REPENSANDO O CÂNONE: SOBRE COMO SE FORMA O LEITOR Patrícia Vilela da Silva1 RESUMO: Este trabalho apresenta um estudo sobre as discussões a respeito da instituição do cânone literário, especialmente no Brasil, e suas implicações na formação do leitor, partindo dos novos estudos que despontam no campo da historiografia literária contemporânea, tomando como base as idéias de multiculturalismo, visando à coexistência de diversos textos considerados legítimos dentro de um mesmo contexto. PALAVRAS-CHAVE: Cânone literário. Multiculturalismo. Formação do leitor. 1 INTRODUÇÃO O uso da palavra cânone, de origem grega “kanon” que significava uma espécie de vara com funções de medida, tornou-se generalizado a partir do séc. IV quando a igreja elegeu uma série de livros considerados como a verdade sobre a fé cristã, denominando apócrifos os livros rejeitados. O termo posteriormente passou a ser utilizado pela literatura, sendo associado às expressões “clássicos” e/ou “obras primas”, consistindo, portanto, na seleção de obras e autores tidos como “geniais”, determinando o que é legítimo e marginal, consentido ou proibido, impondo critérios de medidas. A escola passou a funcionar como importante instrumento de fixação e transmissão de cânones. Assistimos, ainda hoje, à imposição de obras obrigatórias a serem lidas como únicas fontes de representação da literatura, que se repetem ano após ano, apesar da explosão do mercado editorial, desde a década de 80, revelando novos autores e obras. Sendo assim, têm sido deixados de fora muitos textos com qualidade, devido a questões exógenas à literatura, como a política, a etnia, o sexismo, o colonialismo, entre outros. Também a mídia assume o papel de guiar o leitor na escolha das “boas” obras, através das resenhas, colunas, e das listas dos mais vendidos, prevalecendo o interesse mercadológico, abrindo espaço à discussão do cânone. Fazendo uma rápida consulta às 1 Professora Assistente do Departamento de Ciências Humanas – DCH – Campus IV- UNEB -. E-mail: [email protected] 2 páginas destinadas à cultura, no Jornal A Tarde2, é curioso observarmos que apenas uma obra brasileira apareceu na lista dos dez livros mais vendidos na categoria obras de ficção: As cem melhores crônicas brasileiras, de Vários autores, o que nos leva a questionar sobre o poder da imagem apresentada pela imprensa na escolha dos livros a serem lidos, marcada por interesses que dominam as sociedades capitalistas, estratégias de marketing que tornam a obra um objeto de consumo. Neste trabalho, pretendemos discutir algumas considerações em torno do cânone literário, levantando questionamentos a respeito da apreciação e/ou negação de obras. O que determina o cânone? Como têm sido discutidas essas questões nas academias? Quais as posições favoráveis e contrárias em relação a esse assunto? E de que forma o estabelecimento de um cânone literário influencia na formação do leitor? Para os propósitos modestos deste texto, tomaremos como referencial teórico os estudos de importantes autores que se propõem discutir questões referentes à construção da identidade cultural relacionadas aos conceitos do multiculturalismo. 2 A “BOA” LITERATURA E O SILENCIAMENTO DO OUTRO A constituição de um cânone literário brasileiro teve como modelo os parâmetros europeus: inicialmente, com a colonização, era determinado pela metrópole portuguesa para, em seguida, sofrer forte influência da cultura francesa. A partir do século XIX, entretanto, esteve relacionada à necessidade de construir a identidade cultural da nação, condição perpetuada ao longo do século XX. A idéia de dependência de uma cultura européia tida como melhor e mais forte era frequentemente revelada e comparada à nossa cultura, podendo ser percebida no discurso de alguns respeitáveis homens das letras. A esse respeito, mostra Silviano Santiago (apud SOUZA, 2002, p. 50) a posição de Joaquim Nabuco3 que caracteriza 2 Lista divulgada no Jornal A Tarde, Salvador, Ba, de 19 de agosto de 2007, apresentando a seguinte classificação: 1º) O caçador de pipas – Khaled Hossein; 2º) A menina que roubava livros – Markus Zusak; 3º) O guardião de memórias – Kim Edwards; 4º) A sombra do vento – Carlos Ruiz Zafón; 5º) As cem melhores crônicas brasileiras – Vários autores; 6º) Harry Potter e o enigma do príncipe – J. K. Rowling; 7º) Quando Nietzche chorou – Irvin D. Yalom; 8º) A montanha e o rio – Da Chen; 9º) O monge e o executivo – James C. Hunter; 10º) A fortaleza digital – Dan Brown 3 Joaquim Nabuco (1849-1910) foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Foi um político, historiador, diplomata, jurista e jornalista brasileiro. Lutou veementemente contra a escravidão e fundou em 1878 a Sociedade Antiescravidão Brasileira 3 a realidade brasileira como carente de uma tradição e vista como inferior; também Antônio Candido4 faz referência à nossa literatura como pobre e fraca. Ao analisar os tratados setecentistas sobre o modo de ler as Belas Letras, Abreu (2003) deixa claro que havia uma preocupação em prescrever obras a serem lidas (a leitura do romance entendida como forma de distração, por exemplo, que atingia diferentes segmentos da sociedade e que se fazia sem supervisão, deveria ser banida), tidas como modelos a serem imitados no momento da escrita, portanto, era importante ter contato apenas com os “melhores autores”, observando principalmente a estrutura do texto. É também Abreu (2006, p.124) quem nos desafia a examinar o conjunto de escritores citados no Romantismo para percebermos facilmente que há quase exclusivamente cariocas, pouquíssimas mulheres e que os índios aparecem como tema, em função da idéia de construir uma identidade nacional, mas não são apresentados como autores. Tais fatos evidenciam o silenciamento das culturas ou vozes minoritárias, por vezes até estereotipadas, uma vez que a única cultura evidenciada é construída a partir dos interesses das classes e grupos hegemônicos. No seu livro Literatura brasileira hoje, publicado pela Publifolha, da série Folha Explica – Literatura, com a primeira edição em 2004, Manuel da Costa Pinto5 propõe um cânone que, por tratar-se de uma eleição edificada com base nas preferências do autor ou historicamente construída, não poderia mostrar outro resultado que não o ligado ao favorecimento de autores e obras de determinadas regiões do Brasil. A região Sudeste aparece no topo da lista, além disso, as obras eleitas enquadram-se em apenas dois gêneros _ prosa e poesia_ ficando de fora o teatro, a biografia e o ensaio; outra evidência da exclusão diz respeito ao pequeno número de mulheres e representantes de certos grupos étnicos. Dessa forma, não há dúvidas de que, como afirma Cairo (2004, p.69) “o cânone literário é resultado de uma escolha por parte de autoridades críticas; é, portanto, o cânone da exclusão”. Cabe, portanto, a um grupo constituído por críticos literários, jornalistas, historiadores e o público letrado designar os critérios que legitimam uma obra. Nesse caso, cabe a nós questionar se de fato os autores selecionados, não desmerecendo o valor que possuem, representam, na sua totalidade, a literatura brasileira. Quantos deixaram de ser contemplados por não atenderem aos critérios estabelecidos pelo 4 Antonio Candido de Mello e Souza (Rio de Janeiro, 24 de julho de 1918) é um poeta, ensaísta, professor universitário e um dos principais críticos literários brasileiros. É professor-emérito da USP e da UNESP, e doutor honoris causa da Unicamp. 5 Jornalista, mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP e colunista da Folha de S.Paulo. 4 organizador do livro? Em entrevista concedida à revista eletrônica Weblivros a respeito da “boa” literatura, o jornalista Costa Pinto declarou que: Livros de auto-ajuda não são literatura. São uma manifestação de histeria coletiva sobre um suporte de papel. Não é diferente do lixo televisivo. Não é literatura. Infelizmente, a alta cultura é um domínio restrito. (...) a produção contemporânea tem um público restrito e só terá mais leitores num futuro remoto. Daqui a cem anos, Paulo Coelho estará completamente esquecido e Raduan Nassar será um pouco mais lido. Tal visão parece ilustrar bem o fato de que a determinação de boas ou más obras tem um caráter subjetivo e, quase sempre, arbitrário. O próprio conceito de literatura pode variar. Sobre isso, afirma Terry Eagleton: Se não é possível ver a literatura como uma categoria objetiva, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. [...] o que descobrimos até agora não é apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis, mas que esses juízos têm eles próprios uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre os outros. (EAGLETON, 1997, p. 22) Sendo assim, é possível afirmar que um texto não nasce literário, nem tampouco canônico, nem tem que ser sempre canônico ou não-canônico, uma vez que é determinada por critérios históricos e sociais. Se tais critérios respeitassem o “gosto” do público, por exemplo, Paulo Coelho6, citado pelo jornalista, entraria na lista dos escritores consagrados na literatura brasileira contemporânea, uma vez que tem vendido milhões de obras conseguindo satisfazer o leitor que busca entretenimento; há aqui uma oposição entre crítica e público. O escritor, apesar das inúmeras críticas que tem recebido, alcançou popularidade e no ano de 2002 foi aceito na Academia Brasileira de Letras. Tais críticas alegam problemas de escrita com a norma culta e a existência de conteúdo espiritual, o que faz com que suas obras sejam consideradas como literatura esotérica de auto-ajuda, e avaliadas como de valor menor. Neste caso, fica evidente o que afirma o teórico John Guillory (apud VIEIRA, 2003, p. 97) “o não-canônico não quer dizer aquilo que não emerge ou não aparece, mas algo que, dentro de um certo contexto de leitura, significa exclusão”. Caso contrário, as obras de Coelho estariam sendo “devoradas” 6 O escritor ocupa a posição no ranking dos mais vendidos no mundo, alcançando, até hoje, 92 milhões de livros em cerca de 160 países, suas obras já foram traduzidas para 66 idiomas e, em língua portuguesa, é o autor que mais vende obras em todos os tempos, ultrapassando Jorge Amado. Consulta feita em 22 de novembro de 2007. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Coelho. 5 por estudantes que concorrem aos vestibulares e que, por isso, são obrigados a ler determinados textos literários e, sem dúvida, seria ponto de discussão nas universidades, como objeto de produção cultural amplamente disseminado. A exclusão desse escritor brasileiro, dentre outros, que muitas vezes têm seus livros rejeitados no meio acadêmico, mesmo antes de eles serem lidos, é fruto da visão preconceituosa não só de críticos literários, como também de leitores, baseando-se em diversos fatores, tais como: gênero literário; grupo social a que pertencem e/ou representa; formação acadêmica; grupo étnico, entre outros. Trata-se de uma forma de manter o status social de um grupo prestigiado que tem o poder de hierarquizar e determinar o que pode ou não ser lido. Dessa forma, não se admite gostar de livros de auto-ajuda, best-sellers, gibis, novelas sentimentais, folhetos ou outros tipos de textos considerados inferiores em relação à supremacia do “bom” livro literário. Ao livro é atribuído um caráter de superioridade, mantendo uma enorme distância dos demais suportes textuais, há uma verdadeira mitificação do objeto livro. Segundo Rettenmaier (2004, p.189-190) tal posição guarda relação com a história oficial do nosso país, quando se tentou implementar um projeto nacional cuja finalidade era civilizar e calar uma comunidade ágrafa, depositando no livro o que seria considerado legítimo saber. Essa condição fez resultar a noção de ausência de leitura no Brasil, que predomina ainda hoje, pois não torna legítimos aqueles que leem outros textos, e não apenas livros literários, os quais não pertencem ao Índex de obras consagradas, muito menos se reconhece a oralidade como fonte de leitura. Sendo assim, é possível afirmar que existe no nosso país uma verdadeira lacuna em relação à leitura realizada especialmente em comunidades rurais ou em centros urbanos de pequeno porte, onde se imagina não haver qualquer forma de acesso à obra literária, uma vez que pesquisas realizadas revelam a “carência” de bibliotecas, livrarias e de “hábito” de leitura nessas regiões. A esse respeito, é interessante a afirmação de Abreu (2007) de que “a delimitação implícita de um certo conjunto de textos e de determinados modos de ler como válidos e o desprezo aos demais nos cega para grande parte das leituras realizadas no cotidiano” , o que tem suscitado o interesse no últimos anos de pesquisadores em contribuir para a escrita da história de leitura no Brasil As promessas de uma sociedade igualitária, democrática, advindas da idéia de racionalidade, que prevalecia na modernidade, fez com que o conhecimento cientifico e objetivo se tornasse hipervalorizado, ocorrendo, portanto, conforme Souza (2004, p.787) a “monocultura do saber” e do rigor do saber, que “consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, 6 respectivamente”. Dessa forma, os sujeitos cujas histórias de vida foram construídas em regiões suburbanas, em áreas rurais, sem nenhum contato com bibliotecas ou obras literárias consagradas seriam considerados não leitores, evidenciando, assim, o discurso da falta. Aqueles que não conseguem acompanhar a idéia de progresso, apresentando-se como leitor eficiente, crítico, competente - conceito construído dentro da lógica da modernidade ocidental que valoriza o conhecimento científico - torna-se apenas um leitor primário, ainda que possua uma experiência de leitura extremamente rica relacionada à tradição oral: contos, causos, cantigas, parlendas, textos religiosos, folclóricos, pois tais produções são consideradas “resquícios de eras primitivas”. 3 POR UMA VISÃO PLURAL DA LITERATURA É inegável a contribuição dos Estudos Culturais que, a partir de meados do século XX, se propõem interrogar a realidade de uma nova forma, tomando como base temas do domínio da cultura e salientando o papel das representações, conforme Chartier (1990). Tal perspectiva faz surgir uma variedade de objetos, possibilitando o diálogo com diversas áreas do conhecimento, como a História, a Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política e a Literatura. Toda a atividade humana passou a interessar à Nova História. Assim, surgiram temas como a morte, a loucura, o medo, a infância, a mulher, a leitura, entre outros, que passaram a ser entendidos como uma “construção cultural”, variando no tempo e no espaço (BURKE, 1992). Essa nova perspectiva acentuou o caráter interdisciplinar da historiografia literária, que questiona, entre outras coisas, o conceito de literariedade, o qual vem sofrendo críticas quanto ao seu caráter unicultural, tendo sido constantemente repensado, chegando a incluir categorias variadas do discurso, antes marginalizadas, como o registro popular e a literatura oral, passando a dar ouvidos a outras vozes e linguagens. Sendo assim, o cânone perde o seu caráter unívoco. Além disso, tornam-se relevantes as condições de produção e recepção da obra, uma vez que “[...] a investigação histórica está menos interessada em registrar a ocorrência de certos fatos ou eventos do que em determinar o significado que eles tiveram para um determinado grupo ou sociedade” (COUTINHO, 2003, p.17). A chamada pós-modernidade é caracterizada pela crise de conceitos que no pensamento moderno eram fundamentais, como verdade, razão, progresso, universalidade, sujeito, etc, configurando-se, assim, como incerteza, sensação de caos, perda de confiança na 7 objetividade. Dessa forma, uma das suas principais problemáticas é aquela que questiona o poder de a ciência tornar algo legítimo ou ilegítimo, válido ou inválido. O multiculturalismo crítico questiona o monoculturismo, evidencia as contradições socioculturais, visando à eliminação das fronteiras entre a arte erudita e a arte popular, à diluição dos critérios tradicionais de definição da estética e à valorização da intertextualidade, fazendo vir à tona as diferenças e as ausências de muitas vozes que foram caladas pelas metanarrativas da modernidade. Há, pois, um descentramento; não um núcleo central, mas vários núcleos, valorizam-se os grupos marginais, as minorias, silenciadas pelos cânones que passam a questionar suas posições em relação ao poder exercido na sociedade. Na literatura, segundo Cairo, tais discussões podem ser percebidas a partir dos anos 80, quando se volta para a expressão das vozes que ficaram à margem do cânone hegemônico da história da literatura brasileira. Período marcado pelo multiculturalismo, [...] em que se busca revitalizar o cânone através da inclusão de textos que expressam as vozes dos deixados à margem em função da etnia, gênero, sexualidade, condição sócio-econômica ou por outro tipo de sanção ideológica e conseqüente exclusão daqueles que não mais respondem ao horizonte de expectativas do presente (CAIRO, 2004, p.71). Sendo assim, rejeitam-se as grandes obras e autores, uma vez que são considerados instrumentos a favor dos interesses dominantes. Nesse período, o autor mostra que são produzidas obras que propõem novas discussões na literatura, como: 1) Os pobres na literatura brasileira (1983) , de Roberto Schwarz7, na qual o autor provoca uma revisão nos critérios de seleção e obras constantes no cânone da literatura brasileira; 2) Tal Brasil, qual romance? (1984), de Flora Süssekind8, texto que contribui para a discussão do cânone ao explicitar que a construção de uma história literária se faz com o ocultamento de diferenças e descontinuidades. Roberto Reis contesta a hegemonia do cânone: “a literatura funcionou como discurso a serviço da dominação das elites hegemônicas, papel hoje exercido pela indústria cultural” (apud CAIRO, 2004, p.72), publicando a obra Preguiça pastosa – repensando o cânone brasileiro, o que traria à tona os discursos da diferença. 7 Roberto Schwarz (nascido em 1938) é um crítico literário austríaco naturalizado brasileiro. Mestre em Teoria Literária em Yale e doutor em Estudos Latino-americanos pela Universidade de Paris III. Foi professor de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas de 1978 a 1992. 8 Ensaísta de destaque entre os principais críticos literários brasileiros da contemporaneidade e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa. 8 Nesse ínterim, passaram a receber a atenção dos estudiosos não apenas as obras que fazem parte do cânone literário, mas todas as formas de produção escrita antes marginalizadas como os jornais, as histórias em quadrinhos, a literatura de cordel, os romances, os mitos, os contos populares, a literatura infantil, os textos religiosos, os livros didáticos e instrucionais, entre outros, tornam-se objeto de investigação, deixando de ser considerados indignos. Coutinho (2003, p.20) chama a atenção para o fato de que é necessário entendermos os imbricamentos, superposições e transformações ocorridas na história literária de um país, bem como não limitarmos o âmbito da literatura à produção escrita ficcional ou poética, abandonando a visão monolítica, dando margem à “coexistência de cânones distintos dentro de um mesmo cânone”, considerando a multiplicidade e dinamicidade do corpus. Harold Bloom considerado por alguns o crítico literário mais popular do mundo é um dos defensores da supremacia de um cânone ocidental e em suas publicações tem provocado o furor de alguns grupos, alegando, por exemplo, que em sua primeira obra Angústia da Influência (1973), cujo objetivo era distinguir os poetas fracos dos fortes, privilegiavam-se autores mortos, brancos e ocidentais. Lançou em 2001 o livro Gênio – Um Mosaico de Cem Mentes Exemplares e Criativas, no qual estabelece uma lista de obras consideradas por ele fundamentais; o livro tem recebido críticas por tratar alguns escritores como dotados de genialidade extraordinária, a exemplo de Shakespeare, Dante, Cervantes. Em entrevista concedida à Revista Época9, em fevereiro de 2003, Bloom afirmou ter acrescentado à nova lista o Oriente, Norte e sul, além de livros como a Bíblia e o Alcorão. A respeito dos autores brasileiros, declarou: “Machado reúne os pré-requisitos da genialidade. Possui exuberância, concisão e uma visão irônica ímpar do mundo. Procuro um grande poeta brasileiro vivo. Até agora não encontrei nenhum”. Dessa forma, as discussões da crítica literária giram em torno de duas posições: 1ª) daqueles que defendem a não hierarquização das diversas formas de produção artística em função de determinados interesses, preocupando-se em redescobrir dimensões multiculturais esquecidas e 2ª) daqueles que continuam defendendo a existência de uma “alta literatura”, a literatura culta como superior às demais, ou pertencente à cultura elevada, propagada por aparelhos ideológicos, como a escola, as academias e a mídia. Vale salientar que tal visão ainda suscita polêmica não só no meio acadêmico, como em toda a sociedade. Jenkyns (2007) revela o que pensa Jonathan Sacks, o rabino máximo dos EUA, ao afirmar que: 9 Disponível em http://www.secrel.com.br/jpoesia/hbloom.html 9 A existência de um cânone é essencial a uma cultura. Significa que as pessoas compartilham um conjunto de referências e ressonâncias, um vocabulário público de narrativas e discursos. Esta herança compartilhada, segundo ele, está sendo destruída pelo multiculturalismo e pela tecnologia, televisão via satélite e a Internet em particular. Sendo assim, poderíamos dizer que tem havido de fato uma libertação da ditadura do texto? Ou ainda assistimos à propagação de uma monocultura divulgada na mídia e na própria escola? A resposta parece ser ainda óbvia, pois é visível a imposição de um currículo escolar que não leva em conta os conteúdos culturais e os interesses que as pessoas possuem, sustentando os interesses hegemônicos que, no caso do nosso país, tomam o modelo europeu para constituição do cânone. Segundo Matta (2004) seria interessante a criação da Literatura Popular Brasileira, assim como ocorreu com a música, dando espaço, portanto, a diferentes estilos e possibilitando a produção de novas obras e autores, cujo propósito seria o de ampliar e não competir com a produção literária existente. Assim, afirma o autor, haveria uma aproximação maior entre o livro e as pessoas, pois, No dia em que uma parcela dos escritores decidir produzir trabalhos de qualidade voltados primordialmente para o público e encontrar aliados no meio editorial que acreditem no seu potencial e decidam lhe dar o adequado suporte, a Literatura brasileira viverá, talvez, um dos momentos mais importantes e revolucionários de toda a sua História: a dessacralização do ato de ler e a sua imediata incorporação ao lazer das pessoas comuns. (MATTA, 2004). Dessa forma, talvez pudéssemos falar da leitura como algo real e possível a todos, não apenas da leitura literária, e não apenas da leitura de algumas obras, mas da variedade de textos que circulam na nossa sociedade, muitos deles por lugares inusitados e desconhecidos, mas que têm sido objeto de investigação de muitos pesquisadores, preocupados em reconhecer e legitimar os vários leitores do nosso país. CONSIDERAÇÕES FINAIS É, portanto, importante perceber os conflitos e diálogos existentes entre diferentes textos e leitores, buscando nessa relação o que está dentro e fora da relação de subalternidade entre a cultura popular e a cultura letrada, além de verificar o que os une e os separa na definição de leitores e/ou não-leitores, possibilitando, assim, denunciar a dimensão do 10 desperdício, neste caso, de obras e autores que ficaram fora das estantes dos que têm o poder de legitimá-los. Tal perspectiva levaria à libertação dessa prática hegemônica na medida em que defende a diversidade e multiplicidade de textos, leitores e leituras, acreditando ser possível transitar entre o científico e o popular, reconhecendo e valorizando diferentes saberes e temporalidades. Dessa forma, o sujeito que teve na sua história de leitura uma relação com textos que estão fora dos cânones literários, teria a sua experiência de leitura legitimada pela sociedade, diminuindo o abismo entre livros e leitores. Nesse sentido, são interessantes as considerações de Bourdieu (2005, p.251) a respeito da leitura , quando afirma que “atualmente, onde há uma ortodoxia, um monopólio da leitura legítima, um monopólio absoluto, não há mais leitura e freqüentemente nem mesmo leitores”. Parece ser necessário de fato garantir aos múltiplos leitores a possibilidade de exercer o que tem sido defendido por diversos teóricos da pós-modernidade: ser um agente ativo na construção de sentidos e libertar-se da hegemonia ocidental, tornando-se respeitado e valorizado pelo seu saber, que, muitas vezes, não corresponde àquele pretendido pela cultura letrada. REFERÊNCIAS ABREU, Márcia. A leitura das belas-letras. In: Os Caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2003. ______. Cultura letrada - literatura e leitura. Coleção Paradidáticos. São Paulo: Unesp, 2006. ______. Diferentes formas de ler. Disponível em http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Marcia/marcia.htm. Acesso em 12 de março de 2007. BOURDIEU, Pierre. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação liberdade, 2005. BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: ______. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo. 2 ed.UNESP, 1992. 11 CAIRO, Luiz Roberto. Apontamentos sobre o cânone da história da literatura brasileira na virada dos séculos. Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS. História da literatura em questão. Porto Alegre, n.1. v.10, p..69-73, set. 2004. COUTINHO, Eduardo. Comparativismo e historiografia literária. In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). Teoria da literatura: teorias, temas e autores. Porto Alegre; Mercado Aberto, 2003. EAGLETON, Terry. O que é literatura? In: Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1997. JEKYNS, Richard. Será preciso um cânone literário? Disponível em: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/prospect/2007/12/06/ult2678u130.jhtm. Acesso em 22 de novembro de 2007. MATTA, Luis Eduardo. A LPB na novíssima literatura. Disponível em http://www.paralelos.org/out03/000456.html. Acesso em 18 de outubro de 2007. PINTO, Manuel da Costa. Entrevista com o jornalista Manuel da Costa Pinto. Disponível em: http://www.weblivros.com.br/entrevista/entrevista-com-o-jornalista-manuel-da-costa- pinto-11.html. Acesso em 22 de novembro de 2007. RETTENMAIER, Miguel. Cultura escrita e identidade(s): difíceis contornos. In: MAIER, Miguel et al (org). Leitura, identidade e patrimõnio cultural. Passo Fundo:UPF,2004. SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida docente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: Silva, Tomaz Tadeu da (org). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes: 2005. 6ed. SOUZA, Eneida Maria de. O discurso crítico brasileiro _ o mal-estar da dependência e a alegria antropofágica; vanguarda e subdesenvolvimento. In: ______. Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG,2002. 12 VIEIRA, Nelson H. Hibridismo e alteridade: estratégias para repensar a história literária. In: MOREIRA, Maria Eunice (org.). Teoria da literatura: teorias, temas e autores. Porto Alegre; Mercado Aberto, 2003.