistados, que a experiência vivenciada vai além da geração de renda, indicando, como diz Coraggio (2000), “uma reprodução ampliada da vida” por intermédio do trabalho associado, cooperativo e autogerido. Tais experiências podem ainda não fornecer os resultados financeiros desejados para aqueles que estão inseridos nos empreendimentos, mas têm contribuído para a formação de novos cidadãos e de mudanças importantes nas vidas dessas pessoas. Essa indicação foi todo tempo confirmada nos depoimentos dos entrevistados desta pesquisa. Eles revelaram o crescimento pessoal, a ampliação da rede de relações sociais, o estabelecimento de vínculos e laços de amizade, a melhoria na capacidade de comunicação pessoal e nas relações interpessoais, o desenvolvimento de novas atitudes e comportamentos, a valorização da condição 222 de mulher, a ampliação de conhecimentos e o entendimento do que está acontecendo ao seu redor. A vivência nos empreendimentos foi revelando também outros aspectos como: o enfrentamento da cultura individualista, presente na forma de pensar e agir; a necessidade de compreender o sentido do trabalho coletivo autogestionário; o enfrentamento de rotinas e procedimentos diferenciados daqueles que vivenciaram anteriormente; o estabelecimento de novas relações no exercício cotidiano do trabalho; os desafios de trabalhar de forma grupal compartilhando e socializando decisões e o poder. As trajetórias pessoais dos entrevistados mostram que o trabalho sempre permeou todos os momentos de suas vidas, desde a infância até a idade adulta. Isso foi sendo gradativamente reforçado pela necessidade econômica de complemento da renda familiar das suas famílias residentes no campo ou na cidade. A migração para a cidade, a falta de escolaridade, as exigências que foram se acentuando cada vez mais no mercado de trabalho, o desemprego, a inserção em trabalhos precários, temporários e degradantes, a diversidade de experiências laborativas, foram marcando a luta pela sobrevivência dos entrevistados. A inserção nos empreendimentos econômicos solidários vai ocorrendo mediante a vivência dessas dificuldades, seja como uma forma de melhoria das condições de trabalho em alguma atividade já desenvolvida, seja para voltar ao mundo da produção diante do desemprego. A participação em outras instâncias da vida social sempre apareceu nos relatos dos entrevistados como algo secundário. Movidos pela necessidade de trabalhar para o sustento das suas famílias, o envolvimento em outras atividades que não fossem aquelas de caráter doméstico ou relacionadas com o desenvolvimento de atividades laborativas, não tinham expressão significativa nas suas vidas. Quando isso acontecia, percebiam-se algumas mudanças no comportamento dessas pessoas, na forma de entender o mundo em que vive, de enfrentar a luta pelos seus direitos. Entretanto, as formas de participação se diferenciam de grupo para grupo e de pessoa para pessoa e tem relação com as suas trajetórias, com a sociabilidade, com as oportunidades que nunca tiveram do exercício da cidadania. 223 Nos empreendimentos, em virtude da própria natureza do trabalho que exige o envolvimento de todos aqueles neles estão inseridos, os cooperados/associados têm exercitado a participação em alguns momentos, consideradas as peculiaridades de cada um deles. A vivência, no empreendimento, tem auxiliado, mesmo em alguns casos, ainda timidamente, a ampliação dos espaços de participação dessas pessoas e também o entendimento do sentido e significado de participar. Ainda é uma mudança muito lenta e ela tem aparecido com mais ênfase junto àqueles que já tinham experimentado algum tipo de participação em outras instâncias societárias. Tem sido um aprendizado o fato de poderem falar, expressarem os seus sentimentos ainda que muitas vezes de forma tímida, ou então pelo silêncio ou pela presença física. Essas experiências vivenciadas pelos cooperados/associados apresentamse como um momento de aprendizado na perspectiva da autogestão. Na CARE, esse caminho vem sendo construído de forma lenta, pois ainda há muita dificuldade de assimilação do sentido do trabalho autogerido. No UNIGRUPO, já se observa uma maior clareza sobre os aspectos fundantes da economia solidária e maiores indícios do exercício autogestionário revelados, principalmente, por meio de práticas democráticas, divisão de tarefas, socialização das informações, entre outros. Na Associação das Mulheres do Camarão, em virtude da especificidade híbrida do seu funcionamento, o processo autogestionário, além de exigir o aprendizado de outros momentos coletivos, precisa ser exercitado na tomada de decisões por parte das próprias associadas na relação estabelecida com a AEDIULS, que originalmente auxiliou na sua criação. Apesar do pouco tempo que os cooperados/associados estão inseridos nas atividades de incubação, a formação nas dimensões técnica, político-social e pessoal aparece nos depoimentos dos entrevistados como fator importante que tem contribuído para melhorar o entendimento do que é um empreendimento econômico solidário; o sentido do trabalho coletivo autogestionário; o conhecimento de novos processos de trabalho; o despertar de sentimentos de valorização pessoal e profissional; a ampliação da visão de mundo; o acesso a conhecimentos e informações que têm ajudado a qualificar sua participação em 224 outras instâncias da vida social. Tem sido uma oportunidade de troca de saberes e experiências. Portanto, a pesquisa revela e confirma as idéias inicialmente pensadas nesta investigação, ou seja, por meio da economia solidária, materializada nos três empreendimentos aqui pesquisados, é possível não somente gerar trabalho e renda, mas também estimular o exercício de processos participativos, seja no empreendimento ou em outras instâncias da vida social. Os dados indicam que a formação, por meio da atividade de incubação, tem sido fundamental para auxiliar no entendimento não só do significado do trabalho coletivo autogerido, bem como para ampliar a visão de mundo e exercício da cidadania. Mostram ainda a importância de considerar em todo esse processo as trajetórias pessoais dos cooperados/associados, as formas de inserção na vida social, as sociabilidades estabelecidas antes e durante a vivência na cooperativa/associação/grupo para compreender o exercício e ampliação dos espaços de participação dentro e fora do empreendimento. As experiências aqui pesquisadas apontam para a importância e necessidade de se construir uma outra cultura para se gestar e difundir os valores da economia solidária. Uma cultura solidária conforme Salles Oliveira (2005/2006); uma nova cultura do trabalho, como diz Tiriba (2001) e Coraggio (2000) ou ainda uma cultura cooperativista como aponta Singer (2000) ou quem sabe como diz Lechat (2001), não se trate de criar uma nova cultura, mas, por meio do diálogo com pessoas desejosas de transformação, estimular e reavivar traços à luz de uma proposta chamada de economia solidária. Não há duvida de que, num ambiente cultural que valoriza a liberdade e a individualidade, as diferenças sociais, culturais, de gênero e também outras são aguçadas e devem ser respeitadas, e isso traz novos desafios para a autogestão, a equidade e a solidariedade, valores colocados como requisitos (LECHAT, 2001, p.98). São, portanto, inúmeros os desafios presentes na construção de um trabalho que tenha como objetivo a autogestão. Entretanto, são esses desafios que movem o desejo de construir outra sociedade diferente da que vivemos. Nesse sentido, o exercício cotidiano do trabalho coletivo autogerido é um espaço fundamental para a construção de idéias e valores que permitam transformar comportamentos, atitudes e práticas dos sujeitos sociais, em nível pessoal e 225 coletivo, que possam dar uma nova direção às formas de produção e a socialização dos seus resultados. Por meio da economia solidária, acredito ser possível sonhar e desejar uma sociedade alternativa e diferente da que vivemos hoje. Uma sociedade justa, igualitária, solidária e ecologicamente saudável, sem opressão e exploração. Essa é uma tarefa de todos aqueles que estão envolvidos nesse campo e que acreditam na construção de “um outro mundo possível”, “pois afinal o que interessa é a demonstração de que não se pode concordar com a realidade e que se tem de buscar algum outro ideal” (SZACHI, 1972, p.130). Para tanto, é necessário que os empreendimentos sejam, cada vez mais, consolidados, que as práticas democráticas sejam reforçadas no interior dos empreendimentos e que auxiliem a extrapolar a dimensão do trabalho, para a participação social e política. Trata-se, no entanto, de um processo complexo que exige o enfrentamento de desafios que são postos no cotidiano das experiências vinculadas à economia solidária, sobretudo, se consideradas as peculiaridades da formação sócio-histórica da sociedade brasileira, o seu lastro de dependência e subordinação e o reforço de uma cultura individualista. A complexidade que envolve a economia solidária indica para a importância deste tema nos estudos acadêmicos e para a necessidade de que novas pesquisas sejam realizadas. Várias questões continuam em aberto, visto que é um tema em permanente construção que requer aprofundamentos em diferentes aspectos. Além disso, para o Serviço Social, é uma temática já presente em sua produção acadêmica e campo de intervenção profissional, mas que merece o desenvolvimento e aprofundamento de outros estudos e pesquisas para que possam compreender melhor sua diversidade, suas peculiaridades e desafios. 226 BIBLIOGRAFIA ABREU, Clotildes de Oliveira; SOUZA, Lidiane Costa. COOPERTALSE: uma alternativa de geração de trabalho e renda. Monografia (Graduação em Serviço Social), Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/SE, 2000. ALVES, Maria Magdalena. Trabalhador/empresário, empresário/trabalhador: um cotidiano construído passo a passo – estudo crítico de uma organização produtiva sediada em Birigui/SP. Tese (doutorado em Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001. AMMANN, Safira Bezerra. Participação Social. São Paulo: Cortez Moraes, 1978. _______________. 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Quando você não está no empreendimento o que faz? Em casa, lazer, vida comunitária, relações de parentesco, vizinhança, participação em grupos fora da comunidade etc. 5. Como você pensa a sua vida para o futuro no EES e fora dele? Roteiro para as entrevistas – fase 2 1. Fale sobre sua vida antes do empreendimento (família, trabalho, vida social, participação comunitária, lazer, vizinhança, etc.). 2. Relate as razões que o(a) motivaram a participar do EES (cooperativa, associação e grupo). 3. Fale do seu dia-a-dia de trabalho no empreendimento – divisão de tarefas, cooperação no trabalho, socialização e repasse das informações, relações de solidariedade, vínculos pessoais e profissionais, relações de poder, conflitos, formas e os canais de participação, hierarquias etc. 4. Fale sobre o(s) significado(s) para você da experiência de trabalho coletivo em um empreendimento econômico solidário. Isso trouxe mudanças para sua vida? Ajudou a perceber o mundo de forma diferente? Você reconhece que o EES do qual você participa vem, no seu cotidiano, desenvolvendo valores, relações e comportamentos democráticos participativos, interna e externamente? 5. Fale sobre a sua vida quando você não está no empreendimento: rotina em casa, relações de parentesco e vizinhança, se participa de algum grupo, associação, clube de mães, igreja ou outros. 6. Dê a sua opinião sobre o que significa participar do EES e em outros espaços da sociedade fora do trabalho. Você se considera uma pessoa que participa efetivamente no dia-a-dia do EES a que pertence? E em outras instâncias da vida social? Se não participa qual a razão? Considera importante participar? 7. Fale sobre os cursos que você já participou desde que entrou no EES. Em que eles contribuíram? O que você aprendeu com eles? Mudou alguma coisa na sua vida em termos de percepção de mundo? 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