REPENSANDO O CÂNONE: SOBRE COMO SE FORMA O LEITOR
Patrícia Vilela da Silva1
RESUMO: Este trabalho apresenta um estudo sobre as discussões a respeito da instituição do
cânone literário, especialmente no Brasil, e suas implicações na formação do leitor, partindo
dos novos estudos que despontam no campo da historiografia literária contemporânea,
tomando como base as idéias de multiculturalismo, visando à coexistência de diversos textos
considerados legítimos dentro de um mesmo contexto.
PALAVRAS-CHAVE: Cânone literário. Multiculturalismo. Formação do leitor.
1 INTRODUÇÃO
O uso da palavra cânone, de origem grega “kanon” que significava uma espécie de
vara com funções de medida, tornou-se generalizado a partir do séc. IV quando a igreja elegeu
uma série de livros considerados como a verdade sobre a fé cristã, denominando apócrifos os
livros rejeitados. O termo posteriormente passou a ser utilizado pela literatura, sendo
associado às expressões “clássicos” e/ou “obras primas”, consistindo, portanto, na seleção de
obras e autores tidos como “geniais”, determinando o que é legítimo e marginal, consentido
ou proibido, impondo critérios de medidas.
A escola passou a funcionar como importante instrumento de fixação e transmissão de
cânones. Assistimos, ainda hoje, à imposição de obras obrigatórias a serem lidas como únicas
fontes de representação da literatura, que se repetem ano após ano, apesar da explosão do
mercado editorial, desde a década de 80, revelando novos autores e obras. Sendo assim, têm
sido deixados de fora muitos textos com qualidade, devido a questões exógenas à literatura,
como a política, a etnia, o sexismo, o colonialismo, entre outros.
Também a mídia assume o papel de guiar o leitor na escolha das “boas” obras, através
das resenhas, colunas, e das listas dos mais vendidos, prevalecendo o interesse
mercadológico, abrindo espaço à discussão do cânone. Fazendo uma rápida consulta às
1
Professora Assistente do Departamento de Ciências Humanas – DCH – Campus IV- UNEB -. E-mail:
[email protected]
2
páginas destinadas à cultura, no Jornal A Tarde2, é curioso observarmos que apenas uma obra
brasileira apareceu na lista dos dez livros mais vendidos na categoria obras de ficção: As cem
melhores crônicas brasileiras, de Vários autores, o que nos leva a questionar sobre o poder da
imagem apresentada pela imprensa na escolha dos livros a serem lidos, marcada por interesses
que dominam as sociedades capitalistas, estratégias de marketing que tornam a obra um
objeto de consumo.
Neste trabalho, pretendemos discutir algumas considerações em torno do cânone
literário, levantando questionamentos a respeito da apreciação e/ou negação de obras. O que
determina o cânone? Como têm sido discutidas essas questões nas academias? Quais as
posições favoráveis e contrárias em relação a esse assunto? E de que forma o estabelecimento
de um cânone literário influencia na formação do leitor? Para os propósitos modestos deste
texto, tomaremos como referencial teórico os estudos de importantes autores que se propõem
discutir questões referentes à construção da identidade cultural relacionadas aos conceitos do
multiculturalismo.
2 A “BOA” LITERATURA E O SILENCIAMENTO DO OUTRO
A constituição de um cânone literário brasileiro teve como modelo os parâmetros
europeus: inicialmente, com a colonização, era determinado pela metrópole portuguesa para,
em seguida, sofrer forte influência da cultura francesa. A partir do século XIX, entretanto,
esteve relacionada à necessidade de construir a identidade cultural da nação, condição
perpetuada ao longo do século XX. A idéia de dependência de uma cultura européia tida
como melhor e mais forte era frequentemente revelada e comparada à nossa cultura, podendo
ser percebida no discurso de alguns respeitáveis homens das letras. A esse respeito, mostra
Silviano Santiago (apud SOUZA, 2002, p. 50) a posição de Joaquim Nabuco3 que caracteriza
2
Lista divulgada no Jornal A Tarde, Salvador, Ba, de 19 de agosto de 2007, apresentando a seguinte
classificação: 1º) O caçador de pipas – Khaled Hossein; 2º) A menina que roubava livros – Markus Zusak; 3º) O
guardião de memórias – Kim Edwards; 4º) A sombra do vento – Carlos Ruiz Zafón; 5º) As cem melhores
crônicas brasileiras – Vários autores; 6º) Harry Potter e o enigma do príncipe – J. K. Rowling; 7º) Quando
Nietzche chorou – Irvin D. Yalom; 8º) A montanha e o rio – Da Chen; 9º) O monge e o executivo – James C.
Hunter; 10º) A fortaleza digital – Dan Brown
3
Joaquim Nabuco (1849-1910) foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Foi um político,
historiador, diplomata, jurista e jornalista brasileiro. Lutou veementemente contra a escravidão e fundou em
1878 a Sociedade Antiescravidão Brasileira
3
a realidade brasileira como carente de uma tradição e vista como inferior; também Antônio
Candido4 faz referência à nossa literatura como pobre e fraca.
Ao analisar os tratados setecentistas sobre o modo de ler as Belas Letras, Abreu (2003)
deixa claro que havia uma preocupação em prescrever obras a serem lidas (a leitura do
romance entendida como forma de distração, por exemplo, que atingia diferentes segmentos
da sociedade e que se fazia sem supervisão, deveria ser banida), tidas como modelos a serem
imitados no momento da escrita, portanto, era importante ter contato apenas com os
“melhores autores”, observando principalmente a estrutura do texto.
É também Abreu (2006, p.124) quem nos desafia a examinar o conjunto de escritores
citados no Romantismo para percebermos facilmente que há quase exclusivamente cariocas,
pouquíssimas mulheres e que os índios aparecem como tema, em função da idéia de construir
uma identidade nacional, mas não são apresentados como autores. Tais fatos evidenciam o
silenciamento das culturas ou vozes minoritárias, por vezes até estereotipadas, uma vez que a
única cultura evidenciada é construída a partir dos interesses das classes e grupos
hegemônicos.
No seu livro Literatura brasileira hoje, publicado pela Publifolha, da série Folha
Explica – Literatura, com a primeira edição em 2004, Manuel da Costa Pinto5 propõe um
cânone que, por tratar-se de uma eleição edificada com base nas preferências do autor ou
historicamente construída, não poderia mostrar outro resultado que não o ligado ao
favorecimento de autores e obras de determinadas regiões do Brasil. A região Sudeste aparece
no topo da lista, além disso, as obras eleitas enquadram-se em apenas dois gêneros _ prosa e
poesia_ ficando de fora o teatro, a biografia e o ensaio; outra evidência da exclusão diz
respeito ao pequeno número de mulheres e representantes de certos grupos étnicos.
Dessa forma, não há dúvidas de que, como afirma Cairo (2004, p.69) “o cânone
literário é resultado de uma escolha por parte de autoridades críticas; é, portanto, o cânone da
exclusão”. Cabe, portanto, a um grupo constituído por críticos literários, jornalistas,
historiadores e o público letrado designar os critérios que legitimam uma obra.
Nesse caso, cabe a nós questionar se de fato os autores selecionados, não
desmerecendo o valor que possuem, representam, na sua totalidade, a literatura brasileira.
Quantos deixaram de ser contemplados por não atenderem aos critérios estabelecidos pelo
4
Antonio Candido de Mello e Souza (Rio de Janeiro, 24 de julho de 1918) é um poeta, ensaísta, professor
universitário e um dos principais críticos literários brasileiros. É professor-emérito da USP e da UNESP, e
doutor honoris causa da Unicamp.
5
Jornalista, mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP e colunista da Folha de S.Paulo.
4
organizador do livro? Em entrevista concedida à revista eletrônica Weblivros a respeito da
“boa” literatura, o jornalista Costa Pinto declarou que:
Livros de auto-ajuda não são literatura. São uma manifestação de histeria
coletiva sobre um suporte de papel. Não é diferente do lixo televisivo. Não é
literatura. Infelizmente, a alta cultura é um domínio restrito. (...) a produção
contemporânea tem um público restrito e só terá mais leitores num futuro
remoto. Daqui a cem anos, Paulo Coelho estará completamente esquecido e
Raduan Nassar será um pouco mais lido.
Tal visão parece ilustrar bem o fato de que a determinação de boas ou más obras tem
um caráter subjetivo e, quase sempre, arbitrário. O próprio conceito de literatura pode variar.
Sobre isso, afirma Terry Eagleton:
Se não é possível ver a literatura como uma categoria objetiva, descritiva,
também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que,
caprichosamente, queremos chamar de literatura. [...] o que descobrimos até
agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os
insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente
variáveis, mas que esses juízos têm eles próprios uma estreita relação com as
ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto
particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e
mantêm o poder sobre os outros. (EAGLETON, 1997, p. 22)
Sendo assim, é possível afirmar que um texto não nasce literário, nem tampouco
canônico, nem tem que ser sempre canônico ou não-canônico, uma vez que é determinada por
critérios históricos e sociais.
Se tais critérios respeitassem o “gosto” do público, por exemplo, Paulo Coelho6, citado
pelo jornalista, entraria na lista dos escritores consagrados na literatura brasileira
contemporânea, uma vez que tem vendido milhões de obras conseguindo satisfazer o leitor
que busca entretenimento; há aqui uma oposição entre crítica e público. O escritor, apesar das
inúmeras críticas que tem recebido, alcançou popularidade e no ano de 2002 foi aceito na
Academia Brasileira de Letras. Tais críticas alegam problemas de escrita com a norma culta e
a existência de conteúdo espiritual, o que faz com que suas obras sejam consideradas como
literatura esotérica de auto-ajuda, e avaliadas como de valor menor. Neste caso, fica evidente
o que afirma o teórico John Guillory (apud VIEIRA, 2003, p. 97) “o não-canônico não quer
dizer aquilo que não emerge ou não aparece, mas algo que, dentro de um certo contexto de
leitura, significa exclusão”. Caso contrário, as obras de Coelho estariam sendo “devoradas”
6
O escritor ocupa a posição no ranking dos mais vendidos no mundo, alcançando, até hoje, 92 milhões de livros
em cerca de 160 países, suas obras já foram traduzidas para 66 idiomas e, em língua portuguesa, é o autor que
mais vende obras em todos os tempos, ultrapassando Jorge Amado. Consulta feita em 22 de novembro de 2007.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Coelho.
5
por estudantes que concorrem aos vestibulares e que, por isso, são obrigados a ler
determinados textos literários e, sem dúvida, seria ponto de discussão nas universidades,
como objeto de produção cultural amplamente disseminado.
A exclusão desse escritor brasileiro, dentre outros, que muitas vezes têm seus livros
rejeitados no meio acadêmico, mesmo antes de eles serem lidos, é fruto da visão
preconceituosa não só de críticos literários, como também de leitores, baseando-se em
diversos fatores, tais como: gênero literário; grupo social a que pertencem e/ou representa;
formação acadêmica; grupo étnico, entre outros. Trata-se de uma forma de manter o status
social de um grupo prestigiado que tem o poder de hierarquizar e determinar o que pode ou
não ser lido. Dessa forma, não se admite gostar de livros de auto-ajuda, best-sellers, gibis,
novelas sentimentais, folhetos ou outros tipos de textos considerados inferiores em relação à
supremacia do “bom” livro literário.
Ao livro é atribuído um caráter de superioridade, mantendo uma enorme distância dos
demais suportes textuais, há uma verdadeira mitificação do objeto livro. Segundo Rettenmaier
(2004, p.189-190) tal posição guarda relação com a história oficial do nosso país, quando se
tentou implementar um projeto nacional cuja finalidade era civilizar e calar uma comunidade
ágrafa, depositando no livro o que seria considerado legítimo saber. Essa condição fez resultar
a noção de ausência de leitura no Brasil, que predomina ainda hoje, pois não torna legítimos
aqueles que leem outros textos, e não apenas livros literários, os quais não pertencem ao Índex
de obras consagradas, muito menos se reconhece a oralidade como fonte de leitura.
Sendo assim, é possível afirmar que existe no nosso país uma verdadeira lacuna em
relação à leitura realizada especialmente em comunidades rurais ou em centros urbanos de
pequeno porte, onde se imagina não haver qualquer forma de acesso à obra literária, uma vez
que pesquisas realizadas revelam a “carência” de bibliotecas, livrarias e de “hábito” de leitura
nessas regiões. A esse respeito, é interessante a afirmação de Abreu (2007) de que “a
delimitação implícita de um certo conjunto de textos e de determinados modos de ler como
válidos e o desprezo aos demais nos cega para grande parte das leituras realizadas no
cotidiano” , o que tem suscitado o interesse no últimos anos de pesquisadores em contribuir
para a escrita da história de leitura no Brasil
As promessas de uma sociedade igualitária, democrática, advindas da idéia de
racionalidade, que prevalecia na modernidade, fez com que o conhecimento cientifico e
objetivo se tornasse hipervalorizado, ocorrendo, portanto, conforme Souza (2004, p.787) a
“monocultura do saber” e do rigor do saber, que “consiste na transformação da ciência
moderna
e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética,
6
respectivamente”. Dessa forma, os sujeitos cujas histórias de vida foram construídas em
regiões suburbanas, em áreas rurais, sem nenhum contato com bibliotecas ou obras literárias
consagradas seriam considerados não leitores, evidenciando, assim, o discurso da falta.
Aqueles que não conseguem acompanhar a idéia de progresso, apresentando-se como leitor
eficiente, crítico, competente - conceito construído dentro da lógica da modernidade ocidental
que valoriza o conhecimento científico - torna-se apenas um leitor primário, ainda que possua
uma experiência de leitura extremamente rica relacionada à tradição oral: contos, causos,
cantigas, parlendas, textos religiosos, folclóricos, pois tais produções são consideradas
“resquícios de eras primitivas”.
3 POR UMA VISÃO PLURAL DA LITERATURA
É inegável a contribuição dos Estudos Culturais que, a partir de meados do século XX,
se propõem interrogar a realidade de uma nova forma, tomando como base temas do domínio
da cultura e salientando o papel das representações, conforme Chartier (1990). Tal perspectiva
faz surgir uma variedade de objetos, possibilitando o diálogo com diversas áreas do
conhecimento, como a História, a Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política e a
Literatura. Toda a atividade humana passou a interessar à Nova História. Assim, surgiram
temas como a morte, a loucura, o medo, a infância, a mulher, a leitura, entre outros, que
passaram a ser entendidos como uma “construção cultural”, variando no tempo e no espaço
(BURKE, 1992).
Essa nova perspectiva acentuou o caráter interdisciplinar da historiografia literária, que
questiona, entre outras coisas, o conceito de literariedade, o qual vem sofrendo críticas quanto
ao seu caráter unicultural, tendo sido constantemente repensado, chegando a incluir categorias
variadas do discurso, antes marginalizadas, como o registro popular e a literatura oral,
passando a dar ouvidos a outras vozes e linguagens. Sendo assim, o cânone perde o seu
caráter unívoco. Além disso, tornam-se relevantes as condições de produção e recepção da
obra, uma vez que “[...] a investigação histórica está menos interessada em registrar a
ocorrência de certos fatos ou eventos do que em determinar o significado que eles tiveram
para um determinado grupo ou sociedade” (COUTINHO, 2003, p.17).
A chamada pós-modernidade é caracterizada pela crise de conceitos que no
pensamento moderno eram fundamentais, como verdade, razão, progresso, universalidade,
sujeito, etc, configurando-se, assim, como incerteza, sensação de caos, perda de confiança na
7
objetividade. Dessa forma, uma das suas principais problemáticas é aquela que questiona o
poder de a ciência tornar algo legítimo ou ilegítimo, válido ou inválido.
O multiculturalismo crítico questiona o monoculturismo, evidencia as contradições
socioculturais, visando à eliminação das fronteiras entre a arte erudita e a arte popular, à
diluição dos critérios tradicionais de definição da estética e à valorização da intertextualidade,
fazendo vir à tona as diferenças e as ausências de muitas vozes que foram caladas pelas
metanarrativas da modernidade. Há, pois, um descentramento; não um núcleo central, mas
vários núcleos, valorizam-se os grupos marginais, as minorias, silenciadas pelos cânones que
passam a questionar suas posições em relação ao poder exercido na sociedade.
Na literatura, segundo Cairo, tais discussões podem ser percebidas a partir dos anos
80, quando se volta para a expressão das vozes que ficaram à margem do cânone hegemônico
da história da literatura brasileira. Período marcado pelo multiculturalismo,
[...] em que se busca revitalizar o cânone através da inclusão de textos que
expressam as vozes dos deixados à margem em função da etnia, gênero,
sexualidade, condição sócio-econômica ou por outro tipo de sanção
ideológica e conseqüente exclusão daqueles que não mais respondem ao
horizonte de expectativas do presente (CAIRO, 2004, p.71).
Sendo assim, rejeitam-se as grandes obras e autores, uma vez que são considerados
instrumentos a favor dos interesses dominantes. Nesse período, o autor mostra que são
produzidas obras que propõem novas discussões na literatura, como: 1) Os pobres na
literatura brasileira (1983) , de Roberto Schwarz7, na qual o autor provoca uma revisão nos
critérios de seleção e obras constantes no cânone da literatura brasileira; 2) Tal Brasil, qual
romance? (1984), de Flora Süssekind8, texto que contribui para a discussão do cânone ao
explicitar que a construção de uma história literária se faz com o ocultamento de diferenças e
descontinuidades. Roberto Reis contesta a hegemonia do cânone: “a literatura funcionou
como discurso a serviço da dominação das elites hegemônicas, papel hoje exercido pela
indústria cultural” (apud CAIRO, 2004, p.72), publicando a obra Preguiça pastosa –
repensando o cânone brasileiro, o que traria à tona os discursos da diferença.
7
Roberto Schwarz (nascido em 1938) é um crítico literário austríaco naturalizado brasileiro. Mestre em Teoria
Literária em Yale e doutor em Estudos Latino-americanos pela Universidade de Paris III. Foi professor de Teoria
Literária na Universidade Estadual de Campinas de 1978 a 1992.
8
Ensaísta de destaque entre os principais críticos literários brasileiros da contemporaneidade e pesquisadora da
Fundação Casa de Rui Barbosa.
8
Nesse ínterim, passaram a receber a atenção dos estudiosos não apenas as obras que
fazem parte do cânone literário, mas todas as formas de produção escrita antes marginalizadas
como os jornais, as histórias em quadrinhos, a literatura de cordel, os romances, os mitos, os
contos populares, a literatura infantil, os textos religiosos, os livros didáticos e instrucionais,
entre outros, tornam-se objeto de investigação, deixando de ser considerados indignos.
Coutinho (2003, p.20) chama a atenção para o fato de que é necessário entendermos os
imbricamentos, superposições e transformações ocorridas na história literária de um país, bem
como não limitarmos o âmbito da literatura à produção escrita ficcional ou poética,
abandonando a visão monolítica, dando margem à “coexistência de cânones distintos dentro
de um mesmo cânone”, considerando a multiplicidade e dinamicidade do corpus.
Harold Bloom considerado por alguns o crítico literário mais popular do mundo é um
dos defensores da supremacia de um cânone ocidental e em suas publicações tem provocado o
furor de alguns grupos, alegando, por exemplo, que em sua primeira obra Angústia da
Influência (1973), cujo objetivo era distinguir os poetas fracos dos fortes, privilegiavam-se
autores mortos, brancos e ocidentais. Lançou em 2001 o livro Gênio – Um Mosaico de Cem
Mentes Exemplares e Criativas, no qual estabelece uma lista de obras consideradas por ele
fundamentais; o livro tem recebido críticas por tratar alguns escritores como dotados de
genialidade extraordinária, a exemplo de Shakespeare, Dante, Cervantes. Em entrevista
concedida à Revista Época9, em fevereiro de 2003, Bloom afirmou ter acrescentado à nova
lista o Oriente, Norte e sul, além de livros como a Bíblia e o Alcorão. A respeito dos autores
brasileiros, declarou: “Machado reúne os pré-requisitos da genialidade. Possui exuberância,
concisão e uma visão irônica ímpar do mundo. Procuro um grande poeta brasileiro vivo. Até
agora não encontrei nenhum”.
Dessa forma, as discussões da crítica literária giram em torno de duas posições: 1ª)
daqueles que defendem a não hierarquização das diversas formas de produção artística em
função de determinados interesses, preocupando-se em redescobrir dimensões multiculturais
esquecidas e 2ª) daqueles que continuam defendendo a existência de uma “alta literatura”, a
literatura culta como superior às demais, ou pertencente à cultura elevada, propagada por
aparelhos ideológicos, como a escola, as academias e a mídia.
Vale salientar que tal visão ainda suscita polêmica não só no meio acadêmico, como em
toda a sociedade. Jenkyns (2007) revela o que pensa Jonathan Sacks, o rabino máximo dos
EUA, ao afirmar que:
9
Disponível em http://www.secrel.com.br/jpoesia/hbloom.html
9
A existência de um cânone é essencial a uma cultura. Significa que as
pessoas compartilham um conjunto de referências e ressonâncias, um
vocabulário público de narrativas e discursos. Esta herança compartilhada,
segundo ele, está sendo destruída pelo multiculturalismo e pela tecnologia,
televisão via satélite e a Internet em particular.
Sendo assim, poderíamos dizer que tem havido de fato uma libertação da ditadura do
texto? Ou ainda assistimos à propagação de uma monocultura divulgada na mídia e na própria
escola? A resposta parece ser ainda óbvia, pois é visível a imposição de um currículo escolar
que não leva em conta os conteúdos culturais e os interesses que as pessoas possuem,
sustentando os interesses hegemônicos que, no caso do nosso país, tomam o modelo europeu
para constituição do cânone.
Segundo Matta (2004) seria interessante a criação da Literatura Popular Brasileira,
assim como ocorreu com a música, dando espaço, portanto, a diferentes estilos e
possibilitando a produção de novas obras e autores, cujo propósito seria o de ampliar e não
competir com a produção literária existente. Assim, afirma o autor, haveria uma aproximação
maior entre o livro e as pessoas, pois,
No dia em que uma parcela dos escritores decidir produzir trabalhos de
qualidade voltados primordialmente para o público e encontrar aliados no
meio editorial que acreditem no seu potencial e decidam lhe dar o adequado
suporte, a Literatura brasileira viverá, talvez, um dos momentos mais
importantes e revolucionários de toda a sua História: a dessacralização do
ato de ler e a sua imediata incorporação ao lazer das pessoas comuns.
(MATTA, 2004).
Dessa forma, talvez pudéssemos falar da leitura como algo real e possível a todos, não
apenas da leitura literária, e não apenas da leitura de algumas obras, mas da variedade de
textos que circulam na nossa sociedade, muitos deles por lugares inusitados e desconhecidos,
mas que têm sido objeto de investigação de muitos pesquisadores, preocupados em
reconhecer e legitimar os vários leitores do nosso país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É, portanto, importante perceber os conflitos e diálogos existentes entre diferentes
textos e leitores, buscando nessa relação o que está dentro e fora da relação de subalternidade
entre a cultura popular e a cultura letrada, além de verificar o que os une e os separa na
definição de leitores e/ou não-leitores, possibilitando, assim, denunciar a dimensão do
10
desperdício, neste caso, de obras e autores que ficaram fora das estantes dos que têm o poder
de legitimá-los.
Tal perspectiva levaria à libertação dessa prática hegemônica na medida em que
defende a diversidade e multiplicidade de textos, leitores e leituras, acreditando ser possível
transitar entre o científico e o popular, reconhecendo e valorizando diferentes saberes e
temporalidades. Dessa forma, o sujeito que teve na sua história de leitura uma relação com
textos que estão fora dos cânones literários, teria a sua experiência de leitura legitimada pela
sociedade, diminuindo o abismo entre livros e leitores.
Nesse sentido, são interessantes as considerações de Bourdieu (2005, p.251) a respeito
da leitura , quando afirma que “atualmente, onde há uma ortodoxia, um monopólio da leitura
legítima, um monopólio absoluto, não há mais leitura e freqüentemente nem mesmo leitores”.
Parece ser necessário de fato garantir aos múltiplos leitores a possibilidade de exercer o que
tem sido defendido por diversos teóricos da pós-modernidade: ser um agente ativo na
construção de sentidos e libertar-se da hegemonia ocidental, tornando-se respeitado e
valorizado pelo seu saber, que, muitas vezes, não corresponde àquele pretendido pela cultura
letrada.
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