NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA DOCENTE EM MATEMÁTICA DE PROFESSORAS-ALUNAS EM UM CURSO DE PEDAGOGIA Adair Mendes Nacarato (USF) Maria da Conceição Passeggi (UFRN) [email protected] [email protected] Introdução A escrita de si tem se revelado altamente potencializadora como prática de formação docente. Ao escrever sobre si, sobre suas experiências, sobre suas trajetórias pessoais, estudantis ou profissionais, o professor reflete, se autointerpreta e toma consciência de si mesmo como um sujeito histórico, cultural, social e pessoal; o sujeito da intersubjetividade (LARROSA, 2004, p.12). Na sua autointerpretação o professor utiliza a narrativa, compreendida como gênero discursivo. Como afirmam Bruner e Weisser (1995, p.141), “o relato sobre si mesmo é composto pelas convenções estilísticas e pelas regras do gênero (...) somos limitados por fortes convenções referentes não apenas ao que dizemos quando falamos de nós mesmos, mas também a como dizemos, para quem dizemos e assim por diante”. (destaques dos autores). Falar sobre narrativas e sobre a escrita de si nos remete a diferentes possibilidades. Podemos nos referir a narrativas autobiográficas, narrativas biográficas, narrativas de formação, narrativas de aulas, narrativas da experiência, dentre outras. Limitar-nos-emos a discutir aqui as narrativas da experiência produzidas em contextos de formação, ou seja, narrativas sobre práticas de sala de aula produzidas por professoras inseridas num curso de formação inicial. Para essa discussão trazemos o recorte de uma pesquisa mais ampla que toma como objeto de análise as narrativas autobiográficas e as narrativas da experiência docente na constituição profissional de professoras que ensinam matemática, ou seja, professoras que atuam na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Considerando que esse é um público predominantemente feminino, adotaremos esse gênero na escritura do texto. Ao longo do ano essas alunas produziram diferentes escritas de si: autobiografias, textos reflexivos sobre as aprendizagens, narrativas de aulas e casos de ensino – todo esse material foi organizado em portfólios sobre as aprendizagens docentes. A pesquisa foi realizada durante o ano de 2010, numa turma de Pedagogia, na disciplina de Fundamentos e Metodologia do Ensino de Matemática, numa universidade privada do interior do Estado de São Paulo. A turma era constituída de 27 alunas, cursando o terceiro ano. Algumas já atuavam como professoras em sala de aula por terem habilitação em curso de magistério. O recorte aqui apresentado analisa como três professoras, com experiência no ensino de matemática, no papel de alunas num processo de formação inicial, narram e refletem sobre suas experiências docentes, com base nos estudos e discussões realizadas durante a disciplina. Mais especificamente, analisaremos três narrativas de aulas, nas quais elas não apenas narram como as aulas aconteceram, mas também trazem implicitamente suas concepções e saberes sobre a prática de ensinar matemática às crianças. Inicialmente buscamos caracterizar essas narrativas como gêneros de discurso que organizam a experiência docente, possibilitando a comunicação discursiva para, em seguida, situarmos as narrativas produzidas por essas professoras – aqui denominadas professoras-alunas. Estabelecemos um diálogo com autores da perspectiva histórico-cultural e dos estudos biográficos. As narrativas de aulas: organizando e refletindo sobre a experiência vivida Temos incorporado em nossa prática docente, atuando no curso de Pedagogia, o uso de narrativas como atividade formadora, por partilhamos das posições de Souza (2006, p. 136): Enquanto atividade formadora, a narrativa de si e das experiências vividas ao longo da vida caracterizam-se como processo de formação e de conhecimento, porque se ancora nos recursos experienciais engendrados nas marcas acumuladas das experiências construídas e de mudanças identitárias vividas pelos sujeitos em processo de formação e desenvolvimento. Partimos do pressuposto de que, se as experiências provocam mudanças identitárias, é possível, durante a formação inicial, colocar a futura professora no movimento de olhar para si mesma, para sua formação atual e anterior, a partir de situações de reflexão e problematização dos contextos históricos e políticos nos quais elas foram e estão se constituindo, colocando em discussão determinadas práticas e projetando-se para outras. Por que valorizar as narrativas produzidas por professoras? Partilhamos dos argumentos de Prado e Damasceno (2007, p. 19): "a narrativa surge como uma estratégia/opção docente para socializar e divulgar as experiências acontecidas no âmbito docente, preservando a identidade do professor e da professora enquanto autores sociais de suas práticas". Essa seria uma razão para se valorizar as narrativas de professoras: preservação da identidade profissional; reconhecer e valorizar as professoras como produtoras de saberes. Mas há outras razões para se valorizar as narrativas docentes. Larrosa (2006), por exemplo, defende a produção de narrativas ou relatos de formação para ser utilizada na formação inicial ou continuada. Diz ele: "Produzimos as histórias que depois tratamos com diferentes ferramentas metodológicas e para distintas finalidades. Contribuímos na elaboração das histórias que depois vamos colocar em cena nos diferentes contextos teóricos e práticos" (p.185). A narrativa "Permite também que eles [os professores] reconstruam, para si, os diferentes sentidos desta ação no âmbito da escola" (PRADO; DAMASCENO, 2007, p. 23). A narrativa lida com o material da ação e da intencionalidade humana. Ela intermedia entre o mundo canônico da cultura e o mundo mais idiossincrático dos desejos, das crenças e esperanças. Ela torna o excepcional compreensível e mantém afastado o que é estranho, salvo quando o estranho é necessário como um tropo. Ela reitera as normas da sociedade sem ser didática. E [...] ela provê a base para uma retórica sem confronto. Ela pode até mesmo ensinar, conservar a memória, ou alterar o passado. (BRUNER, 1997, p. 52) Assim, uma narrativa escrita, ao ser lida pelos pares, permite o encontro do professor-autor e professora-autora com seus pares para compartilharem experiências, saberes e acontecimentos. É nesse encontro que se dão vários acontecimentos. Que se abre um campo de possibilidades. Encontro de problematizações. Encontro de movimentos do pensamento, da reflexão, do questionamento, da ressignificação de experiências, reelaboração de outras práticas e compreensão da própria prática docente. (PRADO; DAMASCENO, 2007, p.23) A narrativa contribui tanto para o leitor, quanto para o produtor. No ato de escrita da narrativa, a professora não apenas precisa se lembrar dos fatos passados, como também construir um cenário, uma trama na qual a história se passa, suas personagens e suas ações. Tem também que pensar em quem será o leitor dessa história. Todo texto pressupõe um leitor. E mais, no momento da escrita há todo um processo de reflexão sobre a experiência a ser narrada. Esse é o momento em que se atribui sentidos e significados ao que se faz. Por isso, a narrativa é a forma primária pela qual a experiência humana ganha significado (POLKINGHORNE, 1988). Ela possibilita organizar a experiência. Como afirmam Freitas e Fiorentini (2007, p. 60): As análises narrativas e principalmente as narrativas de formação se sobressaem como uma estratégia que propicia uma aproximação de elementos fundamentais da experiência, como tempo, processo e mudança. Os adeptos das análises e interpretações narrativas não apenas estudam como as pessoas percebem o mundo por meio de suas histórias contadas e narradas, como também valorizam os efeitos das histórias contadas e narradas nos caminhos vividos e experienciados pelo narrador. Dessa forma, a narrativa por seu caráter formativo, reflexivo e potencializador de produção de sentido à experiência, passa a ter espaço relevante em diferentes contextos, trazendo contribuições à constituição da identidade do sujeito da experiência. Concordarmos com Larrosa (2002, p. 21) de que a experiência é "o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca". Se, por um lado, Larrosa considera que a experiência é "irrepetível" (Ibidem, p. 28), pois a experiência é única, ela é singular, por outro, é preciso levar em consideração as posições de Smolka (2006, p.107) de que não existe experiência sem significação, ou seja, a “Experiência é resultante daquilo que impacta e é compreendido, significado, pela pessoa”. Experiência que, segundo a autora, tem múltiplas dimensões: corporal, histórica, singular, profissional... – que se condensam no corpo/mente, na fala/discurso da professora, indicando como as relações e as condições concretas, materiais de existência, produzem sentidos que ao mesmo tempo afetam e escapam da esfera estritamente pessoal (...) o sujeito é ponto de encontro, lugar de coincidências, um (in)tenso locus de sentidos. (Ibidem, p. 116) Assim, compreender a constituição de identidades das professoras, com base nas narrativas, implica levar em consideração os diferentes espaços e contextos dessa constituição. Espaços, principalmente escolares, que foram importantes na formação inicial e espaços de atuação na escola básica. Mas escrever o que? Para quem? Sobre o que? Essas questões remetem para a consideração das narrativas como gêneros discursivos que pressupõem um estilo de linguagem. Para isso nos reportamos a Bakhtin (2002, p. 262), para quem “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.” (destaques do autor). São gêneros que se caracterizam pelos seus conteúdos e pelos meios linguísticos de que se utilizam. São relativamente estáveis porque podem sofrer alterações com o decorrer do tempo. No caso das narrativas de experiências docentes, ou narrativas de aula, pode-se dizer que elas são recentes na literatura de formação docente. Elas têm sido utilizadas como práticas de formação, ou, como afirma Bakhtin (2002, p. 266), “estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação”. Produzir uma narrativa da experiência docente tem uma função – compartilhar com os pares as suas práticas de sala de aula – e, portanto, exige “determinadas condições de comunicação discursiva” (Idem). A professora, ao produzir sua narrativa, está produzindo algo que é seu, ‘sua obra’ e “aí revela a sua individualidade no estilo, na visão de mundo, em todos os elementos da idéia de sua obra” (Ibidem, p. 279), traz a “marca da individualidade” (Idem). Mas, no ato de comunicação, a narrativa produzida perde a individualidade, pois muitas vezes as histórias narradas pertencem a um coletivo mais amplo do magistério – os modos de agir em sala de aula, os diálogos com os alunos, as reflexões produzidas, as dinâmicas interativas narradas no texto. O leitor se identifica com a história narrada, ela traz a verossimilhança com outras histórias, com outras práticas. Assim, como dizem Bruner e Weisser (1995, p. 145), “os gêneros existem não apenas como modos de se escrever ou falar, mas também como de ler ou ouvir”. Assim, tanto a prática da escrita, quanto a da leitura de narrativas de aula podem se constituir em processos formativos num curso de Pedagogia. As alunas, futuras professoras, ou professoras em exercício, se identificam com esse tipo de literatura. Elas produzem sentidos para as autoras e para as leitoras, pois se referem a contextos conhecidos, discutidos e refletidos durante a formação inicial. Uma narrativa bem produzida possibilita, para as alunas que ainda não têm experiência profissional, a aproximação com práticas pedagógicas reais, e as ajuda a se projetarem no futuro como professoras; para as alunas que já atuam como professoras, ler narrativas de aulas de colegas lhes possibilita refletir sobre suas próprias práticas, se identificar com a aula narrada, com o seu contexto, com as falas dos alunos e com a cultura da escola. Entendemos que a escrita dessas narrativas, embora circunscrita a um pequeno espaço-tempo (uma aula, ou uma sequência de atividades), está inserida nos estudos (auto)biográficos pelo fato de se constituírem em formas de dar sentido e significado às experiências vividas. Passeggi (2010, p.111), ao caracterizar o objeto de estudo da pesquisa (auto)biográfica, considera que esta “explora o entrelaçamento entre linguagem, pensamento e práxis social”. Permite estudar os instrumentos semióticos “mediante os quais os indivíduos integram, estruturam, interpretam os espaços e as temporalidades de seus contextos histórico-culturais” (Idem). Nessa perspectiva, a professora, ao narrar sua experiência numa sala de aula, organiza-a, constrói uma realidade, interpreta e reflete sobre o vivido e busca conferir sentido às suas ações. Essas narrativas, fragmentos de experiências cotidianas das professoras, podem se constituir em formas de registrar o vivido, possibilitando a construção da memória, como possibilidade de ressignificar, posteriormente essas memórias cheias de significados. Podemos dizer que essas narrativas, fragmentos da história vivida, se entrelaçadas, possibilitam a tecedura de uma trajetória profissional, a história de práticas pedagógicas. Constituem fragmentos de uma história de vida e que ganham valor quando registradas. Quando professoras-alunas narram suas experiências em sala de aula Ao longo da disciplina Fundamentos e Metodologia do Ensino de Matemática – ministrada em dois semestres, as alunas da Pedagogia tomam contato com diferentes textos memorialísticos, tanto em produção quanto em leitura. Escrevem suas autobiografias, leem as produzidas pelas colegas; produzem narrativas de aulas – de suas próprias turmas, enquanto professoras-alunas, ou de turmas de outras professoras, onde realizam as observações de estágio – e leem narrativas produzidas por outras professoras. Nesse movimento, elas vão (re)construindo suas identidades profissionais como professoras que ensinam ou ensinarão matemática. Na turma pesquisada, algumas alunas já exerciam a profissão por terem cursado o Magistério, em nível de Ensino Médio. Dentre as quais, selecionamos três: Edna, Marcela e Ângela. Edna atuava como monitora na educação infantil, Marcela e Ângela nos anos iniciais do ensino fundamental. Todas em instituições públicas Marcela é a mais velha das três. Tem 39 anos de idade e 18 de experiência como professora. Fez curso superior de Letras, mas permanece em sala de aula com alunos dos anos iniciais. Sua preferência é por alunos do 1º ano, pois gosta de trabalhar com alfabetização. Ângela é bastante jovem – 21 anos – mas já atua como professora dos anos iniciais há três anos. Em 2010, assumiu uma sala de aula de 2º ano. Edna tem 34 anos e, assim como Ângela também atua, há cinco anos, como professora por ter o curso de Magistério, em 2010, assumiu como monitora uma turma de Educação Infantil (crianças entre 4-5 anos de idade). Além de estarem no exercício da profissão, as três participantes da pesquisa ainda têm, em comum, o fato de trazerem poucas lembranças positivas de suas formações em matemática. O excerto da autobiografia de Ângela é ilustrativo dessas dificuldades: Enquanto aluna, encontrei muitas dificuldades na trajetória escolar na área de matemática, não conseguindo alcançar meus objetivos como gostaria. Desde as séries iniciais, me recordo não conseguir compreender e acompanhar praticamente nada das aulas, por conta disso alguns professores ficavam bravos, o que sempre me fez sentir medo ou constrangida quando era solicitada pra realizar alguma atividade dessa matéria. Essa relação negativa com a matemática escolar é muito forte num curso de Pedagogia, e ela se manifestou na maioria das autobiografias produzidas pelas alunas dessa turma. Esse é um dos motivos pelos quais acreditamos que a escrita e a leitura de narrativas de experiências bem sucedidas contribuem para a formação de novas gerações de professoras que poderão ter práticas diferenciadas em salas de aulas. Considerando a extensão dos textos produzidos, não os apresentaremos na 1 íntegra , mas traremos excertos que possam contribuir com a nossa discussão. O que nos leva a considerar a narrativa de aulas como um gênero textual? Ela é constituída dos três elementos aos quais se refere Bakhtin (2002): o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. O conteúdo temático, no presente caso, se refere a uma experiência vivida ao ensinar matemática às crianças. Portanto, o tema acaba 1 Em anexo trazemos a narrativa de Marcela na íntegra, com o objetivo de ilustrar esse gênero discursivo. sendo aquele desenvolvido em sala de aula. O estilo é singular, pessoal; cada autora tem seu estilo próprio de escrita. Algumas são mais objetivas na comunicação do ocorrido – como o caso de Ângela; outras são mais reflexivas – como o caso de Marcela. A construção composicional requer alguns elementos básicos, ou uma sequencialidade inerente, como afirma Bruner (1997), uma sequência de eventos – vistos sob um prisma pessoal, interpretado pela narradora –, uma trama, os personagens. Numa narrativa, é usual que a autora se auto-identifique, assim como faz Marcela, ao iniciar sua narrativa: Sou a professora Marcela, há 18 anos na Educação Fundamental I. Este ano estou lecionando na E.E. Profa. Therezinha da Fonseca Pares, em Campinas e tenho uma classe de 1º ano. A identificação do autor do texto na abertura de gêneros auto-referenciais, tem a função de situar o leitor no espaço e no tempo da história contada. No excerto acima, Marcela sinaliza que ela tem uma experiência docente em um determinado tipo de escola no Estado de São Paulo sinalizado pela sigla E.E., que indica se tratar de uma escola da rede estadual. Edna assim inicia sua narrativa: Sou monitora infantil em uma creche, na qual tenho uma turma de 16 alunos do Infantil I e II com idade entre 4 e 5 anos. Ela apresenta a si mesma e os personagens de sua narrativa. Para Bruner (2001, p. 119), “Narrativa é discurso, e a principal regra do discurso é que deve haver um motivo para que o mesmo se distinga do silêncio.” A narrativa tem uma intencionalidade: contar uma história. E essa história quer ser contada. Há o desejo de compartilhar com outras colegas. Se essa história se refere a uma experiência de sala de aula, esta aula também tem do ponto de vista pedagógico, uma intencionalidade. Assim, numa narrativa de aula, a professora geralmente justifica o que a levou a desenvolver determinada tarefa com seus alunos, quais eram suas intenções pedagógicas. Edna, por exemplo, traz explicitamente o objetivo da aula narrada: Com o objetivo de trabalhar a representação dos números, a contagem oral e quantidades, propus o jogo com bolinhas de gude2 com as crianças. Marcela se dirige ao leitor e explicita o desejo de compartilhar uma experiência, ao mesmo tempo em que anuncia o objeto do trabalho desenvolvido: Gostaria de compartilhar a experiência que tive, juntamente, com o professor Thiago de Educação Física, onde o foco do trabalho foi desenvolver um projeto interdisciplinar a partir do jogo de boliche, envolvendo as disciplinas: Língua Portuguesa, Matemática e Educação Física. Ao narrar os eventos ocorridos em sala de aula, é usual também a professora descrever o que ocorreu e como ocorreu. As três narradoras trazem em comum a conversa inicial que tiveram com seus alunos, buscando identificar os conhecimentos que tinham sobre a temática a ser trabalhada. Ângela, que desenvolveu o jogo de boliche com seus alunos, diz: 2 O jogo de bolinha de gude é bastante antigo; geralmente era jogado com buraquinhos na terra onde as bolinhas teriam que cair. Com a falta de espaços com terra para a brincadeira, o jogo foi adaptado para ambientes fechados. Constrói-se o gude (em forma circular ou triangular) onde são colocadas algumas bolinhas. A brincadeira consiste em jogar uma bolinha e tentar tirar outras de dentro do gude. Para dar início a esta atividade, primeiramente eu levantei os conhecimentos prévios que os alunos tinham sobre o jogo, alguns relataram já ter jogado, mas percebi que mesmo os que nunca haviam jogado conheciam muito sobre o assunto. Disseram que pra jogar precisavam lançar a bola para acertar os pinos e ganhava quem derrubasse mais durante a partida. Edna descreve: Solicitei que elas fossem até o pátio, onde desenhei um grande círculo no chão e pedi que todas ficassem sentadas sobre o mesmo. Havia 14 crianças. Perguntei se alguém já conhecia “bolinha de gude” e se já tinham brincado com as mesmas. Todas as crianças disseram que já conheciam. Marcela também narra a conversa inicial com os alunos: Iniciamos o projeto com uma apresentação aos alunos, em uma roda de conversa, sobre como iria ser o desenvolvimento das atividades. Também fizemos o levantamento dos conhecimentos prévios dos alunos sobre o jogo de boliche. Enquanto os alunos iam falando, fui escrevendo em papel pardo. A similaridade entre as práticas das três professoras nos sinaliza uma cultura de aula que é muito familiar na Educação Infantil e anos iniciais do ensino fundamental: a roda de conversa, as negociações que são feitas com os alunos sobre a rotina do dia e o diagnóstico sobre o que eles já conhecem da atividade a ser desenvolvida. Em seguida, as três professoras-alunas narram como a atividade se desenvolveu. Outras similaridades aparecem durante esse desenvolvimento. Por exemplo: as três modificaram as regras dos jogos. Edna, por constatar que as crianças não estavam conseguindo retirar bolinhas do gude com apenas uma jogada: Então eu resolvi modificar as regras do jogo e disse que quem não conseguisse retirar nenhuma bolinha de dentro do círculo, teria chances de jogar de novo até que conseguisse pelo menos uma bolinha. Ângela, por trabalhar com alunos maiores, decide, coletivamente, com eles, num processo de negociação: Dois dias depois, como planejado, iniciamos uma nova partida, desta vez eu levei uma tabela com o nome de todos os jogadores, inclusive o meu. Um aluno questionou sobre as regras do jogo, que pra ser justo teria que ter uma marcação, pois na primeira jogada alguns alunos lançavam a bola bem de perto e outros mais de longe. Eu sugeri então que elaborássemos algumas regras para nosso jogo dar certo. Enquanto eu fui a escriba, eles ditaram várias regras [aqui ela descreve as regras criadas]. Fixamos essas regras na parede e iniciamos por ordem alfabética novamente, porém desta vez após jogar, marcamos nossos pontos na tabela que também estava fixada na parede. Marcela também narra como foi o processo de mudança de regras e negociação com os alunos: Novamente numa roda de conversa o professor e eu discutimos com eles outras formas de jogar, agora com regras pré-estabelecidas e em grupos. Foi discutido também se deveríamos premiar as posições de cada grupo vencedor. Foram várias sugestões. Então resolvemos fazer uma votação para decidir as formas de premiações. Cada aluno foi até a lousa e manifestou seu voto. Outra similaridade nas narrativas foi o registro realizado ao término da brincadeira. Os alunos de Edna, por estarem na fase da aquisição da escrita e do signo numérico utilizavam diferentes formas de registro: Algumas crianças faziam a contagem das bolinhas e a representação sem nenhuma dificuldade, outras precisavam colocá-las enfileiradas para depois fazer a representação, mas algumas faziam até a representação gráfica do número referente à quantidade que havia tirado. Os alunos de Marcela trabalharam em grupos: os registros passaram a ser feitos pelo capitão do grupo, juntamente com a ajuda dos componentes do grupo em uma tabela individual e também na tabela da sala, para que todos fossem visualizando os pontos adquiridos pelos grupos. Ângela, por sua vez, havia planejado uma sequência de jogos, com o registro a cada dia. Assim ela narra o final do processo: Quando completamos as sete partidas que estavam previstas na tabela, ao longo de pouco mais de duas semanas, expliquei que faríamos a contagem dos pontos para confeccionarmos o gráfico do jogo, em grupo entreguei canudinhos para que os alunos usassem de apoio na hora da contagem. Sugeri que marcassem numa folha seus pontos, separassem a mesma quantidade em canudos e depois fizessem a contagem. Percebi que em geral deu certo, quase todos conseguiram somar os pontos, alguns alunos do próprio grupo ajudavam quem não estava dando conta. No final fizemos a socialização para marcarmos o total na tabela, alguns conflitos surgiram, como uma aluna que tinha feito a contagem errada, e os colegas questionaram o resultado. Embora nas narrativas dessas professoras-alunas não apareçam explicitamente referências teóricas, elas se apropriaram das leituras e discussões teóricas realizadas durante a disciplina. A noção de apropriação é aqui entendida tal como propõe Clot (2006, p. 24). O autor, apoiando-se na obra de Vygotski, faz uma diferença “entre a fonte da atividade, que são sempre os conflitos vivos do sujeito e o recurso da atividade, isto é, as ferramentas que o sujeito coloca a seu serviço, transformando os artefatos em instrumentos” (destaques do autor). É nesse processo de transformação das ferramentas/artefatos, em instrumentos, que ocorre a apropriação, isto é: “A apropriação é um processo de reconversão dos artefatos em instrumentos, é um verdadeiro processo de recriação” (Ibidem, destaques do autor). Durante o curso, foram oferecidas às professoras-alunas, diferentes ferramentas (de natureza teórica e conceitual), que poderiam ser utilizadas como recursos na atividade docente de ensinar matemática às crianças: a importância das brincadeiras e jogos para a aprendizagem da criança; a negociação de regras e significados com os alunos; a importância dos diálogos em sala de aula; o papel do registro e a socialização das suas diferentes formas para a elaboração de conceitos. As professoras-alunas se apropriaram dessas ferramentas e recriaram formas de trabalho em sala de aula, possibilitando que a atividade acontecesse e significações matemáticas pudessem circular entre os alunos. Outra evidência das apropriações feitas pelas professoras-alunas está nas reflexões que elas produziram sobre as experiências relatadas. Além disso, pode-se dizer que essas reflexões, ao valorizarem a atividade desenvolvida, se constituem em modos de persuasão para convencer o leitor da validade das práticas narradas. Trazemos as reflexões produzidas por Edna e Marcela: As crianças demonstraram muito interesse, permanecendo motivadas até o final e pediram que jogássemos em outro dia. Diante disto e da compreensão apresentada por elas, pude perceber que os objetivos foram alcançados. (Edna) Ao iniciar o projeto tínhamos como objetivo realizar algumas atividades com o jogo de boliche, mas, percebemos que podemos introduzir novos jogos e brincadeiras neste mesmo projeto. [...] em minha reflexão e em meu registro pessoal, constatei o quanto foi está sendo gratificante o trabalho com a matemática, integrando jogos, brincadeiras nas atividades propostas aos alunos, pois, notei que há uma devolutiva muito significativa durante o ensino-aprendizagem. Este trabalho está dando a oportunidade de ver e vivenciar a riqueza que é fazer os diversos registros de diversas maneiras. Essa prática só tem a valorizar e aperfeiçoar meu trabalho. (Marcela) No movimento entre narrar e refletir, as professoras-alunas produzem sentidos para as experiências vividas. Como analisa Delory-Momberger (2008, p.90), numa relação dialógica entre teoria e prática, elas buscam validar os saberes produzidos em sala de aula: O questionamento ao qual convida o reconhecimento das aquisições da experiência não incide tanto sobre o fato da produção do saber na experiência, mas na compreensão das condições de produção desse saber e dos processos que permitem sua conscientização e sua formalização para fins de validação social. Concordamos com a autora de que os saberes da experiência não são facilmente apreendidos. Como eles estão “ligados à ação, trata-se de saberes compósitos, heterogêneos, parcelados, descontínuos, que não podem coincidir com os recortes formais dos saberes disciplinares”. (Idem). Assim, a narrativa de aulas pode ser um gênero de discurso que possibilita, por parte da professora-aluna-narradora, a tomada de consciência desses saberes e das relações que estabelecem com eles. Ainda nessa perspectiva, a autora considera que esses saberes, constituídos na ação, devam ser nomeados “pelos próprios indivíduos e encontrem lugar em seu sistema de representação. Em outras palavras, é preciso que eles constituam linguagem nos universos simbólicos de seu mundo-de-vida e de sua construção biográfica” (Ibidem, p. 92). Esse ato de nomeação, destacado na última fala de Marcela, é um trabalho de conscientização das experiências adquiridas que possibilitaram transformações pessoais e profissionais. “Nessa história, como no Gênese”, nos diz Chauí (1994, p.28), “o mundo é criado pelo ato que nomeia.” Ao produzirem suas narrativas, essas professoras-alunas formalizaram um saber adquirido no movimento dialógico entre as teorias estudadas e a prática de sala de aula. Para elas, a graduação representava uma instância de formação continuada, pois elas tinham a possibilidade de validar, na prática, os conhecimentos teóricos estudados e, a partir dela, produzir seus próprios saberes. E as narrativas de aula possibilitaram, assim, uma prática autoformadora. Para finalizar Neste texto, nos propusemos a discutir as narrativas de aula como gêneros de discurso, que organizam a experiência docente. Ao trazermos as vozes das professorasalunas, buscamos evidenciar as potencialidades dessas narrativas, como forma de reflexão sobre as práticas e saberes docentes, em movimento em sala de aula, e como modo de comunicação entre pares. Podemos concluir, ainda que provisoriamente, que dessa reflexão e interação resultam novos conhecimentos sobre si mesmas, sobre a prática pedagógica e sobre uma metodologia de trabalho conjunto. Na tessitura dos eventos e das reflexões produzidas a partir da experiência, a narrativa se configura como um gênero de discurso, que viabiliza a organização do vivido, a atribuição de sentidos à experiência. Como sugere Delory-Momberger (2008, p.97), “O que dá forma ao vivido e à experiência dos homens são as suas narrativas, como lugar no qual o indivíduo toma forma, no qual elabora e experimenta a história de sua vida.” Ou, ainda, como diz Benjamin (1994, p. 201): “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”. Essas professoras-alunas narraram o que vivenciaram com seus alunos, mas, em suas vozes estão as vozes dos pares da escola, das colegas do curso, dos professores com os quais conviveram e convivem. A escritura dessas narrativas possibilita a transformação, como afirma Suárez (2010, p. 183): Cuando los docentes se convierten em narradores de sus proprias experiencias escolares, dejan de ser los que eran, se trans-formam, son otros. Asumen uma posición reflexiva que desafia las proprias comprensiones, reconfigura las proprias trajectorias profesionales y resignifica las proprias acciones e interpretaciones sobre la escuela. Ao produzir uma narrativa, cada autora tem em mente que seu texto terá um leitor – provavelmente outra professora ou futura professora. Assim, ela se constitui numa forma de relação com o outro, com o mundo e consigo mesma. “Esboça as relações dos homens entre si para agir sobre o mundo.” (CLOT, 2006, p. 50). Como gênero discursivo tem um propósito: comunicar uma experiência e a narradora/autora espera que seu texto seja lido, seja comentado e a prática relatada, seja (re)validada. Nesse sentido, Clot complementa: “O gênero organiza a reciprocidade dos lugares e funções ao definir as atividades independentemente das propriedades subjetivas dos indivíduos que as realizam num momento específico.” (Idem). Não discutimos aqui histórias de vida, mas fragmentos delas, histórias de práticas, histórias de aulas, marcadas temporalmente. As narrativas vêm ganhando espaço nos cursos de formação, pois além de possibilitarem o registro de experiências, se constituem em literatura que pode ser trabalhada com futuras professoras ou professoras em exercício. Constitui, ainda, uma documentação sobre culturas escolares, pois as narrativas possibilitam que se registrem práticas e modos pedagógicos de ensinar matemática num dado tempo e num determinado espaço. Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. BAKHTIN, Mikail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRUNER, Jerome. Atos de significação. Trad. Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. _______. A cultura da educação. Trad. Marcos A. G. Domingues. 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Therezinha da Fonseca Pares, em Campinas e tenho uma classe de 1º ano. Gostaria de compartilhar a experiência que tive, Intencionalidade da juntamente com o professor Thiago de Educação Física, onde o foco produção da narrativa do trabalho foi desenvolver um projeto interdisciplinar a partir do e das atividades jogo de boliche, envolvendo as disciplinas: Língua Portuguesa, desenvolvidas Matemática e Educação Física. Iniciamos o projeto com uma apresentação aos alunos, em Início das atividades: uma roda de conversa, sobre como iria ser o desenvolvimento das negociação com as atividades. Também fizemos o levantamento dos conhecimentos crianças; combinados prévios dos alunos sobre o jogo de boliche. Enquanto os alunos iam com o professor falando, fui escrevendo em papel pardo. Em seguida o professor parceiro do projeto; Thiago apresentou o material que iríamos utilizar, ou seja, a bola e os orientações iniciais pinos. Percebemos que os alunos tinham pouca noção de regra para aos alunos. este jogo; então, decidimos no primeiro momento jogar como eles Descrição de como haviam falado. Então, o professor explicou que durante o jogo, após foi o início das cada um ter derrubado os pinos, eles deveriam contar quantos pinos atividades. foram derrubados e ir até a professora pegar palitos de sorvete na mesma quantidade de pontos feitos, pois, ao término de sua aula, eles iriam registrar os pontos em uma tabela, na primeira coluna (onde registrava a 1ª rodada), a partir dos pontos representados pelos palitos de sorvete. Em três aulas de Educação Física conseguimos realizar as três rodadas do jogo, sempre na sequência das mesmas, registrando os pontos nas aulas de Matemática, utilizando palitos. Os alunos, ao registrarem na tabela tinham a liberdade de utilizar as formas de representações que quisessem por meio de: bolinhas, palitos, números etc. Aproveitamos também nas aulas de Português para criar, no coletivo, a 1ª regra de como estava acontecendo o jogo, mesmo que individualmente. Para fazer a contagem do total de pontos de cada um, utilizamos as tampinhas de garrafa pet, onde cada alunos tinha uma tabela igual a do papel pardo que estava anexado na sala e tampinhas. Nesta atividade, pude perceber que eles estavam fazendo por Observação das meio da contagem uma adição, pois, eles foram juntando cada ponto aprendizagens dos das rodadas para chegar ao total e descobrirem quem foi o vencedor. alunos. É importante salientar que outros recursos de registros também foram utilizados, como: desenhos e fotos. Percebemos que foram muito proveitosas as primeiras Renegociação das atividades. Então, novamente numa roda de conversa o professor e eu regras com os alunos; discutimos com eles outras formas de jogar, agora com regras pré- novas negociações. estabelecidas e em grupos. Foi discutido também se deveríamos premiar as posições de cada grupo vencedor. Foram várias sugestões. Então resolvemos fazer uma votação para decidir as formas de premiações. Cada aluno foi até à lousa e manifestou seu voto. Conclusão, foi decidido que para o 1º lugar caberia um kit do jogo de boliche e uma caixa de Bis; para o 2º até o 5º lugar, seriam premiados com caixas de Bis. Diante das tomadas de decisões, começamos a partir da 5ª aula de Educação Física, as partidas onde os registros passaram a ser feitos pelo capitão do grupo, juntamente com a ajuda dos componentes do grupo em uma tabela individual e também na tabela da sala, para que todos fossem visualizando os pontos adquiridos pelos grupos. O entusiasmo tomou conta dos grupos, as partidas foram contagiando e cada vez mais as regras eram seguidas à risca. As produções coletivas foram produtivas, os registros na matemática foram adquirindo caráter obrigatório. Foi possível explorar outra operação, a subtração além da adição, pois os questionamentos eram em relação ao grupo que estava à frente: quantos pontos tinha a mais, e, os grupos que estavam perdendo: quantos pontos tinham a menos. Os materiais manipuláveis cada vez mais eram explorados. O professor foi percebendo que o desenvolvimento físico e motor dos alunos também iam expandindo; então, era preciso ir apresentando novos desafios ao chegar à partida de decisão. Pudemos notar o quanto foi significativo para os alunos as atividades desenvolvidas e, para nós professores, possibilitou o entrosamento das disciplinas, os desafios de cada vez mais pensar em atividades que propiciassem aprendizagens e as socializações entre os alunos. Para concluir o projeto, nosso produto final será a confecção de um portifólio que conterá todas as atividades com jogos e a matemática que serão desenvolvidos durante o ano, culminando com uma grande exposição que acontecerá na escola, objetivando a socialização de todos os projetos realizados por todas as séries. Ao iniciar o projeto tínhamos como objetivo realizar algumas atividades com o jogo de boliche, mas, percebemos que podemos introduzir novos jogos e brincadeiras neste mesmo projeto. Então, em matemática já fizemos em grupos o jogo de dados que também apresenta os mesmos objetivos e conteúdos. Em minha reflexão e em meu registro pessoal, constatei o quanto foi está sendo gratificante o trabalho com a matemática, integrando jogos, brincadeiras nas atividades propostas aos alunos, pois, notei que há uma devolutiva muito significativa durante o ensino-aprendizagem. Este trabalho está dando a oportunidade de ver e vivenciar a riqueza que é fazer os diversos registros de diversas maneiras. Essa prática só tem a valorizar e aperfeiçoar meu trabalho. O registro do jogo e as socializações. Sistematizações dos saberes a partir das aprendizagens dos alunos. Novas ações após as reflexões. A finalização do projeto. Reflexões sobre o trabalho desenvolvido; validação da experiência; convencimento aos pares. Autoformação.